Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
579/12.4JAFUN-C.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: M. CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
FALSIDADE
MEIOS DE PROVA
PROCESSO PENDENTE
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
TRÂNSITO EM JULGADO
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :

I- Neste caso, é até anunciado pelo recorrente na petição deste recurso extraordinário da revisão da decisão condenatória, que ainda não dispõe de uma sentença transitada em julgado, antes apenas instaurou uma ação cível, na qual peticiona (além do mais) que seja declarado falso o juízo científico ou técnico do segundo relatório pericial que, na sua perspetiva, consubstanciará a existência de um falso meio de prova, determinante para a sua condenação.

II- Sucede que, sem dispor de sentença transitada em julgado a declarar a falsidade do referido relatório pericial (não se discutindo agora, por ser uma inutilidade, se o mesmo fora ou não determinante para a sua condenação, como alega) é manifesto que está desde logo afastado o preenchimento do invocado fundamento previsto no art.449.º, n.º 1, al. a), do CPP.

III- Daí que, não se verifique o fundamento invocado previsto no art. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP, sendo temerário apresentar recurso de revisão sem deter a sentença transitada em julgado que declarasse a falsidade de meios de prova que tiverem sido determinantes para a decisão a rever (ou seja, como resulta claro do art. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP não deveria o recorrente ter apresentado a presente providência sem dispor de sentença transitada que lhe fosse favorável e lhe permitisse tentar alcançar a sua pretensão de rever a sentença condenatória).

IV- Acrescente-se que nem faz sentido, sendo um contra senso, além de não haver fundamento legal (visto o disposto no art. 7.º do CPP) para o efeito, atento precisamente o pressuposto que invocou para a revisão (art.449.º, n.º 1, al. a), do CPP), instaurar este recurso extraordinário e, ao mesmo tempo, pedir a suspensão da instância até que seja decidida a ação que instaurou e obtenha uma sentença transitada que lhe seja favorável, isto é, que declare falso aquele segundo relatório pericial aludido na sentença condenatório que pretende rever.

Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 579/12.4JAFUN-C.S1

Revisão

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório

1. O arguido/condenado AA, vem nos termos (entre outros) do artigo 449.º, n.º 1, al. a), do CPP, interpor recurso extraordinário de revisão da sentença/acórdão de 16.11.2016, proferida no processo comum (tribunal coletivo) n.º 579/12.4JAFUN, pendente no Juízo Central Criminal ..., juiz 3, comarca da Madeira, confirmada por ac. do TRL de 22.11.2017, transitado em julgado, que o condenou (além do mais):

- como autor material de um crime de «homicídio simples», na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 73º e 131º, todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;

- enquanto demandado civil, a pagar à ofendida/assistente BB a quantia total de 182.609,72 (cento e oitenta e dois mil, seiscentos e nove euros e setenta e dois cêntimos), devida a título de danos patrimoniais e morais sofridos em consequência das lesões que sofreu, acrescida de juros de mora, contados desde a data da notificação deste pedido até integral pagamento;

- enquanto demandado civil, a pagar ao Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, SESARAM a quantia de 6.825,43 (seis mil, oitocentos e vinte e cinco euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a data da notificação deste pedido em relação à quantia de cinco mil, seiscentos e trinta euros e sessenta e seis cêntimos (5.630,66 euros), e desde a data da notificação da ampliação do pedido em relação à quantia de mil cento e noventa e quatro euros e setenta e sete cêntimos (1.194,77 euros), até integral pagamento.

2. Para o efeito, o recorrente apresentou as seguintes conclusões:

I O arguido instaurou, no dia 22.09.2022, uma acção declarativa de condenação que segue os seus temos sob o processo n.º 4891/2..., no Juízo Central Cível ... - Juiz ... - Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, conforme decorre de comprovativo que se junta como DOC. 1, sendo que a mencionada acção judicial n.º 4891/2... foi instaurada contra os peritos médicos psiquiatras que produziram e juntaram ao presente processo crime, respectivamente, o primeiro relatório pericial (Dr. CC, médico psiquiatra) e o segundo relatório pericial (Dr. DD, Dra. EE e Dr. FF, médicos psiquiatras).

II Na referida acção judicial n.º 4891/2... foram alegados os factos constantes da petição inicial que aqui dá-se por integralmente reproduzida e que se junta como DOC. 2. e que mostra-se transcrita nas presentes alegações.

III No presente processo judicial n.º 579/12.4JAFUN, o ora arguido foi condenado, criminal e civilmente nos termos seguintes:

"-Pela prática, em autoria material, de um crime de Homicídio Simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 131º e 132º, nº 1 e 2, al. e), todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.

-A pagar à assistente / demandante BB, a título de indemnização civil pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, a quantia de 182.609,72 (cento e oitenta e dois mil, seiscentos e nove euros e setenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, contados desde a data de notificação deste pedido até integral pagamento;

-A pagar ao Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, SESARAM a quantia de 6.825.43 (seis mil, oitocentos e vinte e cinco euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a data da notificação deste pedido em relação à quantia 5.630,66 euros (cinco mil, seiscentos e trinta euros e sessenta e seis cêntimos, e desde a data da notificação da ampliação do pedido em relação à quantia de 1.194,77 euros (mil cento e noventa e quatro euros e setenta e sete cêntimos), até integral pagamento.", tudo conforme resulta de certidão de douto acórdão proferido, em 16.11/2016, pelo Tribunal Judicial da Comarca da Madeira.

IV O 1º perito Dr. CC produziu e juntou ao presente processo judicial n.º 579/12.4JAFUN um primeiro relatório pericial, datado de 05.04.2016, que pugnou pela inimputabilidade do ora arguido, relatório pericial que aqui dá-se por integralmente reproduzido.

V No presente processo judicial n.º 579/12.4JAFUN, os peritos Dr. DD, Dra. EE e Dr. FF produziram e juntaram um segundo relatório pericial, datado de 23.09.2016, que pugnou pela imputabilidade do ora arguido, relatório pericial que aqui dá-se por integralmente reproduzido.

VI Ora, o Tribunal da Comarca da Madeira referiu, no douto acórdão condenatório, que:

"(...) o afastamento de uma das perícias será feito com base noutro juízo científico, não havendo, por isso, qualquer afastamento (do disposto no artº 163º) com base em razões não científicas ou técnicas, ou seja, a opção a tomar não será feita pela nossa convicção alicerçada em elementos fácticos, mas do confronto da perícia/relatório"

VII O perito CC contactou e examinou, pela primeira vez, o ora arguido no dia 06.12.2012, sendo que os factos por que o arguido foi criminal e civilmente condenado ocorreram em 02.12.2012, porquanto o perito CC atendeu o ora arguido no serviço de urgência psiquiátrica do Hospital ... e os segundos peritos DD, EE e FF contactaram e examinaram, pela primeira vez, o ora arguido no dia 23.06.2016, sendo que os factos por que o arguido foi criminal e civilmente condenado ocorreram em 02.12.2012.

VIII O ora arguido esteve, após a prática em 02.12.2012 dos factos por que foi criminal e civilmente condenado, internado na casa de saúde ... e aí foi tratado médica e clinicamente pelo Sr. Dr. GG, médico psiquiatra.

IX De acordo com o princípio da identidade, o ora arguido não podia, à data dos factos constantes no presente processo judicial por que foi criminal e civilmente condenado, ser ao mesmo tempo inimputável e ser imputável, pelo que ou o primeiro relatório pericial é falso ou o segundo relatório pericial é falso, pelo que ou o juízo científico ou técnico do 1º perito do primeiro relatório pericial é falso ou o juízo científico ou técnico dos segundos peritos do segundo relatório pericial é falso.

