Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
305/04.1TABRG.G1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PENA SUSPENSA
DUPLA CONFORME
APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL NO TEMPO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 03/31/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Sumário : I -No caso de o recurso versar exclusivamente matéria de direito, passou a ser admitido o recurso per saltum para o STJ; no caso de o recurso versar sobre matéria de facto, o recurso é interposto para o Tribunal da Relação (no caso de um eventual cúmulo de recursos, uns versando somente matéria de direito, outros abrangendo também matéria de facto, serão julgados conjuntamente perante o Tribunal da Relação). Na redacção inicial do CPP a decisão do tribunal colectivo apenas era susceptível de ser impugnada em termos de direito e no STJ.
II - Da decisão do Tribunal da Relação há a possibilidade de se interpor um novo recurso para o STJ. Para obviar a uma eventual repetição desnecessária de juízos, em sede de recursos, o legislador socorreu-se de um mecanismo impeditivo de acesso à jurisdição do STJ, a que denominou de «dupla conforme» sempre que a decisão do Tribunal da Relação for uma decisão absolutória que confirme decisão de primeira instância, ou se fosse uma decisão condenatória que confirme decisão de primeira instância por crime não punível com pena superior a 8 anos, nestes casos ficaria precludido o acesso ao STJ. Quanto a nós, perfilhamos o entendimento de que é incontornável a constatação de que o sentido literal da al. e) do art. 400.º do CPP, não coincide com a vontade da lei, tal como se deduz da interpretação lógica: há desconformidade entre a letra e o pensamento da lei. Analisando a disposição do ponto de vista lógico, vê-se que resulta outro sentido que não é aquele que das palavras transparece imediatamente.
III - Como diz Manuel de Andrade, “as palavras são um meio para tomar reconhecível a vontade, e se é certo que sem alcançar expressão nas formas constitucionais uma vontade legislativa não tem existência jurídica, certo é outrossim que basta uma manifestação defeituosa ou errónea, através da qual se possa reconstruir e vislumbrar essa vontade”.
IV - Assim, conclui-se que o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP deve ser interpretado no sentido de que a recorribilidade para o STJ das decisões que aplicam penas privativas de liberdade está dependente do facto de as mesmas penas se inscreverem no catálogo do n.º 1 al. c), do art. 432.º do mesmo diploma, ou seja, serem superiores a 5 anos.
V -O Ac. do STJ 4/2009 de 18-02-2009, publicado no DR, 1.ª Série, de 19-03-2009, fixou jurisprudência no sentido de que, em matéria de recursos penais, no caso de sucessão de leis processuais penais, é aplicável a lei vigente à data da decisão proferida em 1.ª instância.
VI - Se a decisão de 1.ª instância no caso vertente foi proferida em 01-06-2010, nessa data estava já em vigor a versão CPP resultante das alterações que nele foram introduzidas pela Lei 48/07, de 29-08, tendo a Relação confirmado a pena fixada em sede de primeira instância de 5 anos de prisão em que o arguido foi condenado. Como assim, a al. c) do n.º 1 do art. 432.º conjugada com o art. 400.º, n.º 1 al. e), determina a rejeição por inadmissibilidade do recurso interposto – cf. art. 420.º, n.º 1, al. b), e 414.º, n.º 2 do CPP.
VII - A pena de prisão cuja execução foi declarada suspensa configura uma pena de substituição que, assumindo-se como pena autónoma, não reveste a natureza de pena privativa de liberdade.
VIII - Estas penas de substituição, se não são, em sentido estrito, penas principais não são obviamente penas acessórias: não só porque estas se assumem num enquadramento histórico e teleológico que nada tem a ver com o das penas de substituição, como porque uma coisa são as penas que só podem ser fixadas conjuntamente com uma pena principal (como é o caso das penas acessórias), outra diferente as penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição).
IX - Pena autónoma portanto e, na sua autonomia, uma pena que não implica a privação de liberdade. Como refere Jeschek a suspensão da pena constitui um meio autónomo da reacção jurídico-penal com uma pluralidade de possíveis efeitos.
X -Assim, considerando, e assumindo o entendimento que a pena aplicada não é uma pena privativa de liberdade, entende-se que, também por tal motivo, o recurso interposto não é admissível face ao disposto no art. 400.º, n º1, al. e), do CPP.
Decisão Texto Integral:

                         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA veio interpor recurso da decisão que o condenou nas seguintes penas:

a) pela prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão, no que respeita aos receituários remetidos à ADSE;

b) pela prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, no que respeita aos receituários remetidos ao SNS;

c) pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º e 218.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, no que respeita aos receituários remetidos à ADSE para comparticipação;

d) pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º e 218.º, n.º 2, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, no que respeita aos receituários remetidos ao SNS para comparticipação;

 Efectuado o respectivo cúmulo jurídico, nos termos do art. 73.º do Código Penal, foi o arguido AA condenado na pena única de 5 (cinco) de prisão. Tal pena foi declarada suspensa na execução por igual período de 5 (cinco) anos sob a condição do pagamento ao SNS e à ADSE, no prazo de dois anos, dos prejuízos causados com a sua conduta, correspondentes aos valores:

- SNS - 38.685,62 Eur. (trinta e oito mil, seiscentos e oitenta e cinco euros e sessenta e dois cêntimos), acrescida de juros legais, vencidos a partir da notificação do pedido civil);

- ADSE - 15.675,44 € (quinze mil, seiscentos e setenta e cinco euros e quarenta e quatro cêntimos), acrescidos de juros de mora contados desde a presente sentença.

