Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | ARMINDO MONTEIRO | ||
Descritores: | CRIME CONTINUADO BENS EMINENTEMENTE PESSOAIS ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS CONCURSO DE INFRACÇÕES | ||
Nº do Documento: | SJ200903250004903 | ||
Data do Acordão: | 03/25/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE | ||
Sumário : | I - A alteração introduzida pela Lei 59/2007, de 04-09, ao art. 30.º do CP, acrescentando-lhe o n.º 3, segundo o qual o disposto no n.º 2 não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa, corresponde ao n.º 2 do art. 33.º do Projecto de Revisão do CP, de 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia, e foi discutida na 13.ª sessão da comissão de revisão, em 08-02-1964, no sentido de que só com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais, inerentes à mesma pessoa, se poderia falar de continuação criminosa, excluída em caso de diversidade de pessoas, atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir, impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada. II - Essa discussão não mereceu consagração na lei por se entender que seria desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos, que se radicam em cada uma das vítimas, na natureza das coisas – cf. Maia Gonçalves, in Código Penal anotado. III - A alteração introduzida é, pois, pura tautologia, de alcance inovador limitado ou mesmo nulo, desnecessária, em nada prejudicando a jurisprudência sedimentada ao nível deste STJ, ou seja, a de que, quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, integra a prática de crime continuado, sem prescindir-se da indagação casuística dos requisitos do crime continuado, afastando-o quando se não observarem. IV - Esse aditamento não permite, assim, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real; só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos, enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito. V - Interpretação em contrário seria, até, manifestamente atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP. VI - São circunstâncias exteriores que apontam para a redução de culpa que é pressuposto do crime continuado: - o facto de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos (veja-se o caso de violação a que se seguem relações de sexo consentido); - o facto de voltar a registar-se outra oportunidade favorável ao cometimento do crime, que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele; - a perduração do meio apto para execução do delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa; -o facto de o agente, depois da mesma resolução criminosa, verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa. VII - Vindo provado que: - a ofendida L, que nasceu em 27-02-1990, é surda-muda, e foi confiada à guarda da Casa Pia de Lisboa, ficando colocada no Instituto J…, visitando com regularidade mensal ou quinzenal o pai, ora arguido, passando com ele os fins-de-semana; - entre 1999 e 2004, o arguido, pelo menos 7 vezes, deitou-se com a sua filha L, introduzindo o pénis na sua vagina até aí ejacular, apresentando, ao exame ginecológico, sinais de cópula vaginal não recente, nomeadamente «hímen em crescente de altura com cerca de 3 mm com entalhe às três horas e laceração não recente às sete horas e ostíolo himenial permeável», ou seja, sinais orgânicos de desfloramento; - o arguido sempre exigiu à filha que não contasse a ninguém o sucedido; estes descritos actos de cópula completa mostram um nítido aproveitamento do arguido da menor, sua filha, quando esta passava curtos períodos na sua casa paterna, para satisfazer o seu desejo sexual, que a relação de parentesco e a inferioridade física da jovem – surda-muda – não serviram de contramotivação aos seus instintos libidinosos, estando longe de se perfilar um conjunto de circunstâncias exteriores ao agente diminuindo-lhe a culpa; pelo contrário, essa prática parte de um acto que lhe é próprio, qual seja o de acolhimento da menor na sua casa, ao abrigo dos deveres de assistência que lhe são impostos legalmente (art. 1878.º do CC) e da ascendência que, naturalmente, tinha sobre aquela. VIII - E quando se prove que «a reiteração, menos que a tal disposição das coisas, é devida a uma certa tendência da personalidade do criminoso, não poderá falar-se em atenuação da culpa e fica, portanto, excluída a possibilidade de existir um crime continuado» – cf. Prof. Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade de Infracções, pág. 251). IX - A ser diferentemente ter-se-ia que entender, raiando o absurdo, que os pais que abusam sexualmente dos seus filhos veriam a sua responsabilidade criminal atenuada e os seus próprios filhos seriam concorrentes na prática do crime, através de uma vontade que a lei não releva, numa lógica desmentida pela própria lei ao agravar, no art. 177.º, n.º 1, al. a), do CP, na redacção anterior à trazida pela Lei 59/2007, de 04-09, esse procedimento. X - Por isso, os factos descritos repercutem, à face da lei penal, a prática de 7 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, e não um único crime, na forma continuada. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :
