Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18366/16.9TBLSB,L2-A.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: BANCO CENTRAL EUROPEU
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
BANCO DE PORTUGAL
RESOLUÇÃO BANCÁRIA
BANCO
INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO
INTERMEDIÁRIO
LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 01/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – DECLARAÇÃO DA SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / SENTENÇA DE DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA E SUA IMPUGNAÇÃO / CONTEÚDO, NOTIFICAÇÃO E PUBLICIDADE DA SENTENÇA / EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS PROCESSUAIS / EFEITOS SOBRE OS CRÉDITOS / VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / TRIBUNAL / PERSONALIDADE E CAPACIDADE JUDICIÁRIA – PROCESSO EM GERAL / INSTÂNCIA / EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA.
Doutrina:
- Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª Edição, 2015, p. 438.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 36.º, N.º 1, ALÍNEA I), 39.º, N.ºS 1 E 9, 85.º, N.º 1, 90.º, 128.º, N.º 1 E 130.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 11.º E 277.º, ALÍNEA E).
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 141.º, N.º 1, ALÍNEA E).
DL N.º199/2006, DE 25-10: - ARTIGO 8.º, N.ºS 2 E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA (AUJ) N.°1/2014, DE 08-05-2013, IN DR I-A N.º 39, DE 25-02-2014;
- DE 26-09-2017, PROCESSO N.º 3499/16.0T8VIS.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02-11-2017, PROCESSO N.º 11674/16.0T8LSB.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 06-11-2018, PROCESSO N.º 18364/16.2T8LSB-A.L1.S2, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 07-03-2017, PROCESSO N.º 48/16.3T8LSB-L1-7;
- DE 07-11-2017, PROCESSO N.º 32263/15.1T8LSB.L1-7, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I. A retirada de autorização para o exercício da actividade bancária decretada pelo Banco Central Europeu (BCE) implica para a autoridade bancária nacional de supervisão – o Banco de Portugal – o dever de requerer a insolvência da entidade sancionada, o que foi feito, pelo que a actividade do BB, passou para um banco de transição – o CC – deixando o BB, em função da insolvência de poder exercer a sua actividade.

II. A revogação da autorização para o exercício da actividade bancária de que foi alvo o BB, equivale à declaração de insolvência do Banco, razão pela qual, por força do disposto no art. 90º do CIRE, apenas no processo de insolvência e de acordo com os meios processuais previstos na lei insolvencial, podem os credores da insolvência exercer os seus direitos na pendência deste processo, devendo aí reclamar os seus créditos – art. 128º, nº1, do CIRE: ao processo insolvencial têm de acorrer todos os credores do insolvente, mesmo os que disponham de sentença definitiva que reconheça os seus créditos, razão por que não se vislumbra que, estando em causa o incumprimento de um contrato de intermediação financeira em relação ao qual os Autores formulam pedido pecuniário a título de indemnização, a acção devesse prosseguir contra o BB em fase de liquidação.

III. Constando das deliberações do Banco de Portugal, tomadas em sede de resolução, quais os activos e passivos que não foram transferidos para o CC, é notório e público que não se justificaria o prosseguimento do processo contra o BB, face à hipótese de vir a ser declarado o carácter limitado do processo de liquidação judicial do BES, importando ter em conta o carácter excepcional das normas dimanadas do Banco de Portugal, como autoridade nacional de resolução.

IV. Não é despicienda a consideração de que as normas comunitárias, em que se baseia a supervisão financeira, que compete ao Banco Central Europeu (BCE) e às autoridades nacionais competentes (no caso ao Banco de Portugal), estão sujeitas aos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, pelo que são integradas na ordem jurídica interna, prevalecendo sobre elas, pelo que a qualificação da insolvência nunca derrogaria a resolução decretada pelo BCE.

Decisão Texto Integral:

Proc.18366/16.9T8LSB.L2-A.S2

R-689[1]   

Revista

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, intentou acção declarativa com processo comum na Comarca de Lisboa – Lisboa – Instância Central, contra:

1º - BB, SA,

 2º - Banco de Portugal,

3º - CC, SA,

4º - Fundo de Resolução,

5ª - DD,e

6ª - EE.

O autor formulando os seguintes pedidos:

“Nestes termos e nos mais de Direito que  v/Exa, doutamente suprirá, deverá a presente acção ser julgada totalmente procedente por provada que ficou:

a) A responsabilidade civil dos RR., enquanto intermediários financeiros, por violação dos deveres de informação, diligência e lealdade, nos termos do disposto no artigo 304º-A do CVM, devendo em consequência os RR. serem solidariamente condenados a pagar ao Autor a quantia de € 796.366,19 acrescida de:

i) Juros vencidos calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do Autor, e a apurar em sede de liquidação de sentença;

ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória:

        Caso assim não se entenda:

      b) A nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma nos termos do disposto no artigo 321 º do CVM, devendo em consequência serem os RR. solidariamente condenados a restituir ao Autor a quantia de € 796.366,19 acrescida de:

i) Juros vencidos calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do Autor, e a apurar em sede de liquidação de sentença;

ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

        Em qualquer dos casos:

       c) Mais se requer, que sejam os RR. condenados a ressarcir solidariamente ao Autor os danos não patrimoniais que lhe foram causados, em valor a ser calculado em sede de liquidação de sentença”.

           O investimento em causa é a carteira de títulos, composta pelos valores mobiliários da “FF”, no total de € 796.366,19, identificados no artigo 36º da petição inicial, designados como dívida emitida pelas diversas entidades que compõem o Grupo BB(GBB), que o autor subscreveu através da intermediação financeira do BB, e persuadida pela gestora de conta, a sexta ré, EE.