            As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:

            Quanto à admissibilidade do recurso:

1ºOs factos pelos quais o Arguido / Recorrente veio condenado ocorreram -alegadamente no período 2000 - 2002, tendo o mesmo sido constituído arguido em data anterior a 2007.

2ºÉ manifesto que o regime de recursos em processo penal correspondente à redacção do art. 400° anterior à referida Lei n.° 48/2007 (conferida pela Lei n.º 59/98, de 25/08) é mais favorável ao ora Arguido, na medida em que lhe assegura o direito de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que lhe é negado pela letra da actual redacção, visto que os crimes pelos quais foi condenado ultrapassam, em abstracto, aquele limite dos 8 anos de prisão.

3ºA admissão do presente recurso impõe-se, à luz do princípio constitucional da irretroactividade da lei penal mais desfavorável consagrado no art. 29° n.° 3 e 4 da Constituição da República Portuguesa, atenta a redacção do art. 400° anterior à Lei n.° 48/2007

4ºNão obstante o douto acórdão para fixação de Jurisprudência n.° 4/2009 do Supremo Tribunal de Justiça, (que estabeleceu como momento temporalmente relevante para a valoração do princípio constitucional em causa o da data de prolação da decisão de que se pretende recorrer), entende-se ser de considerar — pelo menos — o momento da constituição como arguido para se aferir qual o regime processual penal material a aplicar, de acordo com os princípios constitucionais aplicáveis à sucessão de leis penais (como foi assinalado em duas declarações de voto).

5ªNão tendo a vontade, pretensão ou veleidade de competir com o apuro técnico-jurídico e dogmático de tal acórdão - e das suas declarações de voto - não pode deixar de se aderir a estas últimas, na medida em que esse momento marca a investidura do suposto agente do crime no feixe de direitos e obrigações inerentes ao estatuto processual de arguido, os quais devem, a partir de então, gozar de garantias de estabilidade. Sob pena de serem prejudicadas as legitimas expectativas e o princípio da confiança que não pode deixar de se aferir pelo recorte concreto dos direitos processuais consagrados no momento em que o arguido veste esse estatuto processual, donde releva - entre outros — o direito ao recurso, os respectivos graus e os seus pressupostos.

6ºDesta forma, uma eventual rejeição do presente recurso filiada no citado acórdão acarreta - como é assinalado numa das declarações de voto - não só uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da irretroactividade da lei penal mais desfavorável (cfr. art. 29° n.° 3 e 4 da CRP) mas uma ilegalidade em face do art. 5º n.º 2 al. a) do CPP, uma vez que há, efectivamente, uma diminuição sensível da posição processual do arguido, com a diminuição objectiva dos seus direitos de defesa, ao amputar-se mais um grau de recurso, sendo que - perdoando-se a manifestação de uma verdade de La Pallisse - só há posição processual de arguido com a respectiva constituição. Inconstitucionalidade e ilegalidade essa que - desde já e de forma expressa - se invocam expressamente, para todos os efeitos legais e processuais.

7ºSem prescindir, o art. 400° n.° 1 al. f) do CPP é inconstitucional,, por violação da garantia ao recurso estabelecida no art. 32° n.° 1 da CRP, o que expressamente se invoca, para todos os efeitos legais e processuais.

8ºAs posições e princípios adoptados pelo Tribunal Constitucional parecem não ter encerrado definitivamente esta matéria, mormente a da constitucionalidade do art. 400° n° 1 al. f); "A consagração de um duplo grau de jurisdição em matéria penal decorre essencialmente da exigibilidade constitucional de se conferir um grau elevado de asseguramento, de concretização e de realização aos direitos e garantias fundamentais da liberdade e da segurança dos cidadão (sendo igualmente invocável relativamente a outros direitos e garantias fundamentais), dado que estes são directamente atingidos pelas decisões condenatórias e outras decisões judiciais que limitem ou restrinjam a liberdade. A existência de um segundo grau de reexame jurisdicional das medidas de privação, limitação ou restrição desses direitos fundamentais corresponde assim ao patamar que a Constituição tem como minimamente tolerável para que se possam haver como arredados os perigos de uma ofensa inconsistente de tais direitos" (v.g. Acórdãos 565/2007, 264/94,369/01,435/01, 49/93, 377/03 e 390/04).

9ºSubsidiariamente, entende-se que a interpretação do art. 400° n.° 1 ai. f)3 no sentido de a mesma não ser aplicável a penas de prisão suspensas na sua execução, viola a garantia constitucional ao recurso estabelecida no art. 32° n.° 1 da CRP. A revogação da suspensão apresenta-se como potencial, tratando-se de um risco omnipresente - maior ou menor - ficando tal revogação sujeita a condição suspensiva, enquanto acontecimento futuro e incerto que pode determinar o cumprimento de pena efectiva.

10°Sobre tal questão pronunciou-se já o Tribunal Constitucional (Acórdão 353/2010), em sentido negativo (a propósito não da al. f) mas da al. e), muito embora a questão de fundo seja materialmente equivalente). No entanto - salvo o devido respeito e melhor opinião - não se trata de uma questão linear, sendo uma matéria que se entende em aberto, entendendo o recorrente que a interpretação do art. 400° n.° 1 al. f) no sentido de ser irrecorrível uma decisão que aplica uma pena de prisão suspensa, é inconstitucional por violação do art. 32° n.° 1 da CRP.

