Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3634/15.5T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
ATOS DOS REPRESENTANTES LEGAIS OU AUXILIARES
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CUMULAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS REFLEXOS
NEXO DE CAUSALIDADE
DANOS PATRIMONIAIS
LUCRO CESSANTE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
Data do Acordão: 12/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Num caso de responsabilidade médica  em que foi celebrado um contrato total, “a clínica responde por todos os danos ocorridos, sejam eles de carácter médico, assistencial, de equipamento ou de hotelaria; e responde, nos termos do art. 800.º do CCivil, pelos atos dos seus auxiliares, sejam estes médicos, enfermeiros ou auxiliares administrativos ou de limpeza, os quais, por sua vez, nenhuma relação contratual mantêm com o paciente”, o que conduz a afirmar  que a “1.ª Ré é responsável, originariamente perante a paciente e agora perante o Autor, nos termos do n.º 1 do art. 800.º do CCivil, pelos atos dos 2.º a 4.º Réus na execução das prestações médicas convencionadas, como se tais atos fossem praticados por aquela devedora”.
II Para o efeito de imputar a responsabilidade à 1ª R  -Clínica - pelos actos dos seus auxiliares o tribunal teve o cuidado de indicar “que tal responsabilidade “indireta” deve necessariamente ser aferida em função dos ditames que aos médicos Réus cumpria observar na realização da prestação médica à paciente ao serviço da 1.ª Ré”, indicando que os actos por que responde terão que ter sido praticados pelos auxiliares no cumprimento da obrigação assumida pela 1ªR; que tenha existido incumprimento da obrigação assumida; que exista culpa dos representantes legais ou auxiliares pelo inadimplemento da obrigação.
III. Dividindo-se a doutrina entre os partidários da cumulação de regimes e os partidários da não cumulação (ou consunção), e encontrando-se na jurisprudência uma tendência equivalente, não podendo o juiz deixar de decidir o caso concreto submetido a julgamento, a opção do tribunal recorrido - no caso concreto- foi a de afirmar a possibilidade de cumulação de regimes, mas sem que tenha havido necessidade de abordar as consequências de tal posição, por não se inserir no objecto do recurso e não poder o tribunal conhecer oficiosamente da questão.
IV. Questionando-se se o A., enquanto terceiro relativamente à lesada, sua mãe, tem direito a indemnização por danos próprios, morais e patrimoniais, com fundamento em responsabilidade contratual, deve responder-se afirmativamente, na situação dos autos.
V. Numa situação de responsabilidade médica em que se tenha apurado em termos factivos e normativos o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e a morte da mãe do Autor, fica prejudicada a necessidade de recorrer ao instituto jurídico da “perda de chance”, para alcançar a determinação do quantum indemnizatório devido.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório

1. AA, por si e em representação dos seus filhos menores BB e CC, todos melhor identificados nos autos, intentou acção declarativa de condenação em processo comum contra Cliria – Hospital Privado de Aveiro, S.A, Dr. DD, Dr. EE e Dr. FF, alegando em resumo que:

GG, esposa do autor e mãe dos menores por este representados, faleceu no dia … de Fevereiro de 2014.

Fora observada em consulta pelo 2º Réu, consulta motivada por uma situação de obesidade, e informada por este da possibilidade de realização de cirurgia bariátrica.

A cirurgia foi programada para o dia … de Fevereiro de 2014, iniciou-se às 12h30 e ficou concluída pelas 14h35 horas, tendo decorrido sem qualquer incidente.

O período pós-operatório decorreu nos dias … a … de Fevereiro.

Pelas 10 horas do dia … de Fevereiro, começou a referir que não se estava a sentir bem e pediu ajuda à auxiliar.

Apesar da assistência prestada logo de seguida, acabou por falecer, sendo o óbito verificado pelas 12h45m.

A morte de GG deveu-se a trombo embolismo pulmonar, conforme refere a certidão de óbito.

Os 2º 3º e 4º Réus não tomaram as medidas adequadas a evitar a embolia pulmonar que veio a ocorrer, nomeadamente a administração do fármaco heparina de baixo peso molecular ou a prescrição de meias de compressão elástica ou de compressão pneumática intermitente, como se exigia.

A relação que se estabeleceu entra a GG e os Réus teve a natureza contratual, assumindo os Réus a obrigação de prestar cuidados médicos.

Porém, o acto médico foi mal realizado e em desacordo com as legis artis, o que causou a morte da falecida GG.

São, assim, responsáveis pelos danos sofridos - perda do direito à vida, danos não patrimoniais sofridos pela GG, danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos Autores.

Os factos descritos, e que motivaram o pedido de indemnização formulado, tiveram lugar na Cliria, local onde os 2º, 3º e 4º Réus exercem as suas funções.

A Cliria é, assim, responsável pelo risco resultante da actividade dos comissários, os aqui 2º, 3º e 4º Réus.

Conclui pedindo a condenação solidária dos Réus no pagamento aos autores de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais no montante global de 353.420,47 €, bem como os juros desde a citação até efectivo e integral pagamento

2. Citados os réus DD. EE e FF, os mesmos contestaram, alegando em resumo:

O Réu Dr. DD, à data da ocorrência dos factos, desempenhava as funções de ... da Cliria, sendo esta responsável pela actuação dos profissionais médicos que coloca ao dispor dos seus pacientes na prestação dos seus serviços, pelo que é parte ilegítima.

A paciente foi submetida à cirurgia com um estudo pré-operatório dentro da absoluta normalidade.

A cirurgia era de baixo risco, tendo-se iniciado pelas 12h15m e terminado às 13h20. O recobro e pós-operatório decorreram com toda a normalidade.

Foi decidida a não utilização de profilaxia antitrombólica de acordo com as indicações terapêuticas, uma vez que a paciente em causa apresentava baixo risco.

O uso de heparina tem contra-indicações como seja o sangramento no pós-operatório.

Não é, assim, devida qualquer indemnização dos RR aos AA, porquanto os danos invocados não sucederam por força de nenhum tipo de culpa que lhes possa ser imputável, nem sequer a título de mera negligência.

Quando o 2º Réu emitiu a certidão de óbito não se encontrava pleno da sua capacidade psicológica, devido à recente morte do seu irmão.

Foi pressionado pelo aqui A. AA para emitir a certidão de óbito com causa conhecida, não tendo capacidade para resistir à pressão e emitindo certidão de óbito com causa da morte de grande probabilidade, mas sem a certeza absoluta que era esta, efectivamente, a causa que justificaria tal óbito repentino.

A falecida poderia também ter sofrido um enfarte agudo do miocárdio.

A responsabilidade civil extracontratual e/ou a responsabilidade civil contratual que ao abrigo da lei civil seja imputável aos RR através do pagamento aos AA das indemnizações que legalmente lhe sejam exigíveis encontra-se transferida para a seguradora AXA.

Concluem pedindo a improcedência da acção.

Mais pedem que seja admitida a intervenção provocada da Sociedade Axa Portugal, Companhia de seguros SA.

3. A Cliria – Hospital Privado de Aveiro SA veio também contestar a acção alegando em resumo que:

- Não foi apurada a causa objectiva de morte da paciente, porque o Autor recusou a realização de autópsia subsequente ao registo de óbito.

A Ré disponibilizou todos os meios técnicos, materiais e humanos para a realização da cirurgia e acompanhamento pós-operatório, em termos adequados às boas práticas, bem como à realização da autópsia logo após a morte da paciente.

Os Réus médicos atuaram segundo o seu prudente critério, conhecimentos técnicos e experiência.

A atuação clínica rege-se por total autonomia técnica e independência face à Ré, quer em termos deontológicos, quer em termos de vínculo contratual com a Ré, não existindo qualquer vínculo laboral entre os Réus e a Ré.

O infeliz incidente verificado está compreendido na álea de risco de uma cirurgia

bariátrica que a paciente em causa quis realizar, tendo sido previamente informada dos riscos da mesma e assinado o correspondente consentimento informado.

Entre a Ré e a Tranquilidade Companhia de Seguros SA foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, pelo que esta deve ser admitida a intervir na acção como parte principal.

Conclui pedindo a improcedência da acção e, subsidiariamente, a redução do montante indemnizatório peticionado.

Qualquer condenação da Ré no pagamento de indemnização deverá considerar que a responsabilidade do seu efectivo pagamento foi transferida para a seguradora Companhia de Seguros Tranquilidade.

4. Os AA vieram responder à excepção de ilegitimidade, pugnando pela sua

improcedência.

5. Admitidas a intervir na acção, vieram as chamadas oferecer contestação.

A - No que se refere à Chamada Axa Portugal – Companhia de Seguros SA:

Do alegado não resulta descrita e muito menos alegada, qual seja a responsabilidade do médico anestesiologista.

A falecida esposa e mãe dos Autores não celebrou com um qualquer dos médicos um qualquer contrato, o qual, ao que se crê, foi apenas celebrado com a Cliria.

Assim, a responsabilidade dos demais Réus apenas pode ser extra-contratual.

A interveniente AXA apenas responderá civilmente na medida da culpa dos médicos seus segurados.

Impugna, por desconhecimento, a matéria alegada na p.i e faz suas as contestações dos demais Réus.

Conclui pedindo a improcedência da acção.

B – No que se refere à Companhia de Seguros Tranquilidade, SA:

O segundo, terceiro e quarto Réus não pertencem, nem pertenciam, à data dos factos, ao corpo clínico que compõe o quadro próprio e efectivo da Cliria, pelo que jamais os prejuízos invocados, alegadamente decorrentes da atuação daqueles réus, se encontrariam cobertos pelo supra aludido contrato de seguro.

Desconhece a matéria alegada na petição inicial.

Dá por integralmente reproduzido tudo quanto vem alegado pela primeira ré nos items 5 a 12, 21 a 23, 25 a 47 e 49 a 125 da sua contestação.

A primeira ré limitou-se a disponibilizar as suas instalações e materiais necessários à realização da aludida intervenção cirúrgica, não tendo dirigido aos segundo, terceiro e quarto réus quaisquer ordens ou orientações a respeito dessa intervenção e do tratamento subsequente da autora, tendo este agido com total liberdade, independência e autonomia técnico-científica.

A morte impede a possibilidade de aquisição de direitos, pelo que não se mostram reunidos os pressupostos de que depende a atribuição da indemnização reclamada em 124 do petitório.

O reconhecimento do direito indemnizatório dos AA exigiria a efectiva prestação de alimentos por parte da falecida GG.

Ora, face à factualidade alegada pelos autores, não é possível concluir que estes careçam de alimentos.

As quantias peticionadas são francamente exageradas.

Em consequência da morte da indicada GG, os autores estão a receber uma pensão de sobrevivência que lhes vem sendo paga pela Caixa Geral de Aposentações, não podendo estes cumular tal pensão com a indemnização peticionada.

O Autor marido recebeu já, certamente, da Caixa Geral de Aposentações o devido subsídio de funeral.

Impugna o teor, letra e assinatura dos documentos que não sejam autênticos, juntos pelos autores.

Conclui pedindo a improcedência da acção.

6. Por requerimento de … de maio de 2016 vieram os AA reduzir o valor do pedido em 1257,66 €, no que se refere ao subsídio de funeral e descriminar as pensões mensais atribuídas pelo Instituto de Segurança Social, completado por informação prestada a … de agosto de 2020.

7. Dispensou-se a realização de audiência prévia, sendo elaborado despacho saneador, onde se determinou a improcedência da excepção de ilegitimidade.

8. Em audiência de julgamento, realizada a … de Abril de 2019, foi celebrada transacção, homologada por sentença.

Não tendo o ilustre mandatário dos AA poderes especiais, no que se refere ao Autor CC que, entretanto, atingira a maioridade, foi este notificado para ratificar a transação, vindo informar que não a ratificava.

Face a essa não ratificação, prosseguiram os autos unicamente entre o autor CC e as rés com vista a apurar, caso o pedido venha a ser julgado total ou parcialmente procedente a quota-parte que caberá ao referido demandante no valor indemnizatório que foi peticionado a título global.

9. Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, cumprindo-se todos os trâmites legais.

10. Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“A - Julgo parcialmente procedente por provada a acção e, em função disso, condeno a Ré Cliria – Hospital Privado de Aveiro S.A a pagar ao Autor CC:

- A quantia de 23.333,33 € (vinte e três mil trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos), pelo dano de privação do direito à vida da vítima, 27.000,00 € (vinte sete mil euros) por danos morais próprios do autor e a quantia de 21.236,64 € (vinte e um mil duzentos e trinta e seis euros e sessenta e quatro cêntimos), por danos patrimoniais (lucros cessantes).