           As causas de pedir invocadas pelo autor, como fundamento da responsabilidade que demanda dos Réus, consistem, por um lado, no que ao BB e à sexta ré respeita, na alegada violação de diversos deveres legais aplicáveis à actividade de intermediação financeira, designadamente do dever de informação, diligência e lealdade e, por outro lado, na alegada inobservância de forma escrita legalmente exigível para o contrato de intermediação financeira celebrado entre o BB e o Autor, de acordo com o art. 321º do Código do Valores Mobiliários.

           Já no que respeita ao CC, o autor defende que, com a Medida de Resolução do BB, de 3 de Agosto de 2014, e a transferência de activos e passivos por ela operada, tal responsabilidade (originária) dele se teria transferido para o referido CC.

            Quanto ao Réu Banco de Portugal, vem o mesmo demandado, à semelhança do que sucede com a Ré DD, em virtude do alegado incumprimento de deveres de supervisão bancária, bem como da alegada prestação de informações erróneas ao mercado e, ainda, em especial, pela sua actuação no contexto da resolução do BB, nomeadamente pela adopção da Medida de Resolução de 3 de Agosto de 2014 e das Deliberações subsequentemente adoptadas (cf. arts. 64º, 70º e ss e 114º da petição).

           Por fim, quanto ao Fundo de Resolução, alega o autor, como fundamento da respectiva responsabilização, a circunstância de ser ele o detentor do capital social do CC (cf. art. 64º da petição).

           O réu BB, S.A.-Em Liquidação, comunicou que, na sequência de deliberação do Banco Central Europeu, de 13-07-2016, revogou a autorização do exercício da actividade daquele Banco, que se encontra em processo de Liquidação Judicial, requerida pelo Banco de Portugal, nos termos do n.º3 do art. 8.º do DL. n.º199/2006, requerimento que foi distribuído à 1.ª Secção de Comércio da Instância Central da Comarca de Lisboa, sob o n.º18588/16.2T8LSB, tendo sido proferido despacho de prosseguimento, nos termos do art. 9.º do DL n.º199/2006, em 21.07.2016.

          Em conformidade, pede que seja declarada a extinção da instância, por inutilidade da lide, nos termos e para os efeitos do art. 277.º, al. e), do Código de Processo Civil, absolvendo-o da instância.

            Os demais réus contestaram, nos seguintes termos:

           - o réu, CC, S.A., e a ré EE pugnam pela ocorrência da excepção da sua ilegitimidade passiva e defendem-se por impugnação.

            O réu, Banco de Portugal, antes de impugnar o pedido e a causa de pedir da acção, defendeu-se, arguindo a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal para conhecer do pedido contra si formulado, tendo alegado para o efeito que a competência judicial para conhecer da sua eventual responsabilidade caberia sempre aos tribunais da jurisdição administrativa [art. 212º da Constituição, art. 1º/1, alíneas a) e f) do nº1 e nº2 do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o “ETAF”].

           O réu, Fundo de Resolução, na sua contestação, suscita a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal a quo para conhecer do pedido contra si formulado, tendo alegado para o efeito que a competência para conhecer da sua eventual responsabilidade caberia sempre aos tribunais da jurisdição administrativa [art. 212º da CRP, art. 1º/1 e alíneas a), f) e, em qualquer caso, o) do nº1 e nº2 do art. 4º do ETAF].

     - A Ré DD invoca as excepções de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, de inadmissibilidade processual do litisconsórcio e da coligação e de ilegitimidade passiva; impugna os factos alegados na petição inicial e sustenta a inexistência de qualquer tipo de responsabilidade civil por parte da DD quanto aos factos alegados pela autora.

***

           Findos os articulados, o Tribunal de 1ª Instância julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto ao Réu BB e julgou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do Juízo Central Cível de Lisboa, em razão da matéria e, em consequência, absolveu os demais réus da instância.

***

           Não se conformando o Autor interpôs recurso de apelação, para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a revogação da decisão recorrida com o consequente prosseguimento dos autos. 

            Por Acórdão de 22.8.2018 – fls. 353 a 381 – foi decidido:

               Julgar parcialmente procedente a apelação, e consequentemente:

1. Mantém-se a decisão quanto à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide do réu BB e quanto à absolvição da instância dos Réus Fundo de Resolução, Banco de Portugal e DD (DD);

2. Revoga-se a sentença apelada no tocante à absolvição da instância dos Réus CC, S.A. e EE, determinando-se nesta parte o prosseguimento dos autos.”

***

            Inconformado, o Autor recorreu de revista excepcional para este Supremo Tribunal de Justiça, recurso que foi admitido pelo Acórdão da Formação de 22.11.2018, com fundamento na relevância social do tema, restringindo o seu objecto à declaração de inutilidade superveniente da lide decretada quanto ao Réu BB.

***

            Alegando, o Autor formulou as seguintes conclusões:

            A. Entende o Recorrente subsistir, no Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, um erro de interpretação e de aplicação de lei processual, concretamente do disposto na alínea e), do artigo 277°, do Código de Processo Civil, já que não se verifica a inutilidade superveniente da lide, quanto ao Réu, ora Recorrido BB, por duas ordens de razão:

B. Em primeiro lugar, porque o pedido da presente acção declarativa não tem índole exclusivamente patrimonial, uma vez que o Recorrente de entre outras questões trouxe à colação a questão da nulidade do contrato de intermediação financeira, pedindo em consequência a indemnização que por essa causa lhe entende ser devida.

C. O Tribunal de Primeira Instância responsável pelo processo de insolvência do Réu, ora Recorrido BB, limitar-se-á a verificar e reconhecer créditos da insolvente, não lhe cabendo decidir sobre a constituição da obrigação de prestar.

