Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B3458
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CADUCIDADE
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DE LOCADOR
SENHORIO
COMPROPRIETÁRIO
FUSÃO DE SOCIEDADES
PROJECTO DE FUSÃO
DEVER DE COMUNICAÇÃO
Nº do Documento: SJ200612060034587
Data do Acordão: 12/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Dum ponto de vista substancial, que não apenas formal, a extinção das sociedades incorporadas referida no art.112º, al.a), CSC não constitui uma verdadeira extinção, mas sim, e apenas, uma transformação dessas sociedades.

II - Porque assim é, a fusão não determina a caducidade dos contratos de arrendamento de que as sociedades incorporadas sejam titulares ; e nem também é necessária a anuência do senhorio para a transmissão do arrendamento a que dá lugar, sendo inexigível comunicação prévia da fusão.

III - De atender, porém, ao interesse do senhorio de conhecer o negócio que operou a transmissão do arrendamento por forma a permitir-lhe ajuizar da sua legalidade e conhecer a identidade do novo inquilino, é exigível a comunicação prevista na al.g) do art.1038º C.Civ.

IV - No caso de haver compropriedade, essa comunicação deve ser feita a todos os comproprietários.

V - Manifestados por um deles poderes de administração e de representação do outro, de tal modo que era com aquele que nos últimos anos eram tratadas todas as questões relacionadas com o arrendamento, e assim criada, pelo menos, uma situação de procuração aparente em relação ao outro comproprietário, deve ser trazida à colação a regra da boa fé ínsita no art.762º, nº2º, C.Civ. directamente ou através dos seus princípios mediantes, da tutela da confiança e da materialidade subjacente.

VI - O inciso " do ponto de vista contabilístico " constante do art.98º, nº 1º, al.i), CSC revela estar a estipulação a que alude limitada, nos termos da lei, ao plano da contabilidade, que, sem mais, não transmite o uso ou gozo seja do que for.

VII - A al.i) do nº 1º do art.98º CSC releva apenas, numa perspectiva prática, para a distribuição dos resultados obtidos ao longo do processo de fusão pelas sociedades a incorporar ou a fundir, que continuam em actividade até à data em que, com o registo, a fusão se torna eficaz, devendo ser-lhes imputadas juridicamente todas as operações que realizarem. *

* Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


Em 25/6/2004, Empresa-A, e AA moveram a Empresa-B, acção declarativa com processo comum na forma ordinária de reivindicação, e, subsidiariamente, de despejo das lojas e caves do prédio sito na Av. da Liberdade, 206/210 e 214/ 218, em Lisboa, de que se arrogaram a compropriedade.

Essa acção foi distribuída à 7ª Vara Cível da comarca de Lisboa.

Vinha alegado o seguinte : arrendadas aquelas lojas e caves, por anterior proprietário, BB, desde 1942, à sociedade Empresa-C, depois Empresa-D, esta informou o A., por cartas de 5/12/2003, de que fora incorporada, por fusão, na Ré ; tal no entanto, não foi comunicado à A., nem ao anterior proprietário ; e, com essa fusão, a sociedade inquilina extinguiu-se, caducando o contrato de arrendamento.

Aditaram os demandantes que, mesmo que assim não fosse, a transmissão do arrendamento para a Ré seria ineficaz em relação à A., devendo, por isso, ser decretada a resolução desse contrato, com base no art.64º, nº1º, al.f), RAU.

Concluiram pedindo a condenação da Ré a reconhecer o seu invocado direito de (com)propriedade e a restituir-lhes as faladas lojas e caves, por caducidade dos arrendamentos respectivos, e a pagar-lhes, a partir de Janeiro de 2004, € 15.000 por mês, pela ocupação das mesmas, ou, subsidiariamente, que se decretasse a resolução desses arrendamentos, ordenando-se o despejo das lojas e caves aludidas.