X Caso o juízo científico ou técnico do primeiro relatório pericial seja falso não terá de ser novamente apreciada a condenação do ora arguido através da realização de um novo julgamento, mas caso o juízo científico ou técnico do segundo relatório pericial seja falso esta peticionada falsidade consubstanciará a existência de um falso meio de prova que foi determinante para a fundamentação e prolação da decisão condenatória proferida em relação ao ora arguido, tudo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 449.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, pelo que, em consequência, terá de ser novamente apreciada a condenação do ora arguido através da realização de um novo julgamento.

XI A confirmar-se a peticionada falsidade do segundo relatório pericial junto ao presente processo crime futuramente por sentença judicial a ser proferida no âmbito do aludido processo judicial n.º 4891/2... e pelo facto do segundo relatório pericial ter sido determinante para a fundamentação e para a prolação de decisão condenatória proferida no processo crime relativamente ao qual este recurso extraordinário de revisão corre por apenso impõe-se que seja novamente apreciada a dita decisão de condenação do ora arguido através da realização de um novo julgamento.

XII Os documentos a juntar ao presente recurso extraordinário de revisão são (1) a certidão do douto acórdão condenatório proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca da Madeira no presente processo crime n.º 579/12.4JAFUN, (2) a certidão do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no presente processo crime, (3) a certidão do 1º relatório pericial junto ao presente processo judicial, (4) a certidão do 2º relatório pericial junto ao presente processo judicial e (5) a certidão da petição inicial do processo judicial n.º 4891/2... e (6) a certidão da sentença judicial que virá a ser proferida no processo judicial n.º 4891/2... assim que transitar em julgado, sendo que a certidão da sentença que vier a reconhecer e a declarar a peticionada falsidade do 2º relatório pericial referenciada em (6) constitui o meio de prova e o fundamento que justificam a revisão.

XIII Pelo facto do processo judicial n.º 4891/2... estar a correr presentemente os respectivos termos sem que tenha sido proferida douta decisão judicial transitada em julgado a reconhecer e a declarar judicialmente a peticionada falsidade do 2º relatório pericial, o arguido requer a suspensão da instância do presente recurso extraordinário de revisão até que venha a ser proferida aquela decisão judicial com trânsito em julgado e até que venha a ser junta aos presentes autos, tudo com todas as legais consequências.

XIV A peticionada falsidade do 2º relatório pericial implica que o único juízo científico a ter de ser valorado como meio de prova é o do 1º relatório pericial que pugna pela inimputabilidade do arguido, com a verificação da consequente violação do artigo 163.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que subtrai ao julgamento do juiz o juízo científico ou técnico e que fundamentou a condenação do ora arguido com base no juízo científico do 2º relatório pericial.

XV O arguido cumpriu, na proporção de 2/3 partes, a pena de prisão em que foi condenado no estabelecimento prisional do ..., pelo que o arguido esteve privado de estar em liberdade durante 40 meses, o que provocou sofrimento ao ora arguido.

XVI O arguido peticiona que a decisão condenatória contra si proferida no presente processo judicial seja revogada com o novo julgamento a ser realizado onde será proferida nova decisão judicial a absolver o arguido da acusação penal da prática, em autoria material, de um crime de Homicídio Simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 131º e 132º, nº 1 e 2, al. e), todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão., tudo com todas as legais consequências, designadamente com o reconhecimento e a declaração judiciais de improcedência:

-do pedido de pagamento à assistente / demandante BB, a título de indemnização civil pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, a quantia de 182.609,72 (cento e oitenta e dois mil, seiscentos e nove euros e setenta e dois cêntimos"), acrescida de juros de mora, contados desde a data de notificação deste pedido até integral pagamento;

-e com o reconhecimento e a declaração judiciais de improcedência do pedido de pagamento ao Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, SESARAM a quantia de 6.825,43 (seis mil, oitocentos e vinte e cinco euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a data da notificação deste pedido em relação à quantia 5.630,66 euros (cinco mil, seiscentos e trinta euros e sessenta e seis cêntimos), e desde a data da notificação da ampliação do pedido em relação à quantia de 1.194,77 euros (mil cento e noventa e quatro euros e setenta e sete cêntimos, até integral pagamento."

-e com o arbitramento ao arguido de uma indemnização a pagar pelo Estado no valor de, pelo menos, €185.000,00 (cento e oitenta e cinco mil euros) em consequência do sofrimento causado pela sobredita privação da liberdade do arguido e a ordenar a restituição ao arguido de todas as taxas de justiça, custas e multas que pagou, tudo com todas as legais consequências.

Termina pedindo que o presente recurso extraordinário de revisão seja admitido, autorizado e julgado procedente, por provado, tudo com todas as legais consequências, designadamente:

- ser autorizada e ser ordenada a revisão do acórdão condenatório transitado em julgado e ser ordenada a realização de novo julgamento através do qual deverá ser revogado o acórdão condenatório a rever e que foi proferido no presente processo judicial contra o arguido através da prolação de nova decisão judicial a absolver o arguido da acusação penal da prática, em autoria material, de um crime de Homicídio Simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 131º e 132º, nº 1 e 2, al. e), todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão., tudo com todas as legais consequências, designadamente com o reconhecimento e a declaração judiciais de improcedência:

-do pedido de pagamento à assistente / demandante BB, a título de indemnização civil pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, a quantia de 182.609,72 (cento e oitenta e dois mil, seiscentos e nove euros e setenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, contados desde a data de notificação deste pedido até integral pagamento, tudo com todas as legais consequências;

-e com o reconhecimento e a declaração judiciais de improcedência do pedido de pagamento ao Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, SESARAM a quantia de 6.825,43 (seis mil, oitocentos e vinte e cinco euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a data da notificação deste pedido em relação à quantia 5.630,66 euros (cinco mil, seiscentos e trinta euros e sessenta e seis cêntimos), e desde a data da notificação da ampliação do pedido em relação à quantia de 1.194,77 euros (mil cento e noventa e quatro euros e setenta e sete cêntimos), até integral pagamento.", tudo com todas as legais consequências,

-e com o arbitramento ao arguido de uma indemnização a pagar pelo Estado no valor de, pelo menos, €185.000,00 (cento e oitenta e cinco mil euros) em consequência do sofrimento causado pela sobredita privação da liberdade do arguido e a ordenar a restituição ao arguido de todas as taxas de justiça, custas e multas que pagou, tudo com todas as legais consequências.

3. Na resposta o Ministério Público concluiu pela rejeição do recurso por, em síntese, não haver outra sentença transitada que tenha ajuizado a veracidade ou falsidade da perícia em causa.

4. O Sr. Juiz pronunciou-se sobre o mérito do pedido (art. 454.º, CPP), nos seguintes termos:

Senhores Juízes Conselheiros:

Vem o arguido AA, requerer recurso de revisão de sentença, com os seguintes fundamentos:

“O arguido instaurou, no dia 22.09.2022, uma acção declarativa de condenação que segue os seus temos sob o processo n.º 4891/2..., no Juízo Central Cível do ... - Juiz 3 - Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, conforme decorre de comprovativo que se junta como DOC. 1, sendo que a mencionada acção judicial n.º 4891/2... foi instaurada contra os peritos médicos psiquiatras que produziram e juntaram ao presente processo crime, respectivamente, o primeiro relatório pericial (Dr. CC, médico psiquiatra) e o segundo relatório pericial (Dr. DD, Dra. EE e Dr. FF, médicos psiquiatras).

Na referida acção judicial n.º 4891/2... foram alegados os factos constantes da petição inicial que aqui dá-se por integralmente reproduzida. No presente processo judicial n.º 579/12.4JAFUN, o ora arguido foi condenado, criminal e civilmente nos termos seguintes:

"-Pela prática, em autoria material, de um crime de Homicídio Simples, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. e), todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.

