Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
544/10.6T2STC.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
SOCIEDADE UNIPESSOAL
VINCULAÇÃO
REPRESENTAÇÃO
PROCURAÇÃO
MANDATO
CONFIRMAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Doutrina: - Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, I, 219.
- Carolina Cunha, “Vinculação Cambiária de Sociedades: algumas questões”, pág. 361.
- Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, pág.541.
- Pessoa Jorge, “Mandato Sem Representação”, 20.
- Pinto Furtado, “Código das Sociedades Comerciais”, 4ª ed., 1991, pág.144.
- Raul Ventura, “Sociedades Por Quotas”, vol. III, Almedina, 1996, págs. 26, 27/28.
Legislação Nacional: - CÓDIGO CIVIL (CC): – ARTIGOS 217.º, 219.º, 236.º, N.º1, 258.º, 252.º, N.º6, 268.º, N.º2, 1157.º, 1175.º, 1180.º.
- CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 260.º, N.º4, 252.º, N.º6, 262.º, N.º2, 270.º-G.
Jurisprudência Nacional: - ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, (AUJ) N°/20002, PUBLICADO NO D.R., I SÉRIE-A, Nº 20, DE 24.1.2002.
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 24.11.2009 – WWW.DGSI.PT.
Sumário : I) - A exigência legal de “indicação da qualidade em que se assina” imposta no âmbito da vinculação das sociedades comerciais – art. 260º, nº4, do Código das Sociedades Comerciais – destina-se a estabelecer, inequivocamente, que, quem age em representação de um ente societário, o faz, não a título pessoal, mas com intenção de vincular a sociedade de que é gerente ou administrador, importando, também, a protecção de terceiros de boa-fé.

II. O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº1/2002 doutrinou que “A indicação da qualidade de gerente prescrita no n°4 do art. 260° do Código das Sociedades Comerciais pode ser deduzida, nos termos do art. 217° do Código Civil, de factos que, com toda a probabilidade, a revelem”.

III. Ao remeter para o art. 217º do Código Civil, admitiu-se a vinculação das sociedades através de forma tácita, ou seja, com recurso a factos não contemplados no documento para se fazer a prova de quem interveio em nome da sociedade, foi alguém que o fez em representação dela, não se vinculando a título pessoal.

IV) – O art.252º do Código das Sociedades Comerciais, no seu nº6, não exclui que a gerência possa “nomear mandatários ou procuradores da sociedade para a prática de determinados actos ou categorias de actos, sem necessidade de cláusula expressa.” Tal representação pode fazer-se através de procuração ou por contrato de mandato, nos termos gerais.

V) – O 2º Autor, não sendo gerente da Ré, poderia, munido de uma procuração meramente verbal, representar a autora sociedade, adquirindo para ela as máquinas agrícolas, já que o contrato de compra e venda em causa não estava sujeito a forma, poderia ter sido celebrado verbalmente.

VI. Tendo o contrato de compra e venda de máquinas agrícolas sido solenizado por vontade das partes, a sociedade compradora deve considerar-se validamente vinculada por seu comportamento concludente, mesmo sendo formal a declaração negocial, tal não impede que a declaração negocial ratificadora seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada – nº2 do art. 217º do Código Civil.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


            “AA Lda.”, e; BB, intentaram, em 20.5.2010, pela Comarca do Alentejo Litoral – Santiago do Cacém – Juízo de Grande Instância Cível – 1º Juízo – acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, contra:

CC, Lda.

Pedindo a condenação desta:

- a pagar à primeira Autora a quantia de € 33.600,00 (trinta e três mil e seiscentos euros), acrescidos de juros legais à taxa comercial, contados desde 15 de Abril de 2010 e até integral pagamento ou compensação, a título de indemnização pela perda da máquina enfardadeira identificada;

- pagar à primeira Autora a quantia de € 7.875,00 (sete mil, oitocentos e setenta e cinco euros), acrescida de juros à taxa legal comercial, desde a citação até integral pagamento, a título de indemnização por lucros cessantes;

- pagar à primeira Autora a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), acrescida de juros à taxa legal comercial, desde a citação até integral pagamento, a título de indemnização pela ofensa à reputação comercial e consequente perda de clientela;

- pagar ao segundo Autor a quantia de € 38.125,00 (trinta e oito mil cento e vinte e cindo euros), acrescida de juros à taxa legal comercial, desde a citação até integral pagamento, a título de indemnização por lucros cessantes.

