Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
304/17.3T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PRESCRIÇÃO EXTINTIVA
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / TEMPO, REPERCUSSÃO E RELAÇÕES JURÍDICAS / PRAZO DE PRESCRIÇÃO / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / PROVA DOCUMENTAL / DOCUMENTOS PARTICULARES – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS.
DIREITO CONSTITUCIONAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Dias Marques, Prescrição Extintiva, Coimbra, 1953, p. 4;
- José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, p. 678;
- José Vasques, Contrato de Seguro, p. 355 e 356;
- José Vasques, Contrato de Seguros, p. 58;
- Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I, 4.ª Edição, Coimbra, 2005, p. 249;
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, edição de 1974, p. 445;
- Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, Volume I, p. 585 e ss.;
- Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, p. 37;
- Romano Martinez, Direito dos Seguros, p. 91 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 309.º, 483.º E 498.º.
CÓDIGO PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 635.º, N.º 4 E 639.º, N.º 1.
REGIME DE REPARAÇÃO DE ACIDENTES DE TRABALHO E DE DOENÇAS PROFISSIONAIS, APROVADO PELA LEI N.º 98/2009, DE 4 DE SETEMBRO: - ARTIGO 23.º, ALÍNEA A).
Sumário :
I. O instituto da prescrição extintiva respeita na sua essência à realização de objectivos de conveniência ou oportunidade, sem prejuízo de o sustentar também uma ponderação de justiça, na medida em que a prescrição arranca do reconhecimento de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo, o que faz presumir uma renúncia ou, pelo menos o torna indigno da tutela do direito.

II. O regime jurídico atinente à responsabilidade civil por factos ilícitos, cujos preceitos estão plasmados nos artºs. 483º, a 498º do Código Civil, impõe o entendimento de que o prazo de prescrição de 3 (três) anos, só deverá ser atendido estando em causa o exercício de direitos com fundamento na responsabilidade extracontratual.

III. As particularidades do contrato de seguro ramo acidentes de trabalho, atribui-lhe uma natureza singular, configurando-o, parcialmente, como contrato a favor de terceiro, na medida em que a seguradora assume, nomeadamente, e perante o beneficiário do seguro, indicado pelo respectivo tomador, a obrigação de prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa.

IV. Tendo resultado apurado que a Ré se obrigou a proporcionar perante a Ré/Seguradora, certo resultado do seu trabalho, de natureza médica, cirúrgica, hospitalar, necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da Autora e à sua recuperação para a vida activa, sendo, esta a beneficiária prometida, a aludida facticidade subsume-se ao contrato de prestação de serviços, outrossim, as especificidades da prestação de serviços ajustada, confere particularidades ao outorgado contrato, reconhecido como contrato combinado, configurando-o, além de prestação de serviços, também como, parcialmente, contrato a favor de terceiro.

V. O terceiro, a favor de quem for convencionada a promessa adquire o seu direito à prestação, independentemente de aceitação, sendo apodíctico afirmar, a sua legitimidade para exigir do promitente, o cumprimento da prestação prometida.

VI. O direito de exigir a prestação estabelecida em favor de terceiro, constitui um direito próprio do terceiro, decorrente do outorgado contrato “combinado” de prestação de serviços e contrato a favor de terceiro, pelo que, a alegada responsabilidade civil ao decorrer de contrato, importa um prazo prescricional de 20 (vinte) anos.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I  – RELATÓRIO


AA intentou acção declarativa sob a forma de processo comum contra, BB, S.A. e CC, S.A., agora designada, DD, S.A., formulando, contra estas os seguintes pedidos:

(i) Pagamento de uma indemnização não inferior a € 51.000,00 (…), a título de danos não patrimoniais;

(ii) Pagamento de uma indemnização, cujo montante relega para execução de sentença, a título de perdas aquisitivas laborais de IPP e IPG (…)

(iii) Pagamento de despesas médicas, medicamentosas e hospitalares que venha a reclamar;

(iv) Juros respectivos à taxa legal desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Articulou a Autora, com utilidade, a sua pretensão de indemnização numa actuação negligente da Ré, BB, S.A., em acto médico que realizou na sus própria pessoa, e do qual lhe resultaram lesões, estendendo a responsabilidade à Ré, CC, S.A., agora designada, DD, S.A., uma vez que esta assumiu os riscos do acto médico.

A Ré seguradora veio contestar a acção invocando a ineptidão da petição inicial, a sua ilegitimidade para a acção, a incompetência material do tribunal e a prescrição do direito da Autora.

Impugnou ainda os factos alegados, reclamando a improcedência da acção.

A Ré, BB, S.A., também apresentou contestação, invocando a prescrição do direito da Autora e a ilegalidade de dedução de pedidos genéricos e relativos a danos futuros incertos e indeterminados.

Impugnou ainda os factos alegados pela Autora, pugnando pela improcedência da acção e pela condenação da Autora, como litigante de má-fé.


Findos os articulados, o Tribunal de 1ª Instância considerou estar habilitado a conhecer da invocada excepção de prescrição, tendo proferido decisão que se consigna:

“Da exceção da prescrição do direito de indemnização da Autora:

(…)

São os seguintes os factos a atender (considerados assentes por acordo das partes expresso nos respetivos articulados e dos documentos juntos aos autos):

- A Autora ao serviço da Associação Cultural Recreativa e Musical de …, tomadora de seguro de acidente de trabalho, terá sofrido um acidente de trabalho em 24/12/2000.

- A Associação Cultural Recreativa e Musical de … tinha a sua responsabilidade por acidente de trabalho transferida para a CC pela apólice 001…1.

- Por força desse acidente correu termos a respetiva ação no Tribunal de Trabalho no âmbito da qual a CC indemnizou a autora pelos valores fixados.

