Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
27266/18.7T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: DUPLA CONFORME PARCIAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CONTRATO DE TRABALHO DOMÉSTICO
Data do Acordão: 06/01/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
I - Nos casos em que a parte dispositiva da decisão contenha segmentos decisórios distintos e autónomos, o conceito de dupla conforme terá de se aferir separadamente, quanto a cada um deles.
II - Devendo o tribunal conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões da alegação recursória, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], as questões a resolver não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões invocados pelas partes.
III - O contrato de serviço doméstico foi definido com grande amplitude, abrangendo um leque de situações que abrangem quer as correspondentes ao trabalhador doméstico interno, quer, no extremo oposto, os casos de trabalho “a dias” ou “à hora” com carácter regular.
IV - A regularidade suposta por este tipo contratual não exige que a mesma se mantenha uniforme e invariável ao longo do tempo. O horário do trabalho e os dias em que o mesmo é prestado podem mudar, tal como é indiferente a circunstância de haver outra ou outras pessoas a prestar serviços domésticos à entidade empregadora. O que releva é que haja regularidade em cada um dos períodos em que se desdobra a totalidade do vínculo contratual.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 27266/18.7T8PRT.P1.S1
MBM/JG/RP


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.

1. AA, patrocinada pelo Ministério Público, intentou a presente ação declarativa com processo comum, contra BB, ambas com os sinais nos autos.

Invocando ter trabalhado para a R. como empregada doméstica, pede que esta seja condenada a pagar-lhe: a) € 19.430,58 de retribuições e subsídios de férias por todo o período do contrato; b) € 9.335,04 de subsídio de Natal, por todo o período do contrato; c) € 168,88 de retribuições de férias e subsídios de férias e de Natal proporcionais ao trabalho prestado em 2018; d) € 866,66 de compensação pela falta de aviso prévio na comunicação do contrato de trabalho; e) Juros de mora à taxa legal, desde o vencimento destes montantes e até efetivo pagamento, descontando-se ao valor total da dívida de capital a quantia de € 645,34.

2. Julgada parcialmente procedente a ação na 1ª instância, foi a R. condenada a pagar à A. o que se vier a apurar em sede de incidente de liquidação, a título de retribuição de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal, desde data ainda não concretamente apurada do ano de 2014 e até 17 de fevereiro de 2018.

3. A A. apelou (na parte em que a sentença considerou não existir contrato de serviço doméstico até ao ano de 2014), tendo a R., por seu turno, interposto recurso subordinado (quanto ao decidido na parte relativa ao período compreendido entre 2014 e 17 de fevereiro de 2018).

4. Julgando improcedente o recurso subordinado e parcialmente procedente o recurso da A., o Tribunal da Relação ... (TR...) decidiu: a) revogar a sentença da primeira instância na parte em que limitou o direito da autora à retribuição de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal ao período compreendido entre o ano de 2014 e 17 de fevereiro de 2018; b) condenar a R. a pagar à A. o que se vier a apurar em incidente de liquidação, a título de retribuição de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal, desde junho de 1993 e até 17 de fevereiro de 2018.

5. A R. interpôs recurso de revista, dizendo, essencialmente, nas suas conclusões:

- Ao não conhecer dos argumentos constantes das conclusões 1ª) e 3ª) da recorrente na sua apelação subordinada, quer quanto à formulação conclusiva do ponto 1 dos factos provados, quer ainda da contradição com os outros factos dados como provados nos pontos 17, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 26 e 29, quanto à amplitude irregular e diferenciada em todo o período, verifica-se a nulidade do acórdão prevista no art. 615.º n.º 1. alínea d), do CPC;

- Considerando que o suprimento da nulidade não implica reapreciação probatória, deve o Tribunal ad quem alterar o decidido nos pontos 1 e 3, decidindo que: Em junho de 1993, a autora passou a prestar serviços de natureza doméstica na casa da autora, numa fase inicial apenas de assegurar a preparação de refeições e que, em momentos posteriores, consistiram em assegurar a limpeza da casa, ou o tratamento de roupas nas condições e variantes descritos nos factos seguintes”;