-A pagar à assistente / demandante BB, a título de indemnização civil pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, a quantia de 182,60972 (cento e. oitenta e dois mil, seiscentos e nove euros e setenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, contados desde a data de notificação deste pedido até integral pagamento;

-A pagar ao Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, SESARAM a quantia de 6.825,43 (seis mil, oitocentos e vinte e cinco euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a data da notificação deste pedido em relação à quantia 5.630,66 euros (cinco mil, seiscentos e trinta euros e sessenta e seis cêntimos), e desde a data da notificação da ampliação do pedido em relação à quantia de 1.194,77 euros (mil cento e noventa e quatro euros e setenta e sete cêntimos), até integral pagamento," tudo conforme resulta de certidão de douto acórdão proferido, em 16.11.2016, pelo Tribunal Judicial da Comarca da Madeira.

O 1.º perito Dr. CC produziu e juntou ao presente processo judicial n.º 579/12.4JAFUN um primeiro relatório pericial, datado de 05.04.2016, que pugnou pela inimputabilidade do ora arguido.

No presente processo judicial n.° 579/12.4JAFUN, os peritos Dr. DD, Dra. EE e Dr. FF produziram e juntaram um segundo relatório pericial, datado de 23.09.2016, que pugnou pela imputabilidade do ora arguido.

Ora, o Tribunal da comarca da Madeira, no Douto Acórdão condenatório, referiu que “(…) O afastamento de uma das perícias será feito com base noutro juízo científico, não havendo, por isso, qualquer afastamento (do disposto no art 163°) com base em razões não científicas ou técnicas, ou seja, a opção a tomar não será feita pela nossa convicção alicerçada em elementos fácticos, mas do confronto das perícias/relatórios”

O perito CC contactou e examinou, pela primeira vez, o ora arguido no dia 06.12.2012, sendo que os factos por que o arguido foi criminal e civilmente condenado ocorreram em 02.12.2012, porquanto o perito CC atendeu o ora arguido no serviço de urgência psiquiátrica do Hospital ... e os segundos peritos DD, EE e FF contactaram e examinaram, pela primeira vez, o ora arguido no dia 23.06.2016, sendo que os factos por que o arguido foi criminal e civilmente condenado ocorreram em 02.12.2012.

O arguido esteve, após a prática em 02.12.2012 dos factos por que foi criminal e civilmente condenado, internado na casa de saúde ... e aí foi tratado médica e clinicamente pelo Sr. Dr. GG, médico psiquiatra.

O ora arguido não podia, à data dos factos constantes no presente processo judicial por que foi criminal e civilmente condenado, ser ao mesmo tempo inimputável e ser imputável, pelo que ou o primeiro relatório pericial é falso ou o segundo relatório pericial é falso, pelo que ou o juízo científico ou técnico do 1° perito do primeiro relatório pericial é falso ou o juízo científico ou técnico dos segundos peritos do segundo relatório pericial é falso.

Caso o juízo científico ou técnico do primeiro relatório pericial seja falso não terá de ser novamente apreciada a condenação do ora arguido através da realização de um novo julgamento, mas caso o juízo científico ou técnico do segundo relatório pericial seja falso esta peticionada falsidade consubstanciará a existência de um falso meio de prova que foi determinante para a fundamentação e prolação da decisão condenatória proferida em relação ao ora arguido, tudo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 449.°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal, pelo que, em consequência, terá de ser novamente apreciada a condenação do ora arguido através da realização de um novo julgamento.

A confirmar-se a peticionada falsidade do segundo relatório pericial junto ao presente processo crime futuramente por sentença judicial a ser proferida no âmbito do aludido processo judicial n.° 4891/22.6T8FNC e pelo facto do segundo relatório pericial ter sido determinante para a fundamentação e para a prolação de decisão condenatória proferida no processo crime relativamente ao qual este recurso extraordinário de revisão corre por apenso impõe-se que seja novamente apreciada a dita decisão de condenação do ora arguido através da realização de um novo julgamento.”

Nos termos do invocado disposto no artº 449º nº1 a) do CPP, a revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando “uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão”.

Conforme decorre do alegado pelo arguido e dos documentos juntos, não existe, para já, nenhuma sentença transitada em julgado que tenha considerado como falsos meios de prova determinantes para a decisão dos presentes autos.

Termos em que, é nosso entendimento, que não deverá ser autorizada a revisão de sentença, por não se mostrarem preenchidos os seus requisitos legais.

Notifique e junte certidão do Acórdão dos presentes autos com nota de trânsito em julgado.

5. Já neste Tribunal o Sr. PGA sustentou que “deverá ser julgado como manifestamente improcedente o pedido, negando-se a revisão” e, nos termos do disposto no art. 456.º do CPP deve o requerente ser condenado em custas e em quantia que traduza o modo como, de forma totalmente infundamentada, fez intervir este Supremo Tribunal de Justiça”, uma vez que, como o próprio recorrente “refere – inexiste qualquer «outra sentença». Muito menos transitada em julgado. E muito menos ainda que comprove a falsidade de qualquer meio de prova. O que existe é apenas um processo de natureza cível em que elaborou petição na qual” efetuou pedido para que o primeiro relatório pericial seja declarado falso, o que tudo constitui uma flagrante desconformidade com o fundamento invocado neste recurso extraordinário.

6. Notificado do Parecer do Sr. PGA para, querendo, se pronunciar, o recorrente, no final do prazo concedido, veio juntar requerimento alegando justo impedimento e pedindo designadamente a suspensão de prazos processuais para a eventual prática de atos processuais pelo mandatário do arguido e recorrente, o que foi indeferido, em resumo, por se considerar, pelos motivos indicados no despacho de 31.01.2023, que os factos alegados não integravam tal conceito (“justo impedimento”), tendo antes o Ilustre Advogado revelado uma atuação que não foi prudente ao não ter substabelecido.

7. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem cumpridos os vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II Fundamentação

8. O recurso extraordinário de revisão, previsto nos artigos 449.º a 466.º CPP, é um meio processual (que se aplica às sentenças transitadas em julgado, bem como aos despachos que tiverem posto fim ao processo – art. 449.º, n.º 1 e n.º 2 do CPP – também transitados) que visa alcançar a possibilidade da reapreciação, através de novo julgamento, de decisão anterior (condenatória ou absolutória ou que ponha fim ao processo), desde que se verifiquem determinadas situações (art. 449.º, n.º 1, do CPP) que o legislador considerou deverem ser atendíveis e, por isso, nesses casos deu prevalência ao princípio da justiça sobre a regra geral da segurança do direito e da força do caso julgado (daí podendo dizer-se, com Germano Marques da Silva1, que do “trânsito em julgado da decisão a ordem jurídica considera em regra sanados os vícios que porventura nela existissem.”).

A sua importância (por poder estar em causa essencialmente uma “condenação ou uma absolvição injusta”) é de tal ordem que é admissível o recurso de revisão ainda que o procedimento se encontre extinto, a pena prescrita ou mesmo cumprida (art. 449.º, n.º 4, do CPP).

O que, quanto às condenações, se conforma com o artigo 29.º, n.º 6, da CRP, quando estabelece que “Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.”

Portanto, para ser interposto recurso de revisão, a decisão a rever tem de estar transitada em julgado (como estabelece o n.º 1 do art. 449.º do CPP), só tendo legitimidade para a sua interposição os sujeitos indicados no art. 450.º do CPP, entre eles, o condenado ou o seu defensor, relativamente a sentenças condenatórias (ver art. 450.º, n.º 1, al. c), do CPP).

Neste caso concreto, verifica-se, desde logo, que o recurso extraordinário de revisão foi interposto pelo arguido, através do seu advogado, em 25.09.2022 (portanto, por quem tinha legitimidade), estando o acórdão a rever transitado em julgado desde ........2017 (conforme certificado).

O recorrente invocou, em resumo, como fundamento da revisão, o disposto no art. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP, alegando que, futuramente, vindo a obter sentença judicial, na ação cível que instaurou, que confirme a peticionada falsidade do segundo relatório pericial junto ao processo crime, cuja sentença pretende que seja revista (pelo facto desse segundo relatório pericial ter sido determinante para a fundamentação e para a prolação da decisão condenatória a rever), então impor-se-á que seja novamente apreciada a dita decisão de condenação, através da realização de um novo julgamento.