Alegaram, em síntese, que:

- a 1ª Autora e a Ré outorgaram um contrato através do qual a segunda vendeu à primeira determinados equipamentos para a actividade agro-pecuária a que esta se dedica;

- esta proposta de venda foi aceite pela 1ª Autora em parceria com o segundo Autor, actuando ambos em comunhão de interesses com o propósito de partilharem a utilização dos

equipamentos agrícolas em causa;

- as partes acordaram os termos em que deveria ser efectuado o pagamento;

- a primeira Autora pagou apenas à Ré € 3.000,00, vindo a dar-lhe indicações para proceder ao desconto da letra de câmbio que lhe havia sido entregue;

- a determinada altura, a primeira Autora entregou à Ré uma das máquinas em questão para reparação, vindo esta a vender a referida máquina a terceiro.

Concluem, assim, que a Ré procedeu a venda de coisa alheia, o que a torna responsável pelos prejuízos que causou aos Autores, os quais reclamam.

Regularmente citada, a Ré contestou.

Excepcionou a falta de prestação da garantia a que, nos termos acordados, o Autor estava obrigado.

Impugnou que lhe tenha sido paga qualquer quantia.

Mais refere que a máquina não lhe foi entregue para reparação mas sim como retoma para a celebração de um contrato de leasing relativamente a uma máquina de preço superior.

Quanto ao mais, impugna o alegado pelos Autores relativamente aos danos sofridos.

Deduziu ainda pedido reconvencional relativo ao montante ainda em dívida pela Autora.

Concluiu, pugnando pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção e, em consequência, ser a Autora condenada a pagar-lhe a quantia de € 17.704,80 acrescida de juros.

Pede ainda a condenação dos Autores como litigantes de má-fé.

Subsidiariamente, caso venha a ser reconhecida, no todo ou em parte, razão aos Autores, requereu a compensação do crédito que detém sobre estes.

Replicaram os Autores, pugnando pela improcedência das excepções e da reconvenção.

No despacho saneador conheceu-se do mérito:

 A) Declarando-se nulo, por violação de normas de carácter imperativo, o contrato de compra e venda de equipamentos agrícolas objecto da presente acção;

B) Julgou-se improcedente a acção e a reconvenção, absolvendo dos pedidos que por via  daquelas foram formulados a Ré Tecnomira e os Autores/Reconvindos AA e BB.

A Autora, interpôs recurso de revista per saltum para este Supremo Tribunal de Justiça e alegando formulou as seguintes conclusões:

1. O presente recurso é interposto do despacho saneador que decidiu o mérito da causa e, por incidir exclusivamente sobre questões de direito e em vista do preenchimento dos demais requisitos previstos no n.°1, do artigo 725.°, do Código de Processo Civil, os recorrentes requerem a subida dos autos directamente ao Supremo Tribunal de Justiça.

2. O recurso ora interposto, tem como objecto a apreciação da adequação, considerando o quadro legal vigente, da decisão de declarar nulo o contrato de compra e venda de bens móveis, celebrado entre a recorrida “Tecnomira” e a recorrente “AA”, que, para o efeito, se fez representar, por procuração verbal, conferida ao recorrente BB (conforme oportunamente alegado).

3. Os recorrentes entendem, ao contrário da posição sustentada na douta decisão recorrida, que o nº4, do artigo 260.°, do Código das Sociedades Comerciais, obriga apenas a intervenção de gerente, com aposição de assinatura para representação da sociedade, quando estão em causa actos cuja forma legalmente prevista seja a escrita, pois quando assim não for e o documento escrito for meramente acessório, por estar em causa negócio para o qual não seja imposta forma específica, relevará a vontade declarada verbalmente.

