Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
525/11.2PBFAR.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: HOMICÍDIO
TENTATIVA
CÔNJUGE
MORTE
CAUSALIDADE ADEQUADA
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
ANOMALIA PSÍQUICA
CULPA
EXEMPLOS-PADRÃO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
CIÚME
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DOLO
ARREPENDIMENTO
ANTECEDENTES CRIMINAIS
PREVENÇÃO ESPECIAL
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO EXCESSO
Data do Acordão: 06/21/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: DIREITO PENAL - FACTO / PRESSUPOSTOS DA PUNIÇÃO / FORMAS DO CRIME - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
Doutrina: - Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra Editora, 1995, pp. 568-569 e nota 272.
- Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Editorial Civitas, S. A., 1997, p. 362 e ss.
- Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Livraria Almedina, Coimbra, 1968, pp. 356-357.
- Elisabete Amarelo Monteiro, Crime de Homicídio Qualificado e Imputabilidade Diminuída, Coimbra Editora, 1.ª edição Março 2012, p. 155 e ss.
- Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume Primeiro, Bosch, Casa Editorial, S.A., pp. 607, 608.
- Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pp. 228, 241; Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, p. 322 e ss.; «Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime» Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, Fasc.1, Janeiro-Março de 1992, Aequitas, Editorial Notícias,p. 14; Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 88 e ss., 109, 105.
- José Antonio Garcia Andrade, Psiquiatría Criminal y Forense, Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, S.A., pp. 227-228.
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Livraria Almedina, Coimbra, 1990, p. 61 e ss..
Legislação Nacional: CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 14.º, N.º1, 20.º, 22.º, 23.º, N.ºS 1 E 2, 40.º, N.ºS 1 E 2, 71.º, N.º2, 72.º, 73.º, 131.º, 132.º, N.º1 E 2, ALÍNEAS B), E), H) E J).
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 18/10/2006, PROCESSO N.º 06P2679;
-DE 18/02/2009, PROCESSO N.º 08P3775;
-DE 06/01/2010, PROCESSO N.º 238/08.2JAAVR.C1.S1;
-DE 27/05/2010, PROCESSO N.º 6/09.4JAGRD.C1.S1.
Sumário :

I - A imputação objectiva do resultado à acção pressupõe a realização de um perigo criado pelo autor e não coberto por um risco permitido. Ou seja, que o agente, com a sua acção, tenha criado um risco não permitido (ou tenha aumentado um risco já existente) e, depois, que esse risco tenha conduzido à produção do resultado concreto.
II - Mas, na doutrina da conexão do risco não basta a comprovação de que o agente, com a sua acção produziu um risco proibido para o bem jurídico, é preciso ainda determinar se foi esse risco que se materializou ou concretizou no resultado típico.
III - No caso, o processo embólico pós-traumático pulmonar pode, sem reservas, ter-se como consequência da acção (o arguido desferiu três facadas nas costas da ofendida, com o que lhe causou, de modo directo e necessário, três feridas penetrantes no hemitórax esquerdo, donde resultou volumoso hemopneumotórax esquerdo, colapso pulmonar, laceração pulmonar e coágulos pulmonares com necessidade de drenagem). O problema radicará em saber se no enfarte agudo do miocárdio também se realizou (concretizou, materializou) o perigo para a vida criado pelo recorrente com a sua acção.
IV - A chamada imputabilidade diminuída pressupõe e exige a existência de uma anomalia ou alteração psíquica (substrato bio-psicológico) que afecte o sujeito e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto e de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída (efeito psicológico ou normativo).
V - Os pressupostos biológicos da imputabilidade diminuída são os mesmos que o art. 20.º do CP prevê para a inimputabilidade. A diferença reside no efeito psicológico ou normativo: a capacidade de compreensão da acção não resulta excluída em consequência da perturbação psíquica, mas, antes, notavelmente diminuída. Se a imputabilidade diminuída significa uma diminuição da capacidade de o agente avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação, ela há-de, em princípio, reflectir um menor grau de culpa (uma culpa diminuída).
VI - A qualificação do homicídio, na construção do art. 132.º do CP, assenta num juízo de especial censurabilidade ou perversidade sobre a conduta do agente, constituindo os exemplos-padrão descritos no n.º 2 do artigo indício dessa culpa agravada. A comprovação, no facto, de circunstâncias que preenchem um dos exemplos-padrão tem um efeito de indício da especial censurabilidade ou perversidade, efeito de indício esse que, todavia, pode ser afastado mediante a verificação de outras circunstâncias que o anulem, quer dizer, que constituam contra-prova bastante do efeito indício ligado à afirmação de uma das circunstâncias do n.º 2 do art. 132.º
VII - Em diversos acórdãos do STJ é sustentada a desqualificação do homicídio em consequência da imputabilidade diminuída, reconhecendo-se, em suma, que, uma vez que o homicídio qualificado pressupõe um tipo especial agravado de culpa e constituindo a imputabilidade a capacidade de, no momento da prática do facto, o agente avaliar a sua ilicitude e se determinar de acordo com essa avaliação, a diminuição sensível dessa capacidade de avaliação ou de determinação por causa de uma determinada anomalia psíquica impede a formulação de um juízo de especial censura acerca da culpa do agente.
VIII - O facto de a imputabilidade diminuída ter determinado a “desqualificação” do homicídio não impede a sua ponderação para efeitos de determinação da medida da pena e até mesmo para efeitos de atenuação especial da pena, sempre que seja adequada a diminuir por forma acentuada a culpa do agente (art. 72.º, n.º 1, do CP). A 1.ª instância, ao recorrer à imputabilidade diminuída para integrar os factos no tipo base de homicídio, na forma tentada, moveu-se no plano da subsunção típica e não no da valoração das atenuantes, para efeitos da medida da pena.
IX - O estado psíquico que afectava o recorrente no momento da prática do facto (“delírio crónico passional de ciúme”) não era adequado, na compreensão conjugada com os restantes factos provados, a conformar uma imagem global do facto especialmente atenuada, motivo pelo qual é de arredar a atenuação especial da pena, nos termos do art. 72.º do CP.
X - Nos crimes de homicídio, ainda que se quedem pela fase da tentativa, as exigências de prevenção geral positiva são sempre especialmente intensas, porque a violação do bem jurídico fundamental ou primeiro – a vida – é, em geral, fortemente repudiada pela comunidade. Quando o crime ocorre no contexto de uma relação conjugal, as exigências de prevenção geral são, ainda, acrescidas, em virtude da consciencialização comunitária dos fenómenos de violência de género, particularmente de violência doméstica, e da ressonância fortemente negativa que adquiriram. Por isso, a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito.
XI - No caso, as percepções comunitárias do crime não são, por outro lado, sensivelmente influenciadas pela anomalia psíquica que afectava o recorrente, no momento da prática do crime, tanto mais quanto a mesma não tinha qualquer projecção na sua inserção profissional e social e, mesmo no âmbito (conjugal) em que se reflectia, estava confinada à esfera relacional mútua do casal, que transmitia para o exterior, nomeadamente à família alargada, uma imagem de harmonia conjugal.
XII - O delírio crónico passional de ciúme que afectava o recorrente, diminuindo-lhe a capacidade de dominar a vontade e atenuando a consciência do carácter proibido da sua conduta, releva num sentido atenuativo da sua culpa, mas num grau que não se pode ter por excepcional. Tanto mais quanto, na actuação do recorrente se surpreendem características de insensibilidade da sua personalidade: o aproveitamento da circunstância de a vítima se encontrar desprevenida (no quarto do casal, onde se dirigiu, regressada a casa, para despir o casaco), a indiferença perante o temor demonstrado pela vítima, o modo cruel e sanguinário escolhido para causar a morte (à facada).