Quantias acrescidas dos juros legais contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

B – Improcede o pedido no que se refere aos restantes réus.”

11. Foi interposto recurso de apelação pela ora recorrente, que veio a culminar na prolação do Ac. recorrido, com o seguinte dispostivo:

“Pelos fundamentos expostos, julgamos improcedente o recurso e, em consequência, decidimos:

a) Manter a decisão da 1.ª instância, embora com fundamentação de direito parcialmente diversa; e

b) Condenar a Ré/Recorrente nas custas do recurso.”

12. Não se conformando com o acórdão, o HOSPITAL DA LUZ AVEIRO, SA, veio interpor Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do ... de fls. (…) nos termos conjugados do disposto nos artigos 671.º, n.º 1, 672.º, nº 1, a) e c), 674.º, n.º 1 e 2, 638.º, n.º 1, 644.º n.º 1, a), 645.º, n.º 1 a), 647.º, n.º 1, aplicáveis ex vi artigo 679.º, todos do Código de Processo Civil.

Aí indica que a manutenção da condenação já proferida pela 1ª instância e que foi sufragada pelo TRP não obsta a esta interposição de recurso de revista por as duas decisões terem fundamentação que é essencialmente diversa, não obstante não ocorrer nenhum voto de vencido, o que implicaria não ocorrer dupla conformidade impeditiva do recurso de revista, nos termos do art.º 671.º, n.º 1 do CPC.

A fundamentação essencialmente diversa residiria no facto de a recorrente ser condenada não apenas a título de responsabilidade por actos dos 2.º a 4.º Réus nos termos do disposto no artigo 800.º do CC, mas também com base no regime da responsabilidade extracontratual, enquanto estabelecimento privado de saúde.

Prevenindo a hipótese de se entender que ocorre dupla conformidade decisória, pede que a revista seja admitida pela via excepcional, com base nos art.ºs 672.º, nº 1, a) e c) do CPC, porque:

i) A questão da responsabilidade civil profissional dos médicos e das instituições privadas de saúde está na ordem do dia;

ii) A aplicação do conceito de perda de chance na jurisprudência nacional a propósito da responsabilidade civil profissional dos médicos e instituições de saúde é muito recente

No recurso pretende igualmente que se analise o modo como o tribunal da relação deu cumprimento ao art.º 662.º do CPC, na apelação, com a impugnação da matéria de facto, onde, supostamente, terá ocorrido uma omissão de pronúncia pelo tribunal a quo.

13. Nas conclusões do recurso diz (transcrição):

a) Diversamente do entendimento propugnado pelo Tribunal de primeira instância, o acórdão do Tribunal da Relação do ... entende, em face da factualidade assente nos autos, que: “a conduta omissiva ilícita e culposa causadora da morte da mãe do Autor constitui fonte de responsabilidade contratual para a 1.ª Ré, na medida em que esta não cumpriu nos termos devidos a prestação médica a que se vinculou, e simultaneamente fonte de responsabilidade extracontratual por factos ilícitos para todos os Réus, incluindo a 1.ª Ré, porquanto foi violado um direito absoluto de outrem”;

b) Ou seja, no entendimento do Tribunal da Relação do ... a responsabilidade civil imputada à ora Recorrente tem natureza contratual;

c) Sem que neste particular se perceba se por aplicação do disposto no artigo 800.º do Código Civil, que aliás tinha sido um dos fundamentos do recurso de apelação apresentado pela aqui Recorrente – cf. conclusões a) a i) do mencionado recurso;

d) Mas entende também, sem qualquer fundamento, que existe responsabilidade civil aquiliana da ora Recorrente – instituição privada de saúde – por actos exclusivamente imputáveis aos réus médicos;

e) Para além de tal conclusão ser ilógica e contraditória;

f) Tal conclusão é, salvo melhor opinião, uma violação do disposto no artigo 483.º do CC;

g) Como tem sido defendido de forma pacifica a responsabilidade extracontratual prevista no artigo 483.ºdo CC é uma responsabilidade subjectiva, baseada na culpa do agente;

h) É inequívoco da factualidade assente nos autos, em particular da secção 2.1.2 epigrafada “Da imputação do dano-morte à inobservância ilícita e culposa das leges artis por parte dos réus médicos” que nenhuma acção/omissão ilícita e culposa é imputada subjectivamente à ora Recorrente;

i) Pelo contrário, conforme resulta cristalino da factualidade assente pelo Tribunal de primeira instância e corroborado pelo acórdão do Tribunal da Relação d ..., as omissões ilícitas e culposas são exclusivamente imputáveis aos mencionados médicos;

j) Os quais (2.º, 3.º e 4.º Réus nos presentes autos), recorde-se, foram absolvidos por ambas as instâncias;

k) Não existindo imputação de quaisquer actos (próprios) ilícitos e culposos à aqui Recorrente existe uma violação do disposto no artigo 483.º do Código Civil ao decidir-se que a Recorrente incorre em responsabilidade civil aquiliana;

l) A responsabilidade civil aquiliana por factos de outrem (note-se, in casu, exclusivamente de outrem) apenas poderia ser ponderada no quadro do artigo 500.º do CC;

m) O que, manifestamente, não pode ser aplicável nos presentes autos por falta de alegação;

n) E muito menos prova de qualquer relação de subordinação entre os 2.º, 3.º e 4.º Réus (médicos especialistas que prestavam serviços à HLA através de sociedades comerciais – cf. artigos 61.º a 63.º e 66.º da matéria assente) e a ora Recorrente, pressuposto necessário à aplicação do artigo 500.º do CC;

o) Não existe, pois, qualquer fundamento legal para enquadrar a responsabilidade civil da Recorrente nos quadros da responsabilidade aquiliana, prevista e regulada nos artigos 483.º e seguintes do CC;

p) Ao fazê-lo o Tribunal da Relação d ... violou o disposto no artigo 483.º do CC;

q) Restaria, assim, apenas a responsabilidade civil contratual da instituição privada de saúde;

r) Sendo certo que, reitere-se, não é claro a que título – responsabilidade por actos de outrem prevista no artigo 800.º do CC quando os alegados responsáveis são absolvidos? – se fundamenta a existência da responsabilidade civil contratual;

s) Uma coisa é certa, porém;

t) No âmbito da responsabilidade civil contratual nunca serão devidos ao Autor -o que o próprio acórdão do Tribunal da Relação do ... reconhece – os danos próprios alegados;

u) Isto porque o Autor é terceiro relativamente ao contrato;

v) Pelo que, não existindo lugar a responsabilidade civil aquiliana da Recorrente a atribuição de danos próprios ao Autor (danos morais e lucros cessantes) é uma violação do disposto no artigo 406.º, n.º 2, do CC;

w) Pelo que, em consequência, não são ressarcíveis os danos morais próprios do Autor CC quantificados em € 27,000.00;

x) Nem são ressarcíveis os danos patrimoniais próprios do Autor (lucros cessantes) quantificados em € 21,236.64;

y) Acresce que no entendimento da Recorrente, aliás, sobejamente evidenciado nos autos não estão preenchidos os critérios da responsabilidade civil, desde logo, por inexistência de nexo causal entre a omissão de administração de heparina de baixo peso molecular e a morte de GG;

z) É certo que, incompreensivelmente na óptica da Recorrente, o acórdão do Tribunal da Relação do ... secundou a decisão do Tribunal de primeira instância de que a causa de morte de GG foi tromboembolismo pulmonar (cf. ponto 40 da matéria assente);

aa) Porém, não é menos certo que tal conclusão resulta da violação do disposto no artigo 662.º do CPC na medida em que o Tribunal da Relação do ... não fez, ao contrário do que legalmente lhe competia, uma análise e valoração critica da prova produzida nos autos conforme consta em r) a ee) das conclusões constantes das alegações apresentadas;

bb) O Tribunal da Relação do ... é absolutamente omisso relativamente a esses pontos não tendo valorado tal prova conforme se lhe impunha;

cc) A conclusão do Tribunal da Relação do ... de que a causa de morte de GG foi tromboembolsimo pulmonar resulta da ponderação errada e tendenciosa de apenas dois meios de prova e de uma dedução;

dd) Assim, o Tribunal da Relação do ... fundamenta a sua decisão com base na análise da certidão de óbito constante a fls. 658;

ee) Isto apesar de não ter sido realizada autópsia;

ff) E de o Tribunal da Relação do ... ignorar o circunstancialismo em que tal certidão foi emitida;

gg) E fundamenta igualmente a sua decisão numa leitura manifestamente tendenciosa da prova pericial constante nos autos;

hh) Sendo que em nenhum dos relatórios periciais consta a pergunta se o tromboembolismo pulmonar era a causa de morte mais provável ou não;

ii) Nem em sede de esclarecimentos qualquer perito proferiu semelhante afirmação;

jj) A partir da ponderação tendenciosa destes dois meios de prova e no facto de não ter sido administrada HBPM, o Tribunal da Relação do ... deduz que a causa de morte de GG foi tromboembolismo pulmonar;

kk) Ora, salvo melhor opinião, é manifesto que o Tribunal da Relação do ... violou o disposto no artigo 662.º do CPC ao não ter analisado, muito menos valorado, os demais meios de prova constantes nos autos e devidamente elencados em r) a ee) das conclusões constantes das alegações apresentadas;

ll) Não valorou nem analisou criticamente o parecer do Colégio da Especialidade de Pneumologia;

mm) Não valorou nem analisou criticamente o testemunho do Dr. HH é sugestivo de ocorrência de enfarte agudo do miocárdio (testemunho gravado em ficheiro 2020071510…34_3441048_2870422 – em particular 10m,00s em diante);

nn) Não valorou nem analisou criticamente o testemunho do Dr. II que também tentou realizar manobras de recuperação em GG (testemunho gravado em ficheiro 2020071511…12_3441048_2870422 – em particular 11m,22s em diante);

oo) Sendo que o depoimento destas testemunhas com conhecimento pessoal e directo dos factos equivalem a preciosos depoimentos periciais, in casu, com razão de ciência acrescida;

pp) Não valorou nem analisou criticamente o testemunho do Dr. FF, que conhecia GG e é o 4.º réu nos presentes autos, o qual entende que o facto de GG sofrer de dislipidemia é um factor de risco acrescido para ocorrência de enfarte agudo do miocárdio (depoimento gravado em ficheiro 202006030…105_3441048_2870422 – em particular 24m,00s em diante e 1h,07m,20s em diante);

qq) Não valorou criticamente os esclarecimentos prestados em audiência por todos os peritos (cf. conclusões bb) a dd) da apelação apresentada pelo ora Recorrente), nem tão pouco valorou o historial clínico da paciente e o relatório de enfermagem, documentos que se encontram juntos aos autos, dos quais é possível extrair fundamentos e sintomatologia enquadráveis com diversas causas de morte, igualmente prováveis de terem ocorrido;

rr) Pelo que, por todo o supra exposto, se impõe que, nos termos do disposto no artigo 682.º do CP, este Venerando Supremo Tribunal reenvie o processo para o Tribunal da Relação do ... para que este reaprecie efetivamente os concretos pontos da matéria de facto impugnados pela ora recorrente no âmbito do recurso de apelação interposto e aí melhor indicados nos pontos r) a ee) das conclusões;

ss) Fazendo-o é evidente que é impossível determinar a causa de morte de GG;

tt) Nenhum dos peritos e testemunhas ouvidos em sede de audiência de julgamento dá claramente prevalência a qualquer uma das hipotéticas causas de morte;

uu) E quando o fizeram, a propensão para identificar uma causa de morte foi, preferencialmente, enfarte agudo do miocárdio.

vv) Pelo que, sendo impossível determinar a causa de morte, e essa é a única conclusão compatível com toda a prova produzida nos autos, não é possível estabelecer um nexo de causalidade entre a omissão de administração de profilaxia e o dano ocorrido;

ww) Nem é lícito presumi-lo;

xx)Ao entender o contrário o Tribunal da Relação do ... violou o disposto no artigo 563.º do CC;

yy) De qualquer forma, e não prescindido em nada do que supra se deixou exposto, o caso dos autos poderia ser solucionado com recurso ao conceito de perda de chance;

zz) Efectivamente, em face das manifestas insuficiências probatórias, admite-se que o conceito de perda de chance seja aplicável;

aaa) In casu, o dano a indemnizar balizar-se-ia pelas possíveis causas de morte de GG, a saber: (a) enfarte agudo do miocárdio – 45%; (b) tromboembolismo pulmonar – 35% e (c) aneurisma da aorta – 20%;

bbb) E pelo facto de também estar assente nos autos que a administração de HBPM reduz mas não elimina a possibilidade de ocorrência de tromboemoblismo pulmonar (a taxa de incidência baixa até 70%) o que equivale a dizer que, em pelo menos 30% dos casos, a administração de HBPM não tem efeito;

ccc) Pelo que, qualquer dano a arbitrar ao Autor teria de ser reduzido a 20% (€ 70.432,56) e o Autor, enquanto um dos herdeiros de GG, teria apenas direito a uma quota parte dessa percentagem, a que teriam de ser deduzidos os valores já recebidos, nomeadamente, através da Segurança Social.


