Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2608/19.1T8OAZ.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: PAULA SÁ FERNANDES
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I- No contrato de trabalho está em causa a prestação da atividade do trabalhador que a entidade empregadora organiza e dirige no sentido de alcançar determinado resultado. Esta subordinação, que consiste na relação de dependência da conduta do trabalhador na execução da sua atividade às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem, tem sido considerada, pela doutrina e jurisprudência, como o elemento caracterizador do contrato de trabalho.
II- No caso, resultaram apurados factos suficientes para caracterizar a subordinação jurídica que caracterizou a execução da atividade da autora ao serviço da ré, dado ter resultado provada a verificação de diversos fatores indiciários que presumem a existência de um contrato de trabalho, nos termos do n.º1 do artigo 12.º do Código do Trabalho.
III- O facto de a Autora não auferir qualquer quantia a título de férias, subsídio de férias e de Natal, e de estar inscrita na autoridade tributária como trabalhadora independente configuram o incumprimento de obrigações da Ré no âmbito de uma relação laboral, que não se sobrepõem, nem infirmam os indícios que resultaram provados e de que a lei faz presumir a existência do contrato de trabalho, que no caso indiciam, claramente, a existência de uma relação jurídica de subordinação.
IV- Se a presunção da existência de um contrato de trabalho deve assentar nas características concretas descritas no artigo 12, n.º1 do Código do Trabalho, também a elisão dessa presunção – a prova em contrário – deve ser sustentada na realidade fáctica desenvolvida na empresa e não em meras hipóteses ou informações genéricas, sem que, no caso, se tenham apurado os factos necessários para ilidir a referida presunção legal, cujo ónus da prova pertencia à Ré, por força do art.º 350 do Código Civil.
Decisão Texto Integral:



Processo nº 2608/19. ………..

Recurso de Revista

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça.

              

I.Relatório

O Ministério Público intentou a presente ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra: Santa Casa da Misericórdia de…………, pedindo o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre a ré e a trabalhadora AA por tempo indeterminado, fixando-se a data do seu início em novembro de 2018.

Alegou para o efeito que a referida trabalhadora exerce a sua atividade de enfermeira, em condições idênticas às de uma trabalhadora vinculada por contrato de trabalho, nas instalações da ré, com equipamentos e instrumentos desta, sujeita a horário de trabalho previamente determinado pela ré, sob as ordens, orientações e instruções da diretora técnica e da enfermeira-chefe desta, recebendo como contrapartida uma remuneração horária fixa, paga com periodicidade mensal.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos: Pelo exposto, julgo procedente a ação e, em consequência, reconheço a existência de um contrato de trabalho entre a ré e a trabalhadora AA, por tempo indeterminado, fixando-se a data do seu início em novembro de 2018.

A Ré, inconformada, interpôs recurso de apelação.

O Tribunal da Relação, por acórdão de 22.6.2020, proferido com um voto de vencido, decidiu nos seguintes termos: Em face do exposto, acorda-se em julgar o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, absolvendo-se a Ré, Santa Casa da Misericórdia de ………… do pedido formulado pela A., Ministério Público.   

O MP, inconformado, interpôs recurso de revista, com as seguintes Conclusões:

1) Conforme se constata da 1ª. página do acórdão recorrido, no lugar que lhes são devidas, constam apenas duas assinaturas digitais avançadas relativamente à Exma. Sra. Juíza Desembargadora Relatora e ao Exmo. Sr. Juiz Desembargador 1º. Adjunto.

2) O modo de assinar tal peça processual, concretamente, está previsto nos termos do Artigo 663.º do CPC., cujo mecanismo legal não foi observado pela formação de juízes que nele interveio.

3) Nos termos do artigo 615º, n.º 1, al. a), é cominada com nulidade a sentença que não contenha a assinatura do juiz, conforme os art.668.º-1-a), 666.º-3 e 157.º-1, todos do CPC.

4) Trata-se da omissão de um requisito externo, de forma da decisão como expressamente consta da qualificação acolhida pelo último dos referidos preceitos.

5) A omissão de assinatura pode ser suprida oficiosamente ou a requerimento das partes, enquanto for possível colher a assinatura em falta - n.º 2 do art.668.º.

6) Daí que a falta da assinatura em causa, quanto ao Exmo. Desembargador que votou vencido, consubstancia uma nulidade suprível, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 2 do CPC e a qual se argui para os devidos e legais efeitos.

7) Deve, pois, este ilustre Magistrado ser convidado a suprir a nulidade de falta de aposição da sua assinatura, no lugar que se mostrar como devido e nos sobreditos termos.

8) No caso em apreço, o acórdão de 23.06.2020 desrespeitou o carácter colegial da decisão que foi prolatada.

9) Após assinaturas eletrónicas da Exma. Sra. Juíza Desembargadora Relatora e do Exmo. Sr. Juiz Desembargador 1º. Adjunto e da datação do acórdão “sub iudice”, constata-se que o Exmo. Sr. Juiz Desembargador 2º. Adjunto, que votou vencido, exarou a sua declaração de discordância em “conclusão” autónoma e em ato posterior anexo ao acórdão, ou seja, fora da peça processual principal a que se ora alude.