- De igual modo, ao não ter conhecido dos fundamentos invocados na impugnação pela apelante subordinada dos pontos 12 e 13 dos factos provados, desde logo, o facto de serem sugestivos e antecipatórios de uma conclusão jurídica acerca da existência de certos créditos, a ausência de prova e a prova em sentido contrário nos meios de prova que ficaram por apreciar, voltou a incorrer em nulidade por omissão pronúncia, além de clara violação do art. 342.º do CCiv, ao justificar a omissão com uma presunção dos factos em causa que não existe;

- De igual modo, ao não procederem à apreciação dos fundamentos de impugnação constantes das conclusões 13ª) e 14ª) da apelação subordinada, concretamente quanto à alínea r) dos factos dados como não provados, e bem assim, à apreciação dos meios de prova indicados pela recorrente que, segundo esta, importavam alteração do decidido, feriram o aresto recorrido, também aqui, de nulidade por omissão de pronúncia.

- Nestas segunda e terceira nulidades do acórdão, porque o suprimento delas importa a apreciação de meios probatórios deve ser anulado o acórdão e determinada a baixa dos autos para que o Tribunal a quo aprecie o fundamento de impugnação omitido;

- O acórdão recorrido qualifica a relação de prestação de serviços entre A. e R. em todo o período desde junho de 2003 até fevereiro de 2018 como trabalho doméstico subordinado, com recurso à aplicação da presunção de laboralidade do art. 12.º do Código de Trabalho de 2009, quando nem esta, nem a do Código anterior de 2003, são aplicáveis ao caso por não se aplicarem retroativamente, à celebração do alegado contrato em 1993;

- No caso em apreço, nem sequer a “regularidade” das prestações retributivas resultou provada, já que apenas se provou que “a autora recebeu sempre em numerário e sem emissão de recibos”, sem que se tenha dado como provada qualquer regularidade na fixação ou efetivação do pagamento dos serviços prestados, pelo contrário, como se vê nos pontos 24 e 25 dos factos provados;

- Quanto ao modo de execução dos serviços domésticos, ainda menos se pode falar de “regularidade”, atento o que consta dos pontos 26) e 29) dos factos provados, e em especial o facto de se ter provado que “a autora trabalhava noutros locais nos mesmos moldes” (30 dos factos provados), que era ela “quem decidia qual a tarefa que realizava em cada momento, o modo de execução e o tempo que nisso despendia” (ponto 27 dos factos provados), indiciador de uma prestação de serviços autónoma, por conta própria;

- O ponto nuclear da subordinação jurídica – que os serviços sejam prestados “sob a sua direção e autoridade” do beneficiário deles - foi absolutamente ignorado pelo acórdão recorrido, ainda que suscitado em todas as instâncias pela ora recorrente, limitando-se o aresto a referir os pontos 23 e 24 dos factos provados, atento o uso da presunção que já vimos, legalmente desadequado;

- Dos factos provados verificamos, desde logo, que o recorte factual da prestação de serviços domésticos entre as partes se desenvolvia, se iniciou muito mais pela adjudicação de tarefas concretas que a A. assumia como obrigação de resultado e que concluídas eram pagas (pontos 17), 18), 19), 20), do que pela fixação de um horário delimitado, diário e semanal, no qual a A. colocava a sua força de trabalho à disposição da R.;

- Como se provou em 15), 16), 21) e 22), desde 1993 até 2014, enquanto viveu no ..., a R. sempre teve uma empregada doméstica a tempo inteiro e, de 2004 a 2014, enquanto passou a viver em ..., ali tendo também empregada permanente, a R. apenas prestava pontuais e intermitentes trabalhos quando a R. vinha ao ... e recebia familiares;

- Pelo que, pelo menos no período entre junho de 1993 e o ano de 2014, é absolutamente inconsistente a prestação para ser qualificada como contrato de trabalho subordinado, quer pela ausência de prova de os serviços serem prestados sob autoridade e direção da ré, de forma permanente, regular e vinculística;

- Se do que se provou, a A. “assegurava as limpezas de pavimentos e móveis, o tratamento de roupas e preparação e confeção de refeições, mediante um preço”, tinha “de assegurar, no caso das roupas, deixar passada e dobrada a roupa lavada, no caso das refeições, adquirir os géneros necessários, proceder à preparação e confeção das mesmas, servir e recolher a louça e arrumar a cozinha” (pontos 18), 19), 25), e 26) dos factos provados) é evidente que assumia obrigações de resultado e não, obrigações de disponibilidade da sua força de trabalho para conformação direcionada pela ré;