14. O A. apresentou contra-alegações onde conclui (transcrição):

1ª. Nos vários aspectos suscitados pela Recorrente nas alegações de apelação, o douto Tribunal da Relação confirmou a decisão e fundamentação do Tribunal de 1.ª instância, não tendo, por isso, a sentença e o acórdão recorrido trilhado percursos jurídicos diversos.

2ª. Tal sintonia é notória, e expressa directamente pelo Tribunal “a quo” quando refere que mantem a decisão da 1.ª instância, «embora com fundamentação de direito parcialmente diversa».

3ª. Apesar de os fundamentos de direito mudaram em parte (considerando o Tribunal da Relação que a 1.ª instância poderia ter ido mais longe e condenado igualmente por responsabilidade extracontratual), não muda a qualidade ou extensão do efeito material da decisão, pelo que há dupla conforme.

4ª. Aquela conclusão do Tribunal da Relação, de que se verifica igualmente uma responsabilização extracontratual (visto perfilhar a tese do cúmulo) é absolutamente inócua, como o próprio admite, na medida em que o Autor, que seria o principal interessado, não recorreu a título principal da decisão de absolvição dos 2.º, 3.º e 4.º Réus.

5ª. Não podem restar dúvidas de que a Relação confirmou, com base em fundamentação substancialmente idêntica, a decisão da 1ª instância, não estando reunidos os pressupostos para uma revista nos termos gerais.

6ª. No que se prende com o pedido subsidiário de revista excepcional, deverá a douta formação de juízes a que se refere o n.º 3 do artigo 672º negar provimento ao mesmo, na medida em que não se encontram preenchidos os pressupostos das als. a) e/ou c) do n.º 1 do artigo 672.º, nas quais a Recorrente fundamenta a sua pretensão.

7ª. Quanto à invocação da al. c) só se poderá encarar a mesma como um lapso de escrita, visto nada mais ter a Recorrente referido a esse preceito, não ter indicado o acórdão-fundamento, não ter juntado cópia do mesmo e não ter indicado os aspectos de identidade que determinam uma suposta contradição.

8ª. No que se prende com a al. a) a Recorrente não fundamenta a alegada relevância jurídica, não se compreendendo sequer qual a questão que pretende ver tratada: se num primeiro momento parece assentar a necessidade de intervenção em revista excepcional do STJ na questão do concurso cumulativo ou consunção de responsabilidades, acaba por concluir que o STJ tem de se pronunciar sobre o âmbito e escopo do conceito de perda de chance.

9ª. Quanto à primeira questão, além de não ter relevo na decisão da causa, visto os considerandos de direito feitos pela Relação não terem alterado em nada a mesma, é uma temática já largamente debatida, quer na jurisprudência deste Tribunal, quer na doutrina.

10ª.Relativamente à perda de chance, não se chega a compreender que questão é que a Recorrente quer ver debatida: se se aplica no âmbito da responsabilidade civil profissional? Quais os termos da sua aplicação?... não explica a Recorrente.

11ª.Acresce que o Tribunal da Relação não negou a aplicação do instituto da perda de chance à responsabilidade civil profissional, mas apenas decidiu que a mesma não tinha aplicação no caso em apreço, porque ficou claramente estabelecido o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e a morte da mãe do Autor.

12ª.É absolutamente falso que o Tribunal “a quo” se tenha afastado da aplicação do artigo 800.º do Código Civil, mantendo antes a decisão de primeira instância, e clarificando que a responsabilidade da clínica deve necessariamente ser aferida de forma indirecta, em função dos ditames que aos médicos Réus cumpria observar na realização da prestação médica à paciente ao serviço da 1.ª Ré.

13ª.Tratando-se de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos actos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC.

14ª.A discussão de saber se os factos dados como assentes, imputáveis aos médicos, são susceptíveis de conformar a responsabilidade civil aquiliana da Recorrente não tem nenhuma relevância prática para a boa discussão da causa, uma vez que, como refere doutamente o Tribunal da Relação, a 1.ª instância optou pela responsabilidade contratual como fonte da obrigação de indemnizar o Autor, e nem este, nem a Ré Clínica recorreram de tal decisão.

15ª.Os pontos III e IV das alegações da Recorrente mais não são do que uma tentativa de ver alterada a matéria de facto, que já foi devidamente escrutinada e julgada quer pela primeira quer pela segunda instâncias.

16ª.Quando a Recorrente afirma que «a conclusão do Tribunal da Relação do ... de que a causa da morte de GG foi tromboembolismo pulmonar resulta da ponderação errada e tendenciosa de apenas dois meios de prova e de uma dedução», deixa claro que o que pretende deste Supremo Tribunal de Justiça é que o mesmo sindique o modo como a Relação apreciou a impugnação dos factos.

17ª.O ponto 1.3.3. do acórdão recorrido debruça-se, ao longo de 15 páginas, sobre a matéria alegada nas conclusões de apelação de n. a ee., demonstrando que não tendo o certificado de óbito força probatória plena na acção, tinha de ser valorado de modo livre, em conjugação com outros meios de prova produzidos, considerando que tal valoração foi feita pela primeira instância.

18ª. Os pontos da matéria de facto impugnados pela Recorrente em sede de recurso de apelação foram exaustivamente escrutinados pelo Tribunal da Relação, não podendo ter a mesma a pretensão que aquele tribunal se volte a pronunciar sobre matéria já decidida apenas e tão só por não concordar com o que foi decidido pelo mesmo.

19ª.A existência de nexo de causalidade entre o facto e o dano foi largamente analisado quer pela primeira quer pela segunda instâncias.

20ª.Nas situações de obrigação de meios em caso de responsabilidade médica o ónus da prova é difícil para o paciente, considerando a especificidade técnica das matérias em presença, a falta de acesso à documentação clínica, o decurso do tempo, a fragilidade pessoal criada pela situação etc...-, razão pela qual aquele ónus deve ser atenuado.

21ª.Sê-lo-á pelo funcionamento das presunções naturais ou hominis. No nosso caso, a morte de GG é o facto conhecido; desconhecida é a origem da mesma, podendo presumir-se que, atendendo ao normal decorrer dos factos nestas situações, tal dano foi produzido por TEP, atendendo ao tipo de cirurgia, à sua duração, ao índice de massa corporal da paciente e ao facto de não lhe ter sido administrada heparina.

22ª.Neste caso, cabia à Ré demonstrar que não existe nexo de causalidade entre o dano e erro da sua parte.

23ª.No contexto da responsabilidade civil médica, a presunção do nexo de causalidade é particularmente utilizada nos casos em que opera a presunção de culpa fundada na prova prima facie.

24ª.A prova pericial produzida nos autos permite recorrer a uma presunção natural, dado decorrer da mesma que, segundo os princípios gerais da vida e o normal acontecer das coisas, atendendo à massa corporal da falecida, ao género de cirurgia, à sua duração, a morte, com um grau de probabilidade muito alto, terá tido a sua causa na não administração da heparina de baixo peso molecular, administração essa recomendada na “Ata Médica Portuguesa 2005” e nas guide lines internacionais, e na não utilização de qualquer outro método profiláctivo.

25ª.Considerando a natureza específica do tema sub iudice, assume particular relevo nestes processos o recurso à prova pericial.

26ª.Resultou provado, nomeadamente através da prova pericial, que a administração de heparina poderia ter evitado a morte de GG, ou pelo menos aumentado a probabilidade de sobreviver. O Perito Sr. Professor Doutor JJ deixou claro que o risco de TEP é reduzido até 70% se for administrada heparina e o Perito Sr. Doutor KK também refere que a profilaxia numa cirurgia bariatrica tem de ser sempre feita, que é o que decorre da “Ata Médica Portuguesa 2005”.

27ª. Não se vislumbra, deste modo, qualquer violação do disposto no artigo 563.º do Código Civil.

28ª. No que se prende com as considerações levadas a cabo pela Recorrente relativas à indemnização através do instituto da perda de chance, as mesmas já haviam sido apresentadas em sede de recurso de apelação, mais uma vez não se conformando a Recorrente com o que ali foi decidido.

29ª. Aquele instituto não tem aplicabilidade no caso dos autos, na medida em que se destina apenas às situações nas quais não é possível estabelecer um nexo de causalidade adequado entre a conduta do agente e o dano (final), o que não é o caso como o próprio Tribunal da Relação referiu.

NESTES TERMOS, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal,

- Julgando preliminarmente a Veneranda formação, a que se refere o n.º 3 do art. 672.º do CPC, o presente recurso de revista inadmissível, por não se verificarem os pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 672.º do CPC,

Ou, subsidiariamente e se assim não se entender,

- Confirmando a decisão de apelação, negando provimento ao recurso de revista Vªs. Exªs. farão, como sempre, a habitual J U S T I Ç A!


15. Foram apresentadas contra-alegações pelas AGEAS - PORTUGAL-COMPANHIA DE SEGUROS, S.A, com se seguintes conclusões (transcrição):

1. O Acórdão proferido do Tribunal da Relação do ..., como já se referiu, manteve a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância, “embora com fundamentação de direito parcialmente diversa”;

2. Pelo que, o recurso interposto pela Recorrente não cumpre os requisitos previstos para a admissibilidade do recurso de revista, designadamente, por não nos encontramos perante um Acórdão que contenha fundamentação essencialmente diferente da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, previstos no disposto no artigo 671.ºdo CPC;

3. Neste sentido, não poderá a Recorrida deixar de pugnar pela rejeição do recurso interposto, por se afigurar admissível, porquanto não obedece aos requisitos previstos no artigo 671.º do CPC, dado que estamos perante uma dupla conformidade das decisões proferidas pelo Tribunalda1.ªinstância e do Tribunal da Relação.

Sem prescindir,

4. Não se conformando como douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do ..., o qual veio confirmar, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão doutamente proferida pelo Tribunal de 1.ªinstância, insurge-se novamente a Recorrente lançando mão do presente recurso de revista excecional, apresentando, para o efeito, argumentação que, salvo o devido respeito por melhor e douta opinião, não poderá, absolutamente, proceder.

5. Desde logo porque não se encontram preenchidos os requisitos legais necessários à admissão do presente recurso de revista excecional apresentado nos autos pela Recorrente.

6. A Recorrente fundamenta a interposição do presente recurso, nas alíneas a) e c) do n.º 1 do citado artigo 672.ºdo CPC, contudo, e conforme infra se exporá, não lhe assiste razão.

7. Sucede que, questões em discussão no presente processo, não se tratam de matérias complexas que ofendam princípios de direito fundamentais que regem o nosso ordenamento jurídico.

8. A Recorrente, não demonstra a existência de uma necessidade de ponderação das questões suscitadas no plano dos valores e dos princípios subjacentes ao disposto no artigo 672.º, n.º1, alínea a) do CPC.

9. A Recorrente não só não cumpre com o disposto no artigo 672.º, n.º 1, alínea a), como também no disposto no artigo 672.º, n.º 2 alínea a) todos do CPC, sendo que, a sua fundamentação é absolutamente, e salvo o devido respeito que lhe é muito, insuficiente, bastando-se com a alegação de que a factualidade em discussão nos autos apresenta o maior relevo para uma melhor aplicação do direito, como se de um recurso ordinário se tratasse.

10. Acresce que, a Recorrente não obedeceu ao disposto no artigo 672.º, n.º 2, alínea c) do CPC, o qual impunha sobre a mesma, a alegação dos “aspetos de identidade que determinam a contradição alegada, juntando cópia do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição.”. (negrito nosso)

11. Face ao que antecede, não poderá a Recorrida deixar de pugnar pela rejeição do recurso interposto porquanto não obedece a qualquer um dos requisitos previstos noartigo672.º, n.º2, do CPC.