10) O Mmo. Juiz Desembargador que votou vencido divergiu da Exma. Relatora e seu 1º. Adjunto, não tendo podido prosseguir com a orientação por si perfilada, o que veio a fazer na mencionada “conclusão” “a posteriori”, por ter ocorrido fora do acórdão que fora prolatado e com violação da intervenção na formação do coletivo de Juízes.

11) Trata-se da não conformação do princípio da colegialidade das decisões dos tribunais, o qual se concretiza através do julgamento por um grupo de magistrados que expressam suas opiniões por meio do “acórdão”, ou seja, de uma tomada de decisão por meio de “acordo”.

12) O voto de vencido é parte integrante do acórdão, para apreciação da matéria de facto e de direito e o que influi na decisão da causa, enquanto seu elemento essencial, sob pena de ocorrer grave violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que circunscrevem o respetivo conteúdo e limites, sob pena de ocorrer a sua nulidade, nos termos do art. 615.º nº. 1 al. c) do CPC.

13) Consequentemente, o dito “voto de vencido” não integra, nem formal, nem materialmente, o acórdão ora recorrido é causa de nulidade insanável do julgado por não ter sido observado o mecanismo, previsto no artigo 663º. Nº. 1.

14) Esta nulidade é insuprível por via de recurso de acordo com o disposto no artigo 684º. nº 2 e que se invoca nos sobreditos termos e para os devidos efeitos.

15) O Tribunal da Relação analisou e apreciou o recurso sobre a matéria de quanto ao ponto 4 (da matéria provada na 1ª. instância), sendo passível de correção oficiosa, temos que foi excedido o proposto pela recorrente, que desse modo se conformaria com o que consta dos pontos 20 e 21 (este na redação inicial), dos factos dados como provados e não impugnados pela recorrente.

16) O ponto 18 (idem) mostra-se corretamente julgado e sem que haja motivo para alteração de sua redação, conforme o que se depreende das considerações que sobre ele e a seu respeito foram tecidas no aresto, para desse modo ser compatível com o antecedente ponto 4.

17) O ponto 5 da matéria não provada em 1ª. instância, também, foi corretamente julgado, sem que contrarie os antecedentes pontos 4 e 5 dados como provados, pelo que, não tem sustentação o aditado ponto 28.

18) O ponto 6, a par do eliminado ponto 7 (ambos não provados, idem), foi corretamente ponderado, tal como se evidencia do que a seu respeito se mencionou, sendo que o sugerido ponto 29 tem carácter “ex novo”, por não haver sido alegada factualidade adequada, em sede de contestação, não sendo atendível nos termos do artigo 72.º do CPT, na redação dada pela Lei n.º 107/2019, de 09.09, por não discutido em audiência de julgamento.

19) Quanto ao ponto 12 (idem), não há motivo para proceder à impugnação pretendida pela recorrida, com aditamento do facto 30, que se mostra conclusivo e ao arrepio do que vem proposto.

20) Os pontos aditados – 28 a 30 – que nada acrescentam com interesse para a matéria factual, estão correlacionados com antecedentes pontos nº.s 8, 18 (alterado), 21 e 22, os quais espelham a realidade laboral estabelecida entre a aqui recorrida e a representada do Mº. Pº. e sem que haja sido solicitada proclamação no sentido ora decidido no acórdão “sub iudice”.

21) Os factos alegados na contestação não permitiam a este Tribunal uma pronúncia como a que foi emitida, sendo que a decisão proferida em matéria de facto alargou o âmbito da relação contratual e sem que haja sido formulado pedido nesse sentido.

22) Este Tribunal excedeu os seus poderes de cognição, procedendo como que a um novo julgamento da matéria de facto, ao ter conhecido de matéria sobre a qual não foi chamado a decidir e o que patenteia um erro jurídico.

23) Do exposto resulta que que este Tribunal “a quo” violou a lei substantiva e a lei de processo ao emitir pronúncia sobre questões que lhe estava vedado apreciar e o que causa de nulidade do acórdão - cf. artº.s 609.º n.º 1 e 615.º nº 1 al. e), ambos do CPC.

24) A situação de facto da aqui trabalhadora representada pelo MºPº. (sempre como autor nesta e noutras ações) foi tratada nos acórdãos proferidos nos processos Nºs. 2600/19.6T80AZ.P1 e 2604/19.3T80AZ.P1, com confirmação das sentenças recorridas que transitaram em julgado, sob pena de violação do artº. 8º. Nº, 3 do Código Civil, caso venha a ser confirmado o acórdão destes autos.

25) O MPº., nos termos do artº. 342º. Nº.1 do Código Civil, logrou provar factos que, analisados no seu conjunto, se enquadram nas al.s a), b) (aceites na tese do acórdão recorrido), c) (parcialmente aceite) e d), do art. 12°. do Código do Trabalho, os quais se mostram bastantes para qualificar a relação contratual nos termos por si pretendidos.