Vejamos.

Em sede da decisão sobre a matéria de facto, com relevância para esta decisão, fez-se constar do acórdão condenatório, confirmado por acórdão do TRL, o seguinte:

Factos provados

1. À data dos factos, a BB era, há cerca de sete anos, amiga do arguido AA e, por vezes, efectuava trabalhos de mulher-a-dias na residência deste, situada na zona de ..., sendo que, durante esse período de tempo, o arguido, por várias vezes, ajudou-a com dinheiro e bens.

2. Durante esses sete anos, por diversas vezes, o arguido AA tentou iniciar um relacionamento amoroso com BB, mas esta não aceitou.

3. Em data não concretamente apurada do final do ano de 2012, a BB emprestou ao arguido o veículo da sua filha, de matrícula 99-99-IA, marca “Opel”, modelo “Corsa”, de cor cinzenta.

4. No dia 02.12.2012, cerca das 13 horas, o arguido circulava com a dita viatura na companhia da BB, ele no lugar do condutor e ela no lugar do passageiro, e dirigiram-se para a paragem de autocarro junto do ..., onde a ofendida deveria apanhar o autocarro.

5. A dada altura, na Rua ... o arguido parou a viatura alguns metros depois do portão da sociedade “P...”, junto ao muro do lado direito, no sentido ascendente.

6. Quando BB se preparava para sair da viatura, após abrir a porta, o arguido puxou-a para dentro, impedindo-a que saísse, e, munido com uma faca de cozinha que transportava consigo, desferiu-lhe vários golpes na zona do coração, costas e membros inferiores.

7. A BB, ao mesmo tempo que colocava as mãos à frente do corpo para se proteger, vindo por isso a ser atingida nas mãos, procurava escapar da viatura.

8. Enquanto isso, o arguido tentava impedi-la de sair e, simultaneamente, desferia-lhe golpes com a faca, até que aquela conseguiu sair da viatura, ficando no entanto prostrada no solo, onde veio a ser socorrida por transeuntes.

9. Como consequência directa e necessária da referida conduta do arguido, a ofendida BB sofreu:

i.quatro feridas incisas na face posterior do hemitórax esquerdo;

ii. uma ferida na mama esquerda hemotórax à esquerda;

iii. uma ferida no hemitórax esquerdo com hemorragia activa;

iv. uma ferida subclavicular e infraclavicular sangrante;

v. múltiplas feridas incisas dorsais não sangrentas, compatíveis com instrumento de natureza corto-perfurante;

vi. parestesias no membro inferior esquerdo;

vii. lesão traumática dos músculos da goteira vertebral esquerda em L2 e L3;

que foram causa directa e necessária de um período de doença fixável em 706 (setecentos e seis) dias, sendo 60 (sessenta) dias com afectação da capacidade para o trabalho geral e 706 (setecentos e seis) dias com afectação da capacidade para o trabalho profissional.

10. Para além disso, da referida conduta do arguido resultou como consequência para a ofendida a pendência permanente do pé esquerdo, com incapacidade para a dorsiflexão na tibiotársica esquerda, com dificuldade na marcha com “steppage” à esquerda, e parestesias no respectivo pé, carecendo de usar prótese nesse pé, e ainda perturbação de stresse pós-traumático com repercussão na autonomia pessoal, social e profissional.

11. Ao munir-se com uma faca antes do encontro com BB, o arguido já havia formado o intento de a atingir com essa faca e ao desferir os citados golpes nas referidas áreas do corpo daquela sabia que tal conduta era apta, atento o meio utilizado, o número de golpes e a área agredida, a causar a morte daquela, resultado que quis, só não vindo a lograr tal objectivo por motivos alheios à sua vontade.

12. Ao praticar a supra descritas conduta, o arguido actuou com a vontade livremente determinada e com a consciência de que esta não lhe era permitida.

13. O arguido AA desenvolveu-se num contexto sociocultural e económico razoável, sendo o mais velho de uma fratria de sete elementos. É retratada uma dinâmica familiar estável, com transmissão de regras e valores como o trabalho.

14. O arguido frequentou a escola até ao 4º ano, reunindo capacidades de leitura e de escrita.

15. Iniciou trabalho na adolescência, referindo experiências laborais diversificadas, algumas na restauração e hotelaria, tendo reunido hábitos de trabalho.

16. Parte da sua vida decorreu em ..., onde esteve emigrado pelo período de cerca de 30 anos. Nesse país estabeleceu uma relação conjugal, da qual nasceram três descendentes, todos com idade superior a 50 anos. Voltou à ilha da Madeira depois de reformado juntamente com o cônjuge.

17. Não foram apuradas problemáticas aditivas no seu percurso de vida. Regista um internamento na Casa de Saúde ... em 2012, encaminhado pelo serviço de urgência hospitalar, na sequência dos factos que originaram o presente processo.

18. AA reside sozinho, na sequência do falecimento do seu cônjuge, já na pendência deste processo. Os filhos vivem em ... e, por vezes, visitam-no nesta Região. Na ilha da Madeira conta com o apoio estreito de uma irmã, com quem mantém uma relação de grande afetividade e proximidade. Esta irmã desloca-se cerca de duas vezes por semana à sua casa a fim de organizar e limpar a moradia. Esta moradia revela boas condições de habitabilidade e conforto.

19. O arguido é beneficiário de uma pensão de velhice no valor aproximado de 200,00 euros e de uma pensão proveniente do estrangeiro no valor de 400,00 euros.

20. Atualmente, o seu quotidiano é passado maioritariamente na zona de residência, deslocando-se ao centro da cidade do ..., onde convive com alguns conhecidos, ainda que a sua teia de relações sociais não se mostre muito extensa.

21. O relacionamento do arguido com a ofendida terá cessado ainda que refira depositar na conta bancária desta a quantia mensal de 20,00 euros, alegando que ela tem dificuldades económicas.

22. Em termos pessoais, o arguido mostra-se uma pessoa autónoma e, por exemplo, conduz uma viatura, tendo recentemente renovado a carta de condução.

23. O confronto com o presente processo é vivido com nervosismo pelo receio de consequências gravosas e pelo impacto nos filhos. Num contexto de negação de responsabilidade, não consegue identificar uma entidade vítima e não antevê condenação ou eventualmente alguma forma de ressarcimento.

24. O arguido tem vindo a contribuir mensalmente com 20,00 euros para as despesas da assistente/demandante civil.

25. O arguido não tem antecedentes criminais.

26. Em consequência dos factos descritos nos pontos 4. a 12., a ofendida foi e tem sido assistida nos serviços do SESARAM, onde lhe foi e é prestada assistência médica e medicamentosa, tendo tal assistência ascendido, até ao momento, à quantia de 6.825,43 euros.

27. A assistente lembra-se todos os dias dos factos como se de um filme se tratasse, devido às cicatrizes e sequelas com que ficou.

28. À data dos factos, a assistente tinha 40 anos de idade, gozava de boa saúde e não tinha qualquer problema físico.

29. A assistente sentia uma grande alegria de viver e constante boa disposição, sendo mãe de três filhos, dois deles menores à data dos factos.

30. A assistente trabalhava há vinte e um anos como empregada auxiliar de serviço na Casa de Saúde ..., em ..., auferindo o vencimento base de 530,43€ (quinhentos e trinta euros e quarenta e três cêntimos), acrescido das diuturnidades, prémio de trabalho e subsídio de alimentação, pelo que o vencimento mensal rondava os 774,85€ (setecentos e seiscentos e sessenta e oito euros e catorze cêntimos).

31. Fora do seu horário de trabalho na Casa de Saúde ..., a assistente trabalhava como empregada a dias, sendo que, à data dos factos, tinha quatro serviços semanais, onde recebia 40,00€ (quarenta euros) em cada um dos serviços, auferindo mensalmente o valor de 640€ (seiscentos e quarenta euros) mensais, valores que deixou de auferir no período compreendido entre 02.12.2012 e 02.12.2014.