XIII - Para além dessas características negativas, informam os factos provados de um certo embotamento afectivo do recorrente presente na adopção, para com os descendentes, de uma postura de frieza e sem manifestações de afecto, verificando-se o corte relacional com o descendente mais velho, e em ter sido a relação conjugal pautada por uma crescente frieza afectiva por parte do arguido.
XIV - Ao recorrente não faltou a consciência de estar a praticar um ilícito – o delírio não provoca invasão total da consciência, de vigilância ou mesmo do julgamento, pelo que manteve a consciência de que a sua conduta era criminosa – e ademais agiu com conhecimento e vontade de realização de um tipo objectivo de ilícito (matar a mulher) – actuou com o propósito de tirar a vida à ofendida.
XV - Na compreensão do dolo, como elemento do tipo (elemento subjectivo do tipo), o recorrente actuou com dolo do facto, na sua forma mais intensa (dolo directo – art. 14.º, n.º 1, do CP). Revelando também um grau elevado de energia criminosa (esfaqueou a vítima, por três vezes nas costas, produzindo três feridas perfurantes na zona pulmonar, e a acção só foi interrompida porque a filha do casal, alertada pelos gritos da mãe, lhe retirou a faca, pela força).
XVI - No plano das consequências do crime não pode deixar de relevar que a sobrevinda morte da vítima, ainda que não imputada à acção do recorrente, não é alheia a ela, uma vez que a causa da morte (enfarte agudo do miocárdio) está relacionada com o processo embólico pós-traumático pulmonar.
XVII - Do facto de o recorrente se ter apresentado, voluntariamente, na PSP não se extrai um “profundo arrependimento” pela prática do crime, pois se o não tivesse feito certamente que as autoridades não tardariam muito mais em localizá-lo, pois não se pode desconsiderar que havia testemunhas do crime – a filha e a própria vítima –, e o nível cultural e condição económica e social do recorrente não sugerem nem a capacidade nem os meios de vir a conseguir subtrair-se, de forma eficaz, à acção da justiça. Por outro lado, e contrariando a atitude interna de arrependimento, há o facto de o recorrente, depois de a vítima ter conseguido fugir para a residência dos vizinhos, abandonar o domicílio conjugal sem cuidar de saber do estado dela.
XVIII - A ausência de antecedentes criminais e todos os factos relativos à boa inserção social do recorrente e às suas qualidades de trabalho apenas relevam no plano das exigências de prevenção especial de socialização, que não constituem, normalmente – e o caso em apreço não é excepção – nos casos de homicídio, um factor com relevo significativo na medida da pena porque, quando é posto em causa o bem jurídico vida sobreleva, decisivamente, a necessidade e a medida da sua tutela.
XIX - Porém, no plano da prevenção especial não se pode ignorar a anomalia psíquica do recorrente e seria temerário concluir pela “cura” em razão do “desaparecimento” do “objecto” do seu delírio passional de ciúme. Aliás, a anomalia psíquica do recorrente caracteriza, ainda, uma prognose de reincidência que a prevenção especial deve acautelar, ainda que na sua forma mais modesta e mais redutora da segurança individual ou neutralização, a qual, porém, deve actuar dentro dos limites da estrita necessidade, subordinada ao princípio da proporcionalidade e da consequente proibição de excesso.
XX - Nesta compreensão dos factores relevantes para a determinação da medida da pena e no quadro reclamado pelas exigências de prevenção geral, a pena cominada de 7 anos de prisão é consentida pela culpa do recorrente pelos factos e assegura, nos limites da estrita necessidade, as finalidades de prevenção especial.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I

            1. No processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, n.º 525/11.2PBFAR, do 1.º juízo criminal de Faro, por acórdão de 06/03/2012, foi decidido, no que, agora, releva considerar, condenar o arguido AA, viúvo, nascido a 15 de Março de 1954, no mais devidamente identificado nos autos, actualmente preso preventivamente à ordem do processo, pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 22.º, n.os 1 e 2, alínea b), 23.º, n.os 1 e 2, 72.º e 73.º, todos do Código Penal[1], na pena de 7 (sete) anos de prisão.
            2. Inconformado, o arguido interpôs recurso do acórdão condenatório, directamente  para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
«A) O ora Recorrente sofre de uma anomalia psíquica que, na tipologia das doenças psiquiátricas, é catalogada como paranóia;
«B) “Trata-se de anomalia psíquica conhecida como delírio crónico passional de ciúme, que conduz a que as convicções delirantes sejam totais e não admitam crítica ou dúvida, tendo então também associado um estado depressivo subjacente, que ainda mantém, estando sujeito a medicação com hipnóticos (para combater a insónia), anti-depressivos e ansiolíticos” – Cfr. facto 25 dos Factos Provados;
«C) O ora Recorrente como resultou provado é alguém que tem pautado toda a sua vida, pela honradez, pela dedicação ao trabalho, pelo sentido da responsabilidade, pelo respeito e civismo no seu relacionamento com todos com quem lida;
«D) Tendo uma consciência altamente ética e tendo cultivado ao longo da sua vida o sentido da responsabilidade e da absoluta integridade, o ora Recorrente não conseguiu conviver com a hipótese que ele próprio congeminou, da sua mulher lhe ser infiel;
«E) Confrontado com tal convicção, não enraizada, embora, em qualquer facto que a legitimasse, o ora Recorrente, alienado pela paranóia do ciúme, decidiu castigar a sua mulher, transformando a destinatária do seu amor na vítima de quem, inconformado pela pretensa traição da mesma, se alcandorou ao papel de algoz justiceiro;
«F) É isto mesmo que resulta das conclusões do Ilustre Perito Médico-Legal quando, a certo ponto do seu relatório, referiu:
                «“Pelo carácter desrealizado das convicções delirantes, que tornam o arguido presa das suas convicções, o domínio da sua vontade é mais reduzido do que no homem comum, sem que se verifique ausência de capacidade de dominar a vontade, mas apenas a sua atenuação. Sendo o objecto do delírio o ciúme a sua mulher, entretanto, falecida, e face à persistência de convicção delirante de traição cometida com um homem designado, verifica-se ainda perigo de evolução delirante com projecção acusadora da causa dos acontecimentos para aquele, a qual, no entanto, de momento não se verifica, sendo indicado o acompanhamento psiquiátrico regular.” – Cfr. factos 27 e 28 dos Factos Provados;
«G) “O delírio não provoca invasão total da consciência, da vigilância ou mesmo do «julgamento, que continuam relativamente preservados, pelo que se manteve a consciência de que a sua conduta era criminosa mas atenuada”. – Cfr. facto 26 dos Factos Provados;
«H) O ora Recorrente ao esfaquear a sua mulher teve consciência de que ao actuar por tal forma a poderia matar;
«I) Ainda assim, fê-lo, tendo consciência da ilicitude dessa actuação punitiva da suposta violação por parte da mesma de um dever conjugal irremediavelmente lesivo da sua honra e dignidade;
«J) O ora Recorrente sabia que ao praticar tal conduta, a mesma não lhe era permitida por lei, mas, ainda assim, adoptou-a para “lavar a sua honra”.