- Era à A. que competia a prova dos índices factuais de subordinação jurídica que alegou, mas não provou os que deram lugar às alíneas a) a e) dos factos não provados;

- Os “indícios” elencados de i) a v) pela decisão recorrida não permitem qualificar uma relação subordinada de trabalho já que estão presentes noutros prestadores autónomos;

- Para que essa subordinação se verifique, tem de se demonstrar uma relação de dependência necessária que condiciona a conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, poder esse, de direção e autoridade, que não resulta dos factos provados, como é até afastado, no caso em apreço, pelo facto provado no ponto 27;

- Ao invés do que se refere no acórdão, existindo sempre outras empregadas domésticas a tempo inteiro, e a mudança da R. de 2004 a 2014 para ..., não permitem concluir pela inserção da autora no funcionamento familiar da ré, incluindo quando esta se deslocava com o marido para ..., onde nem sequer provou que tivesse ido uma só vez;

- Importando que a A. provasse a sujeição a um horário de trabalho definido pela R., durante o qual ficava sujeita à determinação organizacional da R. quando aos serviços a prestar, não só tal não resultou provado (pontos f) e h) dos factos não provados), como, pelo contrário, o tempo de trabalho variava em função das tarefas solicitadas (ponto 20 dos factos provados), sendo a autora autónoma na determinação do momento e modo para a realização das tarefas desde que assegurasse o resultado pretendido e solicitado pela R., o que afasta a qualificação do contrato como subordinado;

- O acórdão recorrido omite ainda a consideração dos chamados indícios negociais externos da subordinação jurídica laboral, concretamente, o enquadramento da situação fiscal do prestador da atividade e a sua inscrição na Segurança Social como trabalhador por conta de outrem (acórdãos STJ de 21/1/2009, Proc. n.º 2270/08 - 4.ª Secção, e de 26/1/2017 , Proc.1175/14.7TTLSB.L1.S1), quando no caso nada disso existia, numa relação em que a A. recebia o preço dos seus serviços em dinheiro, sem emitir qualquer recibo de quitação, o que é incompatível com uma relação de trabalho subordinado;

- Os pontos 16) e 18) dos factos provados, impediam que o Tribunal a quo tratasse com uma regularidade uniforme, desde junho de 1993 a fevereiro de 2018, uma prestação de serviços domésticos que se iniciou de uma forma, se modificou em 2004 com a ida da A. residir para ..., de novo em 2014 com o regresso ao ..., em 2017 com a doença do marido da A. e a entrada de cuidadores;

- Competindo à A. alegar e provar factos constitutivos de um contrato de trabalho doméstico subordinado, patentemente, não o logrou fazer em relação a todo o período, em especial até 2014, como salientou a sentença da primeira instância;

- Resultando dos factos provados em 34) a 37) o acordo emergente da cessação da relação da prestação de serviços com o ajuste negocial de um valor único e global de € 900,00 a pagar pela R. em duas prestações mensais que a mesma liquidou, sem que a ré reclamasse quaisquer valores em falta, criando assim a confiança à R. de que não iria, ulteriormente, questionar outros valores, abusa ilegitimamente do seu direito invocado na presente ação quando, após o recebimento do valor, vem reclamar prestações de férias e subsídios desde 1993, que nunca reclamou, porque as partes sempre assim leram a relação que as vinculava;

- De resto, só mesmo pela boa-fé e confiança na A. é que a R. dispensou uma declaração de quitação com remissão abdicativa que seria pacifica da parte da autora, já que, como se provou, a mesma “não reclamou qualquer outra quantia ou direito” (ponto 36) dos factos provados), como jamais havia reclamado quaisquer subsídios ou ferias não pagas (ponto 37) dos factos provados);

6. Em representação da A., o Ministério Público contra-alegou, pugnando pelo improvimento do recurso.

II.
(Delimitação do objeto do recurso)


7. Na Revista, invoca a R. que a A. agiu com abuso de direito.

Acontece que a mesma não questionou esta matéria nas conclusões das alegações do recurso de apelação interposto da sentença proferida na 1ª Instância, matéria sobre a qual, consequentemente, o acórdão recorrido não se pronunciou.