Sem prescindir,

12. Não se conformando com a douta decisão proferida nos autos, a qual, veio julgar o recurso apresentado pela Recorrente improcedente, mantendo a decisão da 1.ª instância, embora com fundamentação de direito parcialmente diversa, vem a Ré Cliria, ora Recorrente, agora insurgir-se, requerendo a reapreciação da matéria de direito, designadamente, no que respeita à imputação de responsabilidade à Recorrente nos termos do artigo 800.º do Código Civil, por entender que existe uma interpretação errada da responsabilidade civil dos profissionais médicos em instituições de saúde privada, apresentando argumentação que, salvo o devido respeito por melhor e douta opinião, não poderá, absolutamente, proceder.

13. No que respeita à imputação de responsabilidade à Recorrente, “é entendimento da Recorrente que o artigo 800.ºdo CC não é axiologicamente neutro, ou seja, a sua aplicação depende da imputação aquiliana aos responsáveis”, bem como que “Sendo tais agentes absolvidos, in casu os 2.º a 4.º réus que eram parte na acção, nenhum motivo existia, nem existe, para responsabilizara instituição privada de saúde nos termos do disposto no artigo 800.ºdo Código Civil”.

14. Sucede que, da alegação da Recorrente, a mesma parece olvidar o raciocínio partilhado quer pelo tribunal de 1.ª instância, quer pelo Tribunal da Relação, quanto ao vínculo obrigacional estabelecido entre a mesma e a paciente, mãe do Autor.

15. A destrinça entre aquela que é a posição contratual da Recorrente perante a paciente, trata-se do ponto de partida para apurar o tipo de responsabilidade civil aplicável no presente processo, isto é, extracontratual, contratual ou ambas, e sobre a qual a Recorrente não se debruça.

16. Como a Recorrente bem sabe, quer estejamos perante um tipo de responsabilidade contratual, quer estejamos perante um tipo de responsabilidade extracontratual, a verdade é que, os factos objeto de discussão nos autos, podem, simultaneamente, preencher os pressupostos previstos para ambos os institutos.

17. Sendo que, e quanto a este tema, não resta se não à Recorrida manter tudo o quanto oportunamente alegou em sede de recurso junto do Venerando Tribunal da Relação do ....

Ora,

18. A Recorrente Cliria, disponibilizou à falecida, no âmbito da sua atividade, os meios técnicos e humanos de que dispunha para o efeito, designadamente, os serviços do Dr. DD, o qual desempenhava, entre outras, as funções de médico cirurgião naquela entidade hospitalar.

19. Para além dos serviços do Dr. DD, a Recorrente Cliria, disponibilizou os serviços do Dr. EE e do Dr. FF à falecida, os quais não foram especificamente escolhidos pela mesma.

20. A intervenção da Recorrente Cliria, contrariamente ao que a mesma tenta fazer crer, não se limitou à gestão organizacional dos cuidados médicos a que a falecida foi sujeita, a verdade é que a Recorrente Cliria disponibilizou os seus profissionais parao efeito.

21. Tanto assim é que o pagamento dos cuidados de saúde prestados pelos médicos, foi faturado na sua totalidade pela Recorrente Cliria e não pelos médicos enquanto profissionais individuais e independentes daquela instituição.

22. Os serviços prestados pela Recorrente Cliria, foram faturados pela mesma junto da Portugal Telecom Associação de Cuidados de Saúde, porquanto se tratava do sistema de saúde da falecida.

23. A responsabilidade pela atuação dos médicos aqui Réus foi assumida pela Recorrente Cliria, na qualidade de prestadora de serviços de saúde, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 800.º, n.º1 do Código Civil.

24. Pelo que, a Recorrente Cliria responde, “pelos actos de todo o pessoal que utilizar no cumprimento das suas obrigações”, conforme entenderam e bem as decisões recorridas.

25. Perante a factualidade supra descrita, dúvidas não restam de que estaremos sempre perante o denominado “contrato total”, estabelecido entre a Recorrente Cliria e a falecida, o qual englobava uma universalidade de serviços, entre eles, os serviços médicos dos seus prestadores de serviços, que comporta responsabilidade contratual, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 800.º, enquanto responsável pelos atos praticados pelos seus “auxiliares”.

26. Neste sentido, concluiu o Venerando Tribunal da Relação que “Perante a relação contratual, de natureza privatística, firmada pela paciente falecida, mãe do ora Autor, e a 1.ª Ré, Cliria, nos termos explicitados supra, dúvidas não subsistem de que a 1.ª é responsável, originariamente perante a paciente e agora perante o Autor, nos termos do n.º 1 do art. 800.º do CCivil, pelos atos dos 2.º a 4.º Réus na execução das prestações médicas convencionadas, como se tais atos fossem praticados por aquela devedora.”. (negrito nosso)

27. Conforme supra se expos, o Tribunal da Relação concluiu e seguiu o mesmo entendimento levado acabo pelo Tribunalda1.ªinstância.

28. Contrariamente ao que a Recorrente tenta fazer crer, esta não foi alheia à atuação dos réus médicos na presente ação, não só pelos fundamentos referidos, como também por quaisquer outros que se entendam relevantes.

29. O que motivou o Venerando Tribunal da Relação, e bem, a concluir que “A responsabilidade prevista no art. 800.º, não obstante se afigurar como exemplo caro de responsabilidade objectiva, respondendo a pessoa colectiva ,enquanto devedor da obrigação, independentemente da sua culpa in elegendo, in vigilando ou in instruendo, o certo é que tem que existir, de acordo com a letra da lei, um acto culposo de uma pessoa física, que faça então incorrer em responsabilidade (Cfr. MARIAVICTÓRIAR. F. ROCHA, AImputação Objectiva na Responsabilidade Contratual, in Revista de Direito e Economia, Ano XV, 1989, pág. 79)”.”

30. Nessa medida, e atendendo a tudo quanto ficou exposto, deverão improceder, in totum, as alegações de recurso apresentadas pela Recorrente quanto à matéria da imputação de responsabilidade à recorrente, sob pena de violação do disposto no artigo 800.º do Código Civil, devendo ser mantido, na integra, o douto Acórdão proferido nos autos, absolvendo-se a Recorrida de todos os pedidos contra si formulados, só assim se fazendo Justiça.


16. Colhidos os vistos electrónicos, nos termos do art.º 657.º, n.º 2, do CPC, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

De facto

17. Da 1ª instância vieram provados os seguintes factos (e o Tribunal da Relação não os modificou):

1 - GG faleceu no dia … de Fevereiro de 2014 nas instalações da 1ª Ré Cliria, com a idade de 38 anos.

2 – O aqui autor CC era filho da falecida GG e nasceu a … de …. de 1998.

3 - A GG deu entrada nos Serviços da 1ª Ré em … de Janeiro de 2014 para consulta sobre uma situação de obesidade de que padecia e que tinha cerca de 10 anos de evolução, tendo sido observada pelo 2º Réu.

4 - A GG referiu ainda ao 2º Réu um aumento de peso de 20 Kg desde Setembro de 2013.

5 - Nessa consulta de … de Janeiro de 2014 e após exame apresentava um índice de massa corporal (IMC) de 37,5 (altura 1,667 m e 101 Kg).

6 - A GG apresentava patologia associada dislipidémia, coxartrose, discopatias e hérnia do hiato confirmada por endoscopia digestiva alta, para além de patologia da tiróide.

7 - A paciente não apresentava hipertensão, diabetes ou insuficiência venosa em membros inferiores (varizes).

8 - Constava ainda do quadro clínico da paciente uma cirurgia prévia, relativa a uma cesariana a que havia sido submetida, sem que tivessem sido registados quaisquer incidentes anestésicos ou cirúrgicos.

9 - A falecida GG já era seguida na Cliria desde 2008, nomeadamente em ……. e …….

10 - O cirurgião analisou a história clínica da doente e prescreveu os exames de rotina pré-operatória preparatórios da cirurgia bariátrica, a saber: estudo radiológico do tórax, eletrocardiograma, ecografia abdominal e análises ao sangue com hemograma e estudo da coagulação, glicemia, ionograma e estudo da função renal e hepática.

11 - Os resultados dos exames revelaram padrões dentro da normalidade expectável para aquela doente em concreto e ausência de qualquer evidência de risco de complicações cardíacas, pulmonares ou outras, não existindo nenhum dado clínico objetivo que desaconselhasse a cirurgia.

12 - A GG foi informada pelo 2º Réu sobre a possibilidade de realização de cirurgia bariátrica, no caso concreto de gastrectomia vertical, habitualmente designada por “sleeve” por via laparoscópica.

13 - O cirurgião informou a doente sobre o procedimento cirúrgico proposto e os respetivos riscos e benefícios previsíveis.

14 - Ciente do procedimento cirúrgico, dos riscos e dos benefícios previsíveis, a doente GG aceitou realizar a cirurgia, e assinou o consentimento informado que lhe foi presente por este médico, pelo qual declarou nomeadamente estar ciente dos riscos, ausência de garantia quanto aos resultados do procedimento e ter tido oportunidade de esclarecer todas as dúvidas

15 - A doente foi previamente avaliada pelo médico anestesiologista (4º Réu) que analisou os resultados dos exames de rotina pré-operatória e constatou todos os parâmetros da doente dentro da normalidade e ausência de qualquer dado clínico objetivo que desaconselhasse a realização da intervenção sob anestesia geral.

16 - A cirurgia a realizar era uma cirurgia breve, com duração de cerca de 60 minutos, com mobilização precoce da paciente, de baixo risco sendo classificada, pelo médico anestesiologista, 3º réu, com ASA II.

17 - A GG foi internada para realização da cirurgia, nos Serviços da 1ª Ré, em … de Fevereiro de 2014, tendo sido novamente reavaliada pelos 2º, 3º e 4º Réus, para a realização da cirurgia bariátrica, concretamente gastrectomia “sleeve” por via laparoscópica.

18 - Foi cumprida a avaliação pré-operatória de enfermagem, foram monitorizados os sinais vitais da paciente e foi administrada a medicação prescrita pelos médicos e na posologia recomendada.

19 - Foi registada a admissão da doente no Bloco Operatório às 12:00 horas, seguiu-se a avaliação de enfermagem, a monitorização da doente, a preparação do procedimento anestésico, a entubação da doente e a indução da anestesia pelo anestesiologista.

20 - Só depois de todos estes procedimentos cumpridos, pôde ser iniciado o procedimento cirúrgico, o que aconteceu entre as 12h15m e as 12h30m.

21 - Às 14:00 horas a doente já tinha saído do bloco operatório e já se encontrava no recobro, tendo a intervenção cirúrgica decorrido sem qualquer incidente, com a GG sempre estabilizada.

22 - O período pós-operatório decorreu nos dias …, …, … e … de Fevereiro, tendo a GG iniciado o plano alimentar 48 horas após a intervenção cirúrgica, segundo a dieta prescrita pela nutricionista da CLIRIA, tolerando a alimentação

23 – Durante o período pós operatório referiu ter dores abdominais, dormir mal na noite de 19 de Fevereiro e náuseas a 20 de Fevereiro.

24 - Na mesma altura, iniciou o levante que tolerou, recuperando a autonomia nas atividades de vida diária, apesar de continuar a ser ajudada por auxiliar de ação médica por precaução, referindo, no entanto cansaço a … de fevereiro e recusando o levante ao almoço desse mesmo dia.

25 - Estava habitualmente calma, orientada, consciente, hidratada e bem disposta, respirava espontaneamente e sem necessidade de suporte de oxigénio desde que saiu do bloco operatório.

26 - Os sinais vitais (pulsação, pressão arterial, temperatura, gasimetria) situavam-se dentro dos padrões normais e sem oscilações.

27 - Atenta a boa evolução do quadro clínico no pós-operatório, a doente tinha alta prevista para o dia … de Fevereiro de 2014.

28 - Pelas 10 horas do dia … de Fevereiro de 2014, quando se encontrava na cadeira de higiene começou a referir que não se estava a sentir bem e pediu ajuda à auxiliar.

29 - Logo de seguida a GG sofreu uma lipotimia (perda de força muscular), tendo sido transportada para a cama onde foi monitorizada.

30 - A GG apresentava uma frequência cardíaca de 127p/mim. e uma Sat O2 47%, sendo constatada alterações nos sinais vitais (pressão arterial e pulsação).

31 - Foi de imediato colocado a soro e administrado O2 6L/min. por mascara e adrenalina.

32 - As saturações do O2 mantiveram-se baixas, estando a GG agitada com dores no peito, e referindo que não conseguia respirar.

33 - A frequência cardíaca baixou e foram iniciadas as manobras de reanimação.

