Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7617/11.6TBBRG-C.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
INSOLVÊNCIA
DIREITO DE RETENÇÃO
PROMITENTE-COMPRADOR
CONSUMIDOR
Data do Acordão: 11/25/2014
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO DO CONSUMO - CONSUMIDOR / AQUISIÇÃO DE BENS OU SERVIÇOS PARA CONSUMO PRÓPRIO.
DIREITO FALIMENTAR - INSOLVÊNCIA.
Doutrina:
- Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 4ª Ed. (2010), Almedina, pp. 55 e segs
- Fernando de Gravato Morais, “Da tutela do retentor-consumidor em face da insolvência do promitente-vendedor”, CDP, nº 46, pp. 36 e segs..
- L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência”, in CDP, nº 33, pp. 3 a 29.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 442.º, N.º2, 754.º, 755.º, N.º1, AL. F).
LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR – LDC -, LEI Nº 24/96, DE 31.07, COM AS ALTERAÇÕES DECORRENTES DOS DD. LL. Nº/S 67/2003, DE 08.04, E 84/2008, DE 08.05: - ARTIGO 2.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 14.06.11, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT;
-DE 09.07.14, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
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AUJ (ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA) Nº 4/2014, DE 20.03.14[2], PUBLICADO NO DR, 1ª SÉRIE, Nº 95, DE 19.05.14, E ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT,
Sumário :
I - A uniformização operada pelo AUJ n.º 4/2004, de 20-03-2014, publicado no DR, I Série, n.º 95, de 19-05-2014, e acessível em www.dgsi.pt, reporta-se, exclusivamente, ao promitente-comprador que detenha, simultaneamente, a qualidade de consumidor.

II - Esta deve ser entendida no seu sentido estrito, correspondente à pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, não abrangendo quem obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa.
Decisão Texto Integral:

Proc. nº 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1[1]

                (Rel. 182)

                             Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1 – Por sentença proferida, em 30.12.11, já transitada em julgado, “AA, LDA” foi declarada insolvente, a requerimento da credora “BB, LDA”, tendo-se fixado em 30 dias o prazo para reclamação de créditos.

       Realizada a assembleia de credores, foi deliberado o prosseguimento dos autos para liquidação e posterior partilha.

       A massa insolvente é composta por três bens móveis (Fls. 3 do auto de apreensão) e seis bens imóveis (Fls. 7 e 8 do auto de apreensão de bens).

       Em 21.03.12, o Sr. administrador da insolvência juntou aos autos a lista de credores reconhecidos a que alude o art. 129º, nº1 do CIRE (Fls. 2 a 5), bem como a lista de credores não reconhecidos (Fls. 6), sendo que a primeira das mencionadas listas veio instruída com as reclamações formuladas pelos credores perante aquele administrador.

       No que, ora, releva, o credor hipotecário “BANCO BB, S. A.” impugnou o crédito de € 205 738,47, reclamado por “BB, Lda”, o qual foi relacionado como garantido por direito de retenção, devendo, antes, ser reconhecido como crédito comum, prevalecendo, pois, sobre o mesmo o seu aludido crédito hipotecário.

       Foi proferida sentença, em 20.01.14, nos termos da qual – e na parte que, ora, releva – foi julgada, parcialmente, procedente a reclamação de crédito apresentada por “BB, Lda”, classificando-se o mesmo como garantido por direito de retenção quanto a € 15 738,47 acrescidos de juros moratórios, como comum quanto a € 190 000,00 acrescidos de juros moratórios desde a data de vencimento da obrigação até à data da declaração da insolvência em causa e como subordinado quanto aos respectivos juros moratórios vencidos a partir da data daquela declaração, em consequência do que foi decidida a seguinte graduação de créditos:

--- Quanto a bens móveis:

1º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda dos bens;

2º - Do remanescente, dar-se-á pagamento a um quarto do montante global do crédito de “BB, Lda”, com o limite máximo de 500 UCs;

3º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos restantes créditos reclamados que se assumam como comuns, em paridade e sujeitos a rateio, na proporção devida, caso não seja possível a plena satisfação dos mesmos;

4º - Finalmente, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados;

--- Quanto ao imóvel que constitui a verba nº3 (Prédio urbano constituído por parcela de terreno destinada a construção de habitação (lote nº4), sito no lugar de …, freguesia de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha sob o nº … – ... e inscrito na respectiva matriz urbana sob o art. 1018º - ...):

1º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda dos bens;

2º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito da AUTORIDADE TRIBUTÁRIA pelo não pagamento de IMI, exclusivamente na parte que se reportar a esta verba;

3º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito garantido por direito de retenção, no valor de € 15 738,47, reclamado por “BB, Lda”;

4º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito hipotecário detido pelo “Banco CC, S. A.”;

5º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos restantes créditos reclamados que se assumam como comuns, em paridade e sujeitos a rateio, na proporção devida, caso não seja possível a plena satisfação dos mesmos;

6º - Finalmente, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados.