Deste modo, destinando-se os recursos a reapreciar as decisões tomadas pelos tribunais de inferior hierarquia e não a decidir questões novas que perante eles não foram equacionadas, é manifesto que esta questão (nova) não poderá agora ser conhecida por parte deste Supremo[1].

Consequentemente, não se conhecerá desta questão, sendo certo que dos autos não resultam quaisquer razões que minimamente imponham conhecer da mesma oficiosamente.

8. Dupla conforme parcial.

No caso em apreço, a sentença da primeira instância desdobra-se em dois segmentos decisórios distintos e autónomos: (i) um favorável à A. (reconhecendo ter vigorado entre as partes um contrato de serviço doméstico, entre 2014 e 17 de fevereiro de 2018, e extraindo os correspondentes efeitos); (ii) e o outro a beneficiar a R. (considerando não ter existido relação laboral entre junho de 1993 e 2014, ou seja, até ao final de dezembro de 2013).

Apelaram ambas as partes, com posições opostas, no tocante ao decidido com referência a cada um destes períodos.

Quanto ao período compreendido entre 2014 e 17 de fevereiro de 2018, ambas as instâncias entenderam que vigorou entre as partes um contrato de serviço doméstico e reconheceram, por essa razão, o correspondente direito da Autora à retribuição de férias e subsídios de férias e de Natal.

A Relação apenas divergiu da 1ª instância relativamente à qualificação jurídica da relação contratual que teve lugar no outro período mencionado, atribuindo por isso à A., também nesta parte, ganho de causa.

Como reiteradamente vem decidindo este Supremo Tribunal, nos casos em que a parte dispositiva da decisão contenha segmentos decisórios distintos e autónomos o conceito de dupla conforme terá de se aferir separadamente, quanto a cada um deles (e só quanto a cada um deles)[2].

Deste modo, o recurso da R. não é admissível na parte atinente às remunerações devidas no âmbito do período compreendido entre o ano de 2014 e 17 de fevereiro de 2018, por força do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC.

9. Posto isto, em face das conclusões da alegação de recurso, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), as questões a decidir são as seguintes:

- Se o acórdão da Relação nulo, por omissão de pronúncia.

- Se vigorou entre as partes um contrato de serviço doméstico entre junho de 1993 e dezembro de 2013.

 Decidindo.

III.