- Com data de 7 de setembro de 2001, a CC emitiu uma declaração com o seguinte teor: “A CC, S.A., declara que, AA, morador(a) em …, …, está abrangido(a) pela Apólice de Seguros de Acidentes de Trabalho nº A 0001…5 do Tomador de Seguros – As. Cultural, Recreativa e Musical. Mais declara que a CC, S.A., toma responsabilidade sobre a(o) cirurgia necessário (a) à reabilitação de AA, vítima de acidente de trabalho abrangido pela referida Apólice, a ser efetuado(a) em Braga a 12-09-2001”.

- No dia 12 de Setembro de 2001, no âmbito da ação por acidente de trabalho, a Autora foi submetida a operação cirúrgica, com aplicação de um parafuso de fixação na Tíbia.

- Consta do documento de fls 12 junto aos autos pela autora, datado de 24 de dezembro de 2001, que “(…) Atualmente está a evoluir bem na fisioterapia, e aguarda marcação de cirurgia para extração do parafuso aplicado.”

- A presente ação deu entrada no dia 19-01-2017 tendo a 1ª Ré sido citada em 25-01-2017 e a 2ª Ré em 26-01-2017.

Bem analisada a pretensão da Autora, na configuração que lhe dá quanto à causa de pedir e pedidos, cremos não haver dúvidas que a mesma se enquadra no domínio da responsabilidade civil por factos ilícitos, de cariz extracontratual.

Na verdade, não existiu qualquer relação contratual estabelecida entre Autora e Ré Clínica BB, dado que esta interveio a pedido da Ré Seguradora, sem que tivesse sido contratado diretamente com a Autora a prestação de serviços médicos.

Do mesmo modo, não tem a Autora qualquer relação contratual com a Ré CC.

O único ponto de ligação entre as partes, sem qualquer conformação jurídica, reside na circunstância de a Autora ter sofrido um acidente de trabalho ao serviço da Associação Cultural Recreativa e Musical de … que tinha a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a CC pela apólice 001…21, que a indemnizou pelos valores fixados pelo Tribunal de Trabalho. No âmbito da ação laboral a autora foi submetida a uma intervenção cirúrgica em estabelecimento escolhido pela Seguradora que assumiu os riscos da cirurgia.

Sucede que, a Autora afasta declaradamente qualquer direito provindo desta relação laboral, para o qual este tribunal não seria o competente em razão da matéria.

A Autora delimita expressamente o objeto do litígio à atuação negligente da Ré Clínica BB.

Destarte, a lei substantiva aplicável ao caso é a que emerge da responsabilidade civil extracontratual à luz da espécie jurídica figurada nos artigos 483º e seguintes do Código Civil.

Para esta responsabilidade a lei prevê, no seu artigo 498.º do Código Civil, um prazo curto de prescrição, correspondendo este prazo a três anos e se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.

A factualidade imputada à 1ª Ré, seria subsumível abstratamente ao crime de ofensa à integridade física (art. 143º, do Código Penal), sendo-lhe aplicável o prazo de prescrição de 5 anos (art. 118º, nº1, al. c, do Código Penal).

O momento inicial de contagem do prazo de prescrição deve coincidir com o momento em que a Autora refere que deveria ter sido retirado o parafuso, verificando-se uma omissão por parte da Ré Clínica, a qual lhe causou os danos de que vem reclamar o respetivo ressarcimento.

E esse momento inicial situa-se, pelo menos, na data de 24 de dezembro de 2001, data do documento em que a Autora estriba a afirmação da necessidade de retirada do parafuso que lhe foi colocado na cirurgia de 12 de setembro de 2001.

Os Réus foram citados para a presente ação em 25 e 26 de janeiro de 2017.

Entre a data do conhecimento do facto danoso e a citação dos réus decorreram mais de 15 anos.

Donde, há muito se mostra prescrito o direito de indemnização da Autora.

A prescrição configura um facto impeditivo do direito da Autora, que conduz à absolvição do pedido (arts 576.º, n.º 3 e 579.º do C.P.C.),

Pelo exposto, julgo verificada a prescrição do direito de indemnização da Autora e, em consequência, absolvo as Rés dos pedidos contra si formulados.

Custas pela Autora.

Registe e notifique”.


Inconformada, a Autora/AA recorreu de apelação, tendo o Tribunal a quo conhecido do interposto recurso, proferindo acórdão em cujo dispositivo foi consignado:

“Pelo exposto, Julga-se procedente a Apelação e revoga-se a decisão recorrida.

Custas (da Apelação) pelas recorridas.”


É contra esta decisão que a Ré/BB, S.A. se insurge, formulando as seguintes conclusões:

“A. O presente Recurso vem interposto do Acórdão da Relação de … que declarou procedente o recurso de apelação, e revogou a decisão que julgou prescrito o direito indemnizatório da Autora.

B. Ora, vem a Recorrente, salvo o devido respeito, que é muito, discordar veementemente do entendimento explanado no referido Acórdão, já que entre a Recorrida e Recorrente nunca foi celebrado qualquer tipo de contrato, por isso, os danos decorrentes da alegada negligência da Recorrente apenas poderão ser enquadráveis no plano da responsabilidade civil extracontratual.

C. Vem o douto Acórdão referir que o facto de a Recorrida ter prestado o seu consentimento na intervenção cirúrgica é suficiente para que se considere existir uma declaração de aceitação da proposta contratual da Recorrente, formando-se, desta feita, um contrato de prestação de serviços médicos.

D. Salvo o devido respeito, que é muito, a Recorrente e a Recorrida não estabeleceram de forma direta qualquer tipo de relação contratual. Isto porque, a formação de um negócio jurídico válido e eficaz pressupõe a existência de um encontro de vontades, i.e., um encontro de declarações negociais dignas de formarem um negócio jurídico.

E. Neste sentido veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.01.2017, proferido no âmbito do processo n.º 4527114.9T8FNC.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, quando refere que “A declaração negocial tem, assim, como função primordial, a de exteriorizar a vontade psicológica do declarante, visando, dessa forma e sob a égide do princípio da autonomia privada, realizar a vontade particular através da produção intencional de um efeito ou de uma regulamentação jurídico-privada.”.

F. Ora, na verdade, e como melhor adiante se explanará, esse referido “encontro de vontades” não tem natureza de declaração negocial, não podendo, então, ser digno de formar um negócio jurídico entre as partes.