11°Inconstitucionalidades que aqui expressamente se invoca - e que devem ser declaradas e reconhecidas - para todos os efeitos legais.

12°Deste modo, face às supracitadas inconstitucionalidades, deve o presente recurso ser admitido e seguir os seus trâmites até decisão final

B) - Quanto aos fundamentos do recurso;

13°Pela prova documental, pericial e testemunhal produzidas não se pode concluir, como se concluiu, que o arguido/recorrente foi o autor material dos crimes por que foi condenado.

14°O Tribunal formou a convicção de que o arguido era o autor material de tais crimes por uma invocada prova indirecta e pelas ditas "regras da experiência comum".

15°Contudo, pela invocada prova indirecta, e pelas mencionadas regras da experiência comum, não se pode concluir, como o Tribunal o fez, que o Arguido/Recorrente é o autor dos aludidos crimes.

16°As ditas prova indirecta e regras da experiência comum, não permitem formular uma convicção de certeza quanto à prática dos mencionados crimes pelo arguido,

17°quando muito, são apenas susceptíveis de gerar uma dúvida sobre a prática pelo arguido daqueles crimes.

18°Salvo o respeito devido aos Julgadores, e que é muito, condenou-se, e, pior, manteve-se a condenação do arguido/recorrente apenas pelo "parecer ser", pela "mera impressão" com que os julgadores ficaram, não sustentada porém em qualquer prova directa, nem em quaisquer factos concretos ou objectivos, que permitissem atribuir a autoria daqueles crimes ao arguido/ recorrente*

19°Deste modo, não se compreende como possa dizer-se, como referido no acórdão recorrido, que se pode concluir "com toda a segurança que o arguido praticou os crimes por que foi condenado".

20°Fez -se, pois, uma errada interpretação da prova, violando-se o disposto no n° 3 do art° 659º do C.P.C,

21°excederam-se manifestamente os limites da livre apreciação da prova (art° 127° do Cód, Proc. Penal)

22°foi-se pela mera impressão gerada no espírito dos julgadores pelos diversos meios de prova, ultrapassando-se assim os limites permitidos pela lógica e pela razão, sem um mínimo de concretização ou objectivação, que sempre seria necessário para, com certeza (com a certeza exigível e que se impunha) se poder atribuir ao arguido a autoria material dos crimes por que foi condenado.

23°A prova documental, pericial e testemunhal produzidas - e ao contrário do referido no Acórdão proferido em 1ª Instância e no Acórdão recorrido que confirmou aquele – não permite, pois, concluir pela autoria do arguido/recorrente na prática daqueles crimes.

24°Pelo que se impunha a sua absolvição.

25°No máximo, tal prova (documental, pericial e testemunhar) e as regras da experiência comum poderia apenas conduzir a uma duvida séria e fundada quanto à prática dos mencionados crimes pelo arguido/recorrente,

26°Pelo que, pela aplicação do princípio “in dúbio pró réu" apenas restaria ao Tribunal absolver o arguido/recorrente e julgar improcedente o pedido cível, absolvendo-se o demandado desse pedido.

27°Ao não se decidir assim, para além da violação deste princípio, fez-se uma errada interpretação e aplicação dos    artigos 217°, 218° e 256° do C. Penal.

28°De notar que, não é ao Arguido a quem incumbe provar a sua inocência, sendo antes ao M°P° que incumbe provar a acusação, o que, manifestamente, não fez,

29°e que o princípio da livre apreciação da prova, de todas as provas, tem limites que, manifestamente, foram ultrapassados, tanto em Ia instância, como pelo Acórdão recorrido, transformando-se "um poder parecer ser", "uma mera impressão", "uma mera suspeita", "um simples talvez" quanto à "autoria do arguido relativamente àqueles crimes", numa certeza.

30°Foi assim, e também por excesso, violado o princípio da liberdade da apreciação da prova (art° 127° do Código Penal).

31°E tanto assim é, que se chegou, no Acórdão recorrido, a considerar também a "eventual colaboração do arguido com outra ou outras pessoas, na prática dos comprovados actos de falsificação" (pág. 342 do Acórdão do recorrido).

32ºOutra mera suposição (em nada concretizada), e idêntica à de o arguido ser o "autor dos crimes por que foi condenado".

33ºFace ao exposto, deve o arguido ser absolvido, absolvendo-se consequentemente e também o mesmo do pedido cível de indemnização.

Conclui afirmando que:

A) - Deve ser admitido o presente recurso, considerando-se aplicável ao caso vertente o art 400° n.° 1 al. f) na redacção anterior à Lei n.° 48/2007, de 29/09, salvaguardando-se o princípio constitucional de irretroactividade de lei penal material mais desfavorável ou, subsidiariamente, declarada e reconhecida a referida inconstitucionalidade material do art° 410°, n° 1 ai. í) do Cód. Proc. Penal, por violação do disposto no art° 32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa, com as legais consequências,

B) -deve ser dado provimento ao presente recurso revogando-se ou anulando-se o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que absolva o arguido/recorrente.

O Ministério Publico respondeu suscitando a questão da admissibilidade do recurso.

No mesmo sentido se pronunciou o Ex Sr.Procurador Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça.

                                   Os autos tiveram os vistos legais   

                         

            Previamente a qualquer incidência sobre a essência do recurso interposto e prévia á análise importa apreciar a suscitada questão da admissibilidade:

Tal questão implica uma breve consideração sobre a forma como evoluiu a estrutura dos recursos no código de processo penal.