D. Resulta do Acórdão Fundamento do Tribunal da Relação de Évora de 29.01.2015, que “Por causa da pendência de processo de insolvência não tem que ser julgada extinta uma acção que não visa a declaração de qualquer direito de crédito, mas em que se pede que sejam declarados nulos ou resolvidos os negócios jurídicos celebrados entre as partes, ou seja, em que só estão em causa efeitos reais inerentes à nulidade/resolução/ anulação peticionados”.

E. Assim, discutindo-se a nulidade de negócios jurídicos celebrado entre as partes a insolvência não determina a inutilidade superveniente da lide declarativa, ao contrário do decidido no Acórdão sub judice.

F. Em segundo lugar, no despacho de prosseguimento nos termos do artigo 9° do DL. 199/2006 aquele Tribunal de Primeira Instância responsável pelo processo de liquidação judicial do Recorrido BB não declarou aberto o incidente de qualificação de insolvência, e tal significa, então, que ainda não é possível determinar se o património do devedor insolvente será suficiente para responder aos créditos reclamados.

G. Resulta do Acórdão Fundamento do Tribunal da Relação do Porto de 15.04.2013 que: “A declaração de insolvência do empregador não conduz de imediato à inutilidade superveniente da lide da acção declarativa proposta pelo trabalhador quando na sentença de declaração de insolvência foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter limitado e não veio a ser requerida a complementação da sentença.”

H. Assim, não se encontrando aberto o incidente de qualificação da insolvência não se poderá concluir pela imediata inutilidade superveniente da lide e, em consequência, não será de absolver o Recorrido da instância declarativa, ao contrário do perfilhado no Acórdão em recurso.

I. Não está, assim, em causa a aplicação do entendimento sufragado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência [AUJ] n° 1/2014 [publicado no DR 1ª Série, n° 39 de 25 de Fevereiro de 2014], que serviu de base à decisão em apreço, já que o mesmo teve na base da sua construção e substância os casos em que seja “Certificado o trânsito em julgado da sentença declaratória e declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno e fixado o prazo para reclamação de créditos.”, e tal como consta da proposta da Exma. Procuradora Geral Adjunta, transcrita naquele documento.

J. Assim, ao declarar a inutilidade superveniente da lide e, em consequência, absolver o Recorrido BB da instância, quando se tratava de apreciar também, mas não só, a nulidade de negócio jurídico e não tendo sido, ainda, aberto incidente de qualificação da insolvência, violou o Acórdão em apreço, a lei processual vertida na alínea e) do artigo 277.° do Código de Processo Civil.

K. Tal demonstra, também no caso em apreço, a utilidade do prosseguimento da presente demanda para o Autor, que poderá pela mesma obter título do seu direito de crédito invocado, e só assim se garantindo o acesso do mesmo à defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (constitucionalmente protegidos artigo 20° da CRP).

L. Encontram-se reunidos os pressupostos da revista, designadamente, a relevância jurídica da questão, necessária para uma melhor aplicação do direito, revelando-se essencial determinar o sentido e alcance com que deve ser interpretado e aplicado o disposto na alínea e) do artigo 277.° do Código de Processo Civil em situações de insolvência e idênticas - - o Tribunal da Relação de Lisboa já decidiu em sentido diverso, ordenando o prosseguimento dos autos para julgamento em V Instância relativamente aos RR BB, CC e EE, vejam-se os Acórdãos da 6ª Secção proferidos nos processos n.°19125/16.4T8LSB.L1 de 11.01.2018, 18455/16.0T8LSB.L2 de 06.12.2017, 19541/16.1T8LSB e, ainda, Acórdão proferido pela 2ª Secção no processo n.°18595/16.5T8LSB.L1 de 01.02.2018 -, bem como a interpretação dada ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.°1/2014, de 25 de Fevereiro.

M. Os interesses em causa são de particular relevância social, estando em causa a confiança no sistema bancário com todo o alarme social que os recentes acontecimentos têm causado.

N. O Acórdão sindicado encontra-se em contradição com o Acórdão Fundamento proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 29/01/2015 porquanto decidiram diversamente a mesma questão de direito, a saber, num mesmo contexto de insolvência ou situação equiparada, perante o pedido de declaração de nulidade de negócio jurídico, o Acórdão em apreço absolveu o Recorrido BB da instância por inutilidade superveniente da lide enquanto o Acórdão fundamento supra mencionado determinou o prosseguimento dos autos.

O) No que respeita ao Acórdão Fundamento do Tribunal da Relação do Porto, de 15/04/2013, verifica-se um tratamento jurídico diferente dado à situação jurídica de abertura de incidente de qualificação da insolvência, defendendo este Acórdão Fundamento que a declaração de insolvência não conduz de imediato á inutilidade superveniente da lide da acção declarativa quando a abertura do incidente de qualificação da insolvência não tem carácter pleno, ao contrário do decidido no Acórdão recorrido.

P) Vêm, também, as presentes alegações de recurso interpostas do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que julgou improcedente a Apelação e, em consequência, manteve a decisão da Primeira Instância, vertendo a presente Revista Excepcional sobre a parte decisória que julgou incompetente em razão da matéria o tribunal judicial para dirimir o presente pleito.