Contestando, a Ré opôs : - não ser a fusão de sociedades negócio de comunicação obrigatória ao senhorio ; - desconhecer a existência da A., constituída por escritura de 11/7/2003, e ter comunicado a fusão por carta remetida ao A., procurador dos senhorios, aliás já então comproprietário das fracções arrendadas, e como tal administrador das mesmas, sendo suficiente a comunicação feita a um dos administradores para obstar à resolução do contrato de arrendamento ; - não importar a fusão a extinção da sociedade arrendatária, nem a dos contratos de arrendamento, como resulta do facto de a contestante ter continuado a pagar as rendas e de os AA terem continuado a recebê-las, o que significa o reconhecimento pelos senhorios da beneficiária da cedência. Requereu a condenação dos AA como litigantes de má fé.

Houve réplica em que se nega a procuração arguida na contestação, e, por consequência, a comunicação da transmissão do arrendamento.

Saneado e condensado o processo, veio a ser proferida, em 16/9/2005, sentença que julgou a acção improcedente e não provada e, por consequência, absolveu a Ré do pedido.

Por acórdão de 18/5/2006, a Relação julgou improcedente o recurso de apelação que os vencidos interpuseram dessa sentença, que confirmou.

É dessa decisão que vem, agora, pedida revista.

Em remate da alegação respectiva, os recorrentes deduzem as conclusões que seguem :

1ª - A incorporação retratada nos autos tinha de ser previamente comunicada a ambos os recorrentes - ou aos seus antecessores, enquanto a recorrida não conhecia as transmissões dos direitos sobre o prédio.

2ª - Isto porque a incorporação foi efectuada apenas para obter a transferência dos arrendamentos dos autos para a incorporante, o que implicava a anuência dos recorrentes, ou o trespasse das instalações, o que conferiria aos recorrentes o direito de preferência.

3ª - A conduta da recorrida, ao recorrer - artificialmente - à figura da fusão/ incorporação para evitar que os senhorios exercessem os seus direitos, como normalmente fariam, constitui abuso de direito, tornando a fusão inoponível aos mesmos, questão esta de conhecimento oficioso - art.334º C.Civ.

4ª - De resto, sendo os senhorios credores da arrendatária, a fusão/incorporação teria de ser-lhes previamente comunicada, para que aqueles pudessem deduzir oposição - art.107º, nºs 2º e 3º, CSC.

5ª - Também o trespasse subjacente à fusão teria de ser-lhes previamente comunicado, nos termos do art.116º, nº1º, RAU, para eventual exercício do direito de preferência.

6ª - Essa comunicação teria de ser feita a ambos os comproprietários senhorios, conforme arts. 1403º, nº2º, e 1405º, nº1º, C.Civ.

7ª - Depois, não tendo sido dado conhecimento posterior da fusão a um dos senhorios e tendo-se extinto a primitiva arrendatária, sempre os arrendamentos dos autos teriam caducado - art.1051º, al.d), C.Civ.

8ª - A prestação feita a terceiros não extingue a obrigação - art.770º C.Civ.

9ª - O uso dos locados pela recorrida sem comunicação prévia ou posterior da transmissão a ambos os senhorios é ilícito e inoponível ao senhorio não notificado, dando lugar à resolução do contrato - art.64º, nº1º, al.f), RAU.

10ª - A escrita do comerciante retrata, ou deverá retratar, fielmente as sua transacções - arts.29º e 44º C.Com.

11ª - O uso - confessado - dos locados pela incorporante com um ano de antecedênia em relação à fusão é fundamento também de resolução do arrendamento - art.64º, nº1º, al.f), RAU.

12ª - O acórdão recorrido violou os arts.334º, 770º, 1038º, al.g), 1051º, al.d), 1403º, nº2º, e 1405º, nº1º, C.Civ., 29º e 44º, nº1º, C.Com., 107º, nº3º, CSC, e 64º, nº1º, al.f), e 116º, nº1º, RAU.

Houve contra-alegação, tendo os recorrentes vindo, ainda, juntar parecer emitido pelo Prof. Dr. António Menezes Cordeiro.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Convenientemente ordenada (1), a matéria de facto fixada pelas instâncias é como segue ( indicam-se entre parênteses as correspondentes alíneas e quesitos ) :

( a ) - Por escritura pública de 21/4/33, CC, representado pelo seu procurador DD, ajustou com a sociedade Empresa-C, o arrendamento da loja com os nºs 206 a 210 do prédio sito na Av. da Liberdade, pelo prazo de 6 meses, com início em 1/5/33, para venda de automóveis e acessórios dos mesmos, mediante a contrapartida mensal de 1.150$00 ( doc. a fls.16 a 24 ) ( C ).