4. A “AA” fez-se representar com poderes verbalmente conferidos a BB — no contrato de compra e venda em questão — de forma regular e formalmente válida, tanto porque o n.°6, o artigo 252.°, do Código das Sociedades Comerciais prevê a possibilidade de os gerentes se fazerem representar para actos concretos (como era o caso), como porque o negócio não exigia forma escrita (artigo 219.°, do Código Civil), como porque a procuração, nos termos previsto no artigo 262.°, n.°2, do Código Civil, deve revestir apenas a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.

5. Mesmo o facto do recorrente BB ter assinado um documento para formalização (ou complemento) do negócio, não invalida a regularidade dos poderes que verbalmente lhe foram conferidos, porquanto se tratou de forma adoptada sem intervenção da mandante e que, portanto nem pode configurar propriamente uma forma convencional para o negócio.

6. Não se tratava, portanto de um acto em que só os gerentes poderiam representar a sociedade nos termos previstos no n.°4, do artigo 260.°, do Código das Sociedades Comerciais, porquanto não era um negócio para o qual fosse exigida a forma escrita.

7. A nulidade enquanto forma de invalidade do acto jurídico terá que ter origem em vício grave que envolva interesses eminentemente públicos, sendo certo que no caso dos autos e quanto ao negócio da compra e venda das máquinas agrícolas, estão em causa interesses meramente particulares e privados das partes envolvidas no negócio, pelo não poderá ter aplicação o disposto no artigo 294.°, do Código Civil (nulidade por violação de disposição legal de carácter imperativo).

8. Sem prejuízo do âmbito de aplicação do n.°6 do artigo 252.°, do Código das Sociedades Comerciais, não fica prejudicada a aplicação às sociedades comerciais do regime previsto no artigo 268.°, n.°1, do Código Civil (representação sem poderes), aplicável, ademais, por remissão do artigo 2.°, do Código das Sociedades Comerciais, pelo que sempre o negócio em questão (ainda que hipoteticamente se considerasse de algum modo invalidado por falta de regular representação) se deveria considerar ratificado.

9. Até porque o que está em causa nos presentes autos, não é uma procuração com poderes genéricos para exercício da gerência, mas antes poderes específicos para a prática de um acto muito concreto e determinado: a aquisição de máquinas agrícolas.

10. Na particular situação dos autos, quem conferiu poderes de representação (verbalmente) ao recorrente BB, foi a gerente da “AA”, que é a mesma pessoa que a sua única sócia, pelo que as razões das limitações legais à representação da sociedade e da gerência — designadamente as limitações previstas nos artigos 252.°, n.° 5, e n.°6 e artigo 260.°, n.° 4, do Código das Sociedades Comerciais — encontram-se esbatidas, não permitindo concluir pela existência de qualquer interesse público envolvido e consequentemente, inviabilizando a aplicação do artigo 294.°, do Código Civil, com fundamente em qualquer violação das aludidas normas.

11. Já após a celebração do negócio, a recorrente “AA” aceitou as máquinas nas suas instalações, contratou serviços para aquelas máquinas, pagou parte do preço das mesmas, utilizou-as.., pelo que sempre o negócio deveria considerar-se confirmado, sendo pois irrelevante a existência de qualquer vício (que, ainda assim, não se concede existir).

12. Ao não interpretar os preceitos legais agora indicados nos moldes que constam da presente alegação e mais resumidamente das conclusões agora apresentadas e que delimitam o objecto do recurso, o tribunal a quo violou as disposições legais contidas nos artigos 252.°, n.°6 e 264.°, n.°4, do Código das Sociedades Comerciais e nos artigos 219.°, 262.°, n.° 2, 268.°, n.° 1 e 294.°, todos do Código Civil.

13. Porquanto e salvo mais erudita perspectiva, nenhum fundamento legal existe para que possa considerar-se o negócio com estando ferido de nulidade e que, consequentemente, não produza qualquer efeito.