32. A assistente ficou de baixa médica devido as lesões que sofreu desde a data dos factos até 27.11.2015.

33. A assistente ficou com dificuldade de locomoção e equilíbrio e coxeia devido às lesões que lhe provocou o arguido, tendo ficado com o pé esquerdo pendente (dificuldade na dorsiflexão e parestesias no respectivo pé).

34. Devido às lesões sofridas na perna esquerda, a assistente tem de usar uma ortótese, anti-equino para o pé esquerdo, e frequenta, desde a data dos factos, sessões de reabilitação, sendo que nos primeiros seis meses estas tiveram lugar no Hospital ... e actualmente ocorrem no Centro de Saúde ....

35. A assistente sofreu e sofre actualmente de dores nos membros inferiores, pelo qual teve de levar injecções para atenuá-las, e, durante o tempo de internamento, teve de usar muletas.

36. Durante o tempo que esteve internada no Hospital ..., devido as lesões sofridas, a assistente não se conseguia mexer, não se levantou durante os primeiros oito dias, não conseguia comer pelas suas próprias mãos e dependia da ajuda de terceiros, só consegui tomar banho no último dia de internamento com ajuda de terceiro, e tinha um dreno do lado esquerdo do tórax que lhe provocava dores constantes.

37. Devido às ditas lesões nas mãos, a assistente ficou com mobilidade reduzida, principalmente na mão direita, pelo que não consegue lavar a loiça ou fazer os trabalhos domésticos tal e qual como fazia, pelo que é a sua mãe quem toma conta dos ditos afazeres em casa.

38. O simples virar na cama torna-se um sofrimento para a assistente, que não consegue fazê-lo sozinha, nem consegue cortar as unhas, pelo que a sua vida passou a depender de terceiros, causando-lhe grande consternação.

39. A assistente ficou afectada psicologicamente pelas sequelas das agressões sofridas e pelas marcas visíveis das agressões, nomeadamente cicatriz na mama esquerda, com mais ou menos 5 cm., e cicatriz na mão direita.

40. A assistente sofre de perturbação stresse pós-traumático, com repercussão na autonomia pessoal, social e profissional.

41. A assistente não consegue dormir devido aos pesadelos e chora constantemente ao se recordar da situação vivida, referindo que todos os dias se lembra dos factos como se tivessem acontecido no presente, o que lhe causa ansiedade.

42. Nunca mais pegou numa faca, seja de que tamanho for, devido ao trauma com que ficou da data dos factos e do modo como aconteceram.

43. Nunca mais conseguiu passar na rua onde aconteceram os factos, desviando-se por caminhos alternativos.

44. Circula na rua sempre com medo de que o arguido a esteja a segui-la, olhando pelos vidros das montras, com vista a ver se a segue.

45. Desde a ocorrência dos factos, a assistente tem sido acompanhada por um psicólogo e mensalmente por um médico.

46. Tendo gasto, até à presente data, o valor de 1.045,00€ (mil e quarenta e cinco euros) nas consultas realizadas (mil e quarenta e cinco euros), que ascendem a 19 com o custo unitário de 55,00€.

47. O filho da assistente, HH, à data dos factos, tinha 10 anos de idade e, devido aos acontecimentos, desde a referida data, pergunta constantemente se a casa está fechada, ao se deitar para dormir à noite não apaga a luz, e todos os dias verifica as divisões da casa, para se assegurar de que o arguido não está dentro de casa.

48. O referido HH sente medo do arguido desde a data dos factos, pelo que está a ser acompanhado por uma psicóloga do Centro de Saúde ....

49. A assistente teve de realizar e pagar os exames médicos de raio x, ao tórax, pulmões e coração, a 26.07.2013 e a 01.09.2014, tendo pago o valor total de 140,00€ (cento e quarenta euros).

50. Efectuou uma ecografia de partes moles, a 26.07.2013, tendo pago o valor de 65,00€ (sessenta e cinco euros).

51. Gastou até a presente data em despesas medicamentosas, para colmatar as dores e as lesões provocadas pelo arguido, o valor total de 352,06€ (trezentos e cinquenta e dois euros e seis cêntimos).

52. Adquiriu a prótese ortótese anti-equino no valor de 74,53€ (setenta e quatro euros e cinquenta e três) e já teve de efectuar conserto da mesma no valor de 10,00€ (dez euros).

53. Devido à utilização dita prótese, a assistente apenas pode utilizar sapatinhas, pelo que teve de adquirir dois pares, cujo valor global foi de 92,13€ (noventa e dois euros e treze cêntimos).

54. O Tribunal requereu os extractos da conta da assistente, pelo que a mesma teve de pagar 120,00€ (cento e vinte euros).

55. Desde a data dos factos, a assistente deixou de se socializar por vergonha as lesões físicas visíveis.

56. Actualmente, e em consequência directa e necessária das lesões sofridas, a ofendida encontra-se de baixa médica, pelo que não pode desempenhar a sua vida profissional, atendendo as fortes dores que sente e pela impossibilidade de mobilização normal, no lado esquerdo e devidos as lesões e traumas com que ficou desde a data dos factos.

57. A ofendida sente-se revoltada e angustiada com o estado de dependência de terceiros após a agressão.

Factos não provados

Não se provou que:

1. A BB iniciou um relacionamento amoroso com um outro homem, com o qual convivia à data dos factos subsequentemente descritos, facto que não foi bem aceite pelo arguido.

2. O arguido actuou por causa dos ciúmes e raiva que tinha do relacionamento da ofendida com um outro homem.

3. Devido a sua situação económica difícil em que a assistente enfrentou após os acontecimentos e por ser mãe de três filhos, teve de pedir um empréstimo ao banco no valor de 3.000,00€ (três mil euros), para ajuda nas despesas diária com os quatro membros da família.

4. Teve ainda a assistente de pedir ajuda a pessoas amigas as quais emprestaram os valores de 3.850,00€ (três mil, oitocentos e cinquenta euros) e 1.000,00€ (mil euros), que se encontram em dívida.

5. Entregou a Dra. II (primeira advogada interveniente nos autos), o valor de 500,00€ como adiantamento de honorários, acrescido do valor de 150,00€ (cento e cinquenta euros) de 3 consultas (cada uma de 50,00€).

6. Devido ao trauma dos factos ocorridos dentro do veículo automóvel da sua filha JJ, acima identificado, a assistente deu-o à oficina onde se encontrava, por considerar nunca mais não ser capaz de lá entrar, sendo que esse veículo tinha o valor de 500,00€.

7. Ao longo destes dois anos, a assistente tem tido gastos nas deslocações aos médicos, hospital, clínica e tribunal, o que ronda o valor aproximado de 550,00€ (quinhentos e cinquenta euros).

8. No período compreendido entre 02.12.2012 e 02.12.2014, a assistente deixou de ganhar 774.85€ x 24 = 18.596,40€ e subsídio de férias e subsídio de natal equivalente a 2.520,76€.

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

O tribunal formou a sua convicção na análise e ponderação da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, valorada de acordo com o critério da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 127º do Cód. de Proc. Penal), sendo de salientar as declarações da ofendida e o depoimento das testemunhas abaixo identificadas.

Desde logo, na apreciação feita pelo tribunal foram tidas em conta as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de julgamento, produzidas após a produção da prova apresentada pela acusação e pela demandante civil, nas quais assumiu ter estado, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação, no interior do veículo onde os factos ocorreram.

Contudo, referiu que foi a assistente/demandante civil quem lhe retirou do bolso a faca que trazia consigo (para cortar canas para fazer estacas para flores em casa), desagradada pelo facto de ele não lhe emprestar dinheiro (1.000,00 euros) que acabara de lhe pedir. É no seguimento desta acção da assistente/demandante civil, que, segundo o arguido, procurou tirar-lhe a faca das mãos, momento em que foi agredido no peito por esta, tendo de seguida, já fora de si pelo facto de ter sido agredido, ripostado, agredindo também aquela com a faca.