G. Na verdade, apenas existiram dois conjuntos de declarações negociais válidas e eficazes, a saber: 1) declaração negocial da Entidade Empregadora da Recorrida e da Ré Seguradora, que originou o contrato de seguros em que é segurada a Recorrida; 2) declaração negocial entre Recorrente e Ré Seguradora, que originou o contrato de prestação de cuidados de saúde, da qual a Recorrida veio a beneficiar.

H. A Recorrida não é parte de qualquer um destes contratos, apenas podendo ser considerada como a destinatária dos efeitos jurídicos pretendidos pela Recorrente e pela Ré Seguradora, não tendo, desta forma, exteriorizado qualquer tipo de contratar com estas.

I. A única interação entre Recorrente e Recorrida foi o consentimento prestado por esta última.

J. Porém, o consentimento tem natureza de ato jurídico stricto sensu, consistindo uma mera tolerância do paciente em se submeter a uma intervenção cirúrgica, não sendo constitutiva de qualquer negócio jurídico válida e eficaz.

K. Desta forma, tal como ensina ORLANDO DE CARVALHO, o consentimento pode revestir três tipos diferentes, a saber: 1) consentimento tolerante; 2) consentimento autorizante; 3) consentimento vinculante.

L. No caso em apreço, como se está perante uma intervenção jurídica para benefício próprio, o consentimento em causa será o tolerante - em que está em causa uma exclusão da ilicitude de uma agressão, em que o paciente “tolera” uma agressão da sua integridade física, com o fim de ser submetido a uma intervenção médica, não atribuindo qualquer tipo de expectativas para a parte contrária (médico), sendo livremente revogável pelo paciente.

M. Assim, a doutrina nacional dominante tem-se pronunciado no sentido de qualificar o consentimento como um ato jurídico, ao invés de uma declaração negocial.

N. Os atos jurídicos produzem efeitos independentemente da vontade. Estes mesmos atos não têm o elemento volitivo-final quanto aos seus efeitos. Isto porque esses mesmos efeitos produzem-se por força da lei, em virtude de normas imperativas, independentemente desses efeitos estarem ou não abrangidos pela vontade das partes. Estes efeitos são predeterminados, não sendo possível a intervenção da vontade das partes para a sua formulação.

O. Assim, os efeitos decorrentes do consentimento prestado pelo paciente, não implicam qualquer manifestação de vontade. Isto porque, a produção de efeitos está confinada às normas imperativas que regem a atividade médica, não estando na disponibilidade das partes a escolha de produção ou não produção dos mesmos.

P. Acresce que o consentimento do paciente é livremente revogável, não implicando qualquer tipo de indemnização ou proteção jurídica da contraparte. Ao contrário do que ocorria se de uma verdadeira declaração negocial se estivesse a falar. Assim, a eventual existência de uma relação contratual entre médico e paciente deverá ocorrer em momento anterior a este mesmo consentimento.

Q. Ora, embora o comum seja a existência de uma relação contratual entre médico e paciente nos estabelecimentos de saúde privados, na verdade, não se dispensa a existência de um acordo de vontades entre as partes. A fundamentação da relação entre as partes deve ser baseada na livre contratação.

R. Assim, nos casos em que não seja possível averiguar dessa mesma livre contratação, não se poderá assumir urna relação contratual entre as partes. Veja-se, nomeadamente, o Acórdão da Relação de … de 13.12.2012, proferido no âmbito do processo n.º 2146/0S.0TVLSB.Ll-2, disponível em www.dgsi.pt. “Se tal vínculo inexiste a responsabilidade civil só pode resultar da violação de direitos absolutos ou da prática de certos atos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem.”.

S. Mais acresce que o contrato entre médico-paciente tem carácter intuitus personae, ou seja, devido à relação de confiança estabelecida entre as partes, a prestação, em regra, apenas poderá ser cumprida pela parte contratada.

T. Neste sentido veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.03.2015, proferido no âmbito do processo n.º 1212/08.4TBBCL.G2.S1, disponível em www.dgsi.pt."o carácter de contrato personalíssimo ou «intuitus personae», cuja obrigação pactuada só pode ser praticada, em princípio, pelo médico contratado”.

U. No caso em apreço, verifica-se que a escolha do médico, ou serviço clínico, não teve por base qualquer escolha por vontade da Recorrida, nem tampouco por existir uma relação de confiança nos serviços clínicos da Recorrente.

V. Na verdade, a Recorrida apenas foi assistida pelos serviços da Recorrente por ser beneficiária de um contrato a favor de terceiro celebrado entre a Ré seguradora e a Recorrente, não existindo qualquer relação inter-subjetiva entre Recorrida e Recorrente.

W. Nos termos do disposto no art.º 443.° n.º 1 do C.C. “Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de proteção legal, a obrigação de efetuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita.”

X. Nestes termos, não consta o terceiro enquanto parte na relação contratual estabelecida entre promitente e promissário. Este apenas beneficia da prestação acordada pelas partes.

Significa, assim, que a Recorrida apenas se estabeleceu enquanto beneficiária da prestação de cuidados de saúde, acordada entre a Ré Seguradora e Recorrente.

Y. A Recorrida ao consentir a intervenção cirúrgica, através de um consentimento tolerado, não está de forma alguma a afetar a validade ou eficácia do contrato celebrado em seu favor. A adesão ou rejeição incide apenas no seu direito à prestação, uma vez que, enquanto terceiro, a Recorrida não teria qualquer outro direito ou dever. Significa, portanto, que, embora esta seja beneficiária do contrato, o mesmo não implica que se torne parte do contrato pelo facto de ter aderido ao mesmo.

Z. Por não ser parte no contrato, a Recorrida não é titular de quaisquer direitos e obrigações decorrentes do cumprimento do referido contrato. Pelo que em caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso da prestação, de que é beneficiária, a Recorrida apenas poderá lançar mão do instituto da responsabilidade extracontratual, por forma a exigir uma eventual indemnização, por parte de quem estava obrigado à prestação basilar do contrato a favor de terceiros.