Nestes termos, deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência, ser revogada a decisão que declarou nulo o contrato de compra e venda que está em causa e que julgou improcedente a acção, sendo tal decisão substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que o Tribunal recorrido considerou provados e relevantes os seguintes factos:

A) A Autora “AA Lda.” tem como única sócia e gerente DD;

B) Mostra-se junto aos autos a fls. 27 um escrito particular intitulado “Contrato de Venda”, em que constam como “vendedor” a Ré Tecnomira e como “Cliente” a Autora AA Lda.

C) Tal escrito refere como data “19-03-2009” e respeita aos seguintes equipamentos:

- Uma enfardadeira CLAAS 255 RC;

- Uma emplastificadora MELLALE 991 BC;

- Uma Pinça de Fardos Redondos FENST.

D) No local reservado à “assinatura do cliente” consta a assinatura do Autor BB.

Fundamentação:

Sendo pelas conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se o contrato invocado como causa de pedir é nulo pelo facto da Autora não se ter vinculado validamente.

            Vejamos:

             No despacho saneador-sentença, depois de se ter qualificado o contrato invocado como causa de pedir pelos AA. como de compra e venda – art. 874º do Código Civil – tendo por objecto três máquinas agrícolas, sendo comprador a Autora-sociedade, considerou-se que o contrato escrito celebrado pelas partes, não estava assinado por quem no registo consta como gerente da sociedade (trata-se de uma sociedade unipessoal por quotas), mas sim pelo co-autor BB.

            Baseado neste facto e porque a gerente da Ré não interveio, assinando o documento que titula o contrato, considerou-se que a assinatura de BB, no contrato de compra e venda, não vincula a sociedade, declarando-se oficiosamente a sua nulidade.

            Está em causa saber se a Autora se vinculou validamente no contexto do contrato celebrado com a Ré.

            Na decisão recorrida, considerou-se ter havido violação do art. 260º, nºs 1 e 4, do Código das Sociedades Comerciais, (CSC) ainda que o contrato de compra e venda em causa não exija a adopção de forma, sendo meramente consensual, não obstante as partes o terem, voluntariamente, reduzido a escrito.

            Como se sabe quanto à vinculação contratual vigora com excepções a regra da liberdade de forma, a consensualidade – art. 219º do Código Civil – podendo, no entanto, as partes voluntariamente reduzir a escrito a declaração negocial.

            Nos termos do art. 260º, nº4, do Código das Sociedades Comerciais “ Os gerentes vinculam a sociedade, em actos escritos, apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade”.

            Decorre do nº1 do citado normativo que – “Os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberação dos sócios”.

Com a entrada em vigor do Código das Sociedades Comerciais, as assinaturas com firma social deixaram de constituir forma válida de vinculação da sociedade em actos escritos.

Exige-se no normativo vigente, que os gerentes que em actos escritos actuam em representação da sociedade tenham que fazer menção dessa qualidade, apondo-a.

            A exigência legal de “indicação da qualidade em que se assina” destina-se a estabelecer, inequivocamente, que quem age em representação de um ente societário o faz, não a título pessoal, mas com intenção de vincular a sociedade de que é gerente ou administrador. Importa também a protecção de terceiros de boa-fé.

            A propósito do art. 260º, nº4, do Código das Sociedades Comerciais, cita-se a opinião do Professor Raul Ventura que se pode ler no douto Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 5.11.1998, BMJ – 481-503:

A “sua assinatura” é a pessoal do gerente; a qualidade é a de gerente. Está, pois, abolida a forma de assinatura “com a firma social” [...]. Indis­pensável para a vinculação da sociedade é a reunião dos dois elementos: assinatura pessoal do gerente e menção da qualidade de gerente [...].

 Men­cionar a qualidade de gerente implica a especificação da sociedade de que a pessoa invoca a gerência e esta especificação só está perfeita se o tipo da sociedade foi tornado claro, o que resulta da própria firma social com­pleta”. – “Comentário ao Código das Sociedades Comerciais”, vol. III, 1991, págs. 171 – 172.