Na verdade,

Sobre o sistema de recursos em processo penal constante da redacção inicial do Código de Processo Penal começou a gerar-se uma suspeição de ineficiência patente na motivação apresentada pelo Secretário de Estado da Justiça em relação á alteração introduzida pela Lei 59/98 (Confrontar Revista Portuguesa de Direito Criminal Ano VIII Pag 63).

Explicitando as razões pelas quais se alterava o regime de recursos do Código de Processo Penal afirmava-se que as soluções iniciais do respectivo Código privilegiavam os objectivos de celeridade e efectividade do duplo grau de jurisdição e se caracterizavam pela linearidade quase esquemática dos princípios e, ainda, por uma forte sensibilidade às conexões entre o processo e a organização judiciária. Neste contexto, as ideias de tramitação unitária, de competência baseada na natureza do tribunal a quo, ou de revista alargada exprimiam um singular compromisso entre a teoria e as exigências práticas.

Lapidarmente, afirmava o mesmo responsável legislativo que, não obstante os seus aspectos positivos, a experiência postulada pela redacção inicial do mesmo Código tinha ficado aquém das expectativas. A explicação apresentada pelos críticos situar-se-ia na circunstância de, por dificuldades de aplicação, se ter tomado manifesta a erosão de alguns princípios, de que eram exemplo, nomeadamente: “a precarização dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça que, pelo seu estatuto tende a alhear da matéria de facto, ainda que na fórmula mitigada que o Código perfilha; a incomunicabilidade entre instâncias de recurso resultante de os poderes das relações e do Supremo Tribunal de Justiça incidirem, por regra, sobre objecto diferente (os primeiros, sobre recursos interpostos do tribunal singular e os segundos sobre recursos interpostos do tribunal colectivo ou de juri);  a indesejável duplicação de tribunais de recurso que julgam, por regra, em ultima instância; a debilitação de garantias, com a reduzida aplicação de institutos instrumentais, como são os relativos à renovação a prova: à oralidade e à presença efectiva dos intervenientes processuais; o enfraquecimento da função real e simbólica o Supremo Tribunal de Justiça como tribunal a quem comete decidir, em ultima instância, sobre a “lei e o direito”.

Se o esquema dos recursos proposto pela versão inicial do Código de Processo Penal enfermava de tais patologias a alteração legislativa introduzida era apregoada como portadora de um alto grau de aperfeiçoamento e consubstanciadora da descoberta de soluções em que se congregava um boa amálgama dos melhores princípios. É, assim, que se referia que,” com as mesmas alterações, se restitui ao Supremo Tribunal de Justiça a sua função de tribunal que conhece apenas de direito, com excepções em que se inclui a do recurso interposto do tribunal de júri; ressalva-se a ideia da tramitação unitária que deixa, no entanto, de corresponder à configuração de um único modelo de recurso; faz-se um uso discreto do princípio da dupla conforme, harmonizando objectivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça a casos de maior gravidade; admite-se o recurso per saltum, justificado pela medida da pena e pela limitação do recurso a matéria de direito; retoma-se a ideia de diferenciação orgânica, mas apenas fundada no princípio de que os casos de pequena ou média gravidade não devem, por norma, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça; ampliam-se os poderes de cognição das relações, evitando-se que decidam, por sistema, em última instância; assegura-se um recurso efectivo em matéria de facto; estabelece-se a possibilidade de o recurso ser julgado em conferência quando, não houver lugar a alegações orais e não for necessário renovar a prova; altera-se o regime do recurso para uniformização da jurisprudência, valorizando as ideias de independência dos tribunais e de igualdade dos cidadãos perante a lei e evitando os riscos de rigidez jurisprudencial.»

Mais claro nas razões da alteração regime de recursos foi o Presidente da Comissão, Professor Germano Marques da Silva, que, ao justificar a bondade das reformas, e perante a Assembleia da República, adiantou como principais justificações, que:

a)- No projecto apresentado na Comissão para discussão partiu-se do princípio de que não é aceitável que o regime dos recursos em processo penal possa ser mais restrito do que os recursos em processo cível

b)- O sistema vigente em sede de recursos podia e devia ser aperfeiçoado porque “não satisfaz ninguém” razão de tal não satisfação é de que a actual organização judiciária não permitia ainda que os tribunais colectivos adquirissem o prestígio que é pressuposto do regime de recursos vigentes e não é previsível que o adquira a médio prazo.

c)- A confiança na qualidade da justiça realizada em primeira instância é sempre relativa.

d)- Igualmente era convicção do mesmo Professor de que a aspiração generalizada dos meios jurídicos era a possibilidade do registo e prova produzida na audiência de julgamento e que esse desejo está intimamente relacionado com a quebra da confiança na qualidade da Justiça administrada em primeira instância. Acrescia, ainda, na sua perspectiva, o facto de a conflitualidade entre os diversos sujeitos processuais entre magistrados e advogados, ser muito aguda.

Argumentação linear, afastada de grandes elaborações jurídicas, tem sobre si o ónus de arrancar de juízos de valor subjectivos, das impressões pessoais dos membros da Comissão e de uma incorrecta compreensão dos conceitos.

Em relação ao argumento mais bem elaborado e fundamentado da equiparação do sistema de recursos estamos inteiramente em sintonia com José Damião da Cunha quando referia que a interposição de um novo grau de recurso em matéria de facto não pode deixar de constituir um gravame nos propósitos de celeridade e economia processual. Solução tanto mais discutível, quanto ao acto formal de constituição como arguido, na fase de inquérito, está associado uma exigência de cumprimento de prazos na definição do estatuto processual do arguido - exigência essa que parece ter sido integralmente para as fases posteriores.    