26) Tendo em consideração as alíneas a) a d) do artº12º. do Código do Trabalho em vigor, para o caso em apreço, resulta que as presunções nele contidas são meramente exemplificativas, em ordem a ser suposta a existência de um contrato de trabalho autónomo, bastando a comprovação de duas delas para que o contrato seja configurado como de trabalho e sem que a recorrida tenha afastado a presunção juris tantum que sobre si recai, nos termos do art. 350.º, n.º 2, do Código Civil.

27) Da factualidade apurada, o serviço da trabalhadora nas valências das instalações próprias da recorrida é prestado mediante sua subordinação jurídica, traduzida no poder do empregador conformar, através de diretivas e instruções, a prestação a que se obrigou, em organização integrada e à qual pertencem todos os instrumentos e equipamentos de trabalho por si utilizados, no âmbito de um acordo de cooperação para prestação direta de serviços de enfermagem aos utentes da recorrida.

28) Está sujeita a horário de trabalho definido em sistema de turnos rotativos, com a carga horária de cerca 40 horas semanais, com registos do tempo de trabalho feitos manualmente ou através de registo digital de ponto.

29) Recebe a devida contraprestação económica em função do valor hora efetivamente prestado, seja diurno ou noturno, mediante sua emissão de recibo.

30) A trabalhadora, enquanto profissional especializada está sujeita a um regime de responsabilidade muito apertado, apenas com autonomia para respeitar as suas leges artis, em conformidade com as regras de sua experiência para o tratamento de cada doente, que é de carácter continuado, em que se privilegia uma atividade e não um resultado, atento o escopo prosseguido pela recorrida.

31) A qualificação diferenciadora dos contratos como de trabalho ou de prestação de serviço alicerça-se no circunstancialismo que os rodeia e, bem assim, nos objetivos que se propõem concretizar.

32) No confronto dos artº.s 1152.º e 1154.º do Código Civil, com correspondência nas atuais redações dos artº.s 11º. e 12º. do Código do Trabalho, resultam alguns aspetos diferenciadores, no que diz respeito ao conteúdo da obrigação, sendo que no contrato de trabalho, uma das partes presta o seu trabalho, enquanto prestação de meios; ao passo que no contrato de prestação de serviço uma das partes proporciona à outra um certo resultado como prestação de resultado.

33) Com efeito, atentos os requisitos acima mencionados, com o recurso ao método indiciário, está verificada a caracterização do contrato como de trabalho que só pode ser celebrado para a realização de trabalho subordinado, sujeito à disciplina e à direção do órgão ou serviço contratante, com determinação do cumprimento de horário de trabalho, com remuneração variada em conformidade com o trabalho prosseguido, conforme o que se observa da concretização da relação laboral.

34) No caso em apreço, atenta a presunção de laboralidade, foi feita prova da ocorrência de um contrato de trabalho nos termos do artº12°. Do Contrato de Trabalho, na redação introduzida pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, apuradas que são as suas alíneas a) a d) e no que à trabalhadora representada diz respeito.

35) Neste tipo de ações, atenta a natureza da relação material controvertida, pretende-se a declaração da existência de um contrato de trabalho, em ordem a defesa do interesse público do Estado-Coletividade, para ulterior proteção do interesse individual do trabalhador, conforme a presunção prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho.

36) Ainda e quanto ao este pode estar em causa a apreciação de direito fundamental social reconhecido pelo art.º 58º. da CRP, de modo a evitar a precaridade e insegurança laboral

37) Decidindo, como decidiram, por erro de interpretação e de aplicação, foram violadas as normas legais mencionadas nos artigos 663º. Nº. 1, 609º, nº1 e 615º, nº 1, al. e), ambos do CPC do CPC; 12°. al.s c) e d), da Lei do Contrato de Trabalho e 8º. nº. 3 do Código Civil.

Nestes termos e nos mais de direito aplicável deve se concedido provimento ao recurso conforme o que nele se impetra e por via dele ser:

A) Ser convidado o ilustre Magistrado que votou vencido a suprir a nulidade relativa de falta de aposição da sua assinatura no corpo do acórdão recorrido – artº663º. nº. 1 do CPC.

B) Ser reconhecida a nulidade insanável do julgado por não ter sido observado o mecanismo previsto no artigo 663º. Nº. 1 do CPC., uma vez que o voto de vencido não pode ser anexado ao acórdão, antes o devendo integrar;

C) Ser declarada a nulidade do acórdão quanto ao que foi discutido relativamente ao recurso da matéria de facto e de intervenção oficiosa, por excesso de pronúncia, nos termos dos artº.s 609º, nº1 e 615º, nº 1, al. e), ambos do CPC. e, em consequência, ser ordenada a remessa dos autos ao Tribunal competente; ou,

D) Ser reconhecida a ocorrência de um contrato de trabalho nos termos do art.12°. do Contrato de Trabalho.

 

A Ré apresentou contra-alegações, pronunciando-se pela improcedência do recurso.