J. Pinto Furtado, sustentava que a vinculação da sociedade resulta de o acto ser praticado “em nome” da sociedade, não se exigindo palavras sacramentais ou, sequer, a assinatura com a própria firma da sociedade; “obriga-a, portanto, a mera assinatura pessoal do ge­rente “em nome” da sociedade – nome que não tem obviamente de ser invocado de forma expressa, podendo igualmente resultar das circunstâncias em que a assinatura pessoal foi subscrita ou o acto foi praticado” – Código das Sociedades Comerciais, 4ª ed., 1991, pág. 244.

Esta controvérsia no que respeita à forma de vinculação das sociedades fez surgir duas correntes; uma exigindo aquele requisito de forma rígida, estritamente literal; outra, mais transigente, foi adoptada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, (AUJ) nº1/2002, de 6.12.2001, com vários votos de vencido, publicado no D.R., I Série-A, nº 20, de 24.1.2002 que doutrinou – “A indicação da qualidade de gerente prescrita no n°4 do art. 260° do Código das Sociedades Comerciais pode ser deduzida, nos termos do art. 217° do Código Civil, de factos que, com toda a probabilidade, a revelem”.

Ao remeter para o citado normativo do Código Civil admitiu-se a vinculação das sociedades através de forma tácita, ou seja, admitiu-se de certo modo o recurso a factos não contemplados no documento para se fazer a prova de quem interveio em nome da sociedade foi alguém que o fez em representação dela, não se vinculando assim a título pessoal. Esta problemática tinha a maior relevância no contexto dos títulos de crédito, sobretudo, face à característica de literalidade dos títulos cambiários.

Trata-se de um problema de interpretação por aplicação da teoria da impressão do destinatário – art. 236º, nº1, do Código Civil – cfr. Carolina Cunha, in “Vinculação Cambiária de Sociedades: algumas questões”, pág. 361.

A doutrina do AUJ é aplicável à 1ª Autora por ser uma sociedade unipessoal por quotas, já que o art. 270º-G do Código das Sociedades Comerciais, estatui – “Às sociedades unipessoais por quotas aplicam-se as normas que regulam as sociedades por quotas, salvo as que pressupõem a pluralidade de sócios”.

Mas no caso importa saber, se, tendo intervindo em nome da sociedade não um gerente mas outra pessoa – procurador ou mandante –, é necessário o requisito formal da assinatura em representação da sociedade.

No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24.11.2009 – de que fomos relator – publicado in www.dgsi.pt – onde se discutia a validade de uma procuração emitida pelos gerentes com poderes latíssimos, pode ler-se:

“Dispõe o art. 252º do Código das Sociedades Comerciais:

“1. A sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena.

 2. Os gerentes são designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios, se não estiver prevista no contrato outra forma de designação.

3. A gerência atribuída no contrato a todos os sócios não se entende conferida aos que só posteriormente adquiram esta qualidade.

 4. A gerência não é transmissível por acto entre vivos ou por morte, nem isolada, nem juntamente com a quota.

 5. Os gerentes não podem fazer-se representar no exercício do seu cargo, sem prejuízo do disposto no n.° 2 do artigo 261.°

 6. O disposto nos números anteriores não exclui a faculdade de a gerência nomear mandatários ou procuradores da sociedade para a prática de determinados actos ou categorias de actos, sem necessidade de cláusula contratual expressa”.

O que está em causa é o nº6 do citado normativo que a recorrida considera infringido, por entender que a procuração não pode contemplar poderes tão latos que posterguem a pessoalidade da gerência.

 Existe uma relação de confiança na designação do gerente tendo em conta as suas qualidades e competência para o exercício do cargo, que é a um de tempo de representação e administração, pelo que, se os gerentes através de procuração com latíssimos poderes de administração da vida da sociedade, objectivamente perdem o comando dos destinos da sociedade, abdicam das funções de gerência, cometendo-as integralmente a outrem, ficando sem qualquer controle dos destinos e gestão do ente societário, comprometendo a sua responsabilidade ante os sócios que os incumbiram da gerência, tanto mais que, no caso, a procuração passada a favor do Réu é irrevogável.