«K) Tendo o Tribunal “a quo” concluído de facto, que o ora Recorrente “manteve a consciência que a sua conduta era criminosa, mas atenuada, e que pelo carácter desrealizado das convicções delirantes tornam o arguido presa das suas convicções, o domínio da sua vontade é mais reduzido do que no homem comum, sem que se verifique a ausência de capacidade de dominar a vontade, mas apenas a sua atenuação”, o Tribunal deveria ter valorado de forma significativa e expressa, tal circunstância atenuante da responsabilidade do ora Recorrente, mas a verdade é que o não fez;
«L) Tal “capitis deminutio” do Recorrente, dada como provada pelo Tribunal recorrido, não pode deixar de ser tida em conta na caracterização e quantificação do dolo com que o mesmo actuou, o qual se tem de considerar como substancialmente diminuído;
«M) O Tribunal “a quo”, na caracterização e quantificação do dolo, acabou por não o considerar diminuído, ainda que de forma diminuta;
«N) Ao aplicar a pena de sete anos de prisão ao ora Recorrente, a qual tendo em conta a moldura legal aplicável, se tem de considerar como pesadíssima, o Tribunal recorrido não teve em consideração essa atenuação especial da responsabilidade do Recorrente, violando assim o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 71.º do C. Penal;
«O) Mas o Tribunal “ a quo”, para além de, na fixação da pena que aplicou ao ora Recorrente não ter tido em conta tal circunstância atenuante da sua responsabilidade criminal, a verdade é que, tendo dado como provados os factos descritos nos n.ºs 35 a 52 do acórdão recorrido, os não valorou minimamente, na ponderação e aplicação ao mesmo da pena de sete anos de prisão;
«P) Conforme resultou provado, o ora Recorrente “protagonizou um percurso socio-laboral contínuo e manifestamente investido e objectivado a uma mais valia pessoal e familiar” –Cfr. facto n.º 39 dado como provado, - sendo que “o seu percurso de vida [p]regresso surge como manifestamente normativo em termos de práticas comportamentais/ vivenciais” – Cfr. facto n.º 40 dado como provado;
«Q) Também foi dado como provado no n.º 42 dos factos assentes que “o arguido é conotado pelos familiares próximos como manifestamente investido nas suas responsabilidades familiares, no que concerne ao provimento do bem-estar económico do seu agregado”;
«R) E que “é muito trabalhador e dedicado ao trabalho” – Cfr. facto n.º 43 dado como provado;
«S) O Tribunal “a quo”, entre outros factos dados como provados, considerou ainda que, “em termos quer da sua inserção sócio-laboral quer sócio-comunitária o arguido surge positivamente referenciado, sendo descrito pelos diferentes interlocutores (família, colegas, amigos e chefias) como uma pessoa de manifesta idoneidade e confiança e investido nas suas responsabilidades familiares e profissionais” – Cfr. facto da como provado sob o n.º 49
«T) E que, “é um individuo cordato na relação interpessoal-social” – Cfr. facto n.º 51, dado como assente,
«U) O que “sempre foi tido na cidade de Faro por aqueles com que trabalhou, independentemente do seu estrato social como um cidadão exemplar e conhecido pela sua dedicação ao trabalho (esta também pelos seus familiares próximos) e honradez, sendo objecto de admiração e respeito pelos mesmos” – Cfr. facto n.º 52, dado como provado;
«V) Dizer melhor de alguém será muito difícil,
«W) Mas foi este cidadão exemplar que cometeu a loucura por que foi julgado,
«X) Não sendo despiciendo atentar que, para o agravamento do seu estado psicótico, terá contribuído de forma determinante a circunstância de facto dada como provada no n.º 48 dos factos dados como assentes.
«Y) “Em termos laborais e após um percurso de investimento e continuidade, o arguido encontrava-se à data da sua reclusão e desde há alguns meses, desempregado, na sequência de um processo de despedimento colectivo da sua entidade patronal, Clube Desportivo Farense, o que constituiu factor de algum stress psicossocial para o arguido” – Cfr. facto n.º 58.
«Z) O facto de estar desempregado, tendo constituído um factor de stress para o arguido, terá contribuído decisivamente, de acordo com o parecer do Exmo. Perito do Instituto de Medicina Legal para que “as suas convicções se tornassem mais profundas” a respeito da pretensa infidelidade da sua mulher – vidé fls. 4 da perícia médico-legal, de fls.418 a 424 dos autos.
«AA) O Tribunal recorrido, ao ter qualificado juridicamente a conduta do arguido como uma tentativa de homicídio simples da sua mulher, a que corresponde a moldura penal abstrata de 1 ano, sete meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão e ao condená-lo na pena de 7 anos de prisão, não valorou de forma mínima tais condições pessoais do agente como o deveria ter feito, dando cumprimento ao disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 71.º do C. Penal que, assim, violou.
«BB) Se o Tribunal tivesse considerado as excepcionais qualidades do arguido, enquanto cidadão e chefe de família, a par da circunstância do mesmo padecer de uma grave doença mental, seguramente que não lhe teria aplicado uma pena tão pesada que, em termos de dosiometria, se situa nos 65% da pena máxima aplicável!...
«CC) O ora Recorrente, à data dos factos que praticou e que levaram à sua condenação, tinha 57 anos de idade acabados de fazer, sem que tivesse quaisquer antecedentes criminais, o que, igualmente, foi dado como provado no facto n.º 53 dos Factos Provados;
«DD) Acresce que, conforme foi dado como provado no n.º 15 dos factos assentes, o arguido de “motu proprio”, entregou-se, voluntariamente, à PSP, pelas 22 horas do dia 17 de Abril de 2011, a fim de ser detido,
«EE) O que, sem qualquer margem para dúvidas, só pode ser entendido como a expressão do seu profundo arrependimento, pela prática do crime em apreço;
«FF) Também o Tribunal recorrido, na fixação da pena que aplicou em concreto ao ora Recorrente, não valorou, minimamente, a circunstância do mesmo não ter antecedentes criminais e de se ter apresentado, voluntariamente, para ser detido, assim violando o disposto na alínea e) do n.º2 do artigo 71.º do C. Penal.
«GG) O Tribunal recorrido, tendo julgado, de facto, de forma correcta e irrepreensível, ao dar como assentes, designadamente, os factos constantes dos n.ºs 15, 20, 23, 25, 26, 27, 28, 39, 40, 42, 43, 48, 49, 51, 52 e 53 dos Factos Provados,
«HH) Já ao julgar de Direito, designadamente, na fixação da medida da pena que, em concreto, aplicou ao ora Recorrente, não valorou minimamente como era sua obrigação legal essas mesmas circunstâncias de facto que deu como provadas.
«II) O julgamento de Direito efectuado pelo Tribunal recorrido é, em síntese, claramente ilegal, por ter aplicado uma pena manifestamente excessiva, por não ter valorado tais circunstâncias de facto atenuantes da responsabilidade do Recorrente, razão, pela qual, se terá de concluir que violou o disposto nas alíneas b), d) e e) do n.º 2 do artigo 71.º do C. Penal.
«JJ) Na verdade e atento o atrás exposto, a pena aplicada ao ora Recorrente nunca deveria ter excedido os 3 anos e 6 meses de prisão, tempo este que já é superior ao dobro da pena mínima aplicável em abstracto.
«KK) Atento o comportamento do arguido antes e depois da prática do crime, a execução de tal pena deverá ser suspensa por igual período, atento o disposto no artigo 50.º do C. Penal.»
            3. O Ministério Público respondeu ao recurso no sentido da confirmação do acórdão recorrido.
            4. Admitido o recurso, foram os autos remetidos a este Tribunal.
            5. Na oportunidade conferida pelo artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal[2], o Ministério Público, junto deste Tribunal, pronunciou-se, proficientemente, pela improcedência do recurso.