II. Fundamentação

As questões suscitadas no recurso de revisa interposto são as seguintes:

1. Arguição da nulidade do acórdão recorrido por falta da assinatura do Exmo. Desembargador que votou vencido; [Em 24/09/2020 o Exmo. Desembargador que votou vencido procedeu à assinatura manual do acórdão recorrido, no processo físico]

 2. Arguição da nulidade do acórdão recorrido por desrespeito pelo carácter colegial da decisão decorrente da omissão do voto vencido na estrutura do acórdão [a declaração do voto de vencido surge exarada em “conclusão” autónoma e não na estrutura do próprio acórdão];

3. Arguição da nulidade por excesso de pronúncia, prevista no art.º 615.º, n.º 1, alínea d) [o recorrente alude à alínea e), afigurando-se-nos tratar-se de lapso manifesto], do Código de Processo Civil, relativamente à apreciação do recurso sobre a matéria de facto deduzida na apelação;

4. Existência de um contrato de trabalho entre a Ré Santa Casa da Misericórdia de …………. e AA, por tempo indeterminado, com início em novembro de 2018.

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão proferido em 24.09.2020 conheceu as nulidades arguidas pelo MP, ao abrigo dos artigos 615, nº4, a parte final e 617, n. º1 do CPC e proferiu a seguinte decisão:

Em face do exposto acorda-se em conferência em:

A. Julgar procedente, ainda que por excesso de cautela, a  nulidade do acórdão de 22.06.2020 por falta de assinatura do mesmo pelo Desembargador vencido, Domingos Morais, em consequência do que este, nos termos e para os efeitos do disposto no art.615º, nº 2, do CPC/2013, irá proceder à aposição da sua assinatura no mencionado acórdão [sem prejuízo, porém, quer do voto de vencido pelo mesmo exarado aos 22.06.2020, na conclusão que nessa data lhe foi aberta para o efeito, o qual  se mantém e faz, e continua  a fazer, parte integrante do acórdão de 22.06.2020, conforme neste foi referido, quer da retificação do acórdão constante da decisão de 23.06.2020].

B. Julgar improcedentes as demais nulidades invocadas.

Na sequência desta decisão, o Exmo. Desembargador que votou vencido procedeu à assinatura manual no processo físico do acórdão de 22.06.2020, cf. fls.190.

Deste modo, relativamente às arguidas nulidades do acórdão recorrido, importa, apenas, apreciar a arguida por desrespeito ao seu carácter colegial, face à omissão do voto vencido na estrutura do acórdão, e a arguida por excesso de pronúncia.

Importa, ainda, apreciar a existência, ou não, de um contrato de trabalho entre a Ré, Santa Casa da Misericórdia de ……… e a trabalhadora, AA, por tempo indeterminado, com início em novembro de 2018.

Fundamentos de facto

Foram considerados provados os seguintes factos:

1.A ré dedica-se a atividades de apoio social para pessoas (CAE 87301), dispondo de uma Unidade de Cuidados Continuados (UCC), na sua sede na Rua ……….., nº ….., em …………...

2. No dia 20-5-2019, a enfermeira AA prestava atividade nas instalações da ré [Unidade de Cuidados Continuados], utilizava equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes à ré, designadamente, carrinho de apoio com o material, tem farda com a identificação da Santa Casa da Misericórdia de ………. , todo o material de enfermagem (marquesa, esfigmomanómetro, pensos, seringas, agulhas, algodão, termómetro e máscara para uso profissional) e utilizava da plataforma informática GESTCARE, onde possui um perfil e password profissional cedidos pela ré e onde gere as fichas dos utentes internados na Unidade de Cuidados Continuados. [Alterado]

3. A mencionada colaboradora, desenvolvia atividade na ré desde novembro de 2018, atualmente nesta unidade, administrando, preparando e distribuindo a medicação, assegurando a alimentação, avaliando os parâmetros vitais, a vigilância dos utentes (detetando sinais de bem-estar), tratando de feridas e prestando os cuidados de higiene.

4. A enfermeira chefe elaborava o horário de prestação da atividade, respeitando uma carga horária de cerca de 40 horas/ semanais, sendo os registos do tempo de trabalho feitos manualmente e através de registo digital de ponto. [Alterado]

5. Cumpria um horário em sistema de turnos rotativos, com horas de início e termo da prestação determinados pela ré, com a seguinte distribuição: “M1” das 08:00 horas às 15:00 horas; “M2” das 08:00 horas às 15:30 horas; “T1” das 14:30 às 22:30 horas; “T2” das 15:30 horas às 24:00 horas; “N” das 22:00 horas às 08:00 horas.

6. Recebia, como contrapartida da sua prestação de atividade, com periodicidade mensal, a quantia de € 6,70 por hora diurna e € 8,40 por hora noturna, contrapartida essa que, era paga pela ré por transferência bancária com a identificação da ré, recebendo em média €1000/1100 mensais. [Alterado]

7. Antes de iniciar a colaboração com a Ré, a colaboradora compareceu a uma entrevista com vista à sua contratação, na qual foi informada de que prestaria atividade de enfermagem em regime de prestação de serviços, sendo remunerada à hora, mediante a emissão de correspondente recibo.

8. A colaboradora foi igualmente informada de que a prestação de serviços seria realizada na Unidade de Cuidados Continuados ………………, a qual, por imperativo da sua especificidade e natureza intrínseca, exige que se mantenha uma atividade contínua durante sete dias na semana, e por isso tem essa atividade organizada em regime de turnos.