Estas declarações, para além de terem sido prestadas após a produção de toda a prova inicialmente proposta pela acusação e pela assistente/demandante civil, o que permitiu ao arguido estruturar a sua argumentação e indicar justificações para a sua conduta, mostraram-se genéricas, inconsistentes e evasivas, especialmente quando se procurou detalhar certas situações ou sequências factuais, sendo visível todo um trabalho por parte da defesa, legítimo diga-se, para tentar inculcar no tribunal a ideia de uma situação momentânea de incapacidade mental daquele, que culminou com a sua sujeição a dois exames psiquiátricos, aos quais voltaremos mais tarde, porque pertinentes para as decisões tomadas.

A versão dos factos apresentada pelo arguido, fragilizada pelo que se acabou de referir, também não se mostra consentânea com a prova que iremos indicar e que, no nosso entender, retrata a realidade dos factos que ocorreram.

Assim, importa antes de mais chamar à colação as declarações prestadas pela assistente/demandante civil.

Apesar de negar um relacionamento amoroso com o arguido (relacionamento que é por este defendido), situação que dada as posições verbalizadas por estes intervenientes não foi possível apurar, embora indiciada pelos contactos diários entre ambos e o auxílio material e monetário que lhe era prestado pelo arguido que pensamos não eram puramente desprendidos, ainda assim as declarações da arguida quanto ao relato do que se passou no dia em causa mostraram-se objectivas, seguras e lógicas em termos de encadeamento e, por isso, fidedignas, para além de serem corroboradas por outros meios de prova que referiremos posteriormente.

A assistente/demandante civil referiu que, como era usual, na sua hora de almoço, foi tomar café com o arguido e depois este levou-a de carro até à paragem do autocarro para que regressasse ao trabalho. Quando se preparava para sair do veículo, abrindo a porta para o efeito, o arguido, sem que nada o fizesse prever, puxou-a pelo cabelo para dentro e golpeou-a com uma faca, que desconhecia que aquele trazia consigo, primeiro na zona do peito e depois nas costas. Mesmo assim, tentou resistir à agressão, colocando as mãos à frente, daí os cortes que aí sofreu, acabando por conseguir sair, ficando prostrada no chão junto ao veículo, sem que antes tivesse sido também golpeada nas costas, como dissemos, quando procurou sair do veículo. Estas declarações são, no nosso entender, corroboradas pelos seguintes meios de prova:

(i) desde logo, o depoimento da testemunha KK, pessoa sem relações com qualquer dos intervenientes e que presenciou parte da agressão, que depôs de forma isenta, coerente e desprendida, mas com enorme objectividade e sentido de dever, consciente dos seus deveres de testemunha, o que tem de ser enaltecido. Esta testemunha referiu que, dirigindo-se a casa dos seus pais para almoçar, deparou-se com um veículo parado no lado direito da estrada por onde seguia, próximo da parede. Ao se aproximar do veículo ouviu gritos de “terror” de uma só pessoa e vindos do interior do veículo, como se alguém estivesse a passar um “mau bocado”, havendo movimentos de braços que lhe indicavam que estavam a lutar. Saiu do seu veículo e ao se aproximar do outro veículo viu que a pessoa que estava ao lado do condutor, no chamado “lugar do pendura”, tentava sair do carro, até que a porta desse lado bateu com violência na parede, mas não o conseguia pois era puxada novamente para dentro pela outra pessoa que estava no lugar do condutor (o arguido), acabando por sair a muito custo, cambaleando entre o veículo de onde saiu e a parede e com grande quantidade de sangue na zona do peito, ficando, no entanto, caída, inanimada, entre esse veículo e a parede.

(ii) em segundo lugar, as lesões sofridas pela ofendida, essencialmente do lado esquerdo do seu corpo, coadunam-se com o relato feito pela testemunha KK e com a versão dos factos avançada pela assistente/demandante civil. Com efeito, as informações médicas referentes à entrada da assistente/demandante civil no Hospital ..., a fls. 94 a 96 dos autos, revelam que esta apresentava lesões na mama esquerda, ferida subclavicular, quatro feridas na face posterior do hemitorax esquerdo, uma ferida no hemitorax esquerdo com hemarrogia ativa e múltiplas feridas incisas dorsais não sangrentas. Nesta data, foi já detectada uma provável lesão traumática ao nível dos músculos da goteira vertebral esquerda em L2 e L3, sendo que a lesada referia parestesias no membro inferior esquerdo e incapacidade para a dorsiflexão do pé esquerdo.

(iii) os vestígios de sangue encontram-se quase em exclusivo no lado direito do veículo, na zona onde a ofendida seguia, o que nos leva a concluir que foi nessa zona que as agressões tiveram lugar, sendo que no lado do condutor existe unicamente um vestígio de sangue no dispositivo para abrir a porta desse lado (cfr. relatório da polícia judiciaria a fls. 187 a 199 e 208 e 209 dos autos), o que é natural, pois o arguido abriu-a para sair e tinha as mãos com sangue.

Aliás, em relação à versão dos factos apresentada pelo arguido, no sentido da sua desconsideração, importa referir o seguinte.

O arguido, quando foi abordado pela testemunha KK, depois de a ofendida ter saído do veículo, e segundo o depoimento dessa testemunha, não tinha qualquer ferimento no peito, situação que se mantinha quando saiu do lugar do condutor para se sentar no banco de trás, pelo que as feridas que apresentava do lado esquerdo do seu corpo só podem ter sido auto infligidas.

Para além disso, a testemunha KK referiu que quando abordou o arguido disse-lhe “já viu aquilo que fez”, o que pode ter sido interpretado pelo arguido como o anúncio da morte da ofendida, levando-o a tentar o suicídio, tanto mais que anteriormente o arguido já teria tentado a morte de ambos. Na verdade, a ofendida relatou que, na semana anterior aos factos objeto deste processo terem ocorrido, o arguido tentou atirar o veículo em que seguiam por um precipício, o que só não ocorreu porque o veículo ficou retido entre as pedras que formavam o muro que delimita a estrada nesse local (cfr. fotos a fls. 133 a 136 dos autos).

Por outro lado, não faz sentido que o arguido levasse uma faca de cozinha consigo para ir buscar canas, ainda para mais dentro do próprio casaco, muito menos que a tivesse mostrado à ofendida, pois esses factos não seriam tema de um encontro supostamente amoroso, pois natural seria aquele objeto seguir na bagageira do veículo, onde também seriam colocadas as referidas canas.

No que concerne às lesões sofridas pela assistente/demandada civil, suas consequências e a sua situação clínica actual, o tribunal teve em conta:

• as informações médicas referentes à entrada da assistente/demandante civil no Hospital ..., a fls. 94 a 96 dos autos. Destas informações consta que aquela apresentava, além do mais, uma ferida no hemitorax esquerdo com hemorragia activa e ferida intraclavicular sangrante, tendo-lhe sido colocado um dreno torácico na cavidade pleural esquerda que drenou espontaneamente 500 cc de líquido hemático.

• o relatório intercalar de perícia de avaliação do dano corporal, a fls. 231 e 232 dos autos, onde são descritas as sequelas das leões sofridas pela ofendida, os tratamentos a que estava sujeita e a evolução da sua situação clínica.

• o relatório intercalar de perícia de avaliação do dano corporal, a fls. 271 e 272 dos autos, onde são descritas as sequelas das lesões sofridas pela ofendida, os tratamentos a que estava sujeita e a evolução da sua situação clínica.

• o relatório neuropsicológico, a fls. 383 e 384 dos autos, onde se relatam as lesões da ofendida a nível neuropsicológico, revelando a existência de lentificação da atividade cognitiva/operativa, com alterações na atenção/concentração; prejuízo em tarefas de memória e aprendizagem;

presença de dano à integridade psicológica de perturbação pós-stress traumático crónico; e sofrimento clinicamente significativo com acentuada modificação dos padrões de actividade diária e prejuízo no funcionamento social e ocupacional.