            Apesar da imputabilidade diminuída do arguido decorrente do “delírio crónico passional de ciúme, sustentou o entendimento de que a pena aplicada «é justa e adequada à luz dos princípios da culpa e da muito forte necessidade de prevenção geral», alinhando, em suma, a seguinte ordem de razões:
            – «só uma concepção ancestral, repudiada hodiernamente, poderá aceitar que a agressão letal, sem qualquer motivo (para além do ficicionado), à mulher com quem viveu 32 anos, mãe dos seus dois filhos, se revela mais digno de tolerância e de aceitação, face ao provado delírio de ciúme (que apenas lhe atenua a capacidade de dominar a vontade e a consciência – factos n.os 26 e 27 da matéria de facto provada)»;
                – «e, sobretudo, quando nem a presença da filha comum constituiu qualquer freio à agressão letal iniciada»;
                – «sendo o grau de afectação da vontade e consciência reduzido, qualquer ataque violento e letal (ou outro físico) contra um cônjuge de uma vida, mercê de um delírio passional, é revelador de características especiais de carácter do agente particularmente desvaliosas, pois assume o objecto do seu “afecto” como uma coisa»;
                – «a propósito da intensidade do dolo, deve-se anotar que o arguido actuou com uma intenção determinada e enérgica de matar a sua mulher, desferindo-lhe três facadas que lhe perfuraram a zona pulmonar, só não prosseguindo o esfaqueamento devido à intervenção da filha que, pela força, o desarmou»;
                – «para além das qualidades como trabalhador, resulta igualmente provado que, com os descendentes adopta “uma postura de frieza e sem manifestações de afecto, verificando-se o corte relacional com o descendente mais velho” e que a relação conjugal “foi pautada por uma crescente frieza afectiva por parte do arguido …” o que é claramente incompatível com as alegadas “excepcionais qualidades …, enquanto … chefe de família”»;
                – «não foi dado como provado qualquer arrependimento, nem o mesmo se poderá (…) extrair-se da sua entrega à PSP (quatro horas depois de uma fuga);
                – «não é despiciendo recordar o ainda elevado número de vítimas mortais em resultado de violência doméstica, e, com ele, as fortes exigências de prevenção geral que urge acautelar».    
            6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente nada fez chegar aos autos.
            7. Não tendo sido requerida a realização da audiência (artigo 411.º, n.º 5, do CPP) e devendo, por isso, o recurso ser julgado em conferência (artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP), colhidos os vistos, com projecto de acórdão, realizou-se a conferência, da mesma procedendo o presente acórdão.
II
            1. Como emerge das conclusões formuladas – pelas quais se define e delimita o objecto do recurso (artigo 412.º, n.º 1, do CPP) –, o recorrente traz à apreciação deste Tribunal uma única questão de direito: a da medida da pena pelo crime, enunciando a pretensão de redução da pena cominada na 1.ª instância e a sua fixação em medida nunca superior a 3 anos e 6 meses e suspensa na sua execução.
            As razões da impugnação da pena cominada assentam na censura ao tribunal recorrido por não ter adequadamente valorado, na determinação da medida da pena, as circunstâncias de facto que, a seu favor, deu como provadas, violando o disposto nas alíneas b), d) e e) do n.º 2 do artigo 71.º do CP.
            Assim, segundo o recorrente, e em síntese, o tribunal recorrido não conferiu ajustada dimensão atenuativa à doença psíquica de que padece, no plano do dolo (que não considerou diminuído), nem ao seu percurso de vida e excepcionais qualidades, nem, finalmente, ao seu comportamento após o crime, a ser entendido como “expressão do seu profundo arrependimento”. 
             2. Os factos dados por provados na decisão recorrida são os seguintes:
«1- O arguido foi casado com BB desde o ano de 1979 até 24 de Maio de 2011, vivendo ambos até à prisão do arguido, em 19 de Abril de 2011, na residência sita na R. ....
«2- Do aludido casamento nasceram dois filhos, actualmente maiores de idade.
«3- Pelo menos desde cerca de dois meses antes daquela data, sem qualquer motivo sério para tanto, o arguido firmou a ideia que a ofendida sua esposa mantinha um relacionamento extra-conjugal.
«4- Mercê dessa suspeita, o arguido alterou o respectivo comportamento, deixando praticamente de falar com a ofendida e com a filha de ambos que com eles residia, afirmando de quando em vez que abandonaria a casa de morada de família.
«5- Com esse propósito, aproveitando a ausência da ofendida, no dia 17 de Abril de 2011, a hora não determinada do final da manhã ou da tarde, mas antes das 18h00, o arguido retirou os seus pertences da residência do casal, transportando-os para o respectivo veículo automóvel, voltando depois para a habitação do casal.
«6- Na habitação do casal, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas.
«7- Cerca das 18 horas, quando a ofendida chegou à residência de ambos, juntamente com a filha do casal, encontrou ali o arguido que aparentava estar alcoolizado e que não trocou com elas qualquer palavra.
«8- A ofendida dirigiu-se ao quarto de casal, a fim de despir o casaco que trazia vestido.
«9- Acto contínuo, o arguido dirigiu-se à cozinha e retirou dali uma faca de cozinha com cerca de dezanove (19) centímetros de lâmina.
«10- De seguida, munido da aludida faca, o arguido encaminhou-se também ele para o quarto do casal, dirigindo-se ali para a ofendida.
«11- Apesar de não ter visto que o arguido trazia com ele a faca, perante a sua postura estranha, a ofendida tapou a cara com os braços fechados, receando ser agredida, ao mesmo tempo que, tendo-se o arguido aproximado e encostado à mesma, se sentou sobre a cama.
«12- De imediato, o arguido desferiu-lhe com força, por três vezes, facadas nas costas, penetrando a lâmina nessa parte do corpo, produzindo três feridas perfurantes na zona pulmonar, ao mesmo tempo que dizia que a ofendida não gozaria mais com ele.
«13- Enquanto o arguido esfaqueava sua esposa, a filha do casal alertada com os gritos da mãe, apareceu no quarto, retirando a faca ao arguido pela força e impedindo-o desse modo de continuar a esfaquear a ofendida.
«14- Nessa altura, a vítima logrou colocar-se em fuga para a residência de vizinhos, onde acabou por desfalecer, sem perda de sentidos, sendo conduzida ao Hospital de Faro e posteriormente ao Hospital de S. José e de Santa Marta, ambos em Lisboa.
«15- Por sua vez, o arguido abandonou o local, sem cuidar de saber do estado da ofendida, colocando-se em fuga até cerca das 22 horas do mesmo dia, ocasião em que se deslocou à P.S.P., a fim de se entregar.
«16- Foram colhidos vestígios hemáticos sobre a cama do casal, à entrada da cozinha e na faca utilizada para a prática dos factos.
«17- Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida sofreu três feridas penetrantes no hemitórax esquerdo (face posterior), donde resultou volumoso hemopneumotórax esquerdo, colapso pulmonar e laceração pulmonar, coágulos pulmonares com necessidade de drenagem, lesões essas que directa e necessariamente lhe determinaram trinta e um dias (31) de doença, sendo vinte e um (21) deles com incapacidade para o trabalho geral e profissional, com internamento até ao dia 27.04.2011 e donde resultou perigo para a vida.
«18- O arguido bem sabia que o objecto - faca - que utilizou para agredir a ofendida, atenta a sua natureza e dimensões era potencialmente perigoso e apto a tirar-lhe a vida.
«19- Não obstante, não se inibiu de utilizar a faca em causa e de com ela desferir três facadas em parte do corpo da ofendida que alojava órgãos vitais, que o arguido sabia que uma vez atingidos poderiam com grande probabilidade causar a morte.
«20- Agiu, assim, para dessa forma se vingar de uma imaginada traição da vítima.
«21- Actuou o arguido com o propósito de tirar a vida à ofendida, resultado que apenas não concretizou devido à intervenção da filha de ambos.
«22- Valeu-se o arguido da relação familiar que intercedia entre ele e a vítima e da proximidade física daí decorrente, para mais facilmente alcançar os seus intentos.
«23- O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal, mas tendo alterada/diminuída, mas não excluída, a sua capacidade de decidir e avaliar o valor e significado proibido dos seus actos.
«24- Em 24 de Maio de 2011 ocorreu o óbito de BB, devido a enfarte agudo do miocárdio relacionado com processo embólico pós-traumático pulmonar.