10. Foi fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto:

1) Em junho de 1993, a autora passou a prestar a sua atividade de empregada doméstica para a ré.
2) A autora efetuava a limpeza da casa, procedia ao tratamento de roupas e preparava refeições.
3) A autora foi desempenhando essas funções desde junho de 1993 até 17 de fevereiro de 2018.
4) A ré dava ordens à autora quando pretendia determinada refeição, porque apareciam pessoas em casa, porque lhe apetecia determinado prato ou outro motivo.
5) Os produtos e instrumentos de trabalho utilizados pela autora pertenciam à ré.
6) Inicialmente e até data não concretamente apurada, a autora trabalhava duas tardes por semana.
7) A partir de data não concretamente apurada, a autora passou a trabalhar da parte da manhã, de segunda a sexta-feira.
8) A autora recebeu sempre em numerário e sem emissão de recibos.
9) Em 20 de outubro de 2010, a autora reformou-se por velhice.
10) Após tal, a autora manteve-se ao serviço da ré.
11) Em 17 de fevereiro de 2018, os filhos da ré reuniram com a autora e, agindo em representação e no interesse da ré, comunicaram-lhe que a sua mãe prescindia dos seus serviços com efeitos imediatos.
12) A autora nunca recebeu retribuição de férias ou subsídio de férias.
13) E nunca recebeu subsídio de Natal.
14) Por conta de créditos devidos, a ré pagou à autora a quantia de € 900,00.
15) No ano de 1993 o agregado familiar da ré era composto por si, pelo seu falecido marido e filha Clara.
16) E tinha a seu cargo uma empregada doméstica de nome “...” que assegurava o serviço doméstico a tempo inteiro.
17) A ré teve conhecimento que a autora prestava serviços domésticos em vários domicílios, onde concretamente, assegurava as limpezas de pavimentos e móveis, o tratamento de roupas e preparação e confeção de refeições, mediante um preço.
18) A ré começou a solicitar à autora serviços, no início, essencialmente para a preparação e confeção de refeições, sobretudo, quando estavam presentes familiares ou amigos em almoços ou jantares.
19) Eram por vezes solicitados ainda, trabalhos de tratamento de roupas (passar a ferro), tendo a autora de assegurar, no caso das roupas, deixar passada e dobrada a roupa lavada, no caso das refeições, adquirir os géneros necessários, proceder à preparação e confeção das mesmas, servir e recolher a louça e arrumar a cozinha, sendo sempre remunerada pelo padrão de hora.
20) O tempo despendido na execução de tais serviços não era semanalmente o mesmo, variando em função da necessidade que a autora tinha de concluir as tarefas referidas em 19).
21) No período de cerca de 2 anos a ... teve de se ausentar e a ré substituiu-a por outra empregada doméstica de nome CC.
22) A partir de 2004, a ... deixou de prestar serviço à ré, sendo que esta e o seu falecido marido passaram a residir grande parte do tempo fora do ....
23) A autora e seu falecido marido têm uma casa no concelho ..., distrito ..., onde passaram a estar longas temporadas, apenas vindo ao ... alguns dias da semana, para estar com os filhos e tratar de assuntos do expediente da sua vida pessoal, passando a quase totalidade dos meses do Verão inteiramente na casa de ..., de junho a setembro, inclusive.
24) Nesse período, a autora assegurou a limpeza da casa e a confeção e fornecimento de algumas refeições na casa do ..., quando aí estava a ré e quando recebiam filhos ou amigos.
25) Sendo paga em função das horas que trabalhava.
26) A partir de janeiro de 2014, a autora passou a prestar mais volume de serviço, assegurando a limpeza da casa, o tratamento das roupas e o fornecimento de refeições todas as manhãs dos dias úteis, sendo-lhe exigido que mantivesse a casa limpa, a roupa fosse lavada, ficasse passada e em condições de arrumar e assegurasse a elaboração e fornecimento de refeições quando solicitado.
27) Era a autora quem decidia qual a tarefa que realizava em cada momento, o modo de execução e o tempo que nisso despendia.
28) A partir de novembro de 2017, a ré, necessitando o seu marido de cuidados especiais, contratou os serviços de uma empresa de cuidadores que passou a colocar uma pessoa para auxiliar o marido na sua mobilidade, higiene e bem-estar, a qual assegurava a administração das refeições e medicação, o arrumo da casa e do espaço utilizado pelo marido da ré.

29) Nessa altura, os serviços que a autora prestava, da parte da manhã, consistiam em assegurar que a casa estivesse limpa e assegurar que as roupas da semana ficassem lavadas e passadas, e à confeção de uma ou outra refeição, tarefas que levava a cabo da parte da manhã, em timings de sua conveniência normalmente situados entre a 9 horas da manhã e as 12 horas.

30) A autora trabalhava noutros locais nos mesmos moldes.
31) Antes do dia 17 de fevereiro de 2018, os serviços de assistência à ré no seu domicílio eram assegurados por uma equipe de prestadores de serviço - cuidadores - que levavam a cabo todos as tarefas domésticas, as quais era repartidas com a autora, dado esta se ter afeiçoado à família da ré.
32) Os filhos da ré acreditavam que eram frequentes as divergências e mesmo conflitos entre a autora e os demais cuidadores da ré, acabando por determinar um ambiente de tensão manifestamente prejudicial à saúde e sossego da ré e do seu marido.
33) Mais acreditavam que a autora pretendia impor-se e dar instruções às cuidadoras de como tratar da ré, como organizar a vida doméstica na casa da ré, acabando por tornar absolutamente impensável a manutenção desse clima e estado de coisas.
34) Em 17/2/2018, a aqui ré reuniu com a autora na companhia ainda dos filhos da primeira e, após a troca de pontos de vista sobre as referidas incompatibilidades e conflitos, resolveram colocar termo à relação estabelecida.
35) Propuseram os filhos da ré o pagamento à autora de € 900,00 em duas prestações mensais de € 450,00 cada uma.
36) O valor acordado foi pago e recebido pela autora que, à data, não reclamou qualquer outra quantia ou direito.
37) A autora jamais reclamou da ré quaisquer subsídios ou férias não pagas.