• o relatório final de perícia de avaliação do dano corporal, a fls. 410 e 411 dos autos. Neste relatório refere-se, com interesse, que as lesões sofridas pela ofendida terão resultado de traumatismo corto perfurante, o que é compatível com a faca utilizada, tendo resultado para esta consequências permanentes descritas (pé esquerdo pendente, com dificuldade na dorsiflexão e parestesias). Refere igualmente que do evento, leia-se agressão objeto deste processo, não resultou, em concreto, perigo para a vida da ofendida, mas que esta está em situação de perigo, pela decadência psíquica progressiva que a afecta, aconselhando a adopção de medidas psicossociais tendentes a assegurar a sua protecção, devendo continuar a ser seguida em consultas periódicas de neurologia, psicologia, psiquiatria e medicina física e de reabilitação.

• as próprias declarações da ofendida que descreveu a sua situação actual, em que, fruto das lesões que sofreu e das sequelas permanentes de que padece, está numa situação de incapacidade total quer para a sua profissão, quer para a sua vida diária, beneficiando do auxílio da mãe e, na ausência desta, de uma amiga, incapacidade que é compatível com os elementos médicos acima referidos. Salientou também as consequências desta situação a nível psíquico, traçando um quadro de grande debilidade mental, fruto não só da agressão de que foi alvo, mas também da sua situação motora, extensível à sua preocupação permanente pela segurança dos seus filhos, principalmente pelo mais novo, que também apresenta um quadro de sofrimento psicológico.

• o depoimento dos médicos (LL, MM, NN, OO e PP), enfermeira (QQ) e psicólogos (RR e SS) que assistiram e assistem ainda a assistente/demandante civil, que depuseram sobre a intervenção de cada um junto desta, bem como as lesões que sofreu e a sua situação clínica actual, sendo unânimes em referir a sua incapacidade motora, a continuidade na assistência a consultas da medicina da dor e o seu estado psíquico, com um quadro depressivo grave e dificuldades de controlo.

Uma das questões cruciais que se põe neste processo é a de saber a intenção que presidiu à actuação do arguido quando agrediu a ofendida.

Na procura dessa resposta importa referir que a intenção do agente constitui matéria de facto, em princípio imodificável, a apurar pelo tribunal em função da prova ao seu alcance, e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador; não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto, e a conclusão de ter ocorrido intenção de matar deduz-se de factos externos que a revelem.2 A intenção do agente pertence, assim, à esfera da autodeterminação da pessoa, não estando especialmente vocacionada para ser provada através da prova testemunhal. Essa intenção pode deduzir-se de certas atitudes do agente, do seu comportamento anterior, contemporâneo ou posterior ao crime, enfim de uma certa materialidade que pode ser objectivamente observada. Também pode ser objecto de confissão por parte do arguido directamente ou a outra pessoa que depois testemunhe o facto em juízo. Geralmente a intenção deduz-se dos elementos materiais, conjugados ou não com as regras da experiência comum. É o que acontece na prova da intenção de matar, onde a presunção natural tem especial relevância.3

Ou seja, temos de partir de uma valoração da prova produzida nos respectivos autos, já que a apreciação do dolo é essencial a consideração do contexto em que os factos se passaram. O dolo - ou o nível de representação ou reconhecimento que a sua afirmação sob o ponto de vista fáctico - pertence, por natureza, ao mundo interior do agente, por isso, ou é revelado pelo próprio, sob a forma de confissão, ou tem de ser extraído dos factos objectivos, isto é, inferido dos factos objectivos ou da consideração de determinado circunstancialismo objectivo, com idoneidade suficiente para revelá-lo.4

No caso concreto, as circunstâncias em que os factos ocorreram e a dinâmica em que surgem levam-nos a concluir que o arguido quis efectivamente tirar a vida à ofendida, quer pelo instrumento utilizado na agressão, quer pelo local onde desferiu as facadas, na zona do tórax, onde estão alojados órgãos vitais, não sendo displicente focar o número de golpes desferidos, mesmo com oposição da vítima, que foi mantida contra a sua vontade no interior do veículo para o efeito, demonstrativo do propósito vincado que presidiu a essa conduta.

Coloca-se ainda neste processo a questão da imputabilidade do arguido, suscitada pela sua defesa em sede de audiência de julgamento e que foi objeto de duas perícias.

Na primeira destas perícias, realizada por um único perito, concluiu-se, conforme consta do respetivo relatório pericial a fls. 869 a 872 dos autos, que o arguido, à altura dos factos, teve uma reacção psicótica breve, atualmente compensada. Ainda nesse relatório refere-se que tal contexto psicopatológico justifica, do ponto de vista psiquiátrico-forense, que se invoque a figura da inimputabilidade em razão da anomalia psíquica, que impedia o arguido de avaliar a licitude ou ilicitude da conduta objeto deste processo. Conclui, ainda, que o doente, apesar de portador de anomalia psíquica grave, não cria, no presente, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos de valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial. Ainda assim, recomenda, de modo a assegurar um adequado prognóstico, a manutenção dos apoios médico-psiquiátricos e sócio-familiares de que beneficia actualmente.

Por sua vez, a segunda perícia, realizada em estrutura colegial, e cujo relatório consta de fls. 934 a 942 dos autos, concluiu que o arguido, à data dos factos, estava genérica e minimamente capaz de avaliar e de se determinar de acordo com a sua avaliação, integrando pois pressupostos médico-legais previstos para a imputabilidade. Ainda assim, e face à patologia que sofria, este relatório admite a existência de uma diminuição em grau ligeiro dessa imputabilidade pela dificuldade de determinação no momento. Com efeito, à data dos factos, o arguido apresentava um quadro reactivo com funcionamento ansioso significativo (reacção de ajustamento com perturbação mista de emoções e conduta), vivenciada com sentimento de angústia, perda e abandono que condicionavam o seu dia-a-dia. Ainda no relatório desta segunda perícia, que foi complementada com uma avaliação psicológica, o arguido é descrito como um indivíduo imaturo, queixoso, pessimista, teimoso e manipulador, com dificuldades ao nível do controlo emocional e de tolerância ao stresse e com vulnerabilidade crónica para a impulsividade ideacional e afectiva, funcionando de forma positiva por períodos extensos quando na presença de ambientes estruturados e rotineiros nos quais possa ter alguma sensação de controlo e de forma negativa em situações novas.

Ora, sabendo-se que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, nos termos do artigo 163º, n.º1, do Cód. de Proc. Penal, a verdade é que, no caso concreto, o afastamento de uma das perícias será feito com base noutro juízo científico ou técnico, não havendo, por isso, qualquer afastamento daquele normativo com base em razões não científicas ou técnicas, ou seja, a opção a tomar não será feita pela nossa convicção alicerçada em elementos fácticos, mas do confronto das perícias/relatórios em causa.

No caso concreto, pendemos para a imputabilidade do arguido, optando, assim, pela segunda perícia e respetivo relatório, porque nos dá maiores garantias de segurança nesse juízo científico, quer porque realizado por três peritos, o que necessariamente lhe confere uma maior abrangência de pontos de vista, mas também porque foi instruído e tem como um dos seus fundamentos uma avaliação psicológica, que consiste numa avaliação especializada em termos de comportamentos e processos mentais, o que lhe transmite uma maior consistência científica.

Por fim, importa referir que esta solução - da imputabilidade do arguido no momento da prática dos factos - é a única que se coaduna com a situação que se verificava antes do episódio criminoso, pois até aí o arguido, segundo a ofendida e este, esteve calmo e com um comportamento normal, na tendo ocorrido qualquer facto que despoletasse aquela reacção violenta, pelo que a alteração ao nível psíquico que se verificou, e que determinou o seu internamento após os factos, só podem estar relacionados com a consciencialização por parte do arguido das consequências dos seus actos, quer para si quer para a ofendida.