Q) Assim, não se conforma, o ora Recorrente, com a decisão de incompetência material do Tribunal Judicial Cível para julgar a presente acção, porquanto constitui doutrina e jurisprudência pacíficas que a competência material do tribunal é aferida em função dos termos em que a acção é proposta pelo Autor, atendendo-se à estruturação dada pelo Autor, ao pedido e à causa de pedir, relevando, assim, para cação da competência do tribunal o “quid disputatum” e não o “quid decisum

R) Ora, na presente acção, o Autor, ora Recorrente, peticiona pela responsabilização civil dos RR. por violação das regras de intermediação financeira, mormente por via do consagrado nos artigos 304° A e 321° do Código dos Valores Mobiliários, isto é, está em causa a apreciação da violação dos deveres de informação, diligência e lealdade que impendem sobre os intermediários financeiros, bem assim como a nulidade daquela relação jurídica por inobservância de forma, encontrando-nos perante o Direito dos Valores Mobiliários que representa uma área do Direito Comercial e/ou Financeiro – que não se confunde com Finanças Públicas -, constituindo um ramo do direito privado (in Paulo Câmara, Manual do Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, 2009).

S) Invoca-se, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/06/2015 (acórdão fundamento) que apreciou a mesma questão e julgou em sentido contrário ao Acórdão em recurso.

T) Assim, entende o ora Recorrente que o fundamento da presente Revista radica em erro de interpretação e aplicação da lei processual, concretamente, dos artigos 64° 96º, al. a), 99º n.º1, 278º, n.º1 do Código de Processo Civil 80º, n.º1 da LO.S.J. e artigo 4º nº1 al. f) e n.º2 do ETAF..

U) Pelo que, subjaz à correta interpretação e aplicação dos referidos normativos legais. Concluir pela competência material do Tribunal Judicial (Civil) para apreciar e julgar o presente litígio, ou seja, para dirimir litígios nos quais entidades com natureza pública atuam como privados, à luz do direito privado e, nessa qualidade, devem ser responsabilizadas.

V) O Autor, ora Recorrente, peticionou contra os RR: “Nestes termos e nos mais de Direito que vi Exa. Doutamente suprirá deverá a presente acção ser julgada totalmente procedente por provada que ficou:

a) A responsabilidade civil dos RR., enquanto intermediários financeiros, por violação dos deveres de informação, diligência e lealdade, nos termos do disposto no artigo 304°-A do CVM, devendo em consequência os RR. serem solidariamente condenados a pagar ao Autor, a quantia de € 796.366,19 acrescida de:

i) € 176.827,64 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do Autor;

ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

Caso assim não se entenda:

b) A nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma nos termos do disposto no artigo 321° do CVM, devendo em consequência serem os RR solidariamente condenados a restituir ao Autor a quantia de € 796.366,19 acrescida de

            i) € 176.827,64 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do Autor;

            ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

c) Mais se requer, que sejam ainda os RR. condenados a ressarcir solidariamente ao Autor os danos não patrimoniais que lhe foram causados, em valor a ser calculado em sede de liquidação de sentença;”, cfr petição inicial.

W) No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.06.2015, (acórdão fundamento disponível para consulta in www.dgsi.pt) pode ler-se: “É entendimento pacífico que a competência material dum tribunal constitui um pressuposto processual, sendo aferida pela questão ou questões que o A coloca na respectiva petição inicial e pelo pedido formulado, conforme ensina Manuel de Andrade. E nesta lógica, a apreciação da competência dum tribunal tem de resolver-se face aos termos em que a acção é proposta, aferindo-se portanto pelo “quid disputatum”, ou seja, pelo pedido do Autor e respectiva causa de pedir, sendo irrelevantes as Qualificações jurídicas alegadas pelas partes ou qualquer juízo de prognose que possa fazer-se quanto à viabilidade ou inviabilidade da pretensão formulada pelo Autor Foi neste sentido que se firmou a jurisprudência, podendo ver-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/2009. www.dasi.ot de cujo sumário se conclui que “a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por e/e apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados”.

X) É também esta a orientação do Tribunal de Conflitos, conforme se colhe do acórdão de 30.10.2013, proferido no Conflito n.°37/13, donde se conclui que “é pois a estrutura da causa apresentada pela parte que recorre ao tribunal que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material, o que significa que é pelo quid decidendum que a competência se afere, sendo irrelevante qualquer tipo de indagação atinente ao mérito do pedido formulado, ou seja, sendo irrelevante o quid decisum”. Será portanto a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial e do respectivo pedido que deveremos decidir da questão de saber qual é a jurisdição competente para o seu conhecimento.”

Y) Logo, a natureza pública ou privada de cada um dos RR. é irrelevante na medida em que o “thema decidendum”, tal como configurado pelo Autor, ora Recorrente, não se prende com qualquer questão de domínio administrativo. Sendo que também o pedido indemnizatório deduzido pelo Autor, ora Recorrente, não colide, nem depende, da apreciação jurídico-administrativa dos actos que conduziram à resolução do Réu Banco BB, pelos RR. intervenientes naquela decisão.

Z) O Autor, ora Recorrente peticiona pela responsabilização civil dos RR. por violação das regras de intermediação financeira, mormente por via do consagrado nos artigos 304°-A e 321° do Código dos Valores Mobiliários, isto é, está em causa a apreciação da violação dos deveres de informação, diligência e lealdade que impendem sobre os intermediários financeiros, bem assim como a nulidade daquela relação jurídica por inobservância de forma. O Direito dos Valores Mobiliários é um ramo do Direito Comercial e/ou Financeiro, afastado da concepção de Direito de Finanças Públicas, e designado como: “conjunto de normas que regulam as actividades ligadas aos mercados financeiros e exercidas de forma profissional pelos intermediários financeiros.” (in Morais, Jorge Alves, Código dos Valores Mobiliários Anotado, Quid Juris 2015). Sendo ainda que (…) todo o regime geral sobre o valor mobiliário, seu conteúdo transmissão, encontrado no Título II do Código constitui direito privado. Na componente privada do direito mobiliário cabe ainda mencionar as regras (…) sobre responsabilidade civil dos intermediários financeiros.” (in Paulo Câmara, Manuel do Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, 2009).