Em P.º comum com intervenção do tribunal colectivo , sob o n.º 579/05 .OTAMTA , do Tribunal Judicial da Moita , foi submetido a julgamento AA , vindo a final a ser condenado como autor material de 7 crimes de abuso sexual de criança , p . e p .pelos art.ºs 172.º n.º 2 e 177.º n.º 1 a) , do CP , na pena de 6 anos de prisão por cada , e em cúmulo jurídico em 12 anos de prisão . I. O arguido , inconformado com o teor da decisão proferida , interpõs recurso para o Tribunal da Relação que , alterando o decidido , condenou o arguido pela prática de um crime continuado , p . e p . pelos art.ºs 172.º n.º 2 e 177.º n.º 1 a) , do CP , em 9 anos de prisão . Ainda irresignado com o acórdão proferido, o arguido recorreu para este STJ , apresentando na motivação as seguintes conclusões : A condenação imposta visou , apenas , a função retributiva das penas , esquecendo a função ressocializadora , pelo que a pena aplicada ao arguido é extremamente severa . Acresce que o arguido confessou os factos , de forma relevante , levando à descoberta da verdade dos factos , tendo decorrido já quatro anos sobre a data respectiva Fez-se uma incorrecta aplicação da lei no que respeita à atenuação especial da pena, ou seja do art.º 72.º , do CP . Foram violadas as normas dos art.ºs 70.º , 71.º n.º 2 , als.d) e e ) , 72.º n.º 2 , als. c) e d) , 73.º e 50.º , do CP . Considerando o jogo das atenuantes e agravantes , é de aplicar ao arguido uma pena suspensa na sua execução por 5 anos , acompanhada do regime de prova . II .Neste STJ a Exm.ª Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento , quando muito uma redução de um ano , nunca tão substancial como defendida pelo M.º P.º junto da Relação . III .Colhidos os legais vistos , cumpre decidir , considerando que os factos provados são os seguintes : BB nasceu em 27 de Fevereiro de 1990 . É surda –muda . Em 1997 a BB foi confiada à guarda da Casa Pia de Lisboa , ficando colocada no Instituto J... R... P... . E, com regularidade mensal ou quinzenal , passava fins de semana na companhia do pai , na Rua das .... n.º ... , Bairro Paixão –Vale da Moreira , Moita . Entre 1999 e 2004 , o arguido , pelo menos 7 vezes , deitou-se com a sua filha BB na mesma cama , tocou-lhe as zonas corporais íntimas, nomeadamente a vagina , esfregou aí o seu pénis erecto e com este penetrou –a até ejacular . O arguido sempre exigiu à filha que não contasse a ninguém o sucedido . Em 24 de Janeiro de 2005 a BB apresentava sinais cópula vaginal não recente , nomeadamente hímen em crescente de altura com cerca de 3mm com entalhe às três horas e laceração não recente às sete horas e ostíolo himeneal permeável . O arguida sabia que BB tinha idade inferior a 14 anos e era sua filha . Agiu livre , voluntaria e conscientemente , sabendo serem as suas condutas proibidas por lei . O arguido confessou os factos que lhe são imputados e manifestou arrependimento. Do seu certificado de registo criminal não constam quaisquer condenações . Exerce a actividade de calceteiro ao serviço da Junta de Freguesia de Vale da Amoreira e ganha cerca de 400 € mensais . Vive com o filho CC em casa arrendada . Tem como habilitações literárias a 4 .ª classe . IV. Este STJ , enquanto tribunal de revista , vocacionado historicamente para o conhecimento e aplicação do direito , não vinculado ao enquadramento jurídico-penal dos factos , fará incidir a sua atenção sobre a dicotomia reinante na quantificação criminosa dos factos ; para a 1.ª instância uma pluralidade de crimes de abuso sexual sobre crianças ; para Relação um só crime , continuado. Como regra o número de crimes afere-se pelo número de vezes que a conduta do agente realiza o tipo legal( concurso real ) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente ( concurso ideal ) –art.º 30.º n.