AA. Deve pois ser revogada a decisão recorrida, mantendo-se a proferida em 1.ª Instância, uma vez que a primeira violou frontalmente o disposto nos artigos 483.º e 498.º do Código Civil aplicando erradamente o vertido nos artigos 798.º e 309.º do Código Civil, ao caso dos autos, quando não se trata de um caso de responsabilidade civil contratual, mas sim extracontratual, tanto mais que a própria Autora invoca direitos absolutos, como o da integridade física.

BB. Assim, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, por provado, revogando-se, em consequência, a decisão proferida pelo Tribunal a quo e substituindo-a por outra que confirme a sentença de 1.ª instância.

Nestes termos, e nos demais de Direito que serão doutamente supridos por V. Exas, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente e, em consequência, revogada a decisão tomada pela Relação de …, com confirmação da sentença proferida em 1.ª instância, por se estar perante um caso de responsabilidade civil extracontratual entre as Recorrente e Recorrida, devido à não existência de celebração de qualquer contrato entre as mesmas, julgando-se, assim, verificado o prazo prescricional de 3 anos, que há muito já foi ultrapassado.”


Houve contra-alegações apresentadas pela Recorrida/Autora/AA, concluindo pela improcedência do recurso apresentado.

Foram colhidos os vistos.


Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pela Recorrente/Ré/BB, S.A., consiste em saber se:

(1) O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito, ao julgar improcedente a excepção da prescrição do direito arrogado pela Autora/AA, impondo-se a revogação dessa decisão e a sua consequente substituição por outra que, julgando procedente a enunciada excepção, absolva a Ré/BB, S.A.. do pedido deduzido pela Autora/AA?


II. 2. Da Matéria de Facto


São os seguintes, os factos considerados provados, por acordo das partes, expresso nos respectivos articulados, e dos documentos juntos aos autos:

“- A Autora ao serviço da Associação Cultural Recreativa e Musical de …, tomadora de seguro de acidente de trabalho, terá sofrido um acidente de trabalho em 24/12/2000.

- A Associação Cultural Recreativa e Musical de … tinha a sua responsabilidade por acidente de trabalho transferido para a Rural Seguros pela apólice 001…1.

- Por força desse acidente correu termos a respetiva ação no Tribunal de Trabalho no âmbito da qual a CC indemnizou a autora pelos valores fixados.

- Com data de 7 de setembro de 2001, a CC emitiu uma declaração com o seguinte teor: “A CC, Companhia de Seguros de Ramo Reais, S.A., declara que, AA, morador(a) em …, …, está abrangido(a) pela Apólice de Seguros de Acidentes de Trabalho nº A 0001…05 do Tomador de Seguros – As. Cultural, Recreativa e Musical. Mais declara que a CC, S.A., toma responsabilidade sobre a(o) cirurgia necessário (a) à reabilitação de AA, vítima de acidente de trabalho abrangido pela referida Apólice, a ser efetuado(a) em Braga a 12-09-2001”.

- No dia 12 de Setembro de 2001, no âmbito da ação por acidente de trabalho, a Autora foi submetida a operação cirúrgica, com aplicação de um parafuso de fixação na Tíbia.

- Consta do documento de fls 12 junto aos autos pela autora, datado de 24 de dezembro de 2001, que “(…) Atualmente está a evoluir bem na fisioterapia, e aguarda marcação de cirurgia para extração do parafuso aplicado.”

- A presente ação deu entrada no dia 19-01-2017 tendo a 1ª Ré sido citada em 25-01-2017 e a 2ª Ré em 26-01-2017.”


II. 3. Do Direito


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjectivo civil - artºs. 635º, n.º 4, e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código Processo Civil.


II. 3.1. O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito, ao julgar improcedente a excepção da prescrição do direito arrogado pela Autora/AA, impondo-se a revogação dessa decisão e a sua consequente substituição por outra que, julgando procedente a enunciada excepção, absolva a Ré/BB, S.A.. do pedido deduzido pela Autora/AA? (1)

Perante a facticidade alegada, e que importou ponderar para apreciar da invocada excepção peremptória de prescrição - Da prescrição do crédito reclamado pela Autora/AA - o Tribunal a quo ao conhecer em apelação, a decisão proferida em 1.ª Instância, na fase do saneador/condensação, consignou pronúncia sobre a invocada excepção peremptória deduzida, afirmando a propósito:

“A questão está em saber (…) se a responsabilidade civil médica em causa é de natureza contratual, como defende a A. ou extracontratual, como defendeu a primeira instância.

(…) Ora, decorre das alegações da A. que a mesma invoca, para fundamentar o seu pedido indemnizatório, uma relação contratual estabelecida com a 1ª ré, invocando também uma relação contratual da 1ª com a 2ª (embora sem especificar o tipo de contrato entre elas celebrado).

(…) Pode assim afirmar-se com segurança que existia, na altura da intervenção cirúrgica da A., uma relação contratual de base entre ambas as rés, estando a 1ª obrigada, por força desse contrato, a intervencionar a A.

A questão está agora em saber se entre a A. e a 1ª ré se estabeleceu também uma relação contratual, relacionada agora com a própria cirurgia, tese que a decisão recorrida rejeitou, com o fundamento de que entre ambas não existiu qualquer acordo ou relação contratual.

Mas estamos do lado da recorrente, quando afirma que também aqui se estabeleceu uma relação contratual, de prestação de serviços, entre a Clínica, como prestadora do serviço, e a A, como beneficiária dos mesmos.

Faz todo o sentido o por ela afirmado, de que ao aceitar ser operada e tratada pela Clínica, mesmo que verbal e tacitamente, a A. também celebrou um contrato de prestação de serviços com aquela, pelo que se estabeleceu entre ambas um contrato de prestação de serviços, em que a última, mediante os seus serviços e capacidade técnica se dispôs, onerosamente (a expensas da ré seguradora), a operar e tratar medicamente a Autora.