11. E como não provados os seguintes factos:
a) Era a ré que determinava o trabalho que a autora deveria realizar, como determinava o procedimento quanto ao tratamento da roupa, os procedimentos a seguir na limpeza da casa e como confecionar as refeições.
b) A ré fiscalizava se o trabalho se encontrava realizado de acordo com a sua vontade, sendo particularmente exigente quanto à forma como a roupa era passada, se alguma peça não estava de acordo com a sua vontade mandava passar novamente.
c) A ré determinava a forma como as refeições deveriam ser confecionadas, bem como quanto aos produtos a utilizar.
d) Quando a ré pretendia usar determinada roupa ou o marido, dava ordens à autora para preparar essa roupa.
e) A ré dava ordens quanto ao modo de proceder na limpeza da casa e verificava se a limpeza era efetuada de acordo com a sua vontade.
f) Aquando do referido em 6), a autora trabalhava um total de seis horas semanais.
g) E auferia a retribuição de € 3,50 por hora.
h) Aquando do referido em 7), a autora trabalhava entre as 08:30 e as 12:30, no total de 20 horas semanais.
i) E auferia a retribuição de € 4,00 por hora.
j) A partir de janeiro de 2001, a ré aumentou o salário da autora para € 5,00, montante que se manteve até à cessação do contrato.
k) A autora nunca gozou qualquer período de férias.
l) A quantia referida em 14) incluía a retribuição de fevereiro (17 dias), no montante de € 245,55.
m) O referido em 19) ocorria quando havia sobrecarga do trabalho da ..., determinando a autora a forma como executava tais tarefas, o tempo e duração das mesmas.
n) Aquando do referido em 23), a ré deixou de ter necessidade de ter uma empregada doméstica no ....
o) Foram frequentes as divergências e mesmo conflitos entre a autora e demais cuidadores da ré, acabando por determinar um ambiente de tensão manifestamente prejudicial à saúde e sossego da ré e do seu marido.
p) A autora pretendia impor-se e dar instruções às cuidadoras de como tratar da ré, como organizar a vida doméstica na casa da ré, acabando por tornar absolutamente impensável a manutenção desse clima e estado de coisas.
q) Quando estavam em ..., a autora não prestava qualquer atividade à ré e seu marido.
r) A autora sempre colocou como termos de prestação de serviço os descritos moldes de pagamento em dinheiro em função do tempo de serviço efetivamente prestado, sem quaisquer descontos ou contribuições.

IV.

(a) - Se o acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia.

12. Entre as causas de nulidades da sentença, enumeradas taxativamente no artigo 615.º, n.º 1, do CPC, não se incluem o “chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 686).

Na apelação, a R. impugnou, nomeadamente, o julgamento dos pontos 1), 2), 3), 12) e 13) da matéria de facto provada, bem como do ponto r) dado como não provado, pugnando pela correspondente alteração.

No acórdão que julgou a apelação, a Relação pronunciou-se expressamente sobre todos os pontos impugnados, mormente os supramencionados.

Não obstante, invoca agora a recorrente que o TR.… não se pronunciou sobre alguns dos “argumentos” e “fundamentos” invocados na impugnação do julgamento de facto.

Ora, sendo certo que o tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões da alegação recursória, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], as questões a resolver, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões invocados pelas partes.

A desconformidade do julgamento de facto com o pretendido pela R. poderá, eventualmente, constituir um erro de julgamento, mas, tendo sido apreciadas todas as questões suscitadas no plano do julgamento da matéria de facto, improcede a arguida nulidade, prevista na alínea d), 1.ª parte, do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

(b) - Se entre as partes vigorou um contrato de serviço doméstico entre junho de 1993 e dezembro de 2013.