[…]

Como ensina Raul Ventura, in “Sociedade por Quotas” – vol. III – pág. 26:

 “A intransmissibilidade da gerência justifica-se pela confiança que a entidade designante (normalmente os sócios) depositava na pessoa escolhida; a relação estabelecida entre a sociedade e gerente tem, quanto a este, carácter altamente pessoal”. 

  O nº6 do art. 252º do Código das Sociedades Comerciais, ao consentir à gerência a faculdade de nomear mandatários ou procuradores da sociedade, não o fez irrestritamente.

Consignou que essa nomeação de mandatários ou procuradores se reportava “à prática de determinados actos ou categorias de actos”.

A ratio legis do preceito visa salvaguardar um núcleo intangível de poderes que não podem ser “delegados”, sob pena de se perder a pessoalidade da gerência que passaria de modo completo e incontrolável para mandatários ou procuradores que, dispondo de poderes amplos, controlariam a gestão da sociedade, à margem dos gerentes.

O art.252º do Código das Sociedades Comerciais, no seu nº6, não exclui que a gerência possa “nomear mandatários ou procuradores da sociedade para a prática de determinados actos ou categorias de actos, sem necessidade de cláusula expressa.”

Esta representação pode fazer-se através de procuração por contrato de mandato, nos termos gerais.

Nos termos do art.262º, nº2, do Código Civil – “Salvo disposição em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deve realizar.”

Assim, o 2º Autor, não sendo gerente da Ré, poderia, munido de uma procuração meramente verbal, representar a autora sociedade, adquirindo para ela as máquinas agrícolas que a 1ª Autora considera suas, já que o contrato de compra e venda em causa não estava sujeito a forma, poderia ter sido celebrado verbalmente.

Estatui o art. 258º do Código Civil:

“O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último”.

         A representação consiste no exercício jurídico, em nome de outrem, com imputação dos seus efeitos na esfera jurídica desse outrem – o representado.

 Também poderia o 2º Autor ter agido como mandatário da sociedade.

O mandato – art. 1175º do Código Civil – “É o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outrem” – é um contrato de prestação de serviço.

Confrontando a representação e o mandato, resulta, segundo Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, pág. 541, que:

 “a) Pode haver mandato sem haver representação, quando o mandatário não recebeu poderes para agir em nome do mandante; age por conta do mandante, mas em nome próprio: é o caso do contrato de comissão, regulado nos artigos 266° e segs. do Código Comercial, e do contrato de mandato sem representação, cuja regulamentação foi introduzida pelo Código Civil (art. 1180º), sendo análoga à daquele negócio da lei mercantil.

b) Pode haver representação sem haver mandato, não só na hipótese da representação legal, mas também no que toca à representação voluntária: a representação voluntária resulta de um acto — a chamada procuração (art. 262°) — que pode existir autonomamente (negócio unilateral, qualificam-no os autores alemães e italianos) ou coexistir com um contrato que, normalmente, será o mandato, mas pode ser outro, como, por ex. o contrato de trabalho ou de agência.”

O art. 1157º do Código Civil, define mandato como:

“O contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra”.

A figura do mandato distingue-se da procuração, porquanto no mandato há um contrato, o que pressupõe a existência de, pelo menos, duas manifestações de vontade “contrapostas mas perfeitamente harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses” – Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, I, 219.

Na procuração há um negócio jurídico unilateral, autónomo – art. 262º, nº1, do Código Civil.

No mandato os actos jurídicos praticados pelo mandatário são praticados por conta de outrem, como resulta do art. 1157º do Código Civil; na procuração são-no em nome do procurador.

O mandato pode ser exercido sem representação – art. 1180º do Código Civil – ou com representação. Neste, “o mandatário realiza o negócio em nome do mandante e com os necessários poderes de representação” – cfr. Pessoa Jorge, in “Mandato Sem Representação”, 20.

Dito isto, importa ponderar que a Autora não questiona qualquer acto abusivo do 2º Autor no que respeita à celebração do negócio sub judice, assumindo-o como seu; por outro lado, a Ré considera ter-se vinculado perante a Autora.