º 1 , do CP-, havendo para tanto que recorrer às noções de dolo e de culpa , ou seja ,tantas vezes quantas as que a eficácia da norma típica é posta em crise , ou seja pelo número de vezes que a norma não for eficaz para dissuadir a conduta antijurídica do agente . A pluralidade de infracções não abdica de uma actividade material do agente , de modificação do mundo exterior , a que corresponde uma afirmação plúrima da volição ou vontade criminosa . O crime , na definição de Amelung , citado por Karl Prelhaz Natcheradetez , in o Direito Penal Sexual ,Ed Almedina ,1985 , 116 , constitui , apenas , um caso especial de fenómenos disfuncionais , geralmente o mais perigoso .O crime é disfuncional enquanto contradiz uma norma institucionalizada ( deviance ) , necessária para a sobrevivência da sociedade. Os desvios à regra da determinação legal da pluralidade de infracções estão representados pelo concurso aparente de normas e crime continuado, este já com afloramentos na Idade Média, mas só como processo pragmático de obstar a que o autor do furto em série permanecesse longo tempo privado de liberdade , estando previsto no art.º 30.º n.º 2 , do CP , e , pela sua descrição se vê que o legislador como que , por ficção , ditada por razões de economia , de política criminal e de justiça material , reconduz a verificada pluralidade de infracções à unidade criminosa , a um único delito. São assim nos termos legais pressupostos cumulativos da continuação criminosa a realização plúrima do mesmo tipo legal , a homogeneidade na sua forma de execução , a lesão do mesmo bem jurídico , no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa –n.º 2 , do art.º 30.º , do CP . Ao art.º 30 .º , foi , pela recente reforma ao CP , introduzida pela Lei n.º 59/07 , de 4/9 , introduzido o n.º 3 , segundo o qual o disposto no n.º 2 , não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais , salvo tratando-se da mesma pessoa . Esta alteração , correspondente ao n.º 2 , do art.º 33.º no Projecto de Revisão do CP , de 1963 , da autoria do Prof. Eduardo Correia , primeiramente exposta in Unidade e Pluralidade de Infracções , foi discutida na 13.ª Sessão da Comissão de Revisão ,em 8.2.64 ,no sentido de que só , com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais ,inerentes à mesma pessoa , se poderia falar de continuação criminosa , excluída em caso de diversidade de pessoas , atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir , impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada . Essa discussão não mereceu consagração na lei por se entender que o legislador reputou tal não necessário , por resultar da doutrina , e até inconveniente , por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado . Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos , que se radicam em cada uma das vítimas , da natureza das coisas , assim comenta Maia Gonçalves , in CP anotado ao preceito citado . Diferente não é o pensamento de Iescheck para quem são condições de primeiro plano para aplicação do conceito a existência de uma actividade homogénea e que os actos sejam referidos à mesma pessoa , afectando o mesmo bem jurídico . Sendo bens eminentemente pessoais o conceito está arredado porque tanto a ilicitude da acção e do resultado como o conteúdo da culpa são distintos com relação a cada acto individual sem se verificar a renúncia a valorações separadas , atenta a não identidade de bens jurídicos –cfr. Tratado de Derecho Penal , I , Parte General , I , ed. Bosh , pág. 652 e segs e Acs. deste STJ , de 10.9.2007 , in CJ , STJ , Ano XV, TIII, 193 e de 19.4.2006 , in CJ , STJ ,Ano XIV, TII , 169. A alteração introduzida , à parte a evitável polémica interpretativa que trouxe ( cfr. a Circular Interna da PGR n.º 2 /2008-DE , de 9.8.2008 , citada pelo Exm.º Magistrado do M.º P.º em 1.ª instância , tendo presente a errada divulgação da notícia pelos mais díspares meios de comunicação social de que a norma do n.º 3 viria permitir uma punição leve dos abusadores sexuais , fez questão de significar que “ as críticas conhecidas não abalaram o entendimento firmado de décadas “) , que já se deixou expresso , é , pois , pura tautologia , de alcance inovador limitado ou mesmo nulo , desnecessário . Em nada mesmo prejudica a jurisprudência sedimentada a nível deste STJ , ou seja de que quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometido num quadro , em que ,por circunstâncias exteriores ao agente , a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída ,integra a prática de crime continuado , sem prescindir-se , como , aliás aquela Circular fez questão de sublinhar , da indagação casuística dos requisitos do crime continuado , afastando-o quando se não observarem. De forma alguma a inovação contrariou aquele entendimento jurisprudencial e os melhores ensinamentos doutrinários , os melhores critérios de hermenêutica , a lógica e o bom senso , sequer afirmou , inexoravelmente , automaticamente , sem mais , o crime continuado , excluindo a pluralidade de infracções . Esse aditamento não permite , pois , uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzisse ao crime continuado , afastando-se um concurso real ( Cfr. Ac. do STJ , de 8.11.2007 , P.