AA) As entidades de natureza administrativas também são entidades civilmente responsáveis, sendo tal asserção justificada, p. ex., com o facto de a Lei Orgânica do Réu Banco de Portugal prever no seu artigo 62° que: “compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil por actos dos seus órgãos, bem como a apreciação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com o Banco.”.

BB) O Recorrente não está isolado neste seu entendimento, como se pode verificar da seguinte jurisprudência recente, onde se entendeu que: “Porém, esse acto administrativo já não releva no domínio factual que agora se encontra controvertido nos autos, ou seja, já não contende com a factualidade subjacente aos prejuízos que os Autores alegam ter sofrido, sendo uma realidade pretérita distinta da que agora se pretende discutir. Ou seja, a responsabilidade civil extracontratual aqui invocada contra as Rés já não dimana de relações jurídicas administrativas, não dependendo a sua apreciação e julgamento das relações jurídico-administrativas havidas entre as partes e que foram declaradas anuladas, não havendo a necessidade de aplicação de normas de direito administrativo, antes se centrando a controvérsia no plano puramente privado e civilístico, bastando á decisão o ordenamento jurídico decorrente do Código Civil. Dito de outro modo, a relação material controvertida, envolvente dos prejuízos sofridos pelos Autores, não provém da prática de actos de gestão pública, assentando sim no âmbito das relações de natureza privatística que entre as partes surgiram após a anulação daquele acto expropriativo. Aliás, tendo o acto expropriativo sido anulado, assim tendo deixado de existir, mal se compreenderia que a pretensão indemnizatória formulada pelos Autores ainda pudesse ter assento na esfera jurídico-administrativa que se exauriu com aquela decisão anulatória.” (negrito nosso in Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 10.11.2016 in www.dqsi.pt). E, ainda, “Por conseguinte. Nenhum impedimento legal existe para que o Fundo de Resolução possa ser demandado, sendo certo ainda que a sua natureza de direito público não afasta, em tese, a possibilidade de ser demandado nos Tribunais Cíveis, desde que na relação jurídica que está subjacente à demanda esteja desprovido de prerrogativas de ius imperium.” (negrito nosso in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.11.2016 Processo n° 26688/15.0T8LSB-A.L1-6. Relator Maria de Deus Correia, in www.dgsi.pt.

CC) Pretendendo-se explicar que não está em causa a apreciação de qualquer conduta dos RR., munidos de ius imperi, pelo contrário, está em causa a apreciação de actos de intermediação financeira por quem exerce profissionalmente esta actividade, prévios aos actos de resolução que vieram a ser tomados posteriormente. Pese embora ao Tribunal Judicial – como a qualquer outro tribunal – não esteja vedado, antes pelo contrário, conhecer da conformidade à lei e à Constituição da República Portuguesa de qualquer lei lato sensu. Prevê o artigo 280.°, n.°1, da C.R.P. que os tribunais podem recusar a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. Em causa que se encontra a restrição do direito fundamental de propriedade do Recorrente, pois que aos tribunais compete administrar a justiça em nome do povo, assegurando a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimindo a violação da legalidade democrática e dirimindo os conflitos de interesses públicos e privados, não podendo aplicar normas que infrinjam a Constituição ou os princípios nela consignados (artigos 202.° e 204.° da C.R.P.)

DD) Nos termos do artigo 212.°, n.º3 da Constituição da República Portuguesa “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”

 

Nas palavras dos Constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira a relação jurídica administrativa (…) transporta duas dimensões caracterizadoras: as acções e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por lonas de direito administrativo e/ou fiscal” – Vide in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed.

EE) Logo, no artigo 4.°, nº1, alínea f) do E.T.A.F não cabe a relação jurídica puramente civilista trazido pelo Autor, ora Recorrente que, assim, soçobrará na jurisdição dos tribunais judiciais, definida pelo artigo 211° n.°1 da Constituição da República Portuguesa, plasmada também no artigo 64.° do Código de Processo Civil e artigos 40º/ n.°1 e 80.°, n.°1, da LO.S.J. que determinam que a competência dos tribunais judiciais para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

FF) Afigura-se, em nosso modesto entendimento que, a aplicação do número 2, do artigo 4/ do E.T.A.F. exige litisconsórcio necessário passivo – “ (…) litígios nos quais devam ser conjuntamente demandados (…) ” – o que, não se verificando, in casu, porquanto estamos perante litisconsórcio voluntário, afasta a aplicação daquele normativo e, consequentemente, da competência dos Tribunais Administrativos para dirimir o presente litígio. Não despiciendo sendo o facto de a 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa ter vindo a decidir, com fundamento no litisconsórcio voluntário passivo, no sentido de o Tribunal Judicial Cível ser competente, pelo menos, para julgamento da acção contra os RR BES, SA., CC, S.A. e EE (uma vez que o artigo 4.°, n.°2 do ETAF exige uma situação de litisconsórcio necessário passivo que não se verifica no caso concreto) - Vide, neste sentido, Acórdão de 11.01.2018 proferido no processo n.°19125/16.4T8LSB. LI, Acórdão de 06.12.2017 proferido no processo 18455/16.0T8LSB.L2 e Acórdão de 15.02.2018 proferido no processo n. 19541/16.4T8LSB. LI e, ainda, da 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão de 01.02.2018 proferido no processo 18595/16.5T8LSB.L1.

GG) Conclui-se, assim, pela competência material do tribunal judicial civil para apreciar e dirimir o presente litígio quanto a todos os RR. da acção porquanto a relação jurídica estabelecido entre o Autor e todos os RR. é de natureza civilista e não pública, sendo que não está vedado às entidades de natureza pública actuarem como privados, o que sucedeu, in casu.