34 - As manobras de reanimação, foram executadas através de fármacos, de massagem cardíaca e ventilação com entubação orotraqueal e mantiveram-se até às 12.45 horas, hora em que foi verificado o óbito.

35 - Durante as manobras a doente recuperava o ritmo cardíaco, mas voltava logo de seguida a entrar em paragem cardiorrespiratória, até que foi declarado o óbito da doente.

36 - Nesse mesmo dia … de Fevereiro de 2014, os serviços da Cliria encetaram diligências no sentido da realização da autópsia, sendo contactado o Hospital  …... – por ser o local mais próximo da CLIRIA onde poderia ser realizada a autópsia – para ser transferido o corpo da Senhora D. GG para a morgue desse Hospital no mesmo dia.

37 - Quando terminou a cirurgia referida no ponto 20, o ora 2º R. teve notícia do falecimento de seu irmão, deslocando-se a ..., onde este residia, a fim de velar o corpo de seu irmão que foi autopsiado e assistir às suas cerimónias fúnebres.

38 - Já na sua chegada à cidade de ... foi confrontado com o pedido do marido da falecida GG para que evitasse a autópsia, ao que o réu acedeu.

39 - Emitiu a certidão de óbito, onde inscreveu como causa de morte trombo embolismo pulmonar.

40 - A morte da GG, deveu-se a trombo embolismo pulmonar.

41 - Os 2º, 3º e 4º Réus não procederam à administração do fármaco heparina de baixo peso molecular (HBPM) à falecida GG.

42 - A heparina de baixo peso molecular é uma droga que faz a profilaxia da embolia pulmonar e é a chave para a diminuição da morbilidade e mortalidade associadas ao TEV.

43 - A administração da referida heparina de baixo peso, no pré e pós operatório da GG, atentas as suas características físicas de obesidade e da dislipidémia bem como o facto ser uma cirurgia com anestesia geral, por laparoscopia, bem como a sua duração para além de uma hora, era profilaxia necessária.

44- Sendo certo que, 2º, 3º e 4º Réus também não prescreveram e aplicaram à GG outros métodos profilácticos, tais como meias de compressão elástica, ou de compressão pneumática intermitente.

45 - De acordo com o “Score de Caprini” o risco de TEV na pessoa da GG, era de Alto Risco, sendo recomendado, in casu o HBPM mais os meios mecânicos descritos.

46 - A aplicação da profilaxia antitrombólica– heparina de baixo peso molecular – apresenta como contra-indicação o sangramento que pode causar no pós-operatório.

47 - A GG era funcionaria do Município de ..., com a categoria profissional de ..., tendo ali trabalhado por conta direcção e subordinação desta.

48 - A GG auferia o salário mensal de € 820,92, com o duodécimo do Subsidio de Natal incluído, e a que acrescia o Subsidio de Férias.

49 - A GG era uma pessoa leal, sensível, extremamente sociável, muito activa e trabalhadora, amiga e querida por todos os que a conheciam em ....

50 - Era uma pessoa inteiramente preocupada com os outros e sempre disponível para ajudar, sabendo que todas as pessoas que a conheciam a reconheciam como uma pessoa muito calma e equilibrada.

51 - Era igualmente uma mãe muito próxima, presente, muito dedicada, sempre tendo procurado transmitir aos filhos os seus princípios e valores, enquanto mulher solidária, dedicada ao trabalho, à família e aos amigos.

52 - Com a perda da vida a GG, perdeu o gozo dos sentimentos que a ligavam ao seu marido, filhos e seus amigos; perdeu, com a sua morte, todos os valores e desvalores, prazeres e tristezas, risos e lágrimas que ainda tinha por gozar, pensar e sentir.

53 – Nos momentos que precederam a sua morte a GG encontrava-se fisicamente debilitada

54 - O Autor CC viveu, nesse período, uma profunda dor continuando a sofrer com a morte de sua mãe, tendo um sentimento de inconformismo e revolta, sendo que todo o processo da morte da sua mãe e procedimentos administrativos traumatizou-o, deixando-o totalmente destabilizado.

55 - Ainda hoje tem presente o dia em que a sua mãe faleceu, não conseguindo esquecer o choque inesperado daquele dia,

56 - O Autor, filho de GG, estava profundamente ligado à mesma, tendo perdido a pessoa com quem mantinha os mais estreitos laços de afinidade e identificação, coabitando com os pais na mesma casa.

57 - A Responsabilidade Civil Extracontratual e/ou Responsabilidade Civil Contratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável aos Réus DD, EE e FF através do pagamento das indemnizações que lhe sejam exigíveis pelos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais resultantes de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros por erros profissionais cometidos pelos segurados no exercício da sua profissão como médicos encontram-se transferidas por contrato de seguro para a seguradora AXA através das seguintes apólices:

a) do R. Dr. DD através da apólice com o nº .......91;

b) do R. Dr. EE através da apólice com o nº .......42; e

c) do R. Dr. FF através da apólice com o nº ........85.

58 - O R. DD (cirurgia geral) celebrou com a AXA Portugal um contrato relativo a responsabilidade civil profissional com capital seguro de EUR 15.000,00.

59 - Os RR. EE (cirurgião geral), e FF (anestesiologia) celebraram com a Axa Seguros um contrato relativo a responsabilidade civil profissional com capital máximo seguro, por anuidade e sinistro de EUR 600.000,00 € e 300.000,00, respectivamente.

60 – O 2º Réu. DD à data da ocorrência dos factos desempenhava as funções de ..., sendo remunerado nessa circunstância e agindo por conta e em nome da 4ª R. Cliria.

61 - Em acumulação desempenhava serviços médico-cirúrgicos na CLIRIA, de acordo com a sua especialidade de cirurgia geral, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e uma sociedade com a qual o referido Réu tinha vínculo, a saber: A..... - Serviços Médico-Cirúrgicos, Lda, pessoa coletiva n.º……..80.

62 - O 3º Réu, Dr. EE, desempenhava serviços médico cirúrgicos na CLIRIA, de acordo com a sua especialidade de cirurgia geral, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e uma sociedade com a qual o referido Réu tinha vínculo, a saber: C..... - Serviços Médico-Cirúrgicos, Lda, pessoa coletiva n.º …….03.

63 - Por último, o 4º Réu, Dr. FF, desempenhava serviços médico-cirúrgicos na Cliria, de acordo com a sua especialidade de anestesiologia, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e uma sociedade com a qual o referido Réu tinha vínculo, a saber: J... - Actividades Médicas, Lda pessoa coletiva n.º ………66.

64 - A todos, a Ré fornecia os meios técnicos, materiais e humanos necessários à prestação da sua atividade contratada nos referidos termos, designadamente: sala de consultas, utilização do Bloco Operatório e demais infra-estruturas e materiais, apoio de enfermagem, fármacos e consumíveis, além do apoio administrativo para marcação de atos médicos, segundo a disponibilidade de agenda comunicada pelos referidos médicos.

65 - Em contrapartida, a Ré pagava aos referidos médicos o valor da atividade com eles acordado e pelos próprios faturado.

66 - Os Réus médicos têm relativamente à Ré total autonomia técnica e independência de decisão no que concerne à sua concreta atuação clínica, nos termos das normas estatutárias que regem a profissão.

67 - Entre a Ré Cliria e a Tranquilidade Companhia de Seguros, S.A foi celebrado, em 01.01.2007, um Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil Profissional, titulado pela apólice .......86, com efeitos desde 01/01/2007 e renovável anualmente, pelo qual a Ré transferiu para a referida Companhia de Seguros a responsabilidade civil, que lhe seja imputável, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais e/ou materiais causados involuntariamente a pacientes ou a terceiros em geral, pela exploração e a atividade da sua unidade de saúde.

68 - Nos termos desse Contrato de Seguro, a Companhia de Seguros garante o pagamento das indemnizações que legalmente sejam exigíveis à Ré, até ao montante do capital seguro para a componente hospitalar de 1.250.000,00 Euros (um milhão duzentos e cinquenta mil euros) por anuidade.

69 - Conforme resulta das condições Particulares da Apólice, foram subscritas pela primeira ré as coberturas de “Responsabilidade Civil Exploração” e “Responsabilidade Civil Profissional”.

70 - O capital seguro ascende à quantia de 1.250.000,00€, por anuidade, limitado ao montante de 500.000,00€ por vítima em danos para a componente hospitalar e 1.000.000,00€ por sinistro e anuidade para a componente de clínicas.

71 - No âmbito do aludido contrato foram acordadas entre a autora e a primeira ré as seguintes franquias:

- Para a cobertura “Responsabilidade Civil Exploração”, a franquia de 10% sobre o valor do sinistro, com o valor mínimo de 250,00€

- Para a cobertura “Responsabilidade Civil Profissional”, a franquia de 10% sobre o valor do sinistro, com o valor mínimo de 1.000,00€

72 - Mediante tal contrato e dentro dos limites nele fixados, a ora interveniente comprometeu-se a garantir “…o pagamento das indemnizações que legalmente sejam exigíveis aos Segurados, em consequência de danos patrimoniais e/ou não patrimoniais decorrentes exclusivamente de lesões materiais ou corporais causados involuntariamente a pacientes ou a terceiros em geral, em consequência das circunstâncias a seguir descritas:

a) Na sua qualidade de proprietário, arrendatário ou usufrutuário dos imóveis destinados à actividade do hospital e clínica;

b) Pelo mobiliário ou outros esquipamentos existentes nos imóveis afectos à actividade dos segurados;

c) Pela utilização de material de uso médico, incluindo aparelhos de Raio X desde que utilizados exclusivamente para diagnóstico ou apoio em acto cirúrgico;

d) Por danos resultantes de queda total ou parcial de tabuletas anúncios luminosos e toldos;

e) Em consequência de intoxicações alimentares causadas por bebidas e alimentos preparados e serviços nas instalações hospitalares e clínica;

f) Pela utilização de aparelhos de electrochoque em situações de emergência, apoio a cirurgia e de tratamentos de arritmologia;

g) Fica garantia da Responsabilidade Civil profissional de enfermeiros e restante pessoal auxiliar, que compõe o quadro próprio do estabelecimento de saúde, enquanto ao serviço deste;

h) Fica garantida a RC Profissional de médicos que pertençam aos quadros efectivos do hospital e da clínica.”

73 - Como igualmente previsto nas Condições Particulares da Apólice, ficam excluídos da garantia do presente contrato de seguro, os danos:

“a) Derivados de factos anteriores à data do início da apólice, ainda que as consequências só se manifestem depois dessa data;

b) Resultantes da prática de actos para os quais o pessoal não se encontre devidamente habilitado, nos termos da lei ou regulamentos aplicáveis;

c)Resultantes da inobservância de disposições legais ou regulamentares que regem o exercício da actividade, bem como os resultantes da recusa da prestação de serviços da sua competência;

(…)

k) Decorrentes de tratamentos ou cirurgias de carácter estético ou plástico, excepto, quando consequência de acidente ocorrido ou doença manifestada;

(…)

n) Resultantes da Responsabilidade Civil Profissional do pessoal médico e de enfermagem quando não se encontrem ao serviço do segurado e sujeitos à supervisão do estabelecimento hospitalar e da clínica;

o) Por prejuízos indirectos, lucros cessantes e/ou perdas consequenciais; (…)

q) Responsabilidade civil profissional de médicos e enfermeiros quando não estejam ao serviço e sob supervisão da entidade hospitalar e clínica seguras;”

74 - Do mesmo modo ficaram ainda excluídos, nos termos do acordado com a primeira ré e estabelecido no artigo 3.º nº 1 das Condições Gerais da Apólice:

- alínea f) os danos “que devam ser garantidos ao abrigo de seguros obrigatórios”.

- alínea g) os danos “resultantes de lucros cessantes, paralisações de actividade de perdas indirectas de qualquer natureza”.

- alínea h) os danos “resultantes de reclamações baseadas em acordos ou contratos particulares celebrados entre o terceiro e o Segurado, na medida em que a responsabilidade que daí resulte exceda a que o Segurado estaria obrigado na ausência de tal acordo ou contrato.”

75 - A Ré disponibilizou todos os meios técnicos, materiais e humanos para realização da cirurgia e acompanhamento pós-operatório em termos adequados e conformes às boas práticas, bem como à realização de autópsia logo após a morte da paciente.