«25- Na data referida em 1 o arguido padecia de anomalia psíquica conhecida como delírio crónico passional de ciúme, que conduz a que as convicções delirantes sejam totais e não admitam crítica ou dúvida, tendo então também associado um estado depressivo subjacente, que ainda mantém, estando sujeito a medicação com hipnóticos (para combater a insónia), anti-depressivos e ansiolíticos.
«26- O delírio não provoca invasão total da consciência, da vigilância ou mesmo do julgamento, que continuam relativamente preservados, pelo que manteve a consciência de que a sua conduta era criminosa, mas atenuada.
«27- Pelo carácter desrealizado das convicções delirantes, que tornam o arguido presa das suas convicções, o domínio da sua vontade é mais reduzido do que no homem comum, sem que se verifique ausência de capacidade de dominar a vontade, mas apenas a sua atenuação.
«28- Sendo o objeto do delírio o ciúme a sua mulher, entretanto falecida e face à persistência de convicção delirante de traição cometida com um homem designado, verifica-se ainda perigo de evolução delirante com projeção acusadora da causa dos acontecimentos para aquele, a qual, no entanto, de momento não se verifica, sendo indicado o acompanhamento psiquiátrico regular.
«29- O demandante Centro Hospitalar de Lisboa Central EPE é uma pessoa colectiva de direito público integrada no Serviço Nacional de Saúde.
«30- Na sequência das lesões sofridas pela ofendida BB, o demandante prestou-lhe assistência hospitalar.
«31- A assistência prestada consistiu em: nove dias de internamento, de 18/04/20 11 a 27/04/2011, a que correspondeu o GDH 77, outros procedimentos no aparelho respiratório, em B.O., sem Cc.
«32- O custo da referida assistência é de euro 2.524,45.
«33- O demandante Hospital de Faro EPE é uma unidade hospitalar pública integrada no Serviço Nacional de Saúde que presta cuidados de saúde à população em geral e vítimas de crimes particulares.
«34- Na sequência dos factos descritos em 12, no âmbito da sua actividade assistencial, o demandante prestou cuidados de saúde a BB, no valor de € 147, consistentes em assistência em episódio de urgência.
«35- O arguido nasceu em Faro, provindo de um grupo familiar estruturado e inscrito num estrato sócio económico e cultural modesto.
«36- Durante o seu processo de crescimento, parece ter usufruído de um ambiente familiar estável e coeso, num modelo sócio educativo de cariz tradicional, mas aparentemente afectuoso e assente em valores de solidariedade, partilha e responsabilidade.
«37- Em termos escolares, abandonou os estudos após ter concluído o 1º ciclo, decorrente da necessidade de contribuir economicamente para o agregado familiar, após o que iniciou actividade laboral no ramo da construção civil durante cerca de cinco anos.
«38- Posteriormente integra o quadro de uma empresa industrial “CAVAM” sedeada em Faro, tendo aí permanecido durante 16 anos e até ao encerramento da referida empresa, na sequência do que passou a integrar o Clube Desportivo Farense como técnico de equipamentos.
«39- Neste contexto, protagonizou um percurso sócio laboral contínuo e manifestamente investido e objectivado a uma mais valia pessoal e familiar.
«40- O seu percurso de vida [p]regresso surge como manifestamente normativo em termos de práticas comportamentais/vivenciais.
«41- Na data referida em 1, o arguido integrava o seu agregado familiar abrangente do próprio, do cônjuge e da filha, residindo em apartamento próprio, de tipologia T2, detentor de condições de habitabilidade consentâneas com um quadro estável e equilibrado.
«42- O arguido é conotado pelos familiares próximos como manifestamente investido nas suas responsabilidades familiares, no que concerne ao provimento do bem-estar económico do seu agregado.
                «43- É muito trabalhador e dedicado ao trabalho.
«44- Adopta, no entanto, para com os descendentes, uma postura de frieza e sem manifestações de afeto, verificando-se o corte relacional com o descendente mais velho.
«45- A relação conjugal arguido/cônjuge foi também pautada por uma crescente frieza afetiva por parte do arguido, materializada numa progressiva ausência de intimidade/suporte emocional, ao nível da esfera conjugal o que se viria a constituir como obstacularizante da capacidade de comunicação e subsequente inépcia na resolução de conflitos intra conjugais e/ou familiares.
«46- Não obstante a inexistência de violência física, a dinâmica relacional mútua há muito que se pautava por um clima de forte tensão/pressão conjugal centrada primacialmente em exacerbados sentimentos de ciúme e de posse do arguido face ao cônjuge.
«47- Tais contingências relacionais do casal, surgem manifestamente confinadas à esfera relacional mútua do casal, transmitindo os mesmos para o exterior, nomeadamente aos elementos da família alargada do arguido, com a qual aquele mantém fortes laços de proximidade e pertença, uma imagem ficcionada de harmonia conjugal.
«48- Em termos laborais e após um percurso de investimento e continuidade, o arguido encontrava-se à data da sua reclusão e desde há alguns meses desempregado, na sequência de um processo de despedimento coletivo da sua entidade patronal, Clube Desportivo Farense, o que constituiu factor de algum stress psicossocial para o arguido, estando, no entanto, a desempenhar funções de jardinagem e indiferenciadas numa casa particular de antigo dirigente do Farense.
«49- Em termos quer da sua inserção sócio laboral quer sócio comunitária o arguido surge positivamente referenciado, sendo descrito pelos diferentes interlocutores (família, colegas, amigos e chefias) como uma pessoa de manifesta idoneidade e confiança, e investido nas suas responsabilidades familiares e profissionais.
«50- Ainda neste contexto o arguido surge detentor de um consistente grupo de amigos, assumindo estes em detrimento do seu grupo familiar, um papel preponderante na ocupação de tempos livres e actividades de lazer.
«51- É um indivíduo cordato na relação interpessoal social.
«52- Sempre foi tido na cidade de Faro por aqueles com que trabalhou, independentemente do seu estrato social, como um cidadão exemplar e conhecido pela sua dedicação ao trabalho (esta também pelos seus familiares próximos) e honradez, sendo objecto de admiração e respeito pelos mesmos.
«53- Não são conhecidos ao arguido antecedentes criminais.»
3. Foi o recorrente submetido a julgamento sob a imputação da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 132.º, n.os 1 e 2, alíneas b), e), h) e j), 22.º, 23.º, n.os 1 e 2, 72.º e 73.º, todos do CP, vindo a ser condenado pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada.
              3.1. O facto provado n.º 24 («Em 24 de Maio de 2011 ocorreu o óbito de BB, devido a enfarte agudo do miocárdio relacionado com o processo embólico pós-traumático pulmonar») suscita, imediatamente, a dúvida sobre a correcção da acusação e da condenação do recorrente no quadro da tentativa do crime.
            Com efeito, esse facto sugere, pelo menos, que o resultado morte poderia ser atribuído (imputado) à acção do recorrente.
            Resumidamente, pode-se dizer que a imputação objectiva do resultado à acção pressupõe a realização de um perigo criado pelo autor e não coberto por um risco permitido. Ou seja, que o agente, com a sua acção, tenha criado um risco não permitido (ou tenha aumentado um risco já existente) e, depois, que esse risco tenha conduzido à produção do resultado concreto[3].
            Ora, perante os factos provados não podem subsistir dúvidas de que o recorrente criou um risco (proibido) para a vida da vítima, desferindo-lhe, com dolo homicida, as facadas nas costas, produzindo três feridas perfurantes na zona pulmonar e causando-lhe as lesões descritas no ponto 17 dos factos provados.
            Mas, na doutrina da conexão do risco não basta a comprovação de que o agente, com a sua acção produziu um risco proibido para o bem jurídico, é preciso ainda determinar se foi esse risco que se materializou ou concretizou no resultado típico.
            O processo embólico pós-traumático pulmonar pode, sem reservas, ter-se como consequência da acção. O problema radicará em saber se no enfarte agudo do miocárdio também se realizou (concretizou, materializou) o perigo para a vida criado pelo recorrente com a sua acção.