(…) No caso dos autos, estamos, sem dúvida, perante um contrato de prestação de serviços (atípico ou geral) incluído no preceito legal citado. A sua formação verificou-se através das declarações de vontade de ambas as partes tendentes à sua celebração, nos moldes acima enunciados – em que a clínica se disponibilizou a operar a A. (a prestar-lhe o resultado do seu trabalho) e esta aceitou a sua prestação (que lhe fizessem a cirurgia).

Houve um encontro de vontades – expressas ou tácitas – no sentido de uma das partes – a Clínica – proporcionar à outra – a A. – o resultado do seu trabalho. E é quanto basta para que o contrato se consolidasse na esfera jurídica de ambas as partes.

(…) Conclui-se, portanto, estarmos perante um contrato de prestação de serviços, pelo que estamos no campo da responsabilidade contratual, sendo o prazo da Autora para exercer o seu pretenso direito indemnizatório, de 20 anos (nos termos do artº 309º do CC).” donde, rematou o Tribunal recorrido, que o direito de crédito de que a Autora se arroga titular, não se acha prescrito, e, consequentemente, conhecendo, julgou improcedente a arguida excepção peremptória de prescrição.”

A questão que nesta sede de recurso se coloca, decorrente das conclusões das alegações apresentadas pela Recorrente/Ré/BB, S.A., confunde-se com aqueloutra, entretanto colocada ao Tribunal recorrido, que veio a julgar improcedente a arguida excepção peremptória de prescrição, uma vez concluído que o direito de crédito, de que a Autora/AA se arroga titular, não se acha prescrito.


Como sabemos, a prescrição extintiva é o instituto por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados durante o período de tempo, para tanto fixado na lei, neste sentido, Manuel de Andrade, apud, Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, edição de 1974, página 445.

Nos termos do art.º 298º, nº. 1, do Código Civil, estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.

A prescrição assenta num facto jurídico não negocial, qual seja, o decurso do tempo. Tem na sua base a ideia de uma situação de facto que consiste no não exercício dum poder, numa inércia de alguém que, podendo ou devendo actuar para realizar um direito, se abstém de o fazer, neste sentido, Dias Marques, apud, Prescrição Extintiva, Coimbra, 1953, página 4.

A extinção do direito em razão do instituto da prescrição tem como principal e específico fundamento a negligência do titular do direito em exercitá-lo, negligência que faz presumir a sua vontade de renunciar a tal direito, ou, pelo menos, o torna indigno de ser merecedor de protecção jurídica, embora, reconheçamos, a existência de outras razões justificativas à extinção do direito, que se prendem com a certeza e a segurança do tráfico jurídico, a protecção dos obrigados, especialmente os devedores, contra as dificuldades de prova a longa distância temporal, e exercer pressão sobre os titulares dos direitos no sentido de não descurarem o seu exercício ou efectivação, quando não queiram abdicar deles.

Concretizando o brocardo latino dormientibus non succurrit jus o instituto da prescrição extintiva respeita, na sua essência, à realização de objectivos de conveniência ou oportunidade, sem prejuízo de o sustentar também uma ponderação de justiça, na medida em que a prescrição arranca do reconhecimento de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo, o que faz presumir uma renúncia ou, pelo menos, reiteramos, o torna indigno da tutela do direito.

Considerando o fundamento da prescrição extintiva, compreende-se, com facilidade, a previsão do direito substantivo civil ao estabelecer que o termo inicial do respectivo prazo coincide com o momento a partir do qual o seu titular o pode efectivamente exercer – art.º 306º, nº. 1, do Código Civil - todavia, para ser eficaz, a prescrição necessita de ser tempestivamente invocada (judicial ou extrajudicialmente), por aquele a quem aproveita – art.º 303º, do Código Civil - .

Atendendo à argumentação esgrimida pela Recorrente/Ré/BB, S.A., ao sustentar que a Autora/Recorrida/AA, conquanto possa ser considerada como a destinatária dos efeitos jurídicos pretendidos no negócio jurídico outorgado entre a Ré/Recorrente/ BB, S.A. e a Ré/Seguradora, não exteriorizou, porém, qualquer facto que manifeste a intenção de contratar com estas, sendo que a única interacção entre a Recorrente/Ré/BB, S.A., e Autora/Recorrida/AA, foi o consentimento prestado, por esta, com vista à articulada intervenção cirúrgica, significando o mesmo, não implicar que se torne parte do contrato pelo facto de ter aderido ao mesmo, não sendo, pois, titular de quaisquer direitos e obrigações decorrentes do cumprimento do referido contrato, pelo que, em caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso da prestação, de que é beneficiária, a Autora/Recorrida/AA, apenas poderá lançar mão do instituto da responsabilidade extracontratual, por forma a exigir uma eventual indemnização, por parte de quem estava obrigado à prestação basilar do contrato a favor de terceiros, aplicando-se o prazo prescricional de 3 anos, que há muito já foi ultrapassado, donde convirá sublinhar que o direito substantivo civil estabelece no art.º 309º, do Código Civil que “O prazo ordinário da prescrição é de vinte anos”, estatuindo o art.º 498º, do Código Civil que “1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso” o que, necessariamente, determinará saber se o direito arrogado pela Autora/Recorrida/AA, se baseia em responsabilidade contratual, ou, ao invés, em facticidade subsumível à responsabilidade subjectiva.

Entendemos ser essencial aquilatar do fundamento do alegado direito reclamado pela Autora/Recorrida/AA, na medida em que, a exemplo da Doutrina e Jurisprudência, também perfilhamos o entendimento que o normativo substantivo civil – art.º 498º, do Código Civil - somente deverá ser tido em consideração quando a facticidade adquirida processualmente seja subsumível à responsabilidade civil extracontratual.

Na verdade, em razão do enquadramento sistemático e da harmonia com o regime jurídico da responsabilidade civil por factos ilícitos, cujos preceitos estão plasmados nos artºs. 483º a 498º do Código Civil, sufragamos o entendimento de que o prazo de prescrição de 3 (três) anos, só deverá ser atendido estando em causa o exercício de direitos com fundamento na responsabilidade civil extracontratual.