76 - O autor está a receber uma pensão de sobrevivência, que lhe vem sendo paga pela Segurança Social, tendo recebido, até ao presente os seguintes montantes:

Ano de 2014 – 494,70 € Ano de 2015 – 577,14 € Ano de 2016 – 579,34 € Ano de 2017 – 640,97 € Ano de 2018 – 776,79 € Ano de 2019 – 642,42 €

77 - A Ré Cliria, para pagamento de todos os serviços prestados, (incluindo os honorários dos médicos que intervieram na cirurgia), apresentou à Portugal Telecom Associação de Cuidados de Saúde uma fatura no valor de 7.611,11 €.

18. Não se provou nas instâncias que:

A - Fosse decidida a não utilização de profilaxia antitrombólica de acordo com as indicações terapêuticas – no meio médico designadas por “guide lines” – uma vez que a paciente em causa apresentava baixo risco.

B - Apenas se pratique profilaxia antitrombólica quando exista patologia venosa periférica, fibrilação auricular, anteriores incidentes de AVC e outros.

C - No dia … de Fevereiro de 2014, fosse proposto aos familiares da doente a realização de autópsia para ser, em concreto, apurada a causa da morte, sendo que o marido da falecida GG recusasse a realização da autópsia e a transferência do corpo para o Hospital de ....

D – Fosse por estar pressionado pelo aqui A. AA, e abalado profundamente com o drama da autópsia de um ente querido que vivenciara há dias, que o Réu Artur não tendo capacidade para resistir à pressão, dispensasse a autópsia.

E - A intervenção cirúrgica ficasse concluída às 13h20 ou pelas 14.35 horas.

F - O único desconforto que falecida GG referisse durante o internamento fosse fome, à parte de queixas álgicas moderadas que cediam à medicação.

G - Nos momentos que procederam a sua morte, o olhar da falecida GG transmitisse uma profunda angústia e preocupação.

H - A GG estivesse totalmente consciente da gravidade do seu estado, sentindo muita angústia, medo e ansiedade, durante o largo tempo que decorreu até à hora da sua morte e cuja percepção tivesse.

I - Após a morte da mãe o Autor CC se distanciasse de tudo e de todos, alimentando-se apenas de recordações, tenha ataques de choro, conserve intactas todas as lembranças da mãe, padecendo de insónias, pois a imagem da mãe não lhe sai da memoria.

J - Desde o momento da morte da mãe manifeste grande incapacidade para encarar o futuro com tranquilidade e paz, a que a GG o havia habituado.

K) - À data dos factos, a Ré tivesse contratado com A... - Serviços Médico-Cirúrgicos, Lda, pessoa coletiva n.º ……...80, uma agenda semanal de 7 horas de consultas realizadas pelo referido médico, além da possibilidade de utilização por este dos meios da CLIRIA de acordo com a disponibilidade da Ré.

L) - À data dos factos, a Ré Cliria tenha contratado com a sociedade C... - Serviços Médico-Cirúrgicos, Lda, pessoa coletiva n.º ……….03, uma agenda semanal de 7,5 horas de consultas realizadas pelo referido médico, além da possibilidade de utilização por este dos meios da CLIRIA de acordo com a disponibilidade da Ré.

M) - À data dos factos, a Ré tenha contratado com a sociedade J... - Actividades Médicas, Lda, pessoa coletiva n.º ……..66, uma atividade média semanal no bloco operatório de 20 horas.

De Direito

19. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

20. Das conclusões do recurso extraem-se como questões a decidir no presente recurso as seguintes:

a) Saber se a Clínica responde nos termos da responsabilidade extracontratual – conclusões a) a p);

b) Saber se a Clínica responde nos termos da responsabilidade contratual por actos dos auxiliares quando estes foram absolvidos do pedido - conclusões q) e r);

c) Saber se a Clínica responde nos termos da responsabilidade contratual pelos danos próprios sofridos pelo A. como danos morais e patrimoniais (lucros cessantes) - conclusões t) e x);

d) Saber se estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil nomeadamente o relativo ao nexo de causalidade entre facto e dano - conclusões y) a z);

e) Impugnação da matéria de facto e violação do art.º 662.º CPC - conclusões aa) a xx);

f) Aplicação alternativa da perda da chance - conclusões yy) a cc).

21. Atendendo ao indicado objecto o tribunal procederá à análise das questões suscitadas, mas não seguirá a ordem indicada pela recorrente, por se lhe afigurar mais coerente uma análise de outro tipo.

Em primeiro lugar ir-se-á apreciar a questão relativa ao modo como o TR conheceu da impugnação da matéria de facto, seguindo-se depois a análise da questão da causalidade entre o facto e o dano.

22. Questão prévia – admissibilidade do recurso

Vindo questionado o modo como o TR procedeu ao conhecimento da impugnação da matéria de facto, nos termos do art.º 662.º do CPC – questão de direito – onde não se evidencia dupla conformidade decisória por a questão só ter surgido na sequência da apelação, não há impedimento à admissibilidade do recurso de revista pela via normal.

A invocada dupla conformidade decisória não é igualmente evidente, à luz da própria decisão adoptada pelo tribunal recorrido e já transcrita supra.

O recurso deve ser conhecido na sua plenitude.

23. síntese do percurso e lógica subjacente às decisões da 1ª e 2ª instância.

Na sentença fez-se o enquadramento da questão discutida nos autos indicando que por se tratar de um problema de responsabilidade (máxime, negligência médica) envolvendo um hospital privado a questão se resolveria pela aplicação do regime da responsabilidade contratual; nesta responsabilidade também incumbiria ao hospital responder pelos actos dos médicos que fossem chamados a colaborar com o hospital, por via do art.º 800.º do CC, independentemente de o vínculo do médico ser o contrato de trabalho ou a prestação de serviços, e também independentemente de o paciente ter tido uma intervenção decisiva na escolha do médico que efectuaria a intervenção clínica;

Também aí se operou a qualificação da relação jurídica estabelecida entre a utente – falecida – e o hospital, à luz dos factos provados, e tendo em conta a tríplice possibilidade de enquadramento dogmático que a doutrina e jurisprudência têm adoptado – indicando que se trataria de um “contrato total”, abrangendo quer as obrigações atinentes ao internamento hospitalar, quer as obrigações atinentes à prestação de actos médicos.

Daí concluiu que “No âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos atos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC” - Ac do STJ de Processo 296/07.7TBMCN.P1.S1 de 23/03 de 2017

Seguindo-se a orientação do indicado aresto do STJ também se concluiu que a responsabilidade exclusiva do Hospital pressuporia uma imputação do evento danoso à culpa psicológica de um qualquer agente (médico, enfermeiro), utilizados pelo estabelecimento na execução das prestações a que ele se obrigou por virtude dos contratos de prestação de serviços médicos que celebrou com os seus utentes, o que no caso concreto se traduziu em considerar como pressuposto da responsabilidade civil:

i) Quanto ao facto - in casu, ter-se-á traduzido numa omissão: na não administração por parte dos réus do fármaco heparina de baixo peso molecular (HBPM) destinada a fazer a profilaxia da embolia pulmonar nem prescrever ou aplicar outros métodos profilácticos;

ii) Dever de actuar - as legis artis impunham a profilaxia omitida, tendo em consideração a utente concreta que se submetia à intervenção clínica; não ocorrendo a actuação houve facto ilícito;

iii) Nexo de causalidade entre a violação da legis artis e o dano – obtido através de presunção judicial, uma vez que não foi realizada prova directa: a causa da morte foi uma embolia pulmonar; administração de heparina reduz significativamente o perigo de morte por embolia pulmonar; a heparina não foi administrada à falecida enquanto esteva internada; a paciente morreu quando ainda se encontrava internada após a realização da referida cirurgia;

iv) Culpa – presume-se por se estar no campo da responsabilidade contratual (art. 799º e 800º do Código Civil)

Tendo-se considerado que a Ré não conseguiu convencer o tribunal da falta de nexo de causalidade entre a omissão e o dano – embora tenha tentado afirmar que podem ter existido outras causas da morte que não a embolia pulmonar – e que essa prova lhe incumbiria, o tribunal decidiu pela condenação do Hospital.

O Tribunal da Relação confirmou a sentença mas justificou a responsabilidade da 1ª R, com base no regime contratual e delitual, advogando o cúmulo de regimes.

24. Análise especificada de cada questão do recurso:

A) Modo como TR procedeu ao conhecimento da impugnação da matéria de facto, por via do exercício dos poderes previstos no art.º 662.º (conclusões aa) a xx))

Neste âmbito a recorrente contesta que não tenham sido valorados os meios de prova existentes nos autos e objecto do pedido, em especial, os que indica nas conclusões ll) a qq), e que se reportam especificamente a:

i) documentos - parecer do Colégio da Especialidade de Pneumologia, historial clínico da paciente e o relatório de enfermagem;

ii) depoimento de testemunhas (Dr. HH, Dr. II e Dr. FF;

iii) esclarecimentos prestados em audiência por todos os peritos.

Mais contesta que o tribunal tenha indicado a causa da morte por referência à certidão de óbito, que, na sua visão, não pode ser determinada e por essa via não pode ser imputada à recorrente qualquer responsabilidade por faltar o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Por isso contestou que se pudesse dar como provado o ponto 40.º da factualidade assente - “A morte de GG, deveu-se a trombo embolismo pulmonar”-, porque dos indicados meios de prova resulta que o TEP é apenas uma causa possível e manifestamente especulativa da causa de morte de GG, encontrando-se no registo clínico da malograda factos que permitem indiciar que a causa da morte foi um enfarte agudo do miocárdio, também potenciado por problemas médicos anteriores da falecida  - que sofria de dislipidemia.

Também pretendia que se desse como provado o facto não provado da alínea C).

Entrando no conhecimento da questão A

No que concerne à impugnação da matéria de facto, o tribunal recorrido operou o conhecimento da questão suscitada na apelação – em termos equivalentes à agora suscitada na revista – começando por afirmar a sua autonomia decisória em termos de formar a sua própria convicção, e analisando em primeiro lugar a ponto C dos factos não provados, confrontando-o com o facto provado 38, com os meios de prova cuja reapreciação fora solicitada, para concluir:

“Relativamente ao facto não provado e descrito sob a respetiva alínea C), o mesmo não passa de uma descrição excessivamente adjetivada em face da expressão objetiva dos ditos depoimentos, não evidenciando sequer sentido lógico, na parte em que se refere “ter sido proposta aos familiares da doente a realização da autópsia”, desde logo porque semelhante “proposta”, por imperativos legais, não se justifica na normalidade do acontecer em tais circunstâncias, e também na parte em que se aludiu à “recusa” de realização da autópsia por marte do marido da falecido, por não se encontrar na disponibilidade deste tal faculdade”, o que redundaria na sua manutenção como não provado.

O tribunal recorrido passou, em seguida, para a análise do ponto 40 dos factos provados, no sentido de verificar se o mesmo fora indevidamente assim qualificado. Para o efeito da análise socorreu-se então da prova testemunhal indicada pelo recorrente – testemunhos dos Dr. HH e Dr. II – e esclarecimentos dos peritos, que conjugou com a prova documental (em especial, o registo clínico de enfermagem, que também foi analisado em conjunto com a certidão de óbito passada pelo Réu Artur; na formação da sua convicção sobre a causa da morte – entre as hipóteses discutidas pelas testemunhas e peritos, que se situavam entre enfarto agudo do miocárdio ou trombo-embolismo pulmonar – veio a afirmar, no seu próprio julgamento e convicção, livre, atendendo aos meios de prova em confronto, que o trombo-embolismo pulmonar teria sido a causa da morte. Justificou a sua opção e convicção indicando que esta era a justificação mais plausível apontada pelo médico que conhecia e seguia a falecida já antes da cirurgia – a que acrescia o facto de este ser não só o médico que seguia a falecida, conhecendo o seu historial clínico, como também profissional que esteve presente ainda durante as manobras de reanimação da falecida. Também valorou de modo significativo o facto de ser este o médico que inscreveu na certidão de óbito como causa da morte o trombo-embolismo pulmonar.

Em reforço da sua convicção o tribunal apoiou-se ainda em pareceres médicos juntos, nomeadamente no parecer do INML onde esta é apontada como a causa provável de morte.

A convicção do tribunal formou-se ainda com base nos esclarecimentos do perito do INML - Prof. Doutor JJ – e no depoimento do perito médico KK, ... do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral.

O tribunal ficou assim convencido de existir uma causa da morte mais provável – o trombo-embolismo pulmonar – por não ser possível apurar já a efectiva e real causa da morte.

E para a fixação dessa causa da morte foi também decisiva a demonstração de não ter sido administrada à falecida um medicamento que, possivelmente, a evitaria – a heparina.