º n.º 3296 /07 -5 .ª Sec. , acessível in www. dgsi.pt .) , só significa que este deve firmar se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º2 , de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito . Interpretação em contrário seria , até, manifestamente , atentatória da CRP , restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana , violando o preceituado no art.º 1.º , comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais em ofensa ao disposto no art.º 18.º , da CRP . Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado recentemente levaria a que se houvesse de entender que o legislador não soube exprimir-se convenientemente , havendo que atalhar –lhe o pensamento , interpretando-se restritivamente o resultado chocante a que levaria , tão errónea se apresenta visão nesse sentido , nos termos do art.º 9.º , do CC. São circunstâncias exteriores , retratadas in Unidade e Pluralidade de Infracções , autor cit . , págs. 246ª 250 , que apontam para aquela redução de culpa: Desde logo a circunstância de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos , veja-se o caso de violação a que se segue o cometimento de relações de sexo consentido ; A circunstância de voltar a registar-se outra oportunidade favorável ao cometimento do crime , que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele; A perduração do meio apto para execução do delito , que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa; O facto de o agente , depois da mesma resolução criminosa , verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa . VI. A ofendida BB , que nasceu em 27 de Fevereiro de 1990 , é surda –muda , e foi confiada à guarda da Casa Pia de Lisboa , ficando colocada no Instituto Jacob Rodrigues Pereira , visitando com regularidade mensal ou quinzenal o pai , ora arguido , passando com ele os fins de semana na respectiva companhia . Entre 1999 e 2004 , o arguido , pelo menos 7 vezes , deitou-se com a sua filha BB , introduzindo o pénis na sua vagina até aí ejacular , apresentando , ao exame ginecológico , sinais cópula vaginal não recente , nomeadamente hímen em crescente de altura com cerca de 3mm com entalhe às três horas e laceração não recente às sete horas e ostíolo himeneal permeável , ou seja sinais orgânicos de desfloramento . O arguido sempre exigiu à filha que não contasse a ninguém o sucedido . Estes descritos actos de cópula completa mostram um nítido aproveitamento do arguido , da menor , sua filha quando esta passava curtos períodos na casa paterna , vinda do Instituto de acolhimento de surdos –mudos , sob a orientação da Casa Pia , para satisfazer o seu desejo sexual , que a relação de parentesco e a inferioridade física da infeliz jovem –surda –muda- , não serviram de contramotivação aos seus instintos libidinosos , estando longe de se perfilar um conjunto de circunstâncias exteriores ao agente diminuindo-lhe a culpa , pelo contrário essa prática parte de um acto que lhe é próprio , qual seja o de acolhimento na sua casa da menor , ao abrigo dos deveres de assistência que lhe são impostos legalmente , no art.º 1878 .º , do CC e da ascendência que , naturalmente , tinha sobre a menor . E quando , com inteira actualidade e aplicação caso concreto , “ escreve o Prof. Eduardo Correia, op. cit . , pág. 251 , se prove que “ a reiteração , menos que a tal disposição das coisas , é devida a uma certa tendência da personalidade do criminoso , não poderá falar-se em atenuação da culpa e fica , portanto , excluída a possibilidade de existir um crime continuado “ . A ser diferentemente ter-se-ia que entender , raiando o absurdo , que nos casos de pais que abusam sexualmente dos seus filhos veriam a sua responsabilidade criminal atenuada e os seus próprios filhos seriam concorrentes na prática do crime , através de uma vontade que a lei não releva , numa lógica desmentida pela própria lei ao agravar no art.º 177.º n.º 1 a) , do CP , na redacção anterior à alteração trazida pela Lei n.