9. A colaboradora aceitou as referidas condições.

10. A Unidade de Cuidados Continuados é uma unidade de internamento que integra a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), enquadrada neste âmbito por acordo tripartido de cooperação celebrado entre a Ré, a Administração Regional de Saúde do ………… e o Centro Distrital de ……… do Instituto de Segurança Social IP.

11. Dada a especificidade e a natureza da atividade em causa, e bem assim os compromissos assumidos pela Ré junto daquelas entidades públicas/estatais no âmbito do referido acordo, a sua prestação não pode ocorrer em ambulatório nem no domicílio dos doentes, tanto mais que estes preenchem critérios de saúde que exigem o seu internamento.

12. Quem afere esses critérios e quem decide o internamento dos doentes é a Equipa de Coordenação Regional do …….. da RNCCI, e não a Ré.

13. A ré adquire os medicamentos a grossistas com uma autorização do INFARMED para a sua aquisição, autorização essa que é concedida à Ré.

14. A ré recebe uma verba ao abrigo do sobredito acordo de cooperação com a Administração Regional de Saúde do ……… e o Centro Distrital de ……… do Instituto de Segurança Social IP, pela higienização de doentes, aplicando apósitos (fraldas e resguardos) e o acordo prevê o fornecimento pela ré de material clínico e terapêutico com que a colaboradora faz os curativos.

15. A plataforma informática GESTCARE não é propriedade da Ré, tratando-se de uma solução exclusiva da RNCCI, desenvolvida com o objetivo de responder a todas as necessidades de registo dos dados necessários à referenciação e monitorização evolutiva e de resultados dos doentes internados nas UCC.

16.  A Ré utiliza essa plataforma informática pelo facto da UCC estar inserida na RNCCI.

17. O uso de dístico identificativo do nome do colaborador com o brasão da Misericórdia, é prática que se insere na humanização e responsabilização de cuidados, para que a pessoa cuidada possa identificar o cuidador pelo nome, facilitando o tratamento individualizado.

18. É em face do registo dos tempos de prestação de atividade, assim o número de horas mensais e ainda se a atividade é prestada em horário diurno ou noturno, que é paga a contrapartida a que se alude em 6.º da factualidade. [Alterado]

19. Quando a colaboradora não comparece ao serviço não recebe a contrapartida a que se alude em 6.º da factualidade. [Alterado]

20. É ao Diretor Clínico, à Chefe de Enfermagem e à Diretora Técnica da UCC que compete determinar e avaliar o plano de cuidados individualizado de cada doente internado.

21. Esse plano de cuidados é comunicado às enfermeiras, que depois prestam a sua atividade com autonomia técnico-científica. [Alterado]

22. A Ré não inscreveu a colaboradora na Segurança Social, estando esta inscrita na Autoridade Tributária e Aduaneira como trabalhadora independente.

23. A colaboradora nunca reclamou, junto da Ré, a sua falta de inscrição na Segurança Social como trabalhadora dependente.

24. Dado como não escrito.

25. A Ré não pediu à colaboradora que prestasse atividade em regime de exclusividade, nem a impede de prestar serviços noutras entidades.

26. A colaboradora durante o período de férias não recebe a contrapartida a que se alude em 6.º da factualidade. [Alterado]

27. A colaboradora não aufere quaisquer quantias a título de férias, subsídio de férias e de Natal, nem nunca lhes foi proporcionada formação pela Ré, circunstâncias que já conhecia antes de iniciar a sua colaboração com a Ré e que aceitou antes de iniciar a sua colaboração com a Ré, nunca tendo reclamado o seu pagamento.

28.Tendo a enfermeira AA, aquando do início da sua atividade, informado a Ré da sua disponibilidade para o efeito, antes do preenchimento dos turnos e, consequentemente, da publicação dos horários, a enfermeira-chefe pedia que lhe comunicasse os impedimentos que tivesse para o mês seguinte, preenchendo depois os turnos/horários respeitando as indicações que aquela lhe comunicasse, com esclarecimento de que, nos casos em que não desse qualquer indicação, preenchia o respetivo horário de acordo com o último que para a mesma havia vigorado.[Aditado]

29. Devendo comunicar previamente essa intenção, a enfermeira AA podia ajustar trocas de turno com outras enfermeiras que já prestassem funções na Ré, salvo nos casos, por nesses ser recusada a troca pela enfermeira chefe, em que daí resultasse a realização de turnos seguidos (tarde/noite) pela mesma enfermeira, ou que ficassem duas enfermeiras novas na instituição, ou ainda que uma enfermeira ficasse muito tempo sem folgas. [Aditado]

30. Se faltar ao serviço, AA não tem de justificar essa falta. [Aditado]

Factos não provados:

1.A colaboradora foi, ainda, informada que os turnos eram preenchidos segundo as disponibilidades informadas pelos colaboradores, e sempre após consulta prévia, sendo que o preenchimento desses turnos podia ser livremente alterado, sem necessidade de conhecimento ou autorização da Ré.

2.E que, em caso de falta, a responsabilidade da respetiva substituição era do colaborador, que só teria que dar conhecimento à Chefe de Enfermagem caso não pudesse comparecer e não conseguisse ninguém para a substituir.