É certo que parecerá pouco compreensível que num mesmo ordenamento jurídico o processo civil ponha à disposição das partes um duplo grau de jurisdição de em processo penal o recurso e o processo penal - sobretudo analisado numa a perspectiva garantistica - se baste com um só grau de recurso. Porém, pondo de lado o facto de mesmo no próprio processo civil a matéria dos recursos - e, em especial, o chamado princípio do duplo grau de jurisdição de mérito estar hoje sujeito também a revisão e não reiterando na demonstração da diferenciação da lógica interna dos recursos (no processo civil vigora ainda o princípio do pedido e a total disponibilidade do processo pelas partes), a verdade é que, no processo civil, vigoram regras que permitem atenuar as consequências nefastas de uma longa duração do processo: assim, desde logo, na determinação das consequências (os juros de mora, etc) mas, mais ainda, tal como sucede no vigente CPC nacional, a tramitação dos recursos é também diferenciada, sendo admissível que, em certos casos, os recursos apenas tenham efeito meramente devolutivo e, portanto, não produzam o efeito suspensivo, sendo, assim, a sentença provisoriamente executiva. Ora, tal não poderá obviamente suceder no processo penal: nem o arguido inocente é devidamente salvaguardado de um repetir de juízos desnecessários, nem a condenação e os efeitos preventivos que se querem actuados pela aplicação da pena são compensados.

Não obstante os grandes propósitos, e na prática, a maior novidade das alterações em sede de recurso referia-se aos recursos interpostos de decisões do tribunal colectivo.

Analisando a tramitação introduzida nos recursos das decisões daqueles tribunais verifica-se que, no caso de o recurso versar exclusivamente matéria de direito, passou a ser admitido o recurso per saltum para o ST J; no caso de o recurso versar sobre matéria de facto, o recurso é interposto para o Tribunal da Relação (no caso de um eventual cumulo de recursos, uns versando somente matéria de direito, outros abrangendo também matéria de facto, serão julgados conjuntamente os perante o Tribunal da Relação). Na redacção inicial do C.P.P. a decisão do tribunal colectivo apenas era susceptível de ser impugnada em termos de direito e no Supremo Tribunal de Justiça.

Da decisão do Tribunal da Relação há a possibilidade de se interpor um novo recurso para o STJ. Para obviar a uma eventual repetição desnecessária de juízos, em sede de recursos, o legislador socorreu-se de um mecanismo impeditivo de acesso à jurisdição do STJ, a que denominou de «dupla conforme» sempre que a decisão do Tribunal da Relação for uma decisão absolutória que confirme decisão de primeira instância, ou se fosse uma decisão condenatória que confirme decisão de primeira instância por crime não punível com pena superior a 8 anos, nestes casos ficaria precludido o acesso ao STJ. Assim, neste esquema de tramitação de recursos, poderiam aceder ao ST J - tendo sido exercitado o recurso em matéria de facto - os casos em que se verificasse uma controvérsia nas decisões antecedentes e os casos de condenação por crime grave (pena superior a 8 anos).

Por qualquer forma a regra imperativa do conhecimento pelo Tribunal da Relação, e só por este, das decisões do Tribunal singular nunca foi objecto de qualquer controvérsia doutrina ou jurisprudencial e muito menos atraiu a atenção do legislador.

 Na prática a gestão de todo o sistema de recursos nos Tribunais Superiores foi alterado pelas inovações introduzidas cuja grande preocupação, embora não explicitada, foi o de criar condições para o controle da matéria de facto nos julgamentos de tribunal colectivo

Os riscos inerentes a uma tal concepção são, quanto a nós, evidentes e a existência de um duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto é um factor acrescido de insegurança do sistema. Na prática o que se pretendia não era um recurso como forma de sindicar os vícios da decisão recorrida, ou um “recurso remédio”, mas sim um recurso que era uma forma encoberta de uma nova reapreciação da matéria de facto decidida pelo tribunal colectivo, isto é, de um segundo julgamento.

A tentação de conseguir a alteração, numa outra instância, da decisão que não é favorável provoca uma insegurança na definição do direito que, por forma alguma, é compensada com eventuais benefícios. A possibilidade da existência de dois juízos diferentes sobre a mesma matéria de facto não abona sobre a fiabilidade do Sistema sendo certo que no tribunal de recurso é postergado o principio da mediação e a percepção da prova produzida é feita indirectamente com referência à produzida na primeira instância que se encontra devidamente documentada.

Aliás, é patente a contradição do legislador que mantém o tribunal colectivo considerando que a colegialidade e a composição são uma garantia reforçada de uma avaliação fiável da prova produzida e das garantias dos cidadãos mas que, por outro lado, numa manifestação de desconfiança, introduz o recurso em termos de matéria de facto de tal decisão. E, saliente-se, recurso esse que tem por base a mesma prova que foi produzida perante o tribunal colectivo. Ao menos que o legislador tivesse a coerência patente na reforma de processo civil em que a sindicância da matéria de facto pelo tribunal superior tem por contraposição a decisão de juiz singular.

É neste contexto que aparece a alteração introduzida pela lei 48/2007 que, em relação á matéria do sistema de recursos, enuncia, em termos de proposta, que é objectivo do legislador “restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal, substitui-se, no artigo 400.º, a previsão de limites máximos superiores a 5 e 8 anos de prisão por uma referência a penas concretas com essas medidas.”