HH) A entender-se diferentemente, será privilegiar a forma em detrimento da substância, invocando-se figuras jurídicas que não solucionam o litígio, que dificultam o acesso à justiça do caso concreto e contribuem para a tão famigerada crise na justiça atentando contra os basilares princípios de um Estado Democrático, designadamente, o direito constitucionalmente consagrado de obter, com força de caso julgado, uma decisão judicial que aprecie de mérito a sua pretensão (artigos 2°, 20°, 202°, n.°1 e n° 2, todos da Constituição da República Portuguesa e artigo 2° do Código de Processo Civil).

II) Atentando, também, contra as normas constantes na Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, transposta para a ordem jurídica portuguesa, designadamente, artigo 1° do Protocolo n.°1, com a denominação “Protecção da propriedade” ‘’Qualquer pessoa singular ou colectiva tem o direito ao respeito dos seus bens (…) ”, incluindo-se nesses bens os créditos, por meio dos quais o Recorrente pode pretender ter, pelo menos, uma “expectativa legítima” de obter o gozo efectivo de um direito de propriedade.

JJ) Revela-se essencial para uma melhor aplicação do direito determinar o sentido e alcance com que deve ser interpretado e aplicado o disposto na alínea f) do número 1, do artigo 4° do E.T.A.F. em situações idênticas, atento o ritmo crescente de processos resultantes do colapso de diversas instituições financeiras que integravam o nosso sistema financeiro tem vindo a subir drasticamente e que põe em causa o direito de propriedade, constitucionalmente consagrado.

KK) O efeito dos últimos acontecimentos verificados na vida do sistema bancário português provocou um abalo, quiçá, irreversível na confiança depositada pela população nos Bancos portugueses e na banca em geral. A confiança no sistema bancário é interesse de particular relevância social e vital na sociedade hodierna.

LL) Assim, contar com uma clara e uniforme interpretação e aplicação do Direito que salvaguarde os interesses patrimoniais da comunidade e garanta uma solução uniforme e igual para todos, sem surpresas e percalços injustificados de caminho, é questão de particular interesse social.

MM) Razão porque os interesses jurídicos sindicados na presente Revista devem ser considerados de particular relevância social.

NN) Assim, o Acórdão sindicado encontra-se em contradição com o Acórdão Fundamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 16/06/2015 porquanto decidiram diversamente a mesma questão de direito, a saber, num mesmo contexto jurídico ou situação equiparada, perante o pedido de declaração de nulidade de negócio jurídico, o Acórdão em apreço absolveu os RR por incompetência absoluta do tribunal judicial enquanto o Acórdão fundamento julgou competente o tribunal judicial para conhecer da causa.

OO) que ora se defende.

Nestes termos e nos mais de Direito que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, deve o presente recurso de revista excepcional ser admitido e julgado totalmente procedente, ordenando-se, em consequência, a anulação do acórdão recorrido,

Houve contra-alegações, tendo os Recorridos pugnando pela confirmação do Acórdão.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou a seguinte matéria de facto:

- por deliberação de 13.07.2016, o Banco Central Europeu (BCE) revogou a autorização para o exercício da actividade de instituição de crédito ao BB, a partir das 19h00 desse dia, não tendo sido apresentada impugnação para o Tribunal Geral, nos termos do art. 263º do T.F.U.E.

- na sequência dessa deliberação, o Banco de Portugal requereu a liquidação judicial do BB, tendo sido proferido despacho de prosseguimento em a Secção do Comércio da Instância Central da Comarca de Lisboa.

- nos termos do art. 8º, nº2, do DL n.º199/2006 de 25/10., a decisão de revogação da autorização para o exercício da actividade de instituição de crédito produz os efeitos de insolvência. Essa decisão é, definitiva.  

Importa, ainda, considerar o que consta factualmente no Relatório:

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se, tendo sido declarada a resolução do BB, ocorre inutilidade superveniente da lide em relação ao pedido formulado pelo Autor, importando, como sub-questão, saber se, no âmbito do processo de liquidação judicial do recorrido BB, não tendo sido declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência, nos termos do disposto na alínea i) do n.°1 do artigo 36.° do CIRE, tal determina que não se possa considerar que a instância se tornou supervenientemente inútil.

Importa dizer que o Autor, invocando como causa de pedir o incumprimento de um contrato de intermediação financeira, celebrado com o BB, em termos que considera ter havido violação dos deveres de informação e que o levaram à subscrição de um produto com risco associado, o que de modo algum pretendia, almeja ser indemnizado, solidariamente, pelos Réus, para reaver a quantia investida - € 796 366,19 e juros vencidos e vincendos;

- subsidiariamente, pede a nulidade do contrato de intermediação financeira por falta de forma e a condenação solidária dos Réus a restituir aquele valor acrescido de: juros vencidos calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do Autor, e a apurar em sede de liquidação de sentença; juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;

- em qualquer dos casos: pede que sejam os RR. condenados a ressarcir solidariamente ao Autor os danos não patrimoniais que lhe foram causados, em valor a ser calculado em sede de liquidação de sentença.  

Vejamos:

O Banco Central Europeu (BCE), por decisão que não foi recorrida, por deliberação de 13.7.2016, revogou a autorização para o exercício da actividade de instituição de crédito ao BB SA, a partir das 19h00 desse dia.

Na sequência de tal deliberação, o Banco de Portugal requereu a liquidação judicial do BB. Tal requerimento foi distribuído à 1ª Secção do Comércio da Instância Central da comarca de Lisboa - Proc. 18588/16.2T8LSB, - e, em 21.7.2016, foi proferido despacho de prosseguimento da liquidação judicial do BB SA, do qual foi interposto recurso.