Quanto aos danos morais e patrimoniais, para além das declarações da ofendida, dos depoimentos dos médicos e psicólogos que assistiram e assistem aquela, bem como os elementos médicos acima referidos, temos de salientar também:

• as certidões de nascimento da assistente e dos seus filhos, a fls. 813, 816, 819 e 822 dos autos, onde constam, além da filiação, as respetivas datas de nascimento.

• as declarações do arguido, onde assumiu que a assistente, para além do trabalho na casa de saúde, também trabalhava diariamente para outras pessoas, tendo inclusivamente trabalhado para si e para a testemunha TT, este por sua indicação.

• o depoimento da testemunha TT, que confirmou que a assistente trabalhava para si há cerca de 2/3 anos, o que fazia após o seu horário na casa de saúde.

• os recibos de ordenado da assistente, a fls. 538 a 547 dos autos, que atestam o valor do seu ordenado e das diuturnidades.

• os recibos correspondentes aos exames realizados pela assistente, a saber, a fls. 567 dos autos, RX, pulmões e coração, a fls. 568 dos autos TAC ao tórax, a fls. 569 dos autos ecografia à partes moles.

• os recibos referentes aos medicamentes adquiridos pela assistente, a fls. 570 a 575 dos autos.

• as fotos de fls. 554 e 555 dos autos, referentes às cicatrizes da assistente/demandante civil, na mama e na mão direita, também referidas no relatório final de avaliação do dano.

• a declaração do Instituto de Segurança Social da Madeira, a fls. 796 dos autos, datado de 27.11.2015, que, nesta data, declarou a assistente definitivamente incapaz para o trabalho.

a declaração do Instituto de Segurança Social da Madeira, a fls. 804 dos autos, que atesta que a assistente/demandante civil recebeu, a título de subsídio de doença, no período compreendido entre 02.12.2012 e 01.12.2015, a quantia de 19.197,96 euros, correspondente a salários e subsídio de férias e de natal.

Refira-se, nesta sede, que não foi feita prova de quaisquer empréstimos solicitados pela assistente quer à banca, quer a terceiros, inexistindo igualmente qualquer fundamento para, nesta sede, ser indemnizada pelo valor do veículo que quis dar por não conseguir utilizá-lo, nem pelos eventuais danos sofridos pelo seu filho.

No que concerne ao pedido de indemnização civil deduzido pelo SESARAM, foi tido em conta, para além das declarações da assistente/demandante e dos depoimentos das testemunhas profissionais de saúde acima referidas, que confirmaram os tratamentos e assistência médicas prestadas àquela, as certidões de dívida emitidas pelos serviços de contabilidade do SESARAM, constantes de fls. 486 a 488 e 754 a 756 dos autos, cujo teor não foi posto em causa pelo arguido.

A fixação dos factos não provados resultou da ausência de prova nesse sentido ou da sua contradição com o que foi acima referido.

No que concerne à situação pessoal do arguido, relevo para o relatório pericial a fls. 696 a 698 dos autos.

Quanto aos antecedentes criminais do arguido, a informação junto aos autos a fls. 750.

Pois bem.

Fundamento previsto no artigo 449.º, n.º 1, al. a), do CPP

Dispõe o artigo 449.º, n.º 1, do CPP, que “A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

Portanto, resulta do fundamento previsto nessa norma que, tem de haver uma sentença transitada em julgado, que declare a falsidade de meios de prova que tiverem sido determinantes para a decisão a rever.

Pode respeitar a qualquer meio de prova, mas terá que ser determinante para a decisão a rever e, a sentença que declare a falsidade, tem de estar transitada em julgado, e não tem de ser necessariamente proferida em processo-crime (v.g. pode ser proferida em processo civil).

Ora, o que sucede neste caso, sendo até anunciado pelo recorrente na petição deste recurso extraordinário da revisão da decisão condenatória, é que ainda não dispõe de uma sentença transitada em julgado, antes apenas instaurou uma ação cível (tendo até junto a petição inicial como doc. 1) que assumiu o n.º 4891/22.6T8FNC, na qual peticiona (além do mais) que seja declarado falso o juízo científico ou técnico do segundo relatório pericial que, na sua perspetiva, consubstanciará a existência de um falso meio de prova, determinante para a sua condenação.

Sucede que, sem dispor de sentença transitada em julgado a declarar a falsidade do referido relatório pericial (não se discutindo agora, por ser uma inutilidade, se o mesmo fora ou não determinante para a sua condenação, como alega) é manifesto que está desde logo afastado o preenchimento do invocado fundamento previsto no art.449.º, n.º 1, al. a), do CPP.

Daí que, não se verifique o fundamento invocado previsto no art. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP, sendo temerário apresentar recurso de revisão sem deter a sentença transitada em julgado que declarasse a falsidade de meios de prova que tiverem sido determinantes para a decisão a rever (ou seja, como resulta claro do art. 449.º, n.º 1, al. a), do CPP não deveria o recorrente ter apresentado a presente providência sem dispor de sentença transitada que lhe fosse favorável e lhe permitisse tentar alcançar a sua pretensão de rever a sentença condenatória).

Acrescente-se que nem faz sentido, sendo um contrassenso, além de não haver fundamento legal (visto o disposto no art. 7.º do CPP) para o efeito, atento precisamente os pressupostos do que invocou para a revisão (art.449.º, n.º 1, al. a), do CPP), instaurar este recurso extraordinário e ao mesmo tempo pedir a suspensão da instância até que seja decidida a ação que instaurou e obtenha uma sentença transitada que lhe seja favorável, isto é, que declare falso aquele segundo relatório pericial aludido na sentença condenatório que pretende rever.

Em conclusão: é de rejeitar o presente recurso de revisão por ser manifestamente infundado, não se verificando os pressupostos invocados para este recurso extraordinário, nem fundamento legal para a suspensão da instância.

III Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar a revisão pedida pelo condenado AA.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC`s.

Nos termos do art. 456.º do CPP, vai ainda o recorrente condenado a pagar a quantia de 6 (seis) UC`s, por ser manifestamente infundado o pedido de revisão formulado aqui em apreciação.

*

Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria, pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente desta Secção Criminal.

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Supremo Tribunal de Justiça, 09.03.2023

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Leonor Furtado (Juíza Conselheira Adjunta)

Agostinho Soares Torres (Juiz Conselheiro Adjunto)

Eduardo Almeida Loureiro (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)

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1. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo: Lisboa, 1994, p. 359, acrescentando o seguinte: “Há, porém, certos casos em que o vício assume tal gravidade que faz com que a lei entenda ser insuportável a manutenção da decisão. O princípio da justiça exige que a verificação de determinadas circunstâncias anormais permita sacrificar a segurança e a intangibilidade do caso julgado exprime, quando dessas circunstâncias puder resultar um prejuízo maior do que aquele que resulta da preterição do caso julgado, o que é praticamente sensível no domínio penal em que as ficções de segurança dificilmente se acomodam ao sacrifício de valores morais essenciais.”↩︎

2. Acs. do STJ, de 25.05.2006, proc. n.º1183/06-5ª, de 13.09.2006, proc. n.º1934/06-3ª, de
02.11.2006, proc. n.º3841/06-5ª, de 17.10.2007, proc. n.º3395/07-3ª, de 03.04.2008, proc.
n.º132/08-5ª, de 18.07.2008, proc. n.º102/08-5ª, de 16.10.2008, proc. n.º2851/08-5ª, de
22.10.2008, proc. n.º3274/08-3ª, e de 12.03.2009, proc. n.º07P1769.
↩︎

3. Ac. da Rel. do Porto, de 20.03.2002, proc. n.º0141382.↩︎

4. Ac. da Rel. do Porto, de 27.05.2015, proc. n.º11/10.8 GASJP-C1.↩︎