3.Os medicamentos administrados não são comercializados em farmácias de venda ao público.

4.As fardas são adquiridas e são propriedade dos prestadores de serviços de enfermagem que as usam.

5.Eliminado.

6.Eliminado.

7. Eliminado.

8.A Ré nunca pôs quaisquer restrições à duração do trabalho que é prestado por cada um dos prestadores de serviço de enfermagem.

9.A Ré apenas pede aos prestadores de serviços de enfermagem, entre os quais a colaboradora em causa, que deem conhecimento à Chefe de Enfermagem caso não possam comparecer e não consigam ninguém para os substituir.

10.A colaboradora não recebe ordens e instruções da Chefe de Enfermagem da UCC, mas apenas informações sobre as necessidades dos doentes internados.

11. A colaboradora interrompe a atividade quando pretende, seja para faltar, seja para gozo de "férias", e pode efetuar qualquer turno e o número de turnos que entender, desde que em acordo com os restantes prestadores de serviços de enfermagem.

12.Eliminado.

13.Quando a colaboradora pretende gozar férias limita-se a interromper a prestação da atividade, sem ter que solicitar autorização à Ré.

Fundamentos de direito

1ª Questão - Nulidade do acórdão recorrido por desrespeito ao carácter colegial da decisão decorrente da omissão do voto vencido na estrutura do acórdão.

O Recorrente alega que facto do voto de vencido, pela forma como foi exarado, após o acórdão recorrido, não o integrando, não obedece ao disposto no artigo 663.º, nº 1, parte final, aí situando a nulidade arguida.

No entanto, isso não resulta acórdão recorrido, pois o que nele ficou consignado foi que «o acórdão foi assinado digitalmente pela Relatora e pelo Adjunto Desembargador, Rui Penha, e tendo voto de vencido do Desembargador Domingos Morais, conforme declaração anexa exarada em conclusão aberta para o efeito e que faz parte integrante do presente acórdão», atestando assim que o voto vencido foi presente aquando da discussão e elaboração do acórdão recorrido.

A circunstância de tal voto vencido ter sido exarado em conclusão aberta para o efeito, em ato contínuo à elaboração e assinatura do acórdão, terminando aquele e este com a assinatura do Desembargador vencido, pode não corresponder inteiramente ao fixado no nº 1, parte final, do artigo 663º do CPC, mas não se vislumbra que, estando a declaração de voto finalizada no dia do julgamento, não possa, nesse mesmo ato e dia, ser lavrada em conclusão aberta para o efeito, em escrito que faz parte integrante do acórdão, sem que configure qualquer anomalia suscetível de afetar a colegialidade e a validade da decisão.

Na verdade, uma eventual irregularidade, sem qualquer influência na decisão da causa, não configura qualquer invalidade ou nulidade do acórdão, nomeadamente a prevista na alínea c) do nº1 do artigo 615º do CPC, pois todo o desenvolvimento do recurso demonstra a colegialidade da decisão, tomada por maioria, concluindo-se assim pela improcedência da nulidade arguida.

        

2ª Questão – Nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia, prevista no art.º 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, relativamente à apreciação do recurso sobre a matéria de facto deduzida na apelação.

O Recorrente entende que o acórdão recorrido conheceu de matéria de facto cuja reapreciação não foi pedida pela Ré, então apelante, designadamente eliminando excertos e/expressões constantes dos factos provados, quer aditando matéria de facto que não havia sido alegada e que extravasaria a pretensão da então apelante, incorrendo, por isso, na nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615 do CPC.

Como se afirmou no acórdão deste Tribunal, de 23.03.2017, no processo n.º 7095/10.7TBMTS.P1. S1. «(…) no que se refere à decisão de facto, importa ter presente que esta se integra na fundamentação da sentença e que os juízos probatórios parcelares que a consubstanciam podem, quando muito, padecer dos vícios de deficiência, obscuridade ou de contradição nos termos especificamente previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC».

Por sua vez, a falta ou insuficiência da fundamentação da decisão sobre algum facto essencial constitui irregularidade suprível, mesmo oficiosamente, nos termos do citado artigo 662.º, nº 2, alínea d), e 3, alínea b). Nessa medida, em sede de decisão de facto, não se afigura aplicável o regime das nulidades da sentença previsto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC.

Por outro lado, o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido, nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se, antes, a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC. O que significa que, como se afirmou no acórdão deste Tribunal de 24.9.2020, processo n.º 2882/16.5T8LRA.C1.S1: «O não uso ou o uso deficiente pela Relação dos poderes que lhe são atribuídos pela lei processual, em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, não configura nenhuma das nulidades da sentença, previstas no artigo 615º do CPC, normativo aplicável à 2ª instância, por força do disposto no artigo 666º do mesmo Código, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.»

Deste modo, concluímos que não ocorre a invocada nulidade.

3ª Questão – Existência, ou não, de um contrato de trabalho entre a Ré, Santa Casa da Misericórdia de …………. e AA, por tempo indeterminado, com início em novembro de 2018.

A questão que importa agora apreciar é sobre a qualificação jurídica da relação contratual estabelecida entre a Autora e a Ré, saber se tal relação contratual deve ser qualificada como contrato de trabalho ou como contrato de prestação de serviço.