13. Dispõe o artigo 2.º do DL n.º 235/92, de 24 de outubro (alterado pela Lei n.º 114/99, de 3 de agosto):

1 - Contrato de serviço doméstico é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a outrem, com carácter regular, sob a sua direção e autoridade, atividades destinadas à satisfação das necessidades próprias ou específicas de um agregado familiar, ou equiparado, e dos respetivos membros, nomeadamente:
a) Confeção de refeições;
b) Lavagem e tratamento de roupas;
c) Limpeza e arrumo de casa;
d) Vigilância e assistência a crianças, pessoas idosas e doentes;
e) Tratamento de animais domésticos;
f) Execução de serviços de jardinagem;
g) Execução de serviços de costura;
h) Outras atividades consagradas pelos usos e costumes;
i) Coordenação e supervisão de tarefas do tipo das mencionadas neste número;
j) Execução de tarefas externas relacionadas com as anteriores.

2 – (…)

3 - Não se considera serviço doméstico a prestação de trabalhos com carácter acidental, a execução de uma tarefa concreta de frequência intermitente ou o desempenho de trabalhos domésticos em regime au pair, de autonomia ou de voluntariado social.

E, conexamente, o seu art. 7.º (Modalidades):

1 - O contrato de serviço doméstico pode ser celebrado com ou sem alojamento e com ou sem alimentação.

2 - Entende-se por alojado, para os efeitos deste diploma, o trabalhador doméstico cuja retribuição em espécie compreenda a prestação de alojamento ou de alojamento e alimentação.

3 - O contrato de serviço doméstico pode ser celebrado a tempo inteiro ou a tempo parcial.

14. Da mera leitura destas normas decorre que este tipo contratual foi definido com grande amplitude, abrangendo um leque de situações que abrangem quer as correspondentes ao trabalhador doméstico interno, quer, no extremo oposto, os casos de trabalho “a dias” ou “à hora” com carácter regular.

Excetuadas as situações expressamente contempladas no n.º 3 do citado artigo, não são por isso facilmente configuráveis situações de “trabalho doméstico” (em sentido amplo e não técnico) que não caiam no âmbito da definição legal de contrato de serviço doméstico.

15. A este propósito, ponderou o acórdão recorrido:
“(…)
É consabido que o contrato de serviço doméstico está sujeito a um regime especial (…), cuja especificidade reside na forma particular como a atividade é prestada, que assenta numa relação de proximidade e de confiança de tipo quase familiar.
(…)
[A lei] não define o “carácter regular” em contraposição ao “carácter acidental” da prestação de serviço doméstico.
O “carácter acidental”, do latim accidentāle: o que é acessório, eventual, ocasional, contingente.
O “carácter regular” da prestação da atividade da autora está diretamente associado aos créditos salariais por ela peticionados: retribuição de férias e subsídios de férias e de natal, por todo o período do contrato;
No que reporta ao critério relativo à regularidade e periodicidade de créditos laborais, o STJ tem, de forma unânime e reiterada, após o acórdão uniformizador de jurisprudência de 01.10.2015, proferido no proc. n.º 4156/10.6TTLSB.L1.S1 (in www.dgsi.pt.), publicado no DR 1ª série, de 29.10.2015, entendido que tal apenas ocorrerá quando o recebimento da prestação ocorra em 11 dos 12 meses do ano.
(…)
[In casu] estão, pois, provados como indícios internos da subordinação jurídica: (i) a prestação de serviço doméstico em local definido pela ré, a sua casa no ...; (ii) a retribuição em função do tempo de trabalho, à hora; (iii) a utilização dos bens – alimentares e outros - e dos utensílios domésticos fornecidos pela ré; (iv) a inserção da autora no funcionamento familiar da ré, incluindo quando esta se deslocava com o marido para ... - cf. ponto 24) dos factos provados -; (v) e a prestação do serviço doméstico em tempo determinado pela ré: “duas tardes por semana”, inicialmente, e, depois, “da parte da manhã, de segunda a sexta-feira”.
E não eram o modo de execução das tarefas, o tempo despendido ou o momento da sua realização que afastavam essa subordinação jurídica. O modo de execução é pessoal e técnico e o momento da realização cabe na gestão do tempo disponível para a execução das tarefas que lhe cabia realizar.
Resulta, pois, da factualidade provada que a autora prestou serviço doméstico em casa da ré, no ..., sob a sua direção e autoridade, desde junho de 1993 até 17 de fevereiro de 2018, inicialmente, “duas tardes por semana” – equivalente a 4 dias/mês – e, posteriormente, “da parte da manhã, de segunda a sexta-feira” – equivalente a 10 dias/mês -, incluindo nas ausências temporárias da ré e do seu marido, em ... – cf. pontos 23 e 24 dos factos provados.
O contrato de serviço doméstico, a tempo parcial, sem limite mínimo, está, expressamente, previsto no n.º 3 do artigo 7.º, do DL n.º 235/92.
Assim, estando provado que a autora trabalhava todos os meses do ano, primeiro “duas tardes por semana” e depois “da parte da manhã, de segunda a sexta-feira”, temos de concluir pelo “carácter regular” da prestação de serviço doméstico, nos termos e para efeitos do citado n.º 1 do artigo 2.º do DL n.º 235/92.”