       Na parcial procedência da apelação interposta pela credora “BB, Lda”, a Relação de Guimarães, por acórdão de 12.06.14, decidiu:

--- Julgar, parcialmente, procedente a reclamação de crédito apresentada por tal apelante e, consequentemente, julgar verificados a seu favor os seguintes créditos:

- Um crédito no valor de € 155 738,47, acrescido de juros moratórios, a qualificar como CRÉDITO GARANTIDO;

- Um crédito no valor de € 50 000,00, acrescido de juros moratórios desde a data de vencimento da obrigação até à data da declaração de insolvência, a qualificar como CRÉDITO COMUM, sendo que os juros vencidos sobre esta quantia, após a declaração de insolvência deverão ter-se como CRÉDITO SUBORDINADO;

- Consequentemente, o pagamento dos créditos verificados, através do produto da venda do bem imóvel – VERBA Nº 3 – da massa insolvente efectua-se do seguinte modo:

1º - As dívidas de custas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda dos bens;

2º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito da AUTORIDADE TRIBUTÁRIA pelo não pagamento de IMI, exclusivamente na parte que se reportar a esta verba;

3º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito garantido por direito de retenção, no valor de € 155 738,47, reclamado pela recorrente;

4º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito hipotecário detido pelo Banco CC, S. A.;

5º - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos restantes créditos reclamados que se assumam como comuns, em paridade e sujeitos a rateio, na proporção devida, caso não seja possível a plena satisfação dos mesmos;

6º - Finalmente, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados.  

       Daí a presente revista interposta por “Banco CC, S. A.”, visando a revogação do acórdão recorrido, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes e relevantes conclusões:

                                                       /

1ª – O acórdão recorrido foi proferido em contradição com o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 30.05.13, publicado em www.dgsi.pt;

2ª – O acórdão recorrido e o acórdão-fundamento foram proferidos por Tribunais superiores, no domínio da mesma legislação e versam sobre a mesma questão essencial de direito;

3ª – Não é indiferente para a verificação do direito de retenção previsto no nº1 da alínea f) do artº 755º do CC a qualidade de consumidor do promitente-comprador que obteve a tradição do imóvel;

4ª – Pelo que o douto acórdão recorrido fez uma deficiente interpretação dos arts. 2º, n° 1, da Lei n°24/96, de 31 de Julho, 755º, nº 1, alínea f) do CC e 13º da CRP;

5ª – Efectivamente, na génese daquele normativo, o legislador teve em conta um específico contexto económico-financeiro (a crise inflacionista da década de 80) e fez uma clara opção entre a parte mais fraca - o promitente-comprador/consumidor de habitação própria/particular;

6ª – Foi, assim, direccionado e concreto o alvo do legislador;

7ª – A desconsideração da figura do consumidor enquanto requisito para ultrapassar os legítimos direitos de preferência do credor hipotecário, constantes de registo público, constituem uma manifesta violação do princípio da igualdade;

8ª – In casu, nem sequer resultou da factualidade provada que o imóvel se destinasse a habitação;

9ª – É manifesta a relevância da qualidade de consumidor, no sentido especificamente dado pelo nº 1 do art. 2º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho, para a atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador, devendo a jurisprudência uniformizar-se e fixar-se neste sentido.

       Nestes termos e nos demais de Direito, deve conceder-se provimento ao presente recurso, sendo revogado o douto acórdão recorrido e, consequentemente, qualificados como comuns os créditos reconhecidos à “BB, LDA”, no montante de € 190 000,00, e, consequentemente, uniformizar-se a Jurisprudência no sentido de julgar que a qualidade de consumidor constitui condição objectiva de aplicação da alínea f) do nº 1 do art. 755º do CC, qualidade esta que deve ser aferida no sentido estrito dado pelo nº 1 do art. 2º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho.