Em relação a este fármaco o tribunal apontou a opinião dos peritos como sendo fundamental – “Os peritos médicos ouvidos foram peremptórios no sentido de, no caso concreto, atenta a massa corporal da falecida e o género de cirurgia e sua duração deveria ter sido administrada a referida substância, o que resulta de todas as guide lines aplicáveis e que existiam em 2014. Foi explicada de forma muito clara uma dessas guide lines “Score de Caprini”, que se encontra junto aos autos a fls. 180 e ss, resultando dessa guide lines que o risco de incidência de trombo-embolismo é elevado.”

A credibilidade deste parecer saiu reforçada para a convicção do tribunal uma vez que “o perito do INML esclareceu ser cirurgião bariátrico, fazendo este género de cirurgias.”

Ao proceder deste modo torna-se claro que o tribunal recorrido deu cumprimento às exigências legais que se lhe impunham na reapreciação dos factos, conforme peticionado pelo recorrente, e de acordo com as disposições legais aplicáveis, sobre o valor probatórios dos meios apontados e modo como o tribunal deles pode retirar factos provados.

Como tem sido recorrentemente afirmado pela jurisprudência deste STJ, “a decisão de facto é da competência das Instâncias, conquanto não seja uma regra absoluta (tenha-se em atenção a previsão do art.º 674º n.º 3 do Código de Processo Civil), pelo que, o Supremo Tribunal de Justiça não deve, nem pode, interferir na decisão de facto, somente importando a respectiva intervenção, quando haja erro de direito, isto é, quando o acórdão recorrido viole lei adjectiva, afronte disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, nomeadamente, a prova documental ou por confissão, ou que fixe a força de determinado meio de prova, por exemplo, acordo das partes, confissão, documento, com força probatória plena.”

“O Supremo Tribunal de Justiça, no que respeita às decisões da Relação sobre a matéria de facto, não pode alterar tais decisões, sendo estas decisões de facto, em regra, irrecorríveis.” - Ac. STJ de 21/1/2019, proc. 3784/15.8T8CSC.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.

Do exposto anteriormente resulta inequívoco que não estamos perante nenhuma das situações de excepção; não houve violação de lei adjectiva; o TR formou a sua própria convicção; o TR analisou os meios de prova pedidos pelo recorrente – e os adquiridos nos autos; os meios de prova em causa não tinham valor probatório tabelado, situando-se a decisão do facto provado na convicção do julgador. O TR teve o cuidado de explicitar um a um o valor probatório dos meios de prova usados, demonstrando ter actuado no âmbito da sua livre convicção, por falta de meio de prova que lhe impusesse um certo resultado. O tribunal podia usar a presunção judicial para determinar que a omissão dos médicos foi determinante da morte da vítima, a partir dos factos provados, para afirmar o nexo de causalidade.

Improcede o recurso nesta parte.

B) Questão sobre se está demonstrado o nexo de causalidade entre o facto e o dano – e pode haver lugar a indemnização

Entrando na análise da questão B

Neste ponto o tribunal recorrido disse: “Porque no caso ficou claramente estabelecido o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e a morte da mãe do Autor, fica naturalmente prejudicada a necessidade de recorrer ao instituto jurídico da “perda de chance”, para alcançar a determinação do quantum indemnizatório devido, não tendo aplicabilidade no caso os critérios apontados para o efeito pela Recorrente.”

A recorrente insiste na questão, mas não tem razão.

O nexo de causalidade encontra-se estabelecido através da conjugação análise dos factos provados e da presunção judicial retirada pelo julgador relativamente à não administração da heparina como fármaco que podia ter evitado a morte, como se evidencia pelos seguintes factos provados:

40 - A morte da GG, deveu-se a trombo embolismo pulmonar.

41 - Os 2º, 3º e 4º Réus não procederam à administração do fármaco heparina de baixo peso molecular (HBPM) à falecida GG.

42 - A heparina de baixo peso molecular é uma droga que faz a profilaxia da embolia pulmonar e é a chave para a diminuição da morbilidade e mortalidade associadas ao TEV.

43 - A administração da referida heparina de baixo peso, no pré e pós operatório da GG, atentas as suas características físicas de obesidade e da dislipidémia bem como o facto ser uma cirurgia com anestesia geral, por laparoscopia, bem como a sua duração para além de uma hora, era profilaxia necessária.

44- Sendo certo que, 2º, 3º e 4º Réus também não prescreveram e aplicaram à GG outros métodos profilácticos, tais como meias de compressão elástica, ou de compressão pneumática intermitente.

45 - De acordo com o “Score de Caprini” o risco de TEV na pessoa da GG, era de Alto Risco, sendo recomendado, in casu o HBPM mais os meios mecânicos descritos.

C) Questão de saber se não seria de aplicar aqui a orientação da perda da chance para aferir do dano e da indemnização, por referências a três potenciais causas de morte

Entrando na análise da questão C

Neste ponto o tribunal recorrido disse: “Porque no caso ficou claramente estabelecido o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e a morte da mãe do Autor, fica naturalmente prejudicada a necessidade de recorrer ao instituto jurídico da “perda de chance”, para alcançar a determinação do quantum indemnizatório devido, não tendo aplicabilidade no caso os critérios apontados para o efeito pela Recorrente.”

A recorrente insiste na questão, mas não tem razão.

O nexo de causalidade encontra-se estabelecido através da conjugação análise dos factos provados e da presunção judicial retirada pelo julgador relativamente à não administração da heparina como fármaco que podia ter evitado a morte.

D) Saber se a recorrente tem responsabilidade contratual e extracontratual, em simultâneo e se pode responder pelos actos dos seus auxiliares quando estes não tenham qualquer responsabilidade, por terem sido absolvidos;


Entrando no conhecimento da questão D

No que se reporta à questão B, também suscitada na apelação, dizia aí a Ré que uma vez que todos os demais réus nesta acção foram absolvidos, tal só pode significar que no entender do tribunal  não existe fundamento de responsabilidade civil aquiliana dos 2.º a 4.º réus e  se assim é, estando excluída a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual dos demais réus, não pode haver lugar à responsabilização da CLIRIA nos termos do artigo 800.º do CC, na medida em que a aplicação deste normativo pressupõe necessariamente, no âmbito da responsabilidade civil profissional dos médicos, que estes sejam responsáveis.

A recorrente também diz que não compreende como pode ter sido condenada nos termos do regime da responsabilidade extracontratual, quando não existe imputação de quaisquer actos (próprios) ilícitos culposos à Recorrente – o que significa que existe uma violação do disposto no artigo 483.º do Código Civil ao decidir-se que a Recorrente incorre em responsabilidade civil aquiliana; é que a responsabilidade civil aquiliana por factos de outrem (note-se, in casu, exclusivamente de outrem) apenas poderia ser ponderada no quadro do artigo 500.º do CC, o que, manifestamente, não pode ser aplicável nos presentes autos por falta de alegação e muito menos prova de qualquer relação de subordinação entre os 2.º, 3.º e 4.º Réus (médicos especialistas que prestavam serviços à HLA através de sociedades comerciais – cf. artigos 61.º a 63.º e 66.º da matéria assente) e a ora Recorrente, pressuposto necessário à aplicação do artigo 500.º do CC, pelo que não existiria qualquer fundamento legal para enquadrar a responsabilidade civil da Recorrente nos quadros da responsabilidade aquiliana, prevista e regulada nos artigos 483.º e seguintes do CC.

Vejamos.

O tribunal recorrido começou por enquadrar a problemática suscitada na acção no âmbito da responsabilidade civil médica, concordando com a qualificação do contrato celebrado entre a falecida e o hospital como um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, na modalidade de “contrato total” e reportando-se à inexistência de qualquer vínculo de natureza contratual entre a falecida e os 2.º, 3.º e 4.º Réus, médicos que intervieram na cirurgia em causa – o que fez sustentando-se nos factos provados.

Por sua vez também aludiu à relação jurídica estabelecida entre a 1.ª Ré e os 2.º a 4.º Réus, dizendo: “ (…) o que resultou provado é que todos estes trabalhavam para aquela, por via de contratos de prestação de serviços, celebrados entre a 1.ª Ré e sociedades com as quais os demais Réus tinham vínculo; eram pagos pela Cliria, através das ditas sociedades, em conformidade com os honorários acordados; e a Cliria fornecia-lhes os meios técnicos, materiais e humanos necessários à prestação da sua atividade, designadamente: sala de consultas, utilização do Bloco Operatório e demais infra-estruturas e materiais, apoio de enfermagem, fármacos e consumíveis, além do apoio administrativo para marcação de atos médicos, segundo a disponibilidade de agenda comunicada pelos referidos médicos.”

Porque se estaria perante um contrato total, “a clínica responde por todos os danos ocorridos, sejam eles de carácter médico, assistencial, de equipamento ou de hotelaria; e responde, nos termos do art. 800.º do CCivil, pelos atos dos seus auxiliares, sejam estes médicos, enfermeiros ou auxiliares administrativos ou de limpeza, os quais, por sua vez, nenhuma relação contratual mantêm com o paciente”, o que conduziria a afirmar  que a “1.ª Ré é responsável, originariamente perante a paciente e agora perante o Autor, nos termos do n.º 1 do art. 800.º do CCivil, pelos atos dos 2.º a 4.º Réus na execução das prestações médicas convencionadas, como se tais atos fossem praticados por aquela devedora”.

para o efeito de imputar a responsabilidade à 1ª R pelos actos dos seus auxiliares o tribunal teve o cuidado de indicar “que tal responsabilidade “indireta” deve necessariamente ser aferida em função dos ditames que aos médicos Réus cumpria observar na realização da prestação médica à paciente ao serviço da 1.ª Ré”, indicando que os actos por que responde terão que ter sido praticados pelos auxiliares no cumprimento da obrigação assumida pela 1ªR; que tenha existido incumprimento da obrigação assumida; que exista culpa dos representantes legais ou auxiliares pelo inadimplemento da obrigação.

O que significa que não considerou desnecessária a responsabilidade dos auxiliares no não cumprimento, reforçando a imputação subjectiva do incumprimento do dever a estas pessoas, em vez de à própria Clínica.

Procurou, de seguida, justificar a responsabilidade da clínica, por referência aos pressupostos da responsabilidade civil (Facto, ilicitude, Culpa, Dano e Nexo de causalidade), e da responsabilidade subjectiva dos próprios auxiliares. Nesta última perspectiva analisou a posição assumida na sentença – que indicou acompanhar – e da qual resultaria haver verificação de todos os ditos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, no que concerne à atuação dos 2.º, 3.º e 4.º Réus.

E feita a análise concluiu:

“Chegados aqui, a seguinte conclusão se nos impõe: a conduta omissiva ilícita e culposa causadora da morte da mãe do Autor constitui fonte de responsabilidade contratual para a 1.ª Ré, na medida em que esta não cumpriu nos termos devidos a prestação médica a que se vinculou, e simultaneamente fonte de responsabilidade extracontratual por factos ilícitos para todos os Réus, incluindo a 1.ª Ré, porquanto foi violado um direito absoluto de outrem.”

Ao assim raciocinar o TR não dispensou o elemento subjectivo – culpa – dos auxiliares como elemento-chave que permitiria a responsabilização da própria Clínica, 1º R.

O que significa que a argumentação do recorrente falha completamente ao concluir que a 1ª R está a ser responsabilizada numa situação em que os seus auxiliares não são responsáveis.

A não responsabilização dos auxiliares só vem a ser colocada como questão jurídica – e resolvida pelo tribunal – num momento posterior e perante uma outra problemática: a de saber se na responsabilidade médica deve haver cumulação de regimes de responsabilidade civil contratual com a delitual.

O tribunal sente então necessidade de explicar o “estado da questão” na doutrina – citando ANDRÉ GONÇALO DIAS PEREIRA e a afirmação do A. no sentido de “a tendência moderna do Direito Civil europeu vai no sentido de diminuir as diferenças entre a responsabilidade contratual e extracontratual”.

Esta necessidade leva o tribunal a explicitar também as diferenças mais marcantes entre o regime da responsabilidade contratual e a delitual, abordando o problema do ónus da prova da culpa, do regime da solidariedade vs. conjunção na responsabilidade plural, do prazo de prescrição, da gradação equitativa da indemnização, da responsabilidade por facto de terceiro, do regime aplicável à capacidade, da mora e do tipo de danos ressarcíveis em cada modalidade.

Esta necessidade surge pela circunstância de um mesmo facto poder preencher os pressupostos da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual, surgindo a dúvida se os regimes se cumulam (ainda que não possa existir duplicação de indemnização pelo menos dano), ou não.