Tal propósito, por alguma forma redutor, omite, por um lado, o esforço no sentido de afirmar a função nomofilática do Supremo Tribunal de Justiça a que se refere Medina de Seiça quando alude a uma função de defesa já não da lei ou da norma positivamente encarada, mas do próprio direito e da intenção de justiça que o constitui. Uma função que, por antonomásia, lhe pertence, pois constitui o topo da hierarquia judiciária e é nela institucionalmente único. Uma função que, de acordo com o mesmo autor, se mostra cada vez mais necessária em face da pulverização legislativa e da multiplicação de processos para assegurar a efectividade do princípio da legalidade penal, bem como dar consistência à pretensão preventivo-geral do sistema normativo que se ganha (ou perde) em grande medida no modo como a proibição e a punição se actualizam na realidade judiciária.

Por igual forma se dirá que se situaram fora do âmbito das preocupações do legislador a praxis quotidiana imposta pelo recurso relativo á matéria de facto inserido pela anterior reforma e a necessidade de uma repristinação da lógica inicial do sistema de recursos que, sufragando a Constituição, constituía uma construção sólida de leitura linear. Para a necessidade de uma ponderação sustentada de tal necessidade se referiu Pinto de Albuquerque em sede de Unidade de missão para a Reforma Penal (acta nº17) 

Na verdade, a grande preocupação do legislador, para além da alteração do modelo de admissibilidade baseado na pena aplicável para a pena efectivamente aplicada, foi o de conseguir um sistema de impugnação da matéria de facto que, transpondo conceitos importados do processo cível, inaugurasse um novo capítulo que, prognosticamos, ser particularmente complicado no que respeita á mesma impugnação

Em consonância com aquele primeiro propósito formatou-se o artigo 400.º do Código de Processo Penal com a seguinte proposta de redacção

                              Decisões que não admitem recurso

1 -        Não é admissível recurso:

a)         De despachos de mero expediente;

b)         De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;

c)          De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo;

d)         De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância;

e)          De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos;

Tal redacção do artigo em causa estava em consonância com o disposto no artigo 432 alínea c) da Proposta e não é mais do que concretização do propósito afirmado pelo legislador dentro  da lógica do sistema de recursos.

Todavia, dentro do percurso de consolidação e feitura da lei, alguém, menos conhecedor de princípios básicos de processo penal, conseguiu que a alínea e) do artigo citado assumisse a redacção seguinte:

De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade

Esta a razão de ser da questão suscitada nos presentes autos, ou seja saber se, admitindo que uma interpretação literal da mesma alínea conduz á conclusão de que a pena de prisão no seu limite mínimo proferida pelo Tribunal da Relação conduz á admissibilidade do recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, determinar se tal interpretação está de acordo com o propósito do legislador firmado nas sucessivas intervenções relativas á lei adjectiva penal ou se, pelo contrário, é imperativo efectuar uma interpretação correctiva.

A questão fundamental na análise de tal questão centra-se, assim, na interpretação da alínea em causa e da sua conjugação com o artigo 432 alínea c) do Código de Processo Penal. Tal tarefa reconduz-se á aplicação de princípios fundamentais, visando a consagração de uma interpretação permitida pela lei e arredando a possibilidade de uma analogia proibida por situada á margem do princípio da legalidade

Como refere Figueiredo Dias as palavras em que o legislador consagra o comando legal nem sempre se apresentam ausentes de qualquer equivocidade e, pelo contrário, muitas vezes denotam uma natureza polissémica face á qual se impõe a tarefa interpretativa. Por isso o texto legal se toma carente de interpretação, oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum e literal, um quadro de significações dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da interpretação. Fora deste quadro, sob não importa que argumento, o aplicador encontra-se inserido já no domínio da analogia proibida. Um tal quadro não constitui por isso critério, ou elemento, mas limite da interpretação admissível em direito penal.

Também no domínio do direito processual penal, onde se movem e ganham expressão direitos fundamentais, não é admissível a injunção de regras que não se encontrem ancoradas na letra da lei. É uma imposição do princípio da legalidade e, necessariamente, da certeza e segurança da Lei com directa impostação constitucional e característica do Estado de Direito. Como refere o mesmo Mestre: Fundar ou agravar a responsabilidade do agente em uma qualquer base que caia fora do quadro de significações possíveis das palavras da lei não limita o poder do Estado e não defende os direitos, liberdades e garantias das pessoas. Por isso falta a um tal procedimento legitimação democrática e tem de lhe ser assacada violação da regra do Estado de Direito. É claro que, dito isto, não ficam ainda apontados os critérios de que o intérprete se deve servir para eleger, de entre os sentidos possíveis das palavras, aquele que deve reputar-se jurídico-penalmente imposto. Se o caso couber em um dos sentidos possíveis das palavras da lei nada há, a partir daí, a acrescentar ou a retirar aos critérios gerais da interpretação jurídica.

Decisivo será assim, por um lado, que a interpretação seja teleologicamente comandada, isto é, em definitivo determinada à luz do fim almejado pela norma; e por outro que ela seja funcionalmente justificada, quer dizer, adequada à função que o conceito (e, em definitivo, a regulamentação) assume no sistema.