            Dando-se como provado que o enfarte agudo do miocárdio, do qual resultou a morte, da vítima “se relacionou” com o processo embólico pós-traumático pulmonor, não se apresenta imediatamente concebível a consideração de um qualquer desvio do processo causal, ou melhor, da chamada interrupção do nexo causal, de modo a excluir a imputação do resultado à acção do recorrente.  
             Não pode, porém, deixar de reconhecer-se que, provavelmente porque a imputação do resultado morte à acção do recorrente foi, à partida (no momento da dedução da acusação) excluída ou, talvez melhor, nem sequer considerada, a matéria de facto fixada não contém, com o necessário rigor e suficiência bastante, os factos adequados a demonstrar a adequação do resultado à acção do recorrente e, sobretudo, a adequação de todo o processo causal. Tanto mais quanto não se pode ignorar que o enfarte agudo do miocárdio, de que resultou a morte, ocorreu quase um mês depois da cessação do internamento hospitalar, determinado pelas lesões provocadas pelo recorrente.
            O que, aliás, se reconhece no acórdão recorrido, onde, a dado passo, se considerou:
«(…) de referir que pese embora resulte da matéria de facto assente a ocorrência do óbito de BB, em virtude de enfarte do miocárdio, relacionado com processo embólico pós traumático pulmonar, tal factualidade não é suficiente para se estabelecer a imputação objectiva do resultado morte à conduta do arguido.  Com efeito, a causa directa da morte foi o enfarte do miocárdio, desconhecendo-se – nem tal constituía objeto do processo – em que medida as lesões pulmonares contribuíram para este e se outras causas também contribuíram, tanto mais que a vítima esteve internada até 27/04/2011, vindo a falecer em 24/05/2011».                
                De qualquer modo, sempre a proibição da reformatio in pejus seria impeditiva da consideração, para efeitos da decisão da questão objecto do recurso de moldura penal mais grave do que aquela que foi considerada pela 1.ª instância, por efeito da qualificação jurídica operada (tentativa de homicídio simples), pelo que uma mais ampla indagação, em sede de matéria de facto, dos pressupostos da imputação objectiva do resultado à acção, sempre se quedaria no patamar da satisfação de uma “perfeição” teórica porque insusceptível de produzir um verdadeiro efeito prático.
            3.2. A decisão recorrida teve por assente que, por força da anomalia psíquica – delírio crónico passional de ciúme – que atingia o recorrente este, no momento da prática do facto, embora agindo livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida, tinha «alterada/diminuída, mas não excluída, a sua capacidade de decidir e avaliar o valor e significado proibido dos seus actos».
            A significar a imputabilidade diminuída do recorrente referida à prática do facto.
            A chamada imputabilidade diminuída pressupõe e exige a existência de uma anomalia ou alteração psíquica (substrato bio-psicológico) que afecte o sujeito e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída (efeito psicológico ou normativo).
            Os pressupostos biológicos da imputabilidade diminuída são os mesmos que o artigo 20.º do CP prevê para a inimputabilidade. A diferença reside no efeito psicológico ou normativo: a capacidade de compreensão da acção não resulta excluída em consequência da perturbação psíquica mas, antes, notavelmente diminuída[4].
            Se a imputabilidade diminuída significa uma diminuição da capacidade de o agente avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação, ela há-de, em princípio, reflectir um menor grau de culpa (uma culpa diminuída).
            Como adverte Jescheck[5], «não parece justo que sujeitos cuja capacidade de compreensão ou de acção resulta fortemente diminuída por perturbações psíquicas sejam tratados como plenamente sãos».
            No mesmo sentido, Eduardo Correia[6] salienta que «se certos momentos internos podem excluir a liberdade de determinação, e, portanto, a legitimidade do juízo de censura e de culpa, resultará daí necessariamente que esses momentos, quando não excluem a legitimidade de tal juízo, podem e devem servir para graduar o seu conteúdo e gravidade», ou seja, «se tem de atribuir-se a um certo grau de anomalia mental uma função limite da culpa, enquanto ela exclui a liberdade do agente, e, portanto, a possibilidade de o censurar, seria contraditório não tomar em conta, para justamente graduar aquela censura, os outros graus de anomalia que, sem excluírem a liberdade do sujeito, todavia a diminuem mais ou menos».
            3.3. A qualificação do homicídio, na construção do artigo 132.º do CP, assenta num juízo de especial censurabilidade ou perversidade sobre a conduta do agente, constituindo os exemplos-padrão descritos no n.º 2 do artigo indício dessa culpa agravada. A comprovação, no facto, de circunstâncias que preenchem um dos exemplos-padrão tem um efeito de indício da especial censurabilidade ou perversidade, efeito de indício esse que, todavia, pode ser afastado mediante a verificação de outras circunstâncias que o anulem, quer dizer, que constituam contra-prova bastante do efeito de indício ligado à afirmação de uma das circunstâncias do n.º 2 do artigo 132.º[7]
            Sobre a questão de a imputabilidade diminuída consubstanciar, ou não, uma dessas circunstâncias que obstam à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do homicídio, debruça-se Elisabete Amarelo Monteiro[8] para afirmar ser manifesto «que a imputabilidade diminuída terá de ser considerada como uma circunstância impeditiva da verificação da cláusula geral prevista no n.º 1 do artigo 132.º, quebrando-se assim o efeito de indício inerente à verificação de uma das circunstâncias do n.º 2 de tal preceito legal».
            Considera a Autora que este terá de ser o efeito natural e previsível da imputabilidade diminuída sobre a qualificação de um crime de homicídio, uma vez que, por princípio, aquela implica uma diminuição da culpa do agente. E seria uma verdadeira incoerência qualificar o homicídio não obstante a imputabilidade diminuída. Se a culpa do agente é diminuída por força da anomalia psíquica que afecta a sua capacidade de valoração e de determinação, então, por princípio, seria impossível fazer coincidir a sua conduta com a especial censurabilidade ou perversidade exigida pelo artigo 132.º
            Na mesma linha, em vários acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça é sustentada a desqualificação do homicídio em consequência da imputabilidade diminuída[9] reconhecendo-se, em suma, que, uma vez que o homicídio qualificado pressupõe um tipo especial agravado de culpa e constituindo a imputabilidade a capacidade de, no momento da prática do facto, o agente avaliar a sua ilicitude e de se determinar de acordo com essa avaliação, a diminuição sensível dessa capacidade de avaliação ou de determinação por causa de uma determinada anomalia psíquica impede a formulação de um juízo de especial censura acerca da culpa do agente.
            3.4. E foi esse o caminho seguido, com acerto, pela 1.ª instância.
            Tendo por preenchida a circunstância conformadora do exemplo-padrão da alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º excluiu a qualificação da tentativa de homicídio.
            Extraindo-se da respectiva fundamentação o seguinte:
«Como resulta da matéria de facto assente, o arguido padece de anomalia psíquica consistente em delírio crónico passional de ciúme em relação à sua cônjuge, que lhe reduziu a capacidade de determinação da vontade, sendo, assim, diminuída a sua imputabilidade.
«Por força desse delírio de ciúme, o arguido convenceu-se da infidelidade por parte da sua cônjuge, facto que determinou a sua vontade de lhe retirar a vida, tendo para o efeito usado uma faca de cozinha, de que se apoderou quando a sua cônjuge chegou à residência do casal.
«Ora, é manifesto que se o arguido actuou com a sua capacidade de determinação da vontade diminuída, em virtude de anomalia psíquica de que padece, não se pode concluir que a tentativa de provocar a morte da sua cônjuge revele especial censurabilidade ou perversidade, tanto mais que a sua cônjuge era precisamente o objecto do delírio de ciúme, anomalia psíquica de que padece.»