       Contra-alegando, pugna a recorrida pela improcedência do recurso.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                        *

2Com relevância para a apreciação e decisão do recurso, a Relação teve por provados os seguintes factos:

                                                         /

- COMUNS A TODAS AS RECLAMAÇÕES -

1A sociedade comercial por quotas “AA – ..., LDA”, NIPC …, com sede na Rua …, nº …, loja nº …, Braga, dedica-se à ... e obras públicas, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim e promoção imobiliária, com escopo lucrativo;

2Por sentença proferida, em 30 de Dezembro de 2011, já transitada em julgado, a sociedade comercial por quotas “AA – ..., LDA foi declarada insolvente, na sequência de requerimento de insolvência apresentado por “BB, LDA;

3Foram apreendidos os seguintes bens móveis, pertença da insolvente:

a. Verba nº 1: Uma mesa redonda de reuniões e duas cadeiras;

b. Verba nº 2: Uma secretária e uma cadeira;

c. Verba nº 3: Um armário de arquivo e um computador portátil (avariado);

4Foram apreendidos os seguintes bens imóveis, pertença da insolvente:

a. Verba nº 1: Prédio urbano constituído por parcela de terreno destinado a construção de habitação (Lote nº 2), sito no Lugar ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha sob o nº …-... e inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 1016º-...;

b. Verba nº 2: Prédio urbano constituído por parcela de terreno destinado a construção de habitação (Lote n.º 3), sito no Lugar ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha sob o nº …-... e inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 1017º-...;

c. Verba nº 3: Prédio urbano constituído por parcela de terreno destinado a construção de habitação (Lote n.º 4), sito no Lugar ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha sob o nº …-... e inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 1018º -...;

d. Verba nº 4: Prédio urbano constituído por parcela de terreno destinado a construção de habitação (Lote nº 5), sito no Lugar ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha sob o nº …-... e inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 1019º-...;

e. Verba nº 5: Prédio urbano constituído por parcela de terreno destinado a construção de habitação (Lote nº 6), sito no Lugar ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha sob o nº …-... e inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 1020.º-...;

f. Verba nº 6: Prédio urbano em construção, sito no Lugar ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Marco de Canavezes sob o nº …-... e inscrito na respectiva matriz predial sob os artigos 1412º, 1414º e 1421º-...;

5 – Sobre os imóveis indicados sob as verbas nºs 1 a 5, através da apresentação nº 10, de 28 de Junho de 2007, acham-se inscritas hipotecas voluntárias, a favor de “BANCO CC, S. A.”, para garantia de empréstimo, bem como de todas e quaisquer responsabilidades, contraídas ou a contrair, pela insolvente, até ao montante de € 850 000,00, acrescido de um juro anual de 7%, elevável em mais 4% em caso de mora, a título de cláusula penal, acrescido de despesas no valor de € 34 000,00, num montante máximo de € 1 164,500,00;

6 – Sobre o imóvel indicado sob a verba nº 6, através da Apresentação nº 11, de 24 de Outubro de 2008, acha-se inscrita hipoteca voluntária, a favor de “BANCO CC, S. A.”, para garantia de empréstimo, bem como de todas e quaisquer responsabilidades, contraídas ou a contrair, pela insolvente, até ao montante de € 175 000,00, acrescido de um juro anual de 7%, elevável em mais 4% em caso de mora, a título de cláusula penal, acrescido de despesas no valor de € 7 000,00, num montante máximo de € 239 750,00;

- CRÉDITO RECLAMADO POR “BB, LDA

78Por acordo escrito datado de 30 de Novembro de 2009, intitulado de «contrato promessa de compra e venda», a insolvente “AA ..., LDA” prometeu vender a “BB, LDA”, que àquela prometeu comprar, livre de ónus/encargos e na condição de «pronto a habitar», o prédio correspondente à verba nº 3, pelo valor de € 310 000,00, nos termos das cláusulas constantes do documento de fls. 268/270 deste apenso e que aqui se dão por reproduzidas;

79 – Com a outorga do acordo aludido em 78),” BB, LDA” pagou, a título de sinal e como princípio de pagamento, a quantia de € 5 000,00;

80 – Por conta do acordo referido em 78), “BB, LDA” entregou, como reforço de sinal e princípio de pagamento, as seguintes quantias:

a) A quantia de € 7 500,00, no dia 30 de Dezembro de 2009;

b) A quantia de € 20 000,00, até ao dia 31 de Dezembro de 2010;

c) A quantia de € 30 000,00, até ao dia 30 de Junho de 2011;

81 – A insolvente não procedeu à marcação da escritura pública de compra e venda até ao último dia útil do mês de Julho de 2011;