Revertendo ao caso sub iudice divisamos que a Autora/Recorrida/AA fundamenta a sua pretensão em responsabilizar a Ré/BB, S.A., pela alegada actuação negligente, em acto médico que realizou na sua pessoa, e do qual lhe resultaram lesões, estendendo a responsabilidade à Ré, CC - Companhia de Seguros de Ramos Rurais, S.A., agora designada, DD, S.A., uma vez que esta assumiu os riscos do acto médico, estando adquirido processualmente que:

“- A Autora ao serviço da Associação Cultural Recreativa e Musical de …, tomadora de seguro de acidente de trabalho, terá sofrido um acidente de trabalho em 24/12/2000.

- A Associação Cultural Recreativa e Musical de … tinha a sua responsabilidade por acidente de trabalho transferida para a Rural Seguros pela apólice 0015…1.

- Por força desse acidente correu termos a respetiva ação no Tribunal de Trabalho no âmbito da qual a Rural Seguros indemnizou a autora pelos valores fixados.

- Com data de 7 de setembro de 2001, a CC emitiu uma declaração com o seguinte teor: “A CC, Companhia de Seguros de Ramo Reais, S.A., declara que, AA, morador(a) em …, …, está abrangido(a) pela Apólice de Seguros de Acidentes de Trabalho nº A 0001…5 do Tomador de Seguros – As. Cultural, Recreativa e Musical. Mais declara que a CC, S.A., toma responsabilidade sobre a(o) cirurgia necessário (a) à reabilitação de AA, vítima de acidente de trabalho abrangido pela referida Apólice, a ser efetuado(a) em Braga a 12-09-2001”.

- No dia 12 de Setembro de 2001, no âmbito da ação por acidente de trabalho, a Autora foi submetida a operação cirúrgica, com aplicação de um parafuso de fixação na Tíbia.

- Consta do documento de fls 12 junto aos autos pela autora, datado de 24 de dezembro de 2001, que “(…) Atualmente está a evoluir bem na fisioterapia, e aguarda marcação de cirurgia para extração do parafuso aplicado.”

- A presente ação deu entrada no dia 19-01-2017 tendo a 1ª Ré sido citada em 25-01-2017 e a 2ª Ré em 26-01-2017.”

A facticidade enunciada importa que tenhamos em atenção, concretos e determinados preceitos e conceitos legais.

Assim.

O art.º 283º n.º 5 do Código do Trabalho estabelece que “o empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista neste capítulo para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, donde reconhecemos ser o contrato de seguro de acidente de trabalho, imposto pelo aludido n.º 5 do art.º 283º do Código do Trabalho, um contrato de direito privado celebrado pela entidade empregadora junto de seguradoras legalmente autorizadas a realizar este tipo de seguro, devendo observar o modelo constante na apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho, aprovada pelo Instituto de Seguros de Portugal.

Como sabemos, conquanto o Regime Jurídico do Contrato de Seguro não contenha um definição do contrato de seguro, tem-se perfilhado o entendimento de que este é definido como o contrato pelo qual uma pessoa singular ou coletiva (tomador de seguro) transfere para uma empresa especialmente habilitada (seguradora) um determinado risco económico próprio ou alheio, obrigando-se a primeira a pagar uma determinada contrapartida (prémio) e a última a efectuar uma determinada prestação pecuniária em caso de ocorrência do evento aleatório convencionado (sinistro), neste sentido, José Vasques, apud, Contrato de Seguro, página 94.

O contrato de seguro é um negócio formal, que tem de ser reduzido a escrito chamando-se apólice ao documento que o consubstancia, sendo que da mesma deve constar todas as condições estipuladas entre as partes.

Nos termos do direito substantivo civil a apólice deverá conter os riscos contra que se faz o seguro, outrossim, em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, a par de todas as condições estipuladas entre as partes.

A apólice é, pois, o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, de onde constam as respectivas condições gerais, especiais, se as houver, e particulares acordadas, sendo que o âmbito do contrato, consiste na definição das garantias, riscos cobertos e riscos excluídos.

Na fixação do conteúdo de qualquer negócio jurídico interessa, antes do mais, analisar os termos do acordo que os respectivos outorgantes firmaram ao abrigo da liberdade contratual ditada pelo art.º 405º do Código Civil, termos esses que, no contrato de seguro, reiteramos, terão de constar da respectiva apólice, posto que, esta exigência legal de documento, sublinhamos, constitui elemento do contrato, isto é, formalidade ad substantiam (art.º 364º n.º 1 do Código Civil), neste sentido, e sobre a questão, Moitinho de Almeida, apud, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, página 37, bem como, Menezes Cordeiro, apud, Manual de Direito Comercial, volume, I, páginas 585 e seguintes.

Como defende, Romano Martinez, apud, Direito dos Seguros, págs. 91 e ss., e José Vasques, apud, Contrato de Seguro, págs. 355/356, o âmbito deste tipo contratual passa pela definição das garantias, dos riscos cobertos e dos riscos excluídos.

No caso concreto dos contratos de seguros de acidentes de trabalho, porque ao caso sub iudice interessa, há que ponderar que, como defende, José A. Engrácia Antunes, apud, Direito dos Contratos Comerciais, pagina 678, “a atividade humana, social e económica é, por natureza, uma atividade de risco” daí que as empresas de seguros “… desenvolvem fundamentalmente uma atividade de cobertura remunerada de riscos alheios, que permite assim aos indivíduos e organizações gerir riscos decorrentes das respetivas ações ou omissões, através da transferência ou externalização do custo económico associado a tais riscos mediante o pagamento de um prémio: através do seguro, as pessoas compram a sua “paz de espírito” na existência quotidiana e as organizações compram alguma “segurança” que lhes permite desenvolver de forma mais estável e previsível a sua actividade”.