4. Foi, portanto, no quadro da moldura penal abstracta do tipo fundamental ou base  de homicídio, na forma tentada, que a 1.ª instância procedeu à determinação da medida concreta da pena.
4.1. E, nessa operação, não deixou de influir, no plano da culpa do recorrente, pelos factos, diminuindo-a, a sua comprovada imputabilidade diminuída. 
O facto de a imputabilidade diminuída ter determinado a “desqualificação” do homicídio não impede, com efeito, a sua ponderação para efeitos de determinação da medida da pena e até mesmo para efeitos da atenuação especial da pena, sempre que seja adequada a diminuir por forma acentuada a culpa do agente (artigo 72.º, n.º 1, do CP).
Na verdade, a 1.ª instância, ao recorrer à imputabilidade diminuída para integrar os factos no tipo base de homicídio, na forma tentada, moveu-se no plano da subsunção típica e não no da valoração das atenuantes, para efeitos da medida da pena.
Ora, como se escreveu no acórdão deste Tribunal de 27/05/2010 (processo n.º 6/09.4JAGRD.C1.S1), e, aqui, se retoma:
            «Esse plano, o da determinação da medida concreta da pena, é o que se abre depois de a subsunção dos factos estar definida. E nele devem ser tidas em conta todas as circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a determinação da pena.
«Consequentemente, não é correcto afirmar-se que a diminuição de imputabilidade não pode ser considerada na medida da pena concreta, sob pena de violação do princípio da proibição da dupla valoração, pois esse princípio vale apenas no plano da determinação da pena concreta (cf. art. 72.º, n.º 3, do CP).
«A imputabilidade diminuída deve, pois, na determinação da pena, entrar, conjuntamente com todas as demais circunstâncias, na ponderação global a que se refere o n.º 2 do art. 71.º do CP, ou inclusivamente na avaliação do circunstancialismo que fundamenta a atenuação especial da pena, nos termos do art. 72.º do CP.»
A 1.ª instância arredou a atenuação especial da pena, entendendo «que a diminuição da culpa do arguido por força da sua imputabilidade diminuída não é de molde, não tem intensidade suficiente para que se atenue especialmente a sua pena, nos termos do art. 72.º, n.º 1, do Código Penal», aspecto não especificamente impugnado no recurso.
Na verdade, quando o recorrente alude a que o tribunal «não teve em consideração essa atenuação especial da responsabilidade do recorrente» (conclusão N), fá-lo no quadro da ponderação imposta pela alínea b) do n.º 2 do artigo 71.º do CP, sem nunca aludir à diminuição acentuada da culpa, para efeitos da atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72.º do CP.
  Mas sempre será de destacar que o estado psíquico que afectava o recorrente no momento da prática do facto (“delírio crónico passional de ciúme”) não seria adequado, na compreensão conjugada com os restantes factos provados, a conformar uma imagem global do facto especialmente atenuada.
4.2. Na determinação da medida concreta da pena, ponderou a 1.ª instância:
«Que os factos foram praticados sobre a cônjuge do arguido, pese embora, como supra referido, a mesma constituísse o objecto do seu delírio de ciúme, anomalia psíquica de que padece;
«Que tiveram lugar no interior da residência do casal (dificultando, assim, a defesa da vítima) e na presença da filha comum do casal, tendo o arguido persistido na sua conduta, mesmo na presença da descendente;
«Que o arguido utilizou para o cometimento uma faca com 19 cm de lâmina, a facilitar a execução dos factos;
«Que é censurável o motivo que o determinou à prática dos factos (convencimento da infidelidade da cônjuge, embora tal convencimento resulte da anomalia psíquica de que padece).
«Foram várias as facadas desferidas (três), não tendo o arguido abandonado a sua conduta após primeira facada e face à presença da filha.
«As lesões corporais provocadas na vítima e tempo de doença da mesma, forçada a ser submetida a intervenção cirúrgica.
«O arguido tem a seu favor a diminuição da culpa por força da imputabilidade diminuída.
«O dolo é intenso do ponto de vista volitivo, uma vez que o arguido atuou com dolo direto.
«São também elevadas as exigências de prevenção geral, atenta a gravidade do crime, por constituir atentado ao bem jurídico supremo (vida);
«Quanto às condições pessoais do arguido e conduta anterior e posterior ao facto, o mesmo é primário, trabalhador, tendo mantido até à data um comportamento normativo e socialmente adequado, sendo considerado pelos que o conhecem profissionalmente, embora a nível familiar tenha pautado pela frieza a sua relação com os descendentes.»
4.3. As finalidades das penas são, como paradigmaticamente declara o artigo 40.º, n.º 1, do CP, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Com este texto, introduzido na revisão de 95 do CP[10], o legislador instituiu no ordenamento jurídico-penal português a natureza exclusivamente preventiva das finalidades das penas[11].
Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial. «Umas e outras devem coexistir e combinar-se da melhor forma e até ao limite possíveis, porque umas e outras se encontram no propósito comum de prevenir a prática de crimes futuros.»[12]
Com a finalidade da prevenção geral positiva ou de integração do que se trata é de alcançar a tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto. No sentido da tutela da confiança das expectativas de todos os cidadãos na validade das normas jurídicas e no restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.
A medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos é um «acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo aplicador à luz das circunstâncias do caso. Factores, por isso, da mais diversa natureza e procedência – e, na verdade, não só factores do “ambiente”, mas também factores directamente atinentes ao facto e ao agente concreto – podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos»[13]. Do que se trata – e uma tal tarefa só pode competir ao juiz - «é de determinar as referidas exigências que ressaltam do caso sub iudice, no complexo da sua forma concreta de execução, da sua específica motivação, das consequências que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.»[14].
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva, devem actuar as exigências de prevenção especial. A medida da necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo do ponto de vista da prevenção especial.
Se a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do CP), a culpa tem a função de estabelecer «uma proibição de excesso»[15], constituindo o limite inultrapassável de todas as considerações preventivas.
 A aplicação da pena não pode ter lugar numa medida superior à suposta pela culpa, fundada num juízo autónomo de censura ético-jurídica. E o que se censura em direito penal é a circunstância de o agente ter documentado no facto – no facto que é expressão da personalidade – uma atitude de contrariedade ou de indiferença (no tipo-de-culpa doloso) ou de descuido ou leviandade (no tipo-de-culpa negligente) perante a violação do bem jurídico protegido. O agente responde, na base desta atitude interior, pelas qualidades jurídico-penalmente desvaliosas da sua personalidade que se exprimem no facto e o fundamentam[16].
Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.
4.4. Nos crimes de homicídio, ainda que se quedem pela fase da tentativa, as exigências de prevenção geral positiva são sempre especialmente intensas porque a violação do bem jurídico fundamental ou primeiro – a vida – é, em geral, fortemente repudiada pela comunidade. Quando o crime ocorre no contexto de uma relação conjugal, as exigências de prevenção geral são, ainda, acrescidas, em virtude da consciencialização comunitária dos fenómenos de violência de género, particularmente de violência doméstica, e da ressonância fortemente negativa que adquiriram. Por isso, a estabilização contra-fáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada pelo crime e de assegurar a confiança da comunidade na prevalência do direito.
No caso, as percepções comunitárias do crime não são, por outro lado, sensivelmente influenciadas pela anomalia psíquica que afectava o recorrente, no momento da prática do crime, tanto mais quanto a mesma não tinha qualquer projecção na sua inserção profissional e social e, mesmo no âmbito (conjugal) em que se reflectia, estava confinada à esfera relacional mútua do casal, que transmitia para o exterior, nomeadamente à família alargada, uma imagem ficcionada de harmonia conjugal (cfr. facto provado n.º 47).