82 – Por acordo escrito datado de 26 de Julho de 2011, “AA ... LDA” e “BB, LDA” declararam, entre o mais que consta de fls. 246/248 e que aqui se dá reproduzido, o seguinte: «Os outorgantes celebraram em 30 de Novembro de 2009, um contrato promessa de compra e venda (…) O vendedor e primeiro outorgante, em virtude ter expirado o prazo para a realização da escritura de compra e venda, pretende dar a posse do referido prédio ao segundo outorgante. Pretendem os outorgantes prorrogar o prazo para a realização da escritura definitiva de compra e venda. Na presente data, o primeiro outorgante dá posse do prédio (…) ao segundo outorgante, pois o primeiro outorgante encontra-se em dificuldades económicas e financeiras que o impedem de concluir o imóvel na condição de “chave na mão/pronta a habitar” (…). Actualmente, o imóvel encontra-se na fase de estrutura, faltando concluir os acabamentos. Assim, o segundo outorgante será responsável por tudo o que disser respeito ao prédio do presente contrato, nomeadamente, água, luz, contribuição autárquica, tendo, desde já, autorização para contratar os referidos serviços, bem como contratar fornecedores para concluírem a fase de acabamentos, pois o mesmo apenas se encontra na fase de “esqueleto”. A realização da escritura pública de compra e venda será outorgada a favor do segundo outorgante até ao dia 15 de Outubro de 2011, e será marcada pela primeira outorgante, que comunicará ao segundo o dia, hora e local, com a antecedência mínima de 5 dias (…). Os ora outorgantes acordam a redução do preço para o valor de 90.000,00€, pois o referido prédio e respectiva habitação é vendida na condição de “estrutura”. Nesta data, o segundo outorgante entregou mais 2.500,00€, a título de reforço do sinal, em numerário, e da qual o primeiro outorgante dá, pelo presente acordo, a respectiva quitação. Assim, o segundo outorgante, até à presente data e a título de sinal, entregou ao primeiro outorgante a quantia de 65.000,00€. Entregará também o segundo outorgante, como reforço do sinal, ao primeiro outorgante, 5.000,00€, até ao dia 30 de Setembro de 2011. Assim, o segundo outorgante entregará a quantia remanescente de 20.000,00€, à data da escritura.”

83 – Em virtude da redução do valor aludido em 82, ficou a cargo de “BB, LDA” a realização das obras necessárias à conclusão da construção, que, à data, se encontrava em fase de estrutura;

84 – Com a outorga do acordo aludido em 82, “BB, LDA” entregou a quantia de 2.500,00€, como reforço do sinal e princípio de pagamento;

85 – Em execução do acordo aludido em 82, “BB, LDA” pagou a quantia de 5.000,00€, no dia 16 de Setembro de 2001, como reforço do sinal e princípio de pagamento;

86 – Após a outorga do escrito aludido em 82, a insolvente fez a entrega do prédio e da construção existente a “BB LDA”, para que, daí em diante, esta realizasse as obras necessárias à conclusão da habitação;

87 – “BB, LDA”, a expensas suas, realizou os seguintes trabalhos no prédio, tudo no valor de 15 738,47€:

a) Impermeabilização da cobertura da moradia, com tela líquida e colocação de “R…”, manta e gravilha de 10 cm de altura;

b) Colocação de soleira em granito;

c) Fecho da moradia com colocação de alumínios e vidros;

d) Instalação de pichelaria;

e) Pré-instalação de ar condicionado;

f) Instalação para colectores solares;

g) Instalação de circuito de gás, com apoio dos colectores solares para águas quentes sanitárias;

h) Alteração da instalação elétrica;

i) Limpeza de piscinas e anexos;

88 – Desde o momento aludido em 82, que “BB, LDA” se encontra na detenção do imóvel, praticando os actos atrás indicados, à vista de todos, sem entrave ou contestação de outrem, na convicção de que não lesa interesses de terceiros;

89 – A insolvente não procedeu à marcação da escritura pública de compra e venda, até ao dia 15 de Outubro de 2011;

90 – Por carta registada, com aviso de recepção, datada de 18 de Outubro de 2011, “BB, LDA” comunicou à insolvente, entre o mais que consta de fls. 274 e que aqui se dá por reproduzido, o seguinte: “Devem considerar-se V. Exas interpelados para, no prazo máximo de 10 dias, procederem à marcação da escritura pública de compra e venda do Lote n.º 4 (…), sob pena de incumprimento do contrato-promessa de compra e venda. Após essa data, a interpelante irá desencadear todos os meios legais que permitam assegurar os seus direitos e exigir, a título de cláusula penal, o valor de 50.000,00€, bem como o dobro do sinal, atendendo ao V/ incumprimento do contrato-promessa de compra e venda. (…) ”;