Muito embora no recurso per saltum – art. 725º, nº1, do Código de Processo Civil, na redacção aqui aplicável do DL. 303/2007, de 25.8, um dos requisitos de admissibilidade seja a aceitação da matéria de facto pelo recorrente – art. 725º, nº1, c) a contrario, do Código de Processo Civil – importa considerar que no art.8º da petição inicial, aludindo ao contrato, foi alegado – “Tal proposta foi apresentada por intermédio do segundo Autor, que actuava em comunhão de interesses com a primeira Autora e com o propósito de partilharem a utilização dos equipamentos agrícolas em causa.”

E no art. 9º – “A proposta de venda apresentada pela Ré foi aceite pela primeira Autora, em parceria com o segundo Autor (que assinou o contrato com autorização e conhecimento daquela).”

No art. 38º da contestação, a ré defendendo-se por impugnação, escreveu – “A Ré desconhece e não é obrigada a conhecer se são reais os factos alegados em 3º, 8°, 2ª parte, 16º, 22°, 1ª parte, 27º, 28°, 1ª parte, 45º, 46º,47º, 49º a 81º da PI., pelo que se impugnam.”

 Ou seja, a Ré aceitou e, assim tem que se considerar provado, que – “Tal proposta foi apresentada por intermédio do segundo Autor…A proposta de venda apresentada pela Ré foi aceite pela primeira Autora, em parceria com o segundo Autor (que assinou o contrato com autorização e conhecimento daquela).”

Daqui resulta que a Autora celebrou o contrato através de uma procuração informal e, ao ter autorizado e reconhecido o negócio celebrado em seu nome através da actuação do 1º Autor, se acha validamente vinculada.

Mas poder-se-á objectar que tendo as partes, Autora e Ré, celebrado o contrato por escrito, a vinculação da Autora só poderia fazer-se através do seu gerente e também por escrito.

Com o devido respeito discordamos.

 O AUJ tirado em interpretação do art. 260º, nº4, do Código das Sociedades Comerciais, permite recorrer a declarações negociais tácitas, visando a prova de que houve vinculação da sociedade.

 Depois, o art. 252º, nº6º, daquele Código autoriza que para actos determinados, concretamente individualizados, possa a gerência incumbir procuradores ou mandatários.

Assim, quer se considere ter havido uma procuração outorgada pela sociedade – que poderia ser verbal – quer tenha havido um contrato de mandato – a sociedade acha-se vinculada pela actuação do 2º Autor, sendo válido o contrato celebrado com a Ré.

Ademais, não se tratava de qualquer acto pessoal da 1ª Autora, se o fosse a representação, pela via da procuração ou do mandato, não seria admissível.

Esta proibição de inclusão no art. 252º, nº6, do Código das Sociedades Comerciais de actos de carácter pessoal é referida pelo Professor Raul Ventura, in “Sociedades Por Quotas”, Vol. III, Almedina, 1996, págs. 27/28.

Sendo o contrato consensual mas solenizado por vontade das partes, a sociedade pode considerar-se validamente vinculada por comportamento concludente posterior, que demonstre ter aceitado o contrato celebrado por outrem que não o seu representante orgânico (gerente ou administrador).

 Essa ratificação pode ser tácita, nos termos do art. 268º, nº2, do Código Civil, mesmo que o acto seja formal.

 No caso, como vimos, nem sequer seria necessário apelar a este normativo, porque a Autora sociedade teve conhecimento e autorizou o 2º Autor a contratar com a Ré, assumindo ela sociedade o contrato que considera incumprido definitivamente pela Ré.

 Mesmo sendo formal a declaração negocial, tal não impede que a declaração negocial ratificadora seja emitida tacitamente, desde que a forma tenha sido observada – nº2 do art. 217º do Código Civil.  

Pelo quanto dissemos a decisão recorrida não pode manter-se.

Decisão:

Nestes termos, concede-se a revista, revogando a sentença recorrida, declarando-se validamente vinculada a Autora-sociedade, no contrato celebrado com a Ré, devendo os autos prosseguir para apreciação das questões suscitadas.

Custas pela recorrida.

Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Julho de 2011

Fonseca Ramos (Relator)

Salazar Casanova

Fernandes do Vale