Na verdade, o intérprete move-se no âmbito das possíveis significações linguísticas do texto legal e tem de respeitar o sistema da lei, não lhe quebrando a harmonia, não lhe alterando ou rompendo a sua coerência interna. Só até onde chegue a tolerância do texto, e a elasticidade do sistema, é que o intérprete se pode resolver pela interpretação que dê à lei um sentido mais justo e mais apropriado às exigências da vida; só dentre as várias acepções que a letra da lei comporte, e o sistema não exclua, é que o juiz pode escolher, valorando-as pelos critérios da recta justiça e da utilidade prática. Sendo certo que o mesmo interprete está ligado aos juízos de valor, bem como aos sentidos e finalidades da norma inscritos no pensamento do legislador histórico, igualmente é exacto que o mesmo se deve comprometer com a análise das novas exigências e realidades, entretanto surgidas, as quais não estiveram presentes no espírito do mesmo legislador. Tal tarefa tem único limite que se consubstancia na impossibilidade de ultrapassar o teor literal da regulamentação e o seu campo de significações adequadas ao entendimento comum e normal das palavras constantes da norma a interpretar.

Tendo presente tais pressupostos na tarefa interpretativa a elaborar a primeira conclusão que se pode extrair é a de que a redacção atribuída á referida alínea e) não está de acordo com principio que desde sempre regeram o sistema de recursos pois que permite, em última análise, que da decisão de juiz singular alterada pelo Tribunal da Relação, e impondo uma pena privativa de liberdade de qualquer dimensão quantitativa, se possa recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça. Tal admissibilidade viola frontalmente aqueles princípios.

Aliás, saliente-se que, no domínio da interpretação de que se discorda, a decisão do juiz singular é susceptível de recurso para o Tribunal da Relação-artigo 427 do Código de Processo Penal- o qual pode ser restrito á matéria de direito. Por seu turno, ainda no domínio da mesma interpretação, a decisão da Relação, se aplicar pena privativa de liberdade, é susceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Porém, se a decisão aplicada for emitida pelo tribunal colectivo e se restringir á matéria de direito apenas pode ser dirigida ao Supremo Tribunal de Justiça-artigo 432 nº1 alínea c) do Mesmo diploma. 

A interpretação literal consagra, assim, um duplo grau de recurso em termos de matéria de direito em relação ás decisões do juiz singular alteradas pelo tribunal da Relação nos sobreditos termos, conferindo-lhes um superior coeficiente garantistico o que, convenhamos, é algo totalmente despropositado na lógica do sistema e reflecte a incorrecção da mesma interpretação.

Já nos Comentários ao Código de Processo Penal Paulo Pinto Albuquerque detectava a evidente aporia referindo que “ A nova regra do triplo grau de jurisdição coloca uma questão adicional conexa com o artigo 432, nº 1, al. c), e nº 2. Esta disposição era consonante com a redacção do artigo 400, nº 1, al. e), da proposta governamental n. ° 109/ X, de acordo com a qual eram irrecorríveis os acórdãos proferidos em recurso, pelas Relações que aplicassem pena de prisão não superior a cinco anos. Contudo, esta disposição do artigo 400, nº 1, al. e)  foi arredado na AR, mas manteve-se o artigo 432 nº1, al. c), e nº 2. Deste modo, surgiu uma discrepância notória entre as duas disposições. O artigo 400 nº1 alínea e) admite o recurso para o STJ de acórdãos do TR proferidos, em recurso em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão, mas o artigo nº 1, al. c), e nº 2, só impõe o recurso directo para o STJ dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a cinco anos, que visem exclusivamente matéria direito. Ou seja, o recurso da sentença do tribunal singular condenatória da pena de prisão que visa exclusivamente o reexame de matéria de direito deveria ser interposto para o TR e / ou para o STJ. Este tratamento de privilégio dos arguidos julgados pelo tribunal singular não tem nenhum fundo objectivo e, por isso, o artigo 432, nº 1, al. c), deve ser aplicado analogicamente ao recurso da sentença do tribunal singular condenatória em prisão, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito.    

Quanto a nós, perfilhamos o entendimento de que é incontornável a constatação de que o sentido literal da referida alínea e) não coincide com a vontade da lei, tal como se deduz da interpretação lógica: há desconformidade entre a letra e o pensamento da lei. Analisando a disposição do ponto de vista lógico, vê-se que resulta outro sentido que não é aquele que das palavras transparece imediatamente.

Como diz Manuel de Andrade Ora as palavras são um meio para tomar reconhecível a vontade, e se é certo que sem alcançar expressão nas formas constitucionais uma vontade legislativa não tem existência jurídica, certo é outrossim que basta uma manifestação defeituosa ou errónea, através da qual se possa reconstruir e vislumbrar essa vontade Pois que o meio deve sacrificar-se ao fim, o pensamento deve triunfar da forma, a vontade da escama verbal: prior atque potentior est quam vox, mens dicentis (7, § 2, Dig. 33, 10).O confronto da interpretação lógica com a literal há-de ter por efeito operar uma rectificação do sentido verbal na conformidade e na medida do sentido lógico. Tratar-se-á de corrigir a expressão imprecisa, adaptando-a e entendendo-a no significado real que a lei quis atribuir-lhe. A modificação refere-se às palavras, que não ao pensamento da lei.

A imperfeição linguística pode manifestar-se de duas formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer, ou disse menos, quando queria dizer mais. A sua linguagem pode ser demasiado genérica, e compreender aparentemente relações que conceitualmente dela estão excluídas, ou demasiado restrita, e não abraçar em toda a sua amplitude o pensamento visado. Em suma, o legislador pode pecar por excesso ou por defeito.

A interpretação, para fazer corresponder o que está dito ao que foi querido, procede acolá restringindo e aqui alargando a letra da lei: num caso há interpretação restritiva, e no outro há interpretação extensiva.