( b ) - Por escrituras públicas de 21/2/35, o predito CC, representado pelo mesmo procurador ajustou com a sociedade mencionada o arrendamento da primeira cave direita e esquerda e da segunda cave direita e esquerda do prédio referido, com entrada pela Rua Rodrigues Sampaio, nº ...., pelo prazo de 6 meses, com início em 1/4/35, para armazém de mercadorias diversas, mediante a contrapartida mensal de, respectivamente 260$00, 3.000$00, 250$00 e 3.000$00 (docs. a fls.25 a 29, 30 a 37, 38 a 43, e 44 a 50) ( D, E, F, e G ).

( c ) - Por escritura pública de 14/12/42, o falado CC, ainda representado pelo mesmo procurador, ajustou com a sociedade referida o arrendamento da loja com os nºs 214 a 218 do prédio sito na Av. da Liberdade e de caves hoje inexistentes, sempre para o comércio automóvel, mediante a contrapartida mensal de 1.360$00 ( doc. a fls.51 a 56 ) ( H ).

( d ) - A renda mensal total correspondente aos locados referidos é hoje de € 2.703,91 ( I ).

( e ) - Essas lojas e caves têm actualmente um valor locativo mensal de cerca de € 8.000 ( 11º).

( f ) - A propriedade do prédio urbano sito na Av. da Liberdade, nºs .... a ...., em Lisboa, inscrito na matriz predial urbana da freguesia do Coração de Jesus sob o artigo 374 e descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa na ficha 601/20031212 daquela freguesia, descrição essa que compreende também o prédio urbano da Rua Rodrigues Sampaio, nºs .... a ....., está inscrita a favor da A. e de EE, na proporção de1/2 para cada uma ( doc. a fls.9 a 12 ) ( A ).

( g ) - Esta última faleceu em 19/1/2003 no estado de viúva, deixando como único herdeiro o A., seu filho ( doc. a fls.13 a 15 ) ( B ).

( h ) - A sociedade A. foi constituída por escritura pública de 11/6/2003, tendo BB realizado parte da sua entrada mediante a transferência da quota ideal de 50% do prédio em referência ( P ).

( i ) - Em 2/12/2003 foi celebrada uma escritura pública nos termos da qual a Empresa-D, foi incorporada, tal como a sociedade Auto ..., por fusão, na Empresa-B, ora Ré ( doc. a fls.59 a 68 ) ( L ).

( j ) - Nos termos dessa escritura, os intervenientes concretizaram a fusão " mediante a transferência global do património das sociedades incorporadas Empresa-D, e Auto ....., para a sociedade incorporante Empresa-B, com a consequente extinção daquelas ( M ).

( l ) - Mais se diz nessa escritura que " do ponto de vista contabilístico, as operações das sociedades incorporadas serão consideradas como efectuadas por conta da sociedade incorporante a partir de 1/1/2003 " ( N ).

( n ) - E que " os trabalhadores da sociedade incorporada Empresa-D, transitam para a sociedade incorporante " ( O ).

( o ) - As transacções realizadas nos locados durante todo o ano de 2003 foram escrituradas como pertencendo à Ré ( S ).

( p ) - Na data da incorporação, por fusão, da Empresa-D, na Ré, esta desconhecia a transferência para a sociedade A. da quota ideal de 50% do prédio em referência pertencente a BB, referida em ( h ), supra ( Q ).

( q ) - O A. e o predito BB residiam alternadamente no Brasil e em Portugal ( 6º).

( r ) - Cada um deles tinha, até à data da morte deste último, colaboradores próprios ( 7º).

( s ) - Nos últimos anos todas as questões relacionadas com os arrendamentos das fracções referidas ( em ( a ) a ( c ), supra ), foram tratadas com o A., sendo ele que recebia os cheques para pagamento das rendas, emitidos em seu nome, e que assinava os recibos de quitação respectivos, de que constava como número de contribuinte do beneficiário o do anterior comproprietário, BB ( 1º, 2º, 3º, 4º, e 5º).