O delírio crónico passional de ciúme que afectava o recorrente (facto provado n.º 25), diminuindo-lhe a capacidade de dominar a vontade e atenuando a consciência do carácter proibido da sua conduta (factos provados n.os 23, 26 e 27), releva num sentido atenuativo da sua culpa pelo crime, mas num grau que, como vimos, não se pode ter por excepcional. Tanto mais quanto, na actuação do recorrente, se surpreendem características de insensibilidade da sua personalidade: o aproveitamento da circunstância de a vítima se encontrar desprevenida (no quarto do casal, onde se dirigiu, regressada a casa, para despir o casaco – factos provados n.os 7 e 8), a indiferença perante o temor demonstrado pela vítima (“apesar de não ter visto que o arguido trazia com ele a faca, perante a sua postura estranha, a ofendida tapou a cara com os braços fechados, receando ser agredida, ao mesmo tempo que, tendo-se o arguido aproximado e encostado à mesma, se sentou sobre a cama” – facto provado n.º 11), o modo cruel e sanguinário escolhido para causar a morte (à facada).
Para além dessas características negativas, informam os factos provados dum certo embotamento afectivo do recorrente presente na adopção, para com os descendentes, de uma postura de frieza e sem manifestações de afecto, verificando-se o corte relacional com o descendente mais velho (facto provado n.º 44) e em ter sido a relação conjugal pautada por uma crescente frieza afectiva por parte do arguido (facto provado n.º 45).  
Ao recorrente não faltou a consciência de estar a praticar um ilícito – o delírio não provoca invasão total da consciência, da vigilância ou mesmo do julgamento, pelo que manteve a consciência de que a sua conduta era criminosa (facto provado n.º 27) – e ademais agiu com conhecimento e vontade de realização de um tipo objectivo de ilícito (matar a mulher) – actuou com o propósito de tirar a vida à ofendida (facto provado n.º 21).
Na compreensão do dolo, como elemento do tipo (elemento subjectivo do tipo), o recorrente actuou, pois, com dolo do facto, na sua forma mais intensa (dolo directo – artigo 14.º, n.º 1, do CP). Revelando, ademais, um grau elevado de energia criminosa (esfaqueou a vítima, por três vezes nas costas, produzindo três feridas perfurantes na zona pulmonar e a acção só foi interrompida porque a filha do casal, alertada pelos gritos da mãe, lhe retirou a faca, pela força – factos provados n.os 12 e 13). 
No plano das consequências do crime não pode deixar de relevar que a sobrevinda morte da vítima, ainda que não imputada à acção do recorrente, não é alheia a ela, uma vez que a causa da morte (enfarte agudo do miocárdio) está relacionada com o processo embólico pós-traumático pulmonar. 
Pretende o recorrente que não foi adequadamente valorado o seu “profundo arrependimento” pela prática do crime. No entanto, não só não foi dado por provado o arrependimento como ele não se extrai, ao contrário do que afirma, do facto de, cerca de 4 horas após a prática do crime, se ter apresentado, voluntariamente, na PSP. Se não o tivesse feito, certamente que as autoridades não tardariam muito mais em localizá-lo pois não se pode desconsiderar que do crime havia testemunhas – a filha e a própria vítima –, e o nível cultural e condição económica e social do recorrente não sugerem nem a capacidade nem os meios de vir a conseguir subtrair-se, de forma eficaz, à acção da justiça.
Por outro lado, e contrariando uma atitude interna de arrependimento, há o facto de o recorrente, depois de a vítima ter conseguido fugir para a residência dos vizinhos, abandonar o domicílio conjugal sem cuidar de saber do estado dela (factos provados n.os 14 e 15).  
A ausência de antecedentes criminais e todos os factos relativos à boa inserção social do recorrente e às suas qualidades de trabalho apenas relevam no plano das exigências de prevenção especial de socialização que não constituem, normalmente – e o caso em apreço não é excepção –, nos casos de homicídio, um factor com relevo significativo na medida da pena porque, quando é posto em causa o bem jurídico vida sobreleva, decisivamente, a necessidade e a medida da sua tutela.
Porém, no plano da prevenção especial não se pode ignorar a anomalia psíquica do recorrente e seria temerário concluir pela “cura” em razão do “desaparecimento” do “objecto” do seu delírio passional de ciúme.
Seguindo-se, neste ponto, José Antonio Garcia Andrade[17], será de recordar a definição clássica kraepeliniana de paranóia segundo a qual do que se trata é «do desenvolvimento insidioso de um sistema delirante, inalterável, condicionado por causas internas, com perfeita conservação do pensar, do sentir e do actuar». Permanecendo o sistema delirante ao longo do tempo, sem modificações e sem possibilidade de ser vencido por argumentações lógicas, é incurável, o que tem um especial significado na prevenção do crime.    
Ora, segundo os factos provados informam (ponto 28 dos factos provados): «Sendo objecto do delírio o ciúme a sua mulher, entretanto falecida, e face à persistência de convicção delirante de traição cometida com homem designado, verifica-se ainda perigo de evolução delirante com projecção acusadora da causa dos acontecimentos para aquele, a qual, no entanto não se verifica, sendo indicado acompanhamento psiquiátrico.»
Por isso, a anomalia psíquica do recorrente caracteriza, ainda, uma prognose de reincidência que a prevenção especial deve acautelar, ainda que na sua forma mais modesta e mais redutora da segurança individual ou neutralização, a qual, porém, deve actuar dentro dos limites da estrita necessidade, subordinada ao princípio da proporcionalidade e da consequente proibição de excesso[18].
  Nesta compreensão dos factores relevantes para a determinação da medida da pena e no quadro reclamado pelas exigências de prevenção geral, a pena cominada de 7 anos de prisão é consentida pela culpa do recorrente pelos factos e assegura, nos limites da estrita necessidade, as finalidades de prevenção especial.
III
Em função de tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso confirmando-se, consequentemente, o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, com 7 UC de taxa de justiça.
                                                                                             
                                                                       Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Junho de 2012



Isabel Pais Martins (relator)
Manuel Braz

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[1] Doravante abreviadamente designado pelas iniciais CP.
[2] Doravante abreviadamente designado pelas iniciais CPP.
[3] Na matéria, cfr., v. g., Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Editorial Civitas, S. A., 1997, p. 362 e ss., Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, p. 322 e ss.
[4] Assim, Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume Primeiro, Bosch, Casa Editorial, S.A., p. 607.
[5] Ob. cit., p. 608.
[6] Direito Criminal, I, Livraria Almedina, Coimbra, 1968, pp. 356-357.
[7] Sobre o tema, cfr., v. g., Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Livraria Almedina, Coimbra, 1990, p. 61 e ss.
[8] Crime de Homicídio Qualificado e Imputabilidade Diminuída, Coimbra Editora, 1.ª edição Março 2012.
[9] Citados e comentados por Elisabete Amarelo Monteiro, ob. cit, p. 155 e ss. Assim, acórdãos de 18/10/2006 (processo n.º 06P2679), 18/02/2009 (processo n.º 08P3775), 06/01/2010 (processo n.º 238/08.2JAAVR.C1.S1), 27/05/2010 (processo n.º 6/09.4JAGRD.C1.S1).
[10] Inexistente na versão primitiva do CP, foi introduzido com a revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.
[11] Sobre a evolução, em Portugal, do problema dos fins das penas e a doutrina do Estado, cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 88 e ss.
[12] Ibidem, p. 105.
[13] Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 228.
[14] Ibidem, p. 241.
[15] Figueiredo Dias, Temas, cit., p. 109.
[16] Figueiredo Dias, «Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime» Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, Fasc.1, Janeiro-Março de 1992, Aequitas, Editorial Notícias,p. 14.
[17] Psiquiatría Criminal y Forense, Editorial Centro de Estudios Ramón Areces, S.A., pp. 227-228.
[18] Neste ponto, cfr., Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra Editora, 1995, pp. 568-569 e nota 272.