No caso concreto impõe-se uma leitura restritiva da referida alínea e) reconduzindo-a não só ao espírito do legislador como á sua interpenetração com o disposto no artigo 432 nº1 alínea c) do Código de Processo Penal. A interpretação restritiva, ainda nas palavras de Manuel de Andrade, aplica-se quando se reconhece que o legislador, posto se tenha exprimido em forma genérica e ampla, todavia quis referir-se a uma classe especial de relações. A interpretação restritiva tem lugar particularmente nos seguintes casos: 1. o se o texto, entendido no modo tão geral como está redigido, viria a contradizer outro texto de lei; 2. o se a lei contém em si uma contradição íntima (é o chamado argumento ad absurdum); 3. o se o princípio, aplicado sem restrições, ultrapassa o fim para que foi ordenado.

É exactamente a primeira hipótese que se verifica no cotejo e conjugação das duas normas em causa pelo que a contradição existente deve ser resolvida dentro daquele que desde sempre tem sido o propósito invocado pelo legislador de reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça ás decisões que o mereçam pela sua relevância e necessariamente decisões emitidas pelo tribunal colectivo e de júri.

Assim, conclui-se que o disposto no artigo 400 nº1 alínea e) do Código de Processo Penal deve ser interpretado no sentido de que a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões que aplicam penas privativas de liberdade está dependente do facto de as mesmas penas se inscreverem no catálogo do nº1 alínea c) do artigo 432 do mesmo diploma, ou seja, serem superiores a cinco anos.                                                

Concluindo:

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2009 de 18.02.09, publicado no DR, 1ª Série, de 19.03.09 fixou jurisprudência no sentido de que, em matéria de recursos penais, no caso de sucessão de leis processuais penais, é aplicável a lei vigente à data da decisão proferida em 1ª instância.

A decisão de primeira instância no caso vertente foi proferida em 1 de Junho 2010.Nessa data estava já em vigor a versão Código de Processo Penal resultante das alterações que nele foram introduzidas pela Lei nº 48/07 de 29 de Agosto, como decorre do seu artº 7º.

O Tribunal da Relação de Guimarães confirmou a pena fixada em sede de primeira instância de cinco anos de prisão em que o Arguido foi condenado. Como assim, a alínea c) do nº 1 do artº 432º conjugada com o artigo 400 nº1 alínea e) determina a rejeição por inadmissibilidade do recurso interposto-artigo 420 nº1 alínea b) e 414 nº2 do Código de Processo Penal.

Uma outra razão impõe a rejeição do recurso interposto.

            Na verdade,

            No caso vertente o recorrente foi condenado em pena de prisão cuja execução foi declarada suspensa. Assim, tudo se resume a saber se a pena aplicada consubstancia o pressuposto legal de admissibilidade ou, pelo contrário, estamos perante uma pena de substituição que, assumindo-se como pena autónoma, não reveste a natureza de pena privativa de liberdade.

            No que concerne, acompanha-se o Professor Figueiredo Dias quando refere que estas outras penas não relevam tanto da divisão entre penas principais e penas acessórias, quanto confor­mam uma categoria nova, com o seu sentido e a sua teleologia próprias: a categoria das penas de substituição. Penas estas que, podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas, radicam todavia, tanto histórica como teleologica­mente no movimento político-criminal de luta contra a aplicação de penas privativas da liberdade, nomea­damente de penas curtas de prisão.

            Estas penas de substituição, se não são, em sentido estrito, penas principais não são obviamente penas acessórias: não só porque estas se assumem num enquadra­mento histórico e teleológico que nada tem a ver com o das penas de substituição, como porque uma coisa são as penas que só podem ser fixadas conjuntamente com uma pena principal (como é o caso das penas acessórias), outra diferente as penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição).

            Na verdade, adianta o mesmo Autor, o processo de determina­ção da pena não se esgota nas operações de determinação da pena aplicável, e de determinação da medida da pena, mas comporta ainda, ao menos de forma eventual, uma terceira operação: a da escolha da pena. Isto pode suceder em dois contextos diversos: ou porque a punição prevista para o crime cometido admite a aplicação em alternativa de duas penas principais (pena de prisão ou pena de multa, v. g., art. 156.°-1), devendo o tribunal escolher qual das duas espé­cies de pena vai aplicar ainda antes de proceder à determinação da medida da espécie de pena escolhida; ou porque, uma vez determinada a medida de uma pena de prisão, o tribunal verifica que pode aplicar, em vez dela, uma pena de substituição, devendo então pro­ceder à determinação da medida desta.

            Pena autónoma portanto e, na sua autonomia, uma pena que não implica a privação de liberdade. Como refere Jeschek a suspensão da pena constitui um meio autónomo da reacção jurídico-penal com uma pluralidade de possíveis efeitos.

            Assim, considerando, e assumindo o entendimento que a pena aplicada não é uma pena privativa de liberdade, entende-se que, também por tal motivo, o recurso interposto não é admissível face ao disposto no artigo 400 nº1 alínea e) do Código de Processo Penal.

 

   Termos em que se rejeita o recurso interposto.

 Custas pelo recorrente com a taxa de justiça de 3 UC

  Nos termos do artigo 420 nº3 do Código de Processo Penal é ainda sancionado no pagamento de 3 UC

Supremo Tribunal de Justiça, 31 de Março de 2011

Santos Cabral (Relator)

Oliveira Mendes