( t ) - A Empresa-D, enviou ao A. as cartas datadas de 5/12/2003 a fls. 57 e 58 dos autos, comunicando-lhe ter sido outorgada em 2/12/2003 uma escritura pública de fusão pela qual aquela sociedade foi incorporada na Ré Empresa-B, pelo que os recibos e correspondência deveriam ser enviados a essa sociedade ( J ).

( u ) - Quando a Empresa-D, enviou essas cartas ao A., desconhecia que este se tinha tornado contitular do prédio em referência, por tal nunca lhe ter sido comunicado ( 8º e 9º).

( v ) - BB enviou à Empresa-D, uma carta datada de 10/5/2004 em que lhe comunicava que a quota ideal de 50% que detinha do prédio sito na Av. da Liberdade, nºs ... a ...., tinha sido transferida para a A. como entrada em espécie para o capital social desta, solicitando que as rendas fossem pagas a essa sociedade partir do mês de Junho de 2004 ( R ).

Ora, esta, e apenas esta, a matéria de facto a ter em conta :

Transcrevendo o disposto no art.97º, nºs 1º e 4º, CSC, reconheceu-se na sentença apelada que a fusão determina a dissolução, quando constituída uma nova sociedade, nos termos da al.b) daquele nº4º, de todas, ou, no caso previsto na sua al.a), de fusão por incorporação, de alguma ou algumas das sociedades reunidas por esse meio. Esclareceu-se então, porém, que a extinção das sociedades incorporadas referida no art.112º, al.a), CSC não constitui - acrescente-se agora que dum ponto de vista substancial, que não apenas formal - uma verdadeira extinção, mas sim, e apenas, uma transformação dessas sociedades. Deste jeito, não se verificaria a invocada caducidade dos contratos de arrendamento em questão - com o que há que concordar (2) .

Destarte manifestado também não ser necessária autorização do senhorio para a transmissão do arrendamento em virtude de fusão (3), era desnecessária a ora referida " anuência dos recorrentes ", e, por conseguinte, inexigível a comunicação prévia de que é ora - ex novo - aventada a omissão, com referência ao art.107º, nºs 2º e 3º, CSC. Na realidade :

É exacto que o abuso de direito é de conhecimento oficioso. Não assim, porém, quanto aos factos que tal possam eventualmente integrar.

Da falta de comunicação prévia que, segundo se pretende, integraria a previsão do art.334º C. Civ. nada, afinal, até agora explicitamente se disse : a omissão dessa comunicação ( prévia ) é, insofismavelmente, questão que só neste recurso se veio somar aos autos.

Não pode ser. Sabe-se, com efeito, não mais visarem os recursos que uma revisio priori instantiae, isto é, que o reexame das questões decididas na instância recorrida - a não ser que efectivamente se trate de questão de conhecimento oficioso. Essa, como decorre do art.676º, nº1º, CPC, a natureza e função dos recursos, está, sob pena de preterição de jurisdição, vedado aos tribunais superiores a apreciação de questões antes não suscitadas, debatidas, e apreciadas - como é o caso da antes não alegada falta ou omissão de comunicação prévia da fusão, integrante, na tese dos recorrentes, de abuso de direito.

Não se mostra, bem assim, oportunamente articulado, sequer, qualquer concreto crédito dos recorrentes anterior à publicação referida no nº2º do art.107º CSC, afigurando-se irrelevante para esse efeito o abstracta ou genericamente decorrente dos contratos de arrendamento, conforme arts. 1022º, 1023º e 1038º, al.a), C.Civ. E, como logo do seu início se vê, nem também o nº3º do art. 107º CSC pode desligar-se do ( nº2º ) que imediatamente o precede (4) .

Nada na matéria de facto provada permite concluir que se esteja perante negócio simulado, isto é, na realidade, perante trespasse que a fusão tenha tido em vista dissimular ou esconder.

Não se mostra preenchido nos factos provados nenhum dos elementos que, consoante art.240º, nº1º, C.Civ., definem a simulação ; e nada igualmente se acha na matéria de facto apurada que, excedendo a mera suposição ou suspeita, decisivamente demonstre a alegada artificialidade do recurso à figura da fusão por incorporação e que possa de algum modo conduzir a julgar preenchida a previsão do art.334º C.Civ.