Sublinhamos que o contrato de seguro é um contrato típico, consensual, de adesão, sinalagmático, oneroso, aleatório e de boa-fé, sendo que quanto ao contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho, como sustenta José Vasques, apud, Contrato de Seguros, página 58 “... o tomador do seguro transfere para a seguradora a responsabilidade pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho, em relação ao conjunto de trabalhadores efetivos ou eventuais ao serviço de uma entidade produtiva, independentemente da área em que exerçam a sua atividade...”, sendo que nos termos do art.º 23.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que regulamenta o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças profissionais “O direito à reparação compreende as seguintes prestações:

a) Em espécie - prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa;

b) Em dinheiro - indemnizações, pensões, prestações e subsídios previstos na presente lei.”

Esta particularidade do contrato de seguro ramo acidentes de trabalho, atribui uma natureza singular ao contrato de seguro, configurando-o, parcialmente, como contrato a favor de terceiro, na medida em que a seguradora assume, nomeadamente, e perante o beneficiário do seguro, indicado pelo respectivo tomador, a obrigação de prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa (art.º 23 a) da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que regulamenta o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças profissionais), donde, reconhecemos esta combinação de contratos, contrato de seguro obrigatório, ramo acidentes de trabalho, enquanto contrato de adesão, e contrato a favor de terceiro, conforme resulta da facticidade adquirida processualmente: “com data de 7 de setembro de 2001, a Rural Seguros emitiu uma declaração com o seguinte teor: “A CC, Companhia de Seguros de Ramo Reais, S.A., declara que, AA (…), está abrangido(a) pela Apólice de Seguros de Acidentes de Trabalho nº A 0001…5 do Tomador de Seguros – As. Cultural, Recreativa e Musical. Mais declara que a CC, S.A., toma responsabilidade sobre a(o) cirurgia necessário (a) à reabilitação de AA, vítima de acidente de trabalho abrangido pela referida Apólice, a ser efetuado(a) em Braga a 12-09-2001”; “No dia 12 de Setembro de 2001, no âmbito da ação por acidente de trabalho, a Autora foi submetida a operação cirúrgica, com aplicação de um parafuso de fixação na Tíbia”; - Consta do documento de fls 12 junto aos autos pela autora, datado de 24 de dezembro de 2001, que “(…) Atualmente está a evoluir bem na fisioterapia, e aguarda marcação de cirurgia para extração do parafuso aplicado.”

Ademais, resulta dos autos, como aliás, admite a Recorrente/Ré/BB, S.A., nas suas alegações, que em razão do articulado contrato de seguro obrigatório de acidentes de trabalho, e com vista a cumprir a obrigação que impendia sobre a Seguradora, satisfazendo o direito à reparação da Autora/AA, beneficiária do ajuizado contrato de seguro obrigatório, ramo de acidentes de trabalho, onde se compreende as prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da Autora/sinistrada/AA, e à sua recuperação para a vida activa, a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A., acordou com a Recorrente/Ré/ Recorrente/Ré/BB, S.A., a prestação de cuidados de saúde, sendo a Autora/Recorrida/AA, a beneficiária do prometido contrato.

À semelhança do reconhecido na celebração do contrato de seguro de acidentes de trabalho, importa acentuar o respectivo enquadramento jurídico, sublinhando que os tipos contratuais não esgotam o âmbito da autonomia privada, em matéria de conteúdo e da configuração possível que podem revestir os acordos celebrados pelas partes. Assim, é à luz da autonomia privada, que o Código Civil consagra a possibilidade no art.º 405º do Código Civil, de as partes no estrito respeito da lei, da moral e natureza, exercitarem a sua liberdade de contratar como entenderem, sem terem como ponto de referência os tipos contratuais consagrados na lei ou na prática, ou seja, as partes podem celebrar entre si contratos, que correspondam a misturas ou modificações dos tipos, e até contratos que não tenham nada a ver, com os tipos contratuais consagrados.

A decisão do caso sub iudice exige-nos antes de mais, sabermos da qualificação do acto jurídico praticado, mormente saber se a Autora/AA e a Ré/BB, S.A.., têm interesses relevantes no mesmo, e se, na afirmativa, qua(l)is o(s) contrato(s) celebrado(s), a fim de, a partir daí, podermos divisar qual a disciplina jurídica que o(s) rege(m).

Para qualificar o negócio jurídico, e, consequentemente, determinarmos o regime aplicável, há que interpretar o acordo celebrado e consignado nos autos.

Da factualidade dada como apurada resulta que a Autora/Recorrida/AA é terceiro, beneficiária de um acordo celebrado entre a Recorrente/Ré/BB, S.A., e a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A., que determinou a prestação de cuidados de saúde, sendo a Autora/AA, a beneficiária do prometido contrato, também este decorrente do enunciado contrato de seguro obrigatório ramo de acidentes de trabalho.

Do negócio outorgado entre a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A. e a Recorrente/Ré/BB, S.A., conforme se retira da facticidade apurada, cremos ser inequívoco que o acordo ajuizado integra prestações, reguladas numa combinação de contratos.

Concretizando:

A prestação de serviços a efectuar pela Recorrente/Ré/BB, S.A., acordada com a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A., com vista às prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa, cuja beneficiária seria a Autora/AA, enquanto sinistrada, conforme prometido pelas partes originárias do acordo celebrado (Recorrente/Ré/BB, S.A., e Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A.), não são próprias de um só tipo contratual, pelo que, classificamos o contrato como atípico.


A Doutrina portuguesa, distingue nos contratos atípicos, os contratos mistos da união de contratos.

Considerando a questão sob escrutínio, apreciemos os denominados contratos mistos.

O Professor Vaz Serra, classifica os contratos mistos, em “contratos combinados ou gémeos”, em que “um dos contraentes se obriga a várias prestações principais, correspondentes a diferentes tipos de contrato, e o outro contraente se obrigou a uma prestação unitária” e os “contratos de tipo duplo” em que o conteúdo total do contrato se enquadra em dois tipos diferentes de contrato, havendo, portanto, um conteúdo que se revela como sendo, ao mesmo tempo, de dois contratos”, e os contratos mistos stricto sensu, que são aqueles que têm “um elemento que representa, ao mesmo tempo, um contrato de outro tipo”.