O acórdão recorrido, contrariamente, ao decidido pela 1ª instância, entendeu não ter resultado provada a existência de um contrato de trabalho por ter considerado que a Ré ilidiu a presunção de laboralidade a que se refere o artigo 12.º do Código do Trabalho.

Vejamos então

O contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra, ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas - artigo 11.º do CT.  

Está, assim, em causa a prestação da atividade do trabalhador que a entidade empregadora organiza e dirige no sentido de alcançar determinado resultado. Esta subordinação, que consiste na relação de dependência da conduta do trabalhador na execução da sua atividade às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem, tem sido considerada pela doutrina e jurisprudência como o elemento caracterizador do contrato de trabalho. No entanto, sendo o conceito de subordinação um conceito jurídico, saber quando existe de facto, orientação e direção da atividade do trabalhador por parte do empregador nem sempre reveste a mesma facilidade.

Apesar de teoricamente a distinção não oferecer dúvidas, certo é que na prática, face à diversidade que assumem as relações, é, frequentemente, difícil proceder à qualificação de uma situação em que existe prestação de trabalho remunerado em benefício de outrem, por isso, muitas vezes, a conformação da situação de facto ao conceito de subordinação jurídica só pode ser alcançada com o recurso ao método indiciário, que se baseia na procura de indícios fácticos ligados ao concreto exercício da atividade do trabalhador e dos poderes de orientação e direção por parte do empregador. Indícios esses que se traduzem em elementos que respeitam ao modo de organização da entidade empregadora na qual a atividade do trabalhador está inserida, e que, desse modo, denunciam a sua sujeição à autoridade e organização do empregador.

Têm sido considerados como indiciadores dessa subordinação: A vinculação a horário de trabalho estabelecido pelo empregador; o local de trabalho, a prestação do trabalho em instalação do empregador ou em local por ele designado corresponde normalmente a trabalho subordinado; a existência de controlo externo do modo da prestação da atividade, a obediência a ordens e a sujeição à disciplina da empresa; a modalidade da retribuição,  a existência de uma retribuição certa, à hora, ao dia, à semana ou ao mês indicia trabalho subordinado, por estar normalmente relacionado com a remuneração da atividade do trabalhador e não com o resultado do mesmo; a propriedade dos instrumentos do trabalho, a pertença ao empregador indicia a existência do contrato de trabalho, em virtude de o empregador proporcionar, em regra, ao trabalhador subordinado os elementos necessários ao cumprimento da sua prestação. Apontam-se, ainda, outros índices, de carácter formal e externo, como a observância dos regimes fiscal e de segurança social, próprios dos trabalhadores por conta de outrem. Como conclui Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho 19ª edição pág.148:

«O elemento-chave da identificação do trabalho subordinado há-de, pois, encontrar-se no facto de o trabalhador não agir no seio de uma organização própria, antes se integrar numa organização de trabalho alheia, dirigida à obtenção de fins igualmente alheios (que tanto pode ser uma empresa como um lar de família), o que implica, da sua parte, a submissão às regras que exprimem o poder de organização do empregador - à autoridade deste, em suma, derivada da sua posição na mesma organização.  É nesta perspetiva que (…) se entende o enunciado, nessa parte, da definição legal do contrato de trabalho adaptada no Código revisto: a (muito) antiga referência à “direção” do empregador é substituída pela alusão ao facto de o trabalho ser executado “no âmbito de organização” dele, e, naturalmente sob a sua “autoridade.»

Face às dificuldades, quanto à alegação e demonstração de indícios reveladores da existência de contrato de trabalho, o legislador introduziu no Código do Trabalho, quer o que foi aprovado pela Lei n.º 99/2003 de 27 de agosto, quer na versão atual aprovada pela Lei n.º 7/2009 de 12 de fevereiro, uma presunção de existência de contrato de trabalho, estipulando o artigo 12.º do atual Código do Trabalho que:  

«1- Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:

a) A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;

b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade;

c) O prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;

d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma;

e) O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa».

Trata-se de uma presunção juris tantum, razão pela qual compete ao Ministério Público, alegar e demonstrar algumas (pelo menos duas) características de laboralidade ali previstas, cabendo à Ré o ónus de ilidir tal presunção, pois, como resulta do artigo 350.º do Código Civil, quem tem a seu a favor a presunção legal escusa de provar o facto a que a ela conduz, podendo, todavia, ser ilida mediante prova em contrário, exceto nos casos em que a lei o proibir.