Não sendo por via jurisprudencial que se podem efectivamente remediar as consabidas deficiências da nossa lei do arrendamento urbano, bem não se vê, ainda, que, com fundamento na boa fé e no abuso de direito, se possa equiparar a fusão ao trespasse.

Mormente assim, no quadro dessa lei, se só porque o arrendamento é muito antigo - os primeiros têm mais de 70 anos e o último mais de 60 - e a renda cerca de 1/3 da que poderia ser obtida em novo arrendamento, consoante ( d ) e ( e ), supra.

Invocada a previsão da al.f) do nº1º do art.64º RAU, julgou-se na 1ª instância não ser em tal caso de exigir a comunicação prevista na al.g) do art.1038º C.Civ.(5).

Então considerado ser do interesse do senhorio conhecer o negócio que operou a transmissão do arrendamento por forma a permitir-lhe ajuizar da sua legalidade e conhecer a identidade do novo inquilino, foi contrário o entendimento do acórdão recorrido (6).

Concordaram, em todo o caso, as instâncias dever julgar-se válida e eficazmente efectuada essa comunicação, em vista não apenas do constante de ( s ) e ( t ), supra, como ainda - não obstante o referido em ( u ) - do resultante de ( f ) e ( g ), e do disposto no art.985º, nº1º, para que remete o art.1407º, nº1º, C.Civ. (7). Ora :

Admite-se decorrer dos arts.1403º, nº2º, e 1405º, nº1º, C.Civ. dever a comunicação da fusão ter sido feita a ambos os comproprietários. No entanto :

Avulta de ( s ), supra, não se estar perante mero recebimento de rendas por familiar (8): acrescia actuação que ultrapassava, de manifesto modo, o âmbito dos simples actos materiais. É, com efeito, inegável constituir acto jurídico a assinatura dos recibos de quitação respectivos - de que constava como número de contribuinte do beneficiário o do anterior comproprietário, BB.

Assim indubitavelmente manifestados poderes de administração e de representação daquele comproprietário ( cfr. arts.258º e 1178º C.Civ.), era, afinal, com o A. que nos últimos anos eram tratadas todas as questões relacionadas com os arrendamentos.

Existia, pelo menos, uma situação de procuração aparente em relação ao outro comproprietário em relação à qual, como notado no parecer mencionado ( respectiva pág.25 - III, a fls.376 dos autos ), pode, até, ser trazida à colação a boa fé, directamente ou através dos seus princípios mediantes, da tutela da confiança e da materialidade subjacente.

De relevar, por outro lado, de ( f ) e ( g ), ser o A. igualmente comproprietário do prédio em causa, não é, a todas as luzes, o desconhecimento desse facto por parte da inquilina que, em termos objectivos, prejudica ou descaracteriza, seja no que for, a comunicação efectuada. Isto posto :

O conjunto dos factos atrás mencionados conduz, precisamente, a que se considere esta questão da comunicação da fusão à luz do princípio - geral ( cfr. também art.266º, nº2º da Constituição ) - estabelecido no art.762º, nº2º, C.Civ.

Longe, nesse quadro de facto, de jurisprudência do sentimento ( Gefuhlsjurisprudenz ) ou do "mero decisionismo imponderado" referido na pág.18-I do parecer referido ( fls.370 dos autos ), bem não parece permitir, em concreto, a boa fé - princípio de que já se disse percorrer e iluminar todo o sistema jurídico, mas especificamente consagrado na disposição legal imediatamente acima citada - outra solução a este respeito que não a, concordante, alcançada pelas instâncias, longe do facilitismo verberado pelos recorrentes, antes, a nosso ver, bem inspirada face aos outrossim cogentes princípios mediantes da confiança e da materialidade subjacente.

Dada, pelo menos, a aparência criada, de abuso de direito, - de clamorosa ofensa da boa fé ou dos bons costumes, ou de acentuado desvio do fim económico ou social do direito -, se poderia, isso sim, porventura falar em relação não apenas ao A., mas também à sociedade A., enquanto sucessora ( inter vivos ) do outro comproprietário.