Foi, essencialmente, com base nestes factos que as Instâncias, tendo ainda em consideração o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n°1/2014 de 08.05.2013, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no DR I-A nº39, de 25.02.2014 que uniformizou jurisprudência nestes termos: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287° do Código de Processo Civil”, consideraram que, em relação ao co-réu BB, ocorria inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277º e) do Código de Processo Civil.

Não consta que as normas dimanadas do BCE, no que respeita à supervisão financeira, tenham sido objecto de recurso, assim como não consta que as funções atribuídas por lei ao Banco de Portugal – Lei nº5/98, de 31.1, alterada pela Lei nº 39/2015, de 25 de Maio – tenham sido objecto de impugnação, sendo de referir que o BP exerce, nos termos da legislação comunitária, funções de autoridade de resolução nacional, podendo elaborar planos e aplicar medidas de resolução e ordenar a eliminação de potenciais obstáculos à aplicação de tais medidas – art. l7º-A – DL. n° 142/2013 de 18.10.

A retirada de autorização para o exercício da actividade bancária decretada pelo Banco Central Europeu (BCE), implica para a autoridade bancária nacional de supervisão – o Banco de Portugal – o dever de requer a insolvência da entidade sancionada, o que foi feito, pelo que a actividade do BB passou para um banco de transição – o CC – deixando o BB, em função da insolvência, de poder exercer a sua actividade.

O Banco de Portugal, nos termos e para os efeitos do n.°3 do artigo 8.° do DL. 199/2006, de 14 de Agosto, requereu, como se disse, a liquidação judicial do BB na sequência da decisão do BCE revogatória da autorização para o exercício da actividade bancária pelo BB, a partir do dia 13.7.2016, às 19 h.

A revogação da autorização para o exercício da actividade bancária de que foi alvo o BB, equivale à declaração de insolvência do Banco, razão pela qual, por força do disposto no art. 90º do CIRE, apenas no processo de insolvência e de acordo com os meios processuais previstos na lei insolvencial, podem os credores da insolvência exercer os seus direitos na pendência deste processo, devendo aí reclamar os seus créditos – art. 128º, nº1, do CIRE – onde têm de acorrer todos os credores do insolvente, mesmo os que disponham de sentença definitiva que reconheça os seus créditos, razão por que não se vislumbra que, estando em causa o incumprimento de um contrato de intermediação financeira em relação ao qual o Autor formula pedido pecuniário a título de indemnização, a acção devesse prosseguir contra o BB em fase de liquidação.

Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 2.11.2017. Proc. 11674/16.0T8LSB.S1 – Relator Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt:

 

“Circunscritos ao processo de liquidação/insolvência, esta implica a dissolução da insolvente e a perda da sua personalidade jurídica (art. 141º, nº 1, al. e), do Código das Sociedades Comerciais, e art. 11º do Código de Processo Civil).

Acresce que, nos termos do art. 90º do CIRE “os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência.” E estando pendente acção contra a insolvente, determina o art. 85°, n° 1, do CIRE, que “todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo”.

Face à aplicação supletiva do regime do CIRE, impõe-se a reclamação do crédito na insolvência, a qual se estrutura como uma verdadeira e própria acção declarativa, com potencialidades para apreciar a existência e o montante do direito de crédito em discussão na presente acção declarativa (arts. 130º e segs.).

Enfim, os credores da insolvência devem reclamar a verificação dos seus créditos, nos termos do art. 128º do CIRE, dentro do prazo assinalado na decisão que decretou o prosseguimento da liquidação judicial, tornando-se evidente que deixa de ter interesse o prosseguimento das acções declarativas que se encontrem pendentes do reconhecimento de eventuais direitos de crédito, uma vez que os mesmos sempre terão de ser objecto de reclamação no processo de insolvência.

Tal solução ficou, aliás, estabilizada com a prolação do AUJ deste Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2014, segundo o qual “transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287º do Código de Processo Civil.”

Por conseguinte, com a revogação da autorização para o exercício da actividade do Código Civil [BES] (equiparada à declaração de insolvência), a qual não foi impugnada nos termos previstos no art. 263º do TUE, sendo definitiva, mais não restava do que verificar a impossibilidade superveniente da lide, quanto a este R., devendo confirmar-se a decisão recorrida”.

Também o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 26.9.2017 – Proc. 3499/16.0T8VIS.S1- Relatora Ana Paula Boularot - in www.dgsi.pt decretou (citação parcial do sumário):

“I. A declaração de insolvência do devedor BB retira o interesse e utilidade no prosseguimento de acção declarativa instaurada contra aquele, com vista ao reconhecimento de eventuais direitos de crédito dos Autores impondo-se a estes a respectiva reclamação no processo de insolvência, por aplicação directa do AUJ 1/2014, de 8 de Maio de 2013. 

II. Um banco de transição deve ser considerado como sucessor nos direitos e obrigações da instituição de crédito originária, no caso de os mesmos não terem sido excluídos da transferência deste para aquele, por Deliberação do Banco de Portugal, entidade competente para determinar essa medida de resolução.”

Este entendimento, quanto a esta questão, é pacífico nos Tribunais Superiores, por todos os Acórdão da Relação de Lisboa de 7.3.2017 – Proc. 48/16.3T8LSB-L1-7 – in www.dgsi.pt, constando a certo trecho:

 “A admitir-se o prosseguimento desta acção contra o BB, estar-se-ia a violar o princípio par conditio creditorum na medida em que os credores que obtivessem sentenças condenatórias contra o BB estariam numa situação privilegiada face àqueles que se limitassem (em cumprimento da lei) a reclamar os seus créditos no processo de insolvência, estando estes sujeitos a impugnação judicial ao contrário daqueles (cf. artigo 130º, nº1 do CIRE).