16. À luz das considerações preliminarmente adiantadas em supra n.º 14, não pode deixar de aderir-se a esta argumentação, bem como ao resultado interpretativo alcançado, afigurando-se-nos que a regularidade da prestação se patenteia, desde logo, nos seguintes factos provados:

- Inicialmente e até data não concretamente apurada, a autora trabalhava duas tardes por semana – ponto 6)

- A partir de data não concretamente apurada, a autora passou a trabalhar da parte da manhã, de segunda a sexta-feira – ponto 7)

- A autora recebeu sempre em numerário, pelo padrão de hora, e sem emissão de recibos – pontos 8), 19), 25).

A lega a recorrente que “os pontos 16) e 18) dos factos provados impediam que o Tribunal a quo tratasse com uma regularidade uniforme, desde junho de 1993 a fevereiro de 2018, uma prestação de serviços domésticos que se iniciou de uma forma, se modificou em 2004 com a ida da A. residir para ..., de novo em 2014 com o regresso ao ..., em 2017 com a doença do marido da A. e a entrada de cuidadores”.

Se bem se percebe, também a sentença da 1ª instância incorreu em idêntico raciocínio, ao afirmar, nomeadamente: “no caso de que nos ocupamos, e tendo a relação estabelecida entre as partes perdurado de 1993 a 2018, importa notar que a mesma não se manteve sempre estanque, antes pelo contrário, foi variando”.

Ora, a invocada realidade em nada obsta à afirmação da regularidade suposta pelo vínculo laboral em causa, uma vez que o tipo contratual de forma alguma exige que esta “regularidade” se mantenha uniforme e invariável ao longo do tempo. O horário do trabalho e os dias em que o mesmo é prestado podem mudar, tal como é indiferente a circunstância de haver outra ou outras pessoas a prestar serviços domésticos à entidade empregadora. O que releva é que haja regularidade em cada um dos períodos em que se desdobra a totalidade do vínculo contratual.
Improcede, pois, o recurso.

IV.

17. Em face do exposto, acorda-se:

- Em não se conhecer do objeto do recurso, relativamente ao abuso de direito invocado pela recorrente, bem como na parte atinente às remunerações devidas no período compreendido entre o ano de 2014 e 17 de fevereiro de 2018;

- No mais, negando a revista, em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 01 de junho de 2022




Mário Belo Morgado (Relator)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Ramalho Pinto




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[1] Neste sentido, v.g. Acs. do STJ de 15.09.2021 (Proc. n.º 559/18.6T8VIS.C1.S1- 4.ª Secção),  de 22.02.2017 (Proc. n.º 1519/15.4T8LSB.L1.S1 - 4.ª Secção), de 07.10.2021 (Proc. n.º 235/14.9T8PVZ.P1.S1 - 1.ª Secção) e de 12.01.2021 (Proc. n.º 379/13.4TBGMR-B.G1.S1 - 1.ª Secção), disponíveis in www.dgsi.pt.
[2] v.g. Acs. STJ de 15.09.2016 (Proc. n.º 14.633/14.4T2SNT.L1.S1, desta 4.ª Secção), de 10.04.2014 (Proc. 2393/11.5TJLSB.L1.S1, 7.ª Secção), de 06.11.2018 (Proc. n.º 452/05.2TBPTL.G2.S1, 6.ª Secção) e de 22.04.2021 (Proc. n.º 1484/15.8T8PDL.L1.S1, 7.ª Secção).