91 – Por carta registada, com aviso de recepção, datada de 07 de Novembro de 2011, “BB, LDA” comunicou à insolvente, entre o mais que consta de fls. 277 e que aqui se dá por reproduzido, o seguinte: «Na face da ausência de resposta à nossa missiva datada de 18 de Outubro de 2001, interpelamos V/ Exas no sentido de procederem ao pagamento das obrigações decorrentes do V/ incumprimento do contrato-promessa de compra e venda (…) datado de 30 de Novembro de 2009 e do acordo de 26 de Julho de 2011, respeitante a esse contrato-promessa. Nesta sequência, V. Exa devem as seguintes quantias: 50.000,00€ a título de cláusula penal (…) 140.000,00€ a título de dobro do sinal, atendendo ao incumprimento do contrato-promessa de compra e venda. Aguardamos o pagamento da quantia de 190.000,00€, impreterivelmente, no prazo de 8 dias».

                                                        *

3 – Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente e não havendo lugar a qualquer conhecimento oficioso, a questão por si suscitada e que, no âmbito da revista, demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso consiste em saber se o crédito reconhecido à recorrida goza, ou não, de direito de retenção, nos termos previstos no art. 755º, nº1, al. f) do CC e, na afirmativa, em que medida ou extensão, com as inerentes consequências em sede da graduação do mesmo crédito em confronto com os demais.

       Sendo, a este propósito, de precisar, desde logo, que as instâncias coincidem, duplamente, na abordagem e tratamento da questão: por um lado, em ambas se reconheceu a existência do sobredito direito, ao abrigo do preceituado no art. 754º do CC, em conjugação com a factualidade provada (designadamente, da acolhida em 82, 83 e 86 a 88 de 2 supra), quanto ao montante de € 15 738,47, relativo a trabalhos efectuados no prédio prometido vender, a expensas da recorrida; e, por outro lado, resulta negado o reconhecimento do mesmo direito, em qualquer das instâncias, quanto ao montante – € 50 000,00 – da estipulada cláusula penal.

       Apreciando o remanescente:

                                                     *

4I – Está em causa saber se o crédito reconhecido à recorrida, no montante correspondente ao dobro – € 140 000,00 – do sinal – € 70 000,00 – por si prestado goza, ou não, do direito de retenção, nos termos previstos no art. 755º, nº1, al. f) do CC.

       Dispõe este preceito legal que “goza…do direito de retenção”, entre outros, “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º”.

       Assim, são pressupostos genéricos do reconhecimento deste direito de retenção: a) – a existência de promessa de transmissão ou de constituição de direito real; b) – a entrega da coisa objecto do contrato-promessa; c) – a titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato-promessa.

       Quanto a este último pressuposto e na parte que, ora, releva, dispõe-se, no nº2 do citado art. 442º do CC, que “Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou…” 

       Para o caso de declaração de insolvência do promitente-vendedor, impõe-se considerar que por este Supremo foi proferido o AUJ (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência) nº 4/2014, de 20.03.14[2], publicado no DR, 1ª Série, nº 95, de 19.05.14, e acessível em www.dgsi.pt, o qual uniformizou a Jurisprudência, nos seguintes termos: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência, o consumidor promitente-comprador, em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art. 755º, nº1, al. f) do CC”.    

       E, muito embora tal não conste expressamente do texto do transcrito segmento de uniformização, irrecusável é que, tomada em atenção a respectiva fundamentação e, mesmo, o teor de alguns dos votos de vencido apostos em tal acórdão, não pode deixar de entender-se que a uniformização estabelecida se reporta, exclusivamente, ao promitente-comprador que detenha, simultaneamente, a qualidade de consumidor. Como, em caso similar, se pondera, doutamente, no Ac. deste Supremo, de 09.07.14[3], de que foi relator o Ex. mo Cons. Nuno Cameira, trata-se de “entendimento que, muito embora não integre o segmento de uniformização, encerra o valor de premissa lógica necessária que o antecede e, nessa medida, deverá assumir o mesmo carácter vinculativo

        Sem pretensão de sobreposição à mencionada fundamentação, insistir-se-á – à semelhança do já exarado no Ac. deste Supremo, de 14.06.11, de que foi relator o Ex. mo Cons. Fonseca Ramos e em que o, ora, relator interveio como 2º Adjunto e que se mostra documentado de fls. 1125 a 1143 – em que só interferindo a mencionada restrição podem ter cabimento e aplicação a ratio e teleologia convocadas para a aplicação dos correspondentes preceitos legais no âmbito do direito insolvencial[4].