Tal bifurcação de vias de reclamação de créditos está expressamente vedada pelo artigo 90º do CIRE do qual decorre que “para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de neles exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles já se encontrem reconhecidos em outro processo (…) ” - Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição, 2015, p. 438.

Esta norma impõe, inelutavelmente, a concentração num único processo das pretensões de todos os credores, o que constitui uma consequência do princípio da par conditio creditorum”.

Neste entendimento, não merece censura a decisão no que respeita à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art. 277º e) do Código de Processo Civil.

Sustenta ainda a recorrente que foi prematura a extinção da instância, nos termos preditos, porquanto o despacho de prosseguimento proferido no processo de liquidação judicial do Recorrido BB, não declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos termos do disposto na alínea i) do n.°1 do artigo 36º do CIRE, e, assim, entende que, não será possível aferir se o património do insolvente será suficiente para responder aos créditos reclamados.

Nos termos do art. 36º, nº1, i) do CIRE - “Na sentença que declarar a insolvência, o juiz…caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação, com carácter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187º”.

O incidente de qualificação pode não ser aberto “imediatamente com a decretação da insolvência, podendo vir a sê-lo ou não, mais tarde, segundo o disposto no art.° 188.°, também na redacção da Lei n°16/2012.” – “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado” – Carvalho Fernandes e João Labareda – 2ª edição, pág.267.

O art. 39º, nº1, do CIRE - Insuficiência da massa insolvente – dispõe:

Concluindo o juiz que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente e não estando essa satisfação por outra forma garantida, faz menção desse facto na sentença de declaração da insolvência, dando nela cumprimento apenas ao preceituado nas alíneas a) a d) e h) do artigo 36º e, caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação com carácter limitado, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto na alínea i) do nº1 do artigo 36º”

A norma visa os casos em que, face à presumível insuficiência do património do insolvente, este possa não bastar para pagar as custas do processo e as dívidas previsíveis da massa, pelo que, em tal caso, nem sequer se justifica a abertura de prazo para a reclamação de créditos. Presume-se a insuficiência da massa quando o património do devedor for inferior a € 5 000, 00 – art. 39º, nº9 do CIRE: o tribunal, quando declara aberto o incidente de qualificação com carácter limitado, antevê que não existem bens para pagar as custas do processo.

Ora, constando das deliberações do Banco de Portugal, tomadas em sede de resolução, quais os activos e passivos que não foram transferidos para o CC, é notório e público que não se justificaria o prosseguimento do processo contra o BB face à hipótese de vir a ser declarado o carácter limitado do processo de liquidação judicial do BB com a inerente cessação dos efeitos da declaração de insolvência.

Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 6.11.2018 – Proc. 18364/16.2T8LSB-A.L1.S2, in www.dgsi.pt - “No despacho de prosseguimento do processo de liquidação judicial proferido nos termos do artigo 9.º, n.º2, do Decreto - Lei n.º199/2006, foi, desde logo, fixado prazo para a reclamação de créditos, o que afastou, por si só, o carácter limitado do incidente em questão (artigo 39.º, n.º 7, als. a) e b), do CIRE).”

Por outro lado, importará ter em conta o carácter excepcional das normas dimanadas do Banco de Portugal, como autoridade nacional de resolução.

“Estatutariamente, o Banco de Portugal é uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio (art. 1° da Lei Orgânica [Lei nº5/98,de 31.1]), regido pelos regulamentos adoptados em sua execução e, em tudo o que aí não estiver previsto, pelo regime legal da actividade das instituições de crédito e sociedades financeiras (DL. n° 298/92 de 31/12), pelas normas gerais de direito privado, ou pelas normas gerais de direito administrativo, quando actue no exercício de poderes de autoridade. Ora, estando em causa deliberações tomadas a coberto do estatuído nomeadamente nos artigos 145°H do RGICSF (aprovado pelo Dec. Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, na redacção do Dec. Lei n.º 31-A/2012, de 10 de Fevereiro [o qual transpôs para a ordem interna um conjunto de Directivas do Conselho], não parece haver dúvida de relevo de que, neste caso, o Banco de Portugal agiu com poderes de autoridade/legitimidade.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 7.11.2017 – Proc. 32263/15.1T8LSB.L1-7 – in www.dgsi.pt.

As deliberações do Banco de Portugal assumem a natureza “De actos normativos regulamentares, nos termos do disposto no art. 112.°, nº7, da Constituição da República Portuguesa, vigorando em pleno na ordem jurídica, enquanto não forem revogadas/anuladas ou declaradas inconstitucionais, as posteriores deliberações do Banco de Portugal, de 11/08 e de 29/12/15 revestem carácter interpretativo integrando-se na deliberação interpretada, de acordo com o disposto no art. 13.°, n. ° 1, do Código Civil.”.

 Por outro lado, não é despicienda a consideração de que as normas comunitárias, em que se baseia a supervisão financeira, que compete ao Banco Central Europeu (BCE) e às autoridades nacionais competentes (no caso ao Banco de Portugal), estão sujeitas aos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, sendo integradas na ordem jurídica interna, prevalecendo sobre elas, pelo que a qualificação da insolvência nunca derrogaria a resolução decretada pelo BCE.

Pelo quanto se disse o recurso soçobra.

Sumário – art. 663º, nº7, do Código de Processo Civil

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pelo Autor/recorrente.

           Supremo Tribunal de Justiça, 29 de janeiro de 2019

Fonseca Ramos (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

________________
[1] Relator – Fonseca Ramos
Ex. mos Adjuntos:
Conselheira Ana Paula Boularot.
Conselheiro Pinto de Almeida