No caso, afigura-se-nos terem resultado apurados factos suficientes para caracterizar a subordinação jurídica que caracterizou a execução da atividade da Autora ao serviço da Ré, dado ter resultado provado, tal como foi evidenciado na sentença da 1ª instância, que se verificam quatro dos cinco fatores indiciários que presumem a existência de um contrato de trabalho, previstos nas alíneas a) a d) do referido n. º1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, nos seguintes termos:       

 A Autora exerce a sua atividade em local de trabalho pertencente à Ré, com equipamentos, instrumentos e consumíveis da Ré, com horário de trabalho fixado pela Ré, recebendo uma quantia com periodicidade mensal, quantia essa certa na medida em que o valor horário está previamente fixado variando a quantia mensal em função do número de horas trabalhadas e da variação entre horas diurnas e noturnas; provou-se ainda que a Autora exercia aquela atividade remunerada num horário semanal completo, sujeita a ordens, instruções ou ao controlo direto da Ré, estando inserida na organização desta, designadamente, na Unidade de Cuidados Continuados, e sujeita a regras dessa organização, (factos n.ºs 2 a 6, 10, 12, 15, 17, 18, 20, 21).  A desvalorização dos indícios apurados com base no acordado verbalmente entre as partes, nestas situações em que a Autora presta uma atividade sem assegurar um resultado, não pode prevalecer sobre os indícios de subordinação que se apuraram ter existido.

Por outro lado, o facto da Autora não auferir qualquer quantia a título de férias, subsídio de férias e de Natal, e de estar inscrita na autoridade tributária como trabalhadora independente (sendo esta inscrição necessária para emitir os recibos que entregava á ré, condição da sua contratação), configuram o incumprimentos de obrigações da Ré no âmbito de uma relação laboral, mas não se sobrepõem, nem infirmam os indícios que resultaram provados e de que a lei faz presumir a existência do contrato de trabalho, pois a determinação da subordinação constitui matéria de facto e não de direito.

No acórdão recorrido são apontados três fatores no sentido da inexistência de um contrato de trabalho, a saber: o facto da enfermeira AA ter a possibilidade de, na elaboração dos turnos indicar dias em que entenda ou pretenda não prestar a sua atividade, a circunstância de faltando, não ter de justificar as faltas, e o facto de poder gerir a prestação da sua atividade através de trocas de turnos.

Vejamos

Na verdade, se resultou apurado  que a enfermeira, AA, aquando do início da atividade, informava a Ré da sua disponibilidade para o preenchimento dos turnos e consequente publicação dos horários, bem como podia ajustar trocas de turno com outras enfermeiras que já prestassem funções na Ré, contudo, tal teria de ser submetido à autorização da enfermeira-chefe que o podia recusar, como resultou apurado nos factos nºs 28 e 29 da matéria provada, donde se conclui que era a Ré, em última instância, quem determinava  quando a enfermeira, AA devia trabalhar.

Resultou, ainda, provado que a enfermaria., AA, se faltar ao serviço não tem de justificar essa falta - facto n.º30. No entanto, esta afirmação é demasiado vaga, uma vez que não se apuraram factos concretos que a esclareçam, designadamente, se a situação de faltar ao serviço por parte da referida enfermeira alguma vez se verificou, ou de como se processava o regime  de justificação de faltas na Ré, sendo certo que, nos termos do artigo 253.º Código do Trabalho, a comunicação das faltas traduz-se numa comunicação prévia, ou logo que seja possível, sendo que,  no caso, apurou-se  que a referida enfermeira, aquando do início da sua atividade, informava a Ré da sua disponibilidade, para que assim se pudesse proceder à publicação dos horários,  como ainda, devia comunicar à enfermeira-chefe os impedimentos que tivesse para o mês seguinte -  facto n.º28.

Ora, estes elementos não configuram qualquer contraprova dos indícios provados sobre o modo de prestação da atividade da Autora à Ré, que indiciam, de modo claro, a existência de uma relação jurídica de subordinação, como acima se explicitou.

Na verdade, se a presunção da existência de um contrato de trabalho deve assentar nas características concretas descritas no n. º1 do art.º12 do Código do Trabalho, também, a elisão dessa presunção – a prova em contrário – deve ser sustentada na realidade fáctica desenvolvida na empresa e não em meras hipóteses ou informações genéricas sem a concretização de factos.

No caso, como já se referiu, resultou provado que a enfermeira, AA, exercia a sua atividade em local de trabalho pertencente à Ré, com equipamentos, instrumentos e consumíveis da Ré, praticava um horário de 40 horas semanais em horário fixado pela mesma, auferindo a retribuição devida, encontrando-se inserida na estrutura orgânica da Recorrida, Unidade de Cuidados Continuados, sem que se tenham apurado os factos necessários para ilidir a presunção legal da existência de contrato de trabalho, prevista no artigo 12.º do CT, cujo ónus da prova pertencia à Ré, por força do art.350.º do Código Civil.

Deste modo, resultando provado diversas circunstâncias, contemplados no n. º1 do artigo 12º do CT, a consequência é a de fazer operar a presunção aí estabelecida e concluir pela existência um contrato de trabalho entre a enfermeira, AA, autora e Ré.

III. Decisão

Face ao exposto acorda-se em julgar procedente o recurso de revista interposto, revoga-se acórdão recorrido e, repristinando-se a decisão da 1ª instância, reconhece-se a existência de um contrato de trabalho entre a ré, Santa Casa da Misericórdia de ………. e a enfermeira, AA, por tempo indeterminado, fixando-se a data do seu início em novembro de 2018.

Custas pela Ré.

STJ, 10 de novembro de 2021.

Maria Paula Sá Fernandes (Relatora)

Leonor Cruz Rodrigues

Júlio Vieira Gomes