Dividindo-se a doutrina entre os partidários da cumulação de regimes e os partidários da não cumulação (ou consunção), e encontrando-se na jurisprudência uma tendência equivalente, não podendo o juiz deixar de decidir o caso concreto submetido a julgamento, a opção do tribunal - no caso concreto- foi a de afirmar a possibilidade de cumulação de regimes:

“Por nossa parte, aderimos à tese do cúmulo, admitindo mesmo a possibilidade de o lesado se socorrer das normas de ambos os complexos de regulamentação, podendo inclusivamente combiná-las numa mesma ação, por ser a solução que melhor se coaduna com o princípio do favorecimento da vítima.”

A posição do tribunal recorrido envolve ainda a análise desta mesma questão reportada à sentença, esclarecendo o modo como a sentença terá equacionado o problema da (não) cumulação, para afirmar ainda que isso não significou dizer que os médicos não eram responsáveis de todo. Porque na sentença o tribunal entendeu haver consunção da responsabilidade extracontratual na contratual da 1ª R, não condenou os médicos.

Sucede que o A. não recorreu (a título principal) dessa decisão que lhe era desfavorável, tendo em conta que havia pedido a responsabilização solidária de todos os RR. pelos danos sofridos.

Diz-se no acórdão recorrido: “o Autor/Recorrido aceita a decisão da 1.ª instância, pugnando pela improcedência do recurso da 1.ª Ré, e apenas formula subsidiariamente a pretensão de ampliação do objeto do recurso, visando a responsabilização civil extracontratual solidária dos 2.º, 3.º e 4.º Réus, no caso deste tribunal superior entender que a 1.ª Ré não poderá ser responsabilizada pelos danos morais e patrimoniais sofridos”.

Porque o TR veio a entender que a 1ªR devia ser responsabilizada pelos danos morais e patrimoniais sofridos, não se tornou necessário conhecer do objecto da ampliação do recurso, o que não permitiu ao TR aplicar, na prática, a solução que advogou de haver cumulação de responsabilidade contratual da 1ªR e dos médicos.

No que concerne à responsabilidade extracontratual da 1ª R e ao modo como ela redundaria na aplicação do regime do art.º 500.º, não se encontra no acórdão recorrido qualquer referência a esse ponto, o que se compreende igualmente pela lógica de raciocínio seguida pelo tribunal – admitir que a responsabilidade contratual se cumula com a extracontratual, sem que o regime de uma delas exclua a outra, mas sem desenvolver especificamente as consequências da eventual responsabilidade extracontratual da 1ª Ré por não sentir necessidade disso, considerando que os demais RR foram absolvidos do pedido e não houve recurso (a título principal) dessa absolvição; sendo a 1ª R. responsabilizada nos termos da responsabilidade contratual – e sendo os pressupostos desta iguais aos da responsabilidade extracontratual – estaria a solução justificada.

Porque na jurisprudência do STJ se tem entendido que a responsabilidade contratual é dominante e deve prevalecer nas situações da responsabilidade médica – e sem prejuízo de haver possibilidade de se defender o cúmulo – porque no caso concreto a solução se encontra ajustada ao sistema jurídico e se afigura bem fundamentada, apoiada na lei e justa, não assiste razão à recorrente, na questão suscitada.

E) Se o A. tem direito a receber a indemnização peticionada, em qualquer das hipóteses, ou se apenas uma parte

Entrando na análise da questão E

Quanto aos danos peticionados, já na vertente de apenas estarem em causa os do A. CC, porquanto os demais autores acordaram com a Ré por via de transacção – disse o tribunal: “No caso de morte da vítima o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em primeiro lugar, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos”

Depois passou a analisar cada um dos danos peticionados:

1 - Dano de privação do direito à vida, dano sofrido pela falecida GG – dano moral, quantificado em 70.000, por recurso à equidade; estando em causa a sua atribuição ao filho da falecida, esta será achada de acordo com a regras da sucessão legítima (art. 2139º do Código Civil), cabendo a este 1/3 do valor encontrado, isto é, 23.333,33;

2 - Danos morais sofridos pela vítima – não atribuído;

3 - Danos morais do autor CC, filho da falecida, provenientes da morte desta; na altura em que ocorreu a morte da mãe tinha 15 anos - 27.000 €.

4 - Danos patrimoniais do Autor CC ocasionados pela morte da mãe, na modalidade de lucros cessantes - 21.236,64 €.


O recorrente afirma que as indemnizações arbitradas não estão bem porque o A. não tem direito a receber indemnização por todos e cada um dos danos indicados, quer porque não se seguiu o regime legal adequado, quer por não haver lugar à sua atribuição em caso de responsabilidade contratual.

Assim, nas conclusões diz:

t) No âmbito da responsabilidade civil contratual nunca serão devidos ao Autor -o que o próprio acórdão do Tribunal da Relação do ... reconhece – os danos próprios alegados;

u) Isto porque o Autor é terceiro relativamente ao contrato;

v) Pelo que, não existindo lugar a responsabilidade civil aquiliana da Recorrente a atribuição de danos próprios ao Autor (danos morais e lucros cessantes) é uma violação do disposto no artigo 406.º, n.º 2, do CC”

A indemnização arbitrada quanto ao primeiro dano – privação da vida da vítima – não vem directamente questionada, motivo pelo qual não se justifica a sua análise.


Relativamente a outros dois tipos de danos – aqueles que verdadeiramente vem questionados –, sustenta a Recorrente que ao Autor, enquanto terceiro relativamente à lesada, sua mãe, não assiste o direito a qualquer das mencionadas indemnizações, com fundamento em responsabilidade contratual.

Não obstante a sentença os ter arbitrado sem consideração deste obstáculo, o acórdão recorrido justifica a sua manutenção à luz de visão anteriormente explicitada de na responsabilidade médica poder haver cumulação de regimes de responsabilidade contratual com extracontratual.

Por isso diz:

“a responsabilidade da 1.ª Ré é também, por tudo quanto deixámos tratado supra, de natureza extracontratual por facto ilícito.

E sendo assim, os danos em questão, sofridos pelo próprio Autor, tendo como causa adequada o falecimento da sua mãe, encontram cabal justificação na lei: quanto aos danos patrimoniais, desde logo por via das disposições conjugadas dos artigos 495.º, n.º 3, 562.º, 564.º, n.º 1, 566.º e 2009.º, n.º 1, al. c), todos do CCivil; no que concerne aos danos não patrimoniais, com fundamento maior no disposto no art. 496.º, nºs 2, 3 e 4, in fine, do CCivil.”

Quanto aos danos não patrimoniais próprios

Ainda que não se advogasse esta orientação e se equacionasse a indemnização destes danos no âmbito da responsabilidade contratual, poder-se-ia chegar a resultado equivalente, pois quanto aos danos não patrimoniais não é de excluir a aplicação do regime do art.º 496.º do CC à responsabilidade contratual, conforme se afirma na anotação seguinte, de GABRIELA PARIS FERNANDES, in CC Anotado, UCEditora:

Nos dias de hoje, a doutrina e jurisprudência dominantes acolhem um princípio favorável à compensação do dano não patrimonial na responsabilidade contratual, a aplicar com certa prudência e segundo uma específica valoração do dano contratual: deve ser balizado por critérios de adequação e previsibilidade do dano para o devedor [sublinhando este ponto, cfr. Carneiro da Frada, 2006:92]; justifica-se, em especial, quando se verifique a violação de deveres de proteção e cuidado para com a pessoa da outra parte e quando a prestação devida tenha por objeto a satisfação de interesses de índole não patrimonial, desde que o filtro da gravidade do dano o legitime [cfr., neste sentido, e para um maior desenvolvimento do tema, com exemplos, A. Pinto Monteiro, 2015:19-24, Brandão Proença, 2017a:301-306], ou no âmbito do incumprimento no âmbito de relações contratuais duradouras que impliquem uma particular confiança entre as partes, como sucede nos contratos de trabalho, de arrendamento e de seguro [neste sentido, cfr. Albuquerque Matos, 2017a:22-23], ou quando se verifique uma conexão entre o vínculo obrigacional e os danos, que pode resultar da vontade das partes, explícita ou implícita [Soares Pereira, 2009: 314 e 333].


Esta Autora chega mesmo a citar casos de jurisprudência do STJ onde a questão foi resolvida no afirmado sentido:

“(…) no domínio do incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços médicos, por violação de deveres de proteção da integridade física do paciente - na realização de cirurgia [Ac. STJ 07.03.2017] (…)

(…)

No domínio da responsabilidade civil por acto médico, o STJ foi já chamado a conhecer pretensões de indemnização por danos não patrimoniais causados por wrongful life e wrongful birth - delimitando estes grupos de casos, cfr., P. Mota Pinto, 2007: 5-25 e 2008a:738-753 -, que decidiu pelos seus acórdãos de 19.06.2001, de 17.01.2013 e de 12.03.2015.”


No caso dos autos os indicados requisitos encontram-se preenchidos, por se tratar de uma relação específica entre o hospital e a falecida e entre esta e o seu filho, à data menor, que ficou privada de uma pessoa muito importante no seu desenvolvimento enquanto ser humano, com o sofrimento inenarrável que lhe está associado.


É esta a orientação que se colhe na lei e com apoio doutrinal, conforme citação da A. que vimos seguindo, onde afirma:

“Segundo o n.º 1 do artigo 496.º, são compensáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Considera a jurisprudência que dano grave, merecedor da tutela do direito, é não apenas o dano “exorbitante ou excepcional”, mas também aquele que sai da mediania, ultrapassando as fronteiras da banalidade [cfr., v.g., o Ac. STJ 04.03.2008 (08A164)]. A gravidade do dano afere-se, no entendimento da jurisprudência e da doutrina, segundo critérios objetivos - de acordo com um padrão de valorações ético-culturais aceite numa determinada comunidade, num certo momento histórico, e tendo em conta o circunstancialismo do caso - e não de harmonia com percepções subjetivas ou de uma particular sensibilidade do lesado”

Quanto aos danos não patrimoniais

No que concerne aos danos patrimoniais na vertente de lucro cessante na parte relativa à perda de assistência prestada pela mãe, GPF, em anotação ao art.º 495.º diz:

“O artigo 495.º versa, como a sua epígrafe em parte explicita, sobre a indemnização devida a determinados terceiros por certos danos patrimoniais que sofram em caso de morte ou lesão corporal de outrem

(…)

A atribuição expressa pelo artigo 495.º do CC de indemnização a terceiros por morte ou lesão corporal do lesado imediato constitui um desvio ao princípio geral do nosso sistema jurídico segundo o qual a titularidade do direito a reparação cabe apenas à pessoa a quem pertence o direito absoluto ou o interesse juridicamente protegido que foram ofendidos e não também a terceiros, ou seja, a sujeitos só mediata, indirecta ou reflexamente prejudicados (…)

Por seu turno, o n.º 3 do preceito, constituindo igualmente um desvio ao referido princípio, na medida em que atribui aos que podiam exigir alimentos ao lesado e àqueles a quem este os prestava no cumprimento de uma obrigação natural, direito de indemnização contra o responsável pela morte ou lesão corporal do sujeito obrigado a alimentos, justifica-se também para a protecção do bem vida e, mais amplamente, da dignidade da pessoa humana, porquanto a obrigação alimentar visa, segundo um princípio de solidariedade, garantir a sobrevivência do credor de alimentos [neste sentido, Menezes Leitão, 2018: 407] e a sua subsistência digna. (…)

O n.º 3 do artigo 495.º estabelece que “têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural”, direito que deve ser reconhecido tanto no caso de morte, como no caso de lesão corporal que afecte a capacidade de ganho da vítima e a impossibilite de cumprir a obrigação alimentar (…)

Pelas mesmas razões, a indemnização a título de perda de alimentos devida ao cônjuge sobrevivo e aos filhos menores não se determina segundo os critérios de quantificação que presidem, em geral, à definição do montante da obrigação de alimentos, mas de acordo com a teoria da diferença (566.º, n.º 2), visando a manutenção do nível de vida dos beneficiários existente à data da lesão – e até ao momento em que os alimentos seriam devidos - , apurada com recurso a um juízo de equidade (566.º, n.º 3).”


Do exposto resulta, por força da lei, que este tipo de danos também é indemnizável no âmbito da responsabilidade contratual, como no regime delitual, pelo que não se identifica no acórdão recorrido qualquer violação da lei.

Improcedem o recurso também nesta parte.


III. Decisão

Pelos fundamentos indicados é negada a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 9 de Dezembro de 2021

Fátima Gomes (relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto Oliveira