Destarte percorrido, bem que com as naturais limitações de engenho e arte, o " círculo sistema/ problema " a que alude o parecer referido ( respectiva pág.29, a fls.380 dos autos ) :

Nem tal contrariando os arts.29º e 44º C.Com., não é também, a todas as luzes, do facto de, consoante ( l ), supra, na escritura de fusão de 2/12/2003 ter, em obediência ao disposto no art.98º, nº 1º, al.i), CSC, ficado consignado que do ponto de vista contabilístico, as operações das sociedades incorporadas deveriam ser consideradas como efectuadas por conta da sociedade incorporante a partir de 1/1/2003 (9), que pode legitimamente concluir-se que durante 11 meses e 2 dias a ora recorrida utilizou efectivamente os locais arrendados como se já fosse arrendatária dos mesmos.

Expressamente limitada essa estipulação, nos termos da lei, ao plano da contabilidade, não passa, por fim, de distorção transparente - isso sim, " pecado evidente " - a proposição, disfarçada de interrogação, adiantada na alegação dos recorrentes, com referência aos arts.371º, nº1º, e 376º, nº1º, C.Civ. e 44º C.Com., de que a incorporante declarou em documento autêntico que as transacções realizadas nos locais arrendados durante o ano de 2003 " eram já suas ", dando desinspiradamente por confessado por esse modo que a recorrida usou esses locais durante todo o ano anterior à incorporação. Prestada a devida atenção ao inciso " do ponto de vista contabilístico ", caberá eventualmente recordar o princípio da indivisibilidade da confissão estabelecido no art.360º C.Civ.

Recordado, enfim, o prescrito no art.98º, nº1º, al.i), CSC, crê-se insofismável que a contabilidade não transmite o uso ou gozo seja do que for. Regista-se a este respeito o esclarecido por Gonçalves da Silva e Esteves Pereira, " Contabilidade das Sociedades " ( 2002 ), 460 (10), a saber :

Numa perspectiva prática, a al.i) do nº 1º do art.98º CSC releva apenas para a distribuição dos resultados obtidos pelas sociedades a incorporar ou a fundir ao longo do processo de fusão. Até à data em que esta, com o registo, se torna eficaz, as sociedades continuam em actividade, " devendo ser-lhes imputadas juridicamente todas as operações que realizarem " ( destaque nosso ).

Com efeito, como explicado por Raúl Ventura, " Fusão, Cisão e Transformação de Sociedades " ( 1990 ), 283, na prática, as operações da fusão efectuam-se com base numa situação contabilística fixada numa data anterior à consumação da mesma. É por isso que o levado a efeito pela sociedade absorvida a partir dessa data é dado como efectuado por conta da sociedade absorvente. Esta, assim dita, claúsula de retroacção tem por objectivo dar a conhecer a data interna da realização da fusão : mas é jurídica e praticamente diferente da data da eficácia da fusão.

Em suma: a data a que se refere a al.i) do nº 1º do art.98º CSC não é a data em que a fusão produz efeitos. Não determina qualquer transmissão ( idem, 286 ). A própria referência expressa ao plano contabilístico exclui claramente o plano jurídico : as sociedades incorporadas permanecem em actividade " e as operações a que procedem continuam a ser-lhes juridicamente imputadas "( ibidem, 287 ).

Decorre de quanto vem de expor-se a decisão que segue :