º 59/07 , de 4/9 , esse procedimento. As antinomias e os desacertos não são raros nos sistemas legislativos , filiando-se , muitas vezes , em defeitos de coordenação e esquecimentos , escrevia Francesco Ferrara , na sua obra , sempre actual , na exposição de princípios e pela sua clareza , Interpretação e Aplicação das Leis , traduzida e prefaciada pelo Prof. Manuel de Andrade , ed. de 1934 , pág. 51 . A lei não se identifica com a sua letra , esta é , apenas , um seu meio de comunicação ; as palavras são símbolos e portadores de pensamento , mas podem ser defeituosas , devendo entender-se na sua conexão , isto é o pensamento do legislador deve inferir-se do complexo das palavras usadas e não de fragmentos destacados , deixando-se no escuro uma parte da disposição , abandonando a “ ocasio legis “ que é a circunstância histórica de onde veio o impulso exterior para a criação da lei -cfr. op.cit . págs .35, 37 , 38 e 40 . Por isso se não subscreve o ponto de vista sufragado pela Relação , repercutindo , antes , à face da lei penal , os factos a prática de 7 crimes de abuso sexual de criança , p.e p . pelos art.º 172.º n.º 2 e 177.º n.º 1 a) , do CP , com a pena de prisão de 4 a 13 anos e 4 meses de prisão , tal como na 1.ª instância se assumiu . VII . A medida concreta da pena : O processo de medida da pena é um puro derivado da posição pelo ordenamento jurídico-penal em matéria de sentido, limites e finalidades na aplicação das penas . E as finalidades das penas são primordialmente a protecção dos bens jurídicos e a reinserção social do agente –art.º 40.º n.º do CP. A maior ou menor necessidade de protecção dos bens jurídicos está retratada na maior ou menor magnitude , dimensão , da moldura penal abstracta , que dita a maior ou menor gravidade do facto tal como o sentimento comunitário de justiça a concebe . Factores da mais diversa origem e natureza podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos e da necessidade da pena . A necessidade de protecção dos bens jurídicos assume aqui uma feição “ a posteriori” ao facto , uma finalidade de prevenção geral positiva ou de integração , uma finalidade pública , de dissuasão , por ela ,de potenciais delinquentes , reclamada pela necessidade de tutela das expectativas da comunidade na manutenção e mesmo reforço da vigência da norma infringida ( cfr. Direito Penal Português –As Consequências Jurídicas do Crime , § 302 . Prof. Figueiredo Dias ) , sempre tendo presente uma finalidade particular , de prevenção especial do agente , cuja existência deve ser prejudicada ao mínimo, tendo em vista aquela finalidade . À culpa reserva-se o papel de antagonista da prevenção pois quaisquer que sejam as necessidades de prevenção jamais a medida da pena poderá ultrapassar a medida da culpa em nome de uma “ incondicional proibição de excesso “ . O bem jurídico em tutela é o da liberdade de autodeterminação sexual , que a criança menor de 14 anos a lei presume “ juris et de jure “ não possuir , ainda que consinta na prática do acto sexual de relevo , previsto no tipo legal . Essa presunção é “ hodiernamente , assaz rebatível , em virtude da “ sexualização “ que perpassa todos os membros da sociedade , sem excluir os mais novos e supostamente mais inocentes “ , na opinião textual de Vera Lúcia Raposo , in Liber Discipulorum , Coimbra Ed. 2003 , pág. 952 . O legislador faz depender a prática de actos sexuais de relevo de uma vontade esclarecida , consciente , na determinação do “ se “ “ quando “ e dos efeitos do acto . Seja como for o abuso sexual sobre crianças é , por estas , muito mal tolerado porque não comportam uma estrutura de suporte bastante para com ele lidar , daí que a mentira seja uma realidade, numa larguíssima percentagem , ausente . A idade , a personalidade da criança e a natureza da agressão fazem divergir os efeitos do abuso sexual de criança para criança , podendo permanecer perturbadas por semanas , condicionando , mais gravemente , o seu comportamento sexual posterior e o seu nível de desenvolvimento , ligando-se a futuros sentimentos de traição , desconfiança , hostilidade , vergonha , culpa , auto-desvalorização , baixa auto-estima , distorção de imagem corporal , transtornos psicológicos “ border –line “ , desenvolvendo , ao nível psiquiátrico puro , “ stress “ póstraumático , depressão , disfunção sexual , quadros dissociativos ou conversivos ( histeria ) , dificuldades de aprendizagem , transtornos de sono , alimentares , obesidade , anorexia , bulimia , ansiedade e fobias . Há mesmo quem situe o abuso no domínio da “ aberração cósmica” , do irracional no humano “ , sem contudo deixar de reclamar a contenção ante o desejo