Não obstante as diversas nomenclaturas usadas na nossa Doutrina, o que desde já parece líquido, é que nos autos estamos em face de um contrato misto um “contrato combinado” na terminologia usada pelo Professor Antunes Varela.

Pode dizer-se, que no contrato misto há uma unidade contratual, um só negócio jurídico, cujos elementos essenciais respeitam os tipos contratuais distintos, e, de facto, reconhecemos ser esta a situação dos contratos dos autos.

Embora sejam muitos os problemas suscitados pela disciplina a aplicar aos contratos mistos, in casu somos de parecer que a questão não sofre contestação atentas as valorações e interesses envolvidos, a função económico-social do negócio e a vontade real e hipotética das partes.

Em síntese, a Recorrente/Ré/BB, S.A., e a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A., celebraram um contrato válido, atípico, misto celebrado à luz do art.º 405º do Código Civil e que se regerá pela vontade das partes, pelas disposições gerais dos contratos, e pelas disposições dos contratos típicos com que apresentem identificação.

Qualificado o contrato e definida a disciplina jurídica aplicável, prossigamos na análise do contrato sub iudice.

No acordo outorgado entre a Recorrente/Ré/BB, S.A., e a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A., conforme se retira da facticidade apurada, cremos ser inequívoco ter sido celebrado um contrato misto de prestação de serviços e contrato a favor de terceiro.

Resultou apurado que a Ré/BB, S.A., se obrigou a proporcionar perante a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A., certo resultado do seu trabalho, de natureza médica, cirúrgica, hospitalar, necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho da sinistrada, Autora/AA, e à sua recuperação para a vida activa, sendo esta, pois, a beneficiária prometida.

A presente facticidade subsume-se pacificamente, ao contrato de prestação de serviços prevenido no direito substantivo civil, concretamente no art.º 1154º do Código Civil, que estabelece “contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar a outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição”, outrossim, as especificidades da prestação de serviços ajustada, confere a sublinhada particularidade do outorgado contrato, reconhecido como contrato combinado, configurando-o, além de prestação de serviços, também como, parcialmente, contrato a favor de terceiro – art.º 443º, n.º 1 do Código Civil – que estatui “Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita” já que a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A. na decorrência do primitivo contrato de seguro obrigatório do ramo acidentes de trabalho, cuja beneficiária era a Autora/AA, assumiu, perante a tomadora do seguro, a obrigação de cobertura remunerada de riscos decorrentes das respectivas acções ou omissões, através da transferência ou externalização do custo económico associado a tais riscos mediante o pagamento de um prémio.

Neste contexto e para cumprimento do contrato de seguro obrigatório ramo acidentes de trabalho, importava que a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A. tivesse outorgado, como outorgou, com a Recorrente/Ré/BB, S.A., o contrato de prestação de serviço “combinado” com o contrato a favor de terceiro.

“O contrato a favor de terceiro pode ser definido como o contrato em que uma das partes (o promitente) se compromete perante outra (o promissário) a efectuar uma atribuição patrimonial em benefício de outrem, estranho ao negócio (o terceiro)”, apud, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume I, 4ª edição, Coimbra, 2005, página 249, assumindo no caso dos autos, relativamente a esta particularidade do contrato, e de acordo com a terminologia plasmada no art.º 443º, n.º 1), a Recorrente/Ré/BB, S.A., o papel de promitente e a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A., o de promissário.

Ora, sendo certo que o terceiro, a favor de quem for convencionada a promessa adquire o seu direito à prestação, independentemente de aceitação, nos termos do art.º 444º do Código Civil, cremos ser apodíctico afirmar, a legitimidade da Autora/AA em exigir o cumprimento da prestação prometida, no negócio jurídico ajustado entre a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A., e Recorrente/Ré/Clinica Médico BB, SA.

O direito de exigir a prestação, estabelecida em favor de terceiro, constitui um direito próprio do terceiro, aqui Autora/AA, decorrente do contrato entre a Recorrente/Ré/BB, S.A. e a Ré/CC, S.A., agora designada, DD, S.A., estando, assim, em causa, determinar da alegada responsabilidade civil contratual da Ré/BB, S.A., importando saber do incumprimento da obrigação.

O Código Civil, sistematiza a responsabilidade civil em três lugares: a responsabilidade extracontratual, nos artºs. 483º, e seguintes do Código Civil, a responsabilidade contratual, nos artºs. 798º, e seguintes do Código Civil, sendo que às duas formas de responsabilidade interessam ainda os artºs. 562º, e seguintes do Código Civil, respeitantes à obrigação de indemnização em si mesma, independentemente da fonte de onde procede.

Concretizando e tendo por base os factos alegados nos autos, temos que enunciar que a Autora/Recorrida/AA, enquanto terceiro, invoca o incumprimento da obrigação assumida pela Ré/BB, S.A., em proporcionar-lhe, certo resultado do seu trabalho, concretamente actos médicos, pelo que, o prazo de prescrição é de 20 (vinte) anos - art.º 309º, do Código Civil – e, nesta conformidade, a invocada excepção de prescrição, tem, necessariamente, de improceder, como, aliás, se concluiu no aresto recorrido.

Ao não reconhecemos às conclusões trazidas à discussão pela Recorrente/Ré/BB, S.A., quaisquer virtualidades no sentido de alterarem o destino da presente demanda, e subsumida juridicamente a facticidade tida por relevante, concluímos pela manutenção do julgado em 2ª Instância, conquanto por razões diversas, perfilhadas pela Mmª Juiz relatora.


IV. DECISÃO


Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedente o recurso interposto, e, consequentemente, nega-se a revista, mantendo-se o dispositivo do acórdão recorrido que apreciou a arguida excepção peremptória de prescrição.

Custas pela Recorrente/Ré/BB, S.A..

Notifique.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 25 de Outubro de 2018.


Oliveira Abreu (Relator)

Ilídio Sacarrão Martins

Maria dos Prazeres Beleza