Nega-se a revista.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2006
Oliveira Barros - Relator
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
-----------------------------------------
(1) V., a propósito, Antunes Varela, RLJ, 129º/51.
(2) Já assim se tendo julgado em Ac.STJ de 18/1/83, BMJ 323/382, onde se nota ocorrer dissolução, mas não liquidação e partilha das sociedades incorporadas. Na sentença referida seguiu-se a este propósito a lição do Prof. Pessoa Jorge, na revista " O Direito ", 122º/468, reproduzida em ARC de 24/6/97, CJ, XXII, 3º, 38, que se reporta, mais, a ARP de 24/10/83, CJ, VIII, 4º, 295, onde se pode ler o mesmo. Acresce neste último a nota de que G. Ferri, " La Fusione delle Societa Comerciale ", 48, caracteriza substancialmente a fusão como " transformação do vínculo social ". Como observado em contra-alegação, um dos propósitos desse contrato é o de prosseguirem na sociedade incorporante as situações activas e passivas das sociedades incorporadas. É certo que, como ora alegado pelos recorrentes, com o registo da fusão ( cfr. corpo do art.112º CSC ), a sociedade incorporada desaparece como entidade autónoma, extinguindo-se, mesmo, segundo entendimento tradicional, a sua personalidade jurídica - v., a propósito, Henrique Mesquita, RLJ, 154 e 160, citando Raúl Ventura. Veja-se, no entanto, o notado por Abílio Neto, " CSC Anotado ", 2ª ed. (2003), 344, nota 8. Pupo Correia ( " Direito Comercial ", 6ªed. (1999), 572 ), citando Pinto Coelho, refere que as sociedades incorporadas não findam verdadeiramente, tão só continuando a sua existência em condições diversas. Menezes Cordeiro, no seu " Manual de Direito das Sociedades", I (2004), 783-III, adianta não haver extinção propriamente dita, até porque não há liquidação - v.também 787-788 ( nº280.-I ), com apoio em José Tavares e Pinto Coeho, e 789-IV. O caso vem, em último termo, a ser de sucessão ex lege nos direitos e obrigações das sociedades absorvidas, conforme art.112º, al. a), parte final, CSC - o que, inclusivamente, dispensa o incidente da habilitação, como julgado em ARP de 2/12/82, CJ, VII, 5º, 223. Como por último salientado no Acórdão Uniformizador deste Tribunal nº 5/2004, publicado no DR , I Série-A, nº144, de 21/6/2004 ( v. pág. 3794), referido no acórdão ora em recurso, tendo a fusão em vista assegurar continuidade económica é tal que a construção jurídica, enquanto construção ao serviço de interesses, e, assim, de natureza instrumental, terá que ter em atenção.

(3) Como outrossim esclarecido pelo Prof. Henrique Mesquita, RLJ,128º/58.
(4) Como aparentementemente se terá feito na pp.12-III e 37-III do parecer referido, a fls.364 e 388 dos autos. V., sobre esses preceitos, Raúl Ventura, " Fusão, Cisão e Transformação de Sociedades " ( 1990 ), 168 ss. Visado garantir os credores contra eventual situação de insolvência, crê-se só serem de atender para este efeito créditos já na realidade
existentes.

(5) Como, com o Prof. Pessoa Jorge, se julgou no já mencionado ARC de 24/6/97, CJ, XXII, 3º, 38 e RLJ, 131º/147.

(6) A que, neste particular, se adere. Tem por si o entendimento do Prof. Henrique Mesquita, na revista decana ( loc.cit. na nota anterior ), de ARL de 1/7/ 2003, CJ, XXVIII, 4º, 73 e de ARG de 8/1/2003, CJ, XXVIII, 1º, 277 ( este com voto de vencido de que não parece ser de acompanhar o fundamento da equiparação da fusão a simples alteração da denominação social ). É neste último sentido, da necessidade da comunicação, que se pronunciam Aragão Seia, "Arrendamento Urbano", 7ª ed. (2003), 681, e, como notado no acórdão em recurso, Pais de Sousa, " Anotações ao Arrendamento Urbano", 6ª ed., 212 e Ac.STJ de 20/10/92, BMJ 420/254. Como salientado no parecer ora junto, não é indiferente ao senhorio ter por arrendatária uma pequena empresa de bairro, tipo sociedade em nome colectivo, que se extinguirá com o falecimento dos sócios ou uma média ou grande empresa, de duração ilimitada.

(7) A 1ª instância convoca a propósito - mutatis mutandis, visto que relativo a trespasse - ARL de 4/12/84, CJ, IX, 5º, 164.

(8) Ao que diz a fls.276, 3º par., o A. é sobrinho do predito Joaquim Nunes da Fonseca Silva, que também a fls.326, 1º par., refere como tio.
(9) O que, conforme ( o ), supra, foi observado na competente escrita.

(10) Apud Abílio Neto, " CSC Anotado ", 2ª ed. ( 2003 ), 346, nota 3.