                                                     /

II – No caso em apreço, constata-se que a promitente-compradora e, ora, recorrente é uma sociedade por quotas, não podendo, pois e como sustentado no mesmo Ac. de 14.06.11, ser havida como detendo a qualidade de consumidora.

       Na realidade, nos termos do nº1 do art. 2º da LDC (Lei de Defesa do Consumidor – Lei nº 24/96, de 31.07, com as alterações decorrentes dos DD. LL. nº/s 67/2003, de 08.04, e 84/2008, de 08.05), “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.(Itálico de nossa autoria)

       Na lição do Prof. Calvão da Silva[5], “É a consagração da noção de consumidor em sentido estrito, a mais corrente e generalizada na doutrina e nas Directivas comunitárias: pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado – uso pessoal, familiar ou doméstico, na fórmula da al. a) do art. 2º da Convenção de Viena de 1980 sobre a compra e venda internacional de mercadorias, inspiradora da Directiva 1999/44/CE e do § 9-109 do  -, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa”. Continuando: “Razão pela qual todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional será uma pessoa humana ou pessoa singular, com exclusão das pessoas jurídicas ou pessoas colectivas, as quais adquirem bens ou serviços no âmbito da sua actividade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objectivos profissionais (art. 160º do CC e art. 6º do CSCom”. Rematando, finalmente, que «A noção estrita de consumidor – pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional –, que defendemos em geral e temos por consagrada no nº1 do art. 2º da LDC… impõe-se pertinente e inquestionavelmente in casu à luz do princípio da interpretação conforme à Directiva, em que se define consumidor como “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente Directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional” (al. a) do nº 2 do art. 1º)».

       Não detendo, pois, a recorrente e promitente-compradora a qualidade de consumidora, não pode a mesma, nos termos expostos, beneficiar, no âmbito do processo de insolvência em que nos situamos, do direito de retenção previsto no art. 755º, nº1, al. f) do CC, para satisfação do seu reconhecido crédito de € 140 000,00, o qual tem, pois, a natureza de crédito comum, como bem decidiu a 1ª instância.

       Devendo, pois, prevalecer a correspondente graduação de créditos operada naquela instância, procedem, na forma exposta, as conclusões formuladas pela recorrente.

                                                      *

5 – Na decorrência do exposto, acorda-se em conceder a revista, em consequência do que se revoga o acórdão recorrido, na parte em que não manteve o decidido na 1ª instância, que, aqui e integralmente, se repristina.

       As custas da apelação e da revista serão suportadas pela recorrida “BB, Lda”, devendo observar-se, quanto às devidas na 1ª instância, o decorrente do preceituado nos arts. 303º e 304º, ambos do CIRE.

                                                      /

                                         Lx      25 /   11  /   2014  /

  

Fernandes do Vale (Relator)

Ana Paula Boularot (Voto a decisão, contudo não acompanho a fundamentação quando a fls. 13 se cita, como caso similar o Acórdão deste STJ, de 9 de Julho de 2014, uma vez que o aludido aresto se refere a uma temática diversa, qual é a de se retirar do AUJ, que o crédito do promitente-comprador deverá corresponder ao sinal em dobro e não em singelo)

Pinto de Almeida

__________________
[1]  Relator: Fernandes do Vale (31/14)
   Ex. mos Adjuntos
   Cons. Ana Paula Boularot
   Cons. Pinto de Almeida
[2] Que mereceu a genérica concordância do Prof. Fernando de Gravato Morais, em anotação constante de “CDP, nº 46”, pags. 36 e segs, intitulada “Da tutela do retentor-consumidor em face da insolvência do promitente-vendedor”.
[3]  Acessível em www.dgsi.pt
[4] Cfr., sobre a matéria, o artigo intitulado “Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência”, da autoria do Prof. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, in “CDP, nº 33”, pags. 3 a 29, muito embora e como se observa naquele Ac. de 14.06.11, se não subscreva “in totum” a respectiva lição.
[5]  In “Venda de Bens de Consumo”, 4ª Ed. (2010), Almedina, pags. 55 e segs..