punitivo das massas , elas próprias potenciadoras de abuso pelos mais diversos modos . Em lugar de proteger a menor , como sua filha , de qualquer agressão sexual , lhe dedicar afecto e respeito , até pela deficiência física de que é portadora , o arguido abusa dela sexualmente , mantendo , pelo menos –de certo que o Colectivo não pode levar mais longe a materialização das vezes em que tal sucedeu –ao longo dos anos de 1999 a 2004 , 7 vezes cópula completa , trazendo ao acto em causa uma pesada carga de reprovabilidade e de censurabilidade social tanto à face da lei penal como no plano moral e ético . É certo que o arguido confessou os factos e denotou arrependimento mas isso não lhe retira um muito elevado grau de dolo , de vontade criminosa, manifestada em cada abuso sexual , só relevando a confissão e arrependimento na medida em que se não possa –e não pode - concluir, no dizer de Zipf , que representam “ táctica processual “ , sem deixarem de mitigar a necessidade de emenda cívica de que carece , pelos actos , efeitos e sentimentos revelados , indignos de um pai , repugnando à consciência colectiva , que os não tolera . O depoimento da ofendida mostrou-se coerente , claro , com fidedignidade , coincidindo no essencial o do arguido , porém , e não obstante o relevo que às declarações das vítimas se atribui , raramente aquelas convivendo sem conflito consigo próprio por via do crime de que são alvo , todavia por a agressão sexual se desencadear longe da vista das pessoas , a confissão e o arrependimento que o arguido manifesta , assumindo a culpa e responsabilidade pela prática do grave delito em causa , justifica uma muito ligeira redução da pena . O tempo decorrido sobre os factos não funciona como atenuante porque o decurso de 4 anos sobre eles não pode considerar-se muito tempo , além de que eles comportam um tão grande desvalor objectivo-subjectivo que não passam ao limbo do esquecimento comunitário , sem mais , satisfazendo-se com uma penalização meramente simbólica , pela via da atenuação especial ou suspensão da execução da pena. VIII . De dizer , pois , que a par de um dolo intenso , repetido temporalmente , de um elevado grau de ilicitude , de contrariedade à lei , aferido em função do maior relevo dos interesses juridicamente acautelados e pelo modo de execução dos crimes na pessoa da filha e sentimentos de profundo desprezo denotados , se erguem sentidas necessidades de , pela via da pena , se actuar sobre potenciais delinquentes para revigoramento da lei e , também , sobre o próprio arguido , em vista da interiorização dos maus efeitos do crime , não se pondo de parte a ausência de antecedentes criminais , nos termos do art.º 71.º , do CP , se condena como autor material de 7 crimes de abuso sexual de criança , agravado , p . e p . pelos art.ºs 171.º n.º 2 e 177.º n.º 2 , do CP e 177.º n.º 1 a) , do CP , na pena de 5 anos de prisão , por cada , ou seja em cúmulo , considerando a personalidade do arguido e os factos na sua globalidade , em 8 ( oito) anos de prisão . De excluir a atenuação especial da pena, nos termos do art.º 72.º , do CP , que pressuporia , porém , um inverificado conjunto de circunstâncias , anteriores , concomitantes ou posteriores ao facto , que reduzissem de forma acentuada a culpa , a ilicitude ou a necessidade da pena , circunstancialismo que não se mostra sobejamente sustentado pela confissão e arrependimento e o decurso do tempo nem sequer comporta qualquer efeito atenuativo . A imagem global do facto , por esse concurso , em nada sai esbatida em favor do arguido , reconduzida a um facto quase neutral de um ponto de vista penal , tributário de um regime penal especial em caso que não é especial , a não ser pela sua gravidade. De resto a petição de atenuação especial e subsequente suspensão da execução da pena , para além de , pelo seu evidente infundamento , não revelar a interiorização do facto , não responderia às necessárias necessidades de prevenção geral -art.º 50.º , do CP - ao sentimento de justiça comunitariamente instalado , que ficaria sem compreender essa pena substitutiva . Nestes termos , revogando-se parcialmente o acórdão recorrido , e alterando-se a qualificação jurídico-penal, se condena como autor material de 7 crimes de abuso sexual de criança , p . e p . pelos art.ºs 171.º n.º 2 e 177.º n.º 1 a) , do CP , na pena de 5 anos de prisão por cada , e , em cúmulo , na pena conjunta de 8 ( oito ) anos de prisão . Taxa de Justiça : 5 Uc,s e 1/3 de procuradoria .
Lisboa, 25 de Março de 2009 Armindo Monteiro (Relator) Santos Cabral |