Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2078/12.5TBPBL.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESUNÇÃO DE CULPA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CONTRATO DE SEGURO
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
COMITENTE
COMISSÁRIO
MORTE
ASSENTO
Data do Acordão: 03/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE PELO RISCO / ACIDENTES CAUSADOS POR VEÍCULOS / BENEFICIÁRIOS DA RESPONSABILIDADE.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 10.ª Edição, Almedina, 2000, p. 536, 661, 662, 667 e 669;
- Joaquim de Sousa Ribeiro, O ónus da prova da culpa na responsabilidade civil por acidente de viação, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, Tomo II, BFDUC, 1979, p. 480 e ss. e 541;
- Maria da Graça Trigo, Das presunções de culpa no regime de responsabilidade civil por acidentes de viação, Cadernos de Direito Privado, n.º 32 (Out-Dez 2010), p. 22 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 503.º, N.ºS 1 E 3 E 504.º, N.º 1.
REGIME DO SISTEMA DE SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL, APROVADO PELO DL N.º 291/2007, DE 21 DE AGOSTO: - ARTIGO 14.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA E).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 19-10-1978, IN BMJ;
- DE 19-12-1979, IN BMJ;
- DE 31-12-1980, IN BMJ;
- DE 22-01-2009, PROCESSO N.º 3404/08;
- DE 02-12-2010, PROCESSO N.º 1617/06.5TBSTB.E1.S1;
- DE 14-04-2011, PROCESSO N.º 3075/05.2TBSTS.P1.S1;
- DE 13-09-2016, PROCESSO N.º 152/13.0TBIDN.C1.S1.


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- ASSENTO N.º 1/83 DE 14 DE ABRIL DE 1983.
Sumário :
I - Dispõe o artº 14º nº 1 do Decreto-lei 291/2007 que excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles, preceituando o nº 2 al. e) da mesma disposição legal que excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados (…) ao cônjuge, ascendentes, descendentes (…).

II - Pressuposto dessa exclusão é que o condutor em causa seja responsável pelo acidente.

III – Não se apurando a culpa do condutor, efectiva ou presumida, não se aplica qualquer exclusão.

IV - Estando em causa um acidente do qual apenas derivou a morte do próprio condutor por conta de outrem, sem que se conheçam as causas para o despiste e sem que tenham existido outros lesados, não é de aplicar a presunção de culpa a que se refere o artº 503º nº 3, primeira parte, do Código Civil, sendo tal matéria excluída do efeito persuasivo da doutrina firmada pelo Assento nº 1/83.

V - Não se aplicando a presunção de culpa em causa, justifica-se a aplicação da responsabilidade pelo risco do comitente do artº 503º nº 1, do Código Civil.

VI - Verificam-se, no caso, os pressupostos cumulativos da direcção efectiva do veículo e da sua utilização no seu próprio interesse, por parte do comitente, no caso a sociedade tomadora do seguro de responsabilidade civil automóvel, sendo esta considerada detentora do veículo para efeitos de aplicação do preceito em causa.

VII – Não obstante a escassez da factualidade provada, a responsabilidade pelo acidente tem como causa os riscos próprios do veículo.

VIII - Dentro dos riscos próprios do veículo cabem os ligados ao condutor, na medida em que este assegura a circulação desse veículo, pelo que o perigo de síncope, de colapso cardíaco ou qualquer outra doença súbita de quem conduz faz realmente parte dos riscos próprios do veículo e, como tal, se integra no domínio da responsabilidade objectiva característica dos acidentes de viação.

IX - Ora, não se provou qualquer factualidade relevante para efeitos de culpa, pelo que resta imputar a responsabilidade pelo acidente com base num risco próprio do veículo, pois que o acidente ocorreu quando o veículo se encontrava em circulação e, sem motivo apurado, saiu da via de rodagem, embateu na guarda lateral e caiu de um viaduto, provocando a morte do condutor, estando, pois, no caso, e por se inserir ainda no círculo de actividade geradora do risco, preenchidos os pressupostos de aplicação previstos no artigo 503º nº 1, do Código Civil.

X - Sendo o acidente em causa nos autos enquadrado na responsabilidade objectiva, atento o disposto no artigo 504º nº 1, do Código Civil, tal aproveita ao próprio condutor do veículo interveniente no acidente.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO

AA e sua filha menor BB, esta representada por aquela, intentaram contra Companhia de Seguros CC, S.A. (actualmente DD de Seguros, SA) acção com processo comum, sob a forma ordinária, pedindo a condenação da ré a pagar-lhes a quantia de total de € 97.358,18, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, desde a citação e até integral pagamento, assim descriminada:

   (i) € 50.000 pela perda do direito à vida;

   (ii) € 10.000 pelos danos morais sofridos pela própria vítima nos momentos que antecederam a sua morte;

  (iii) € 20.000 e € 15.000 pelos danos morais sofridos, respectivamente, pelas Autoras viúva e filha; e

   (iv) € 2.358,18 a título de despesas de funeral, correspondente à diferença entre o que despenderam e o que foi liquidado pela seguradora do acidente de trabalho.

Alegaram, em síntese, que as autoras são as únicas e universais herdeiras de EE, respectivamente marido e pai destas, falecido em consequência de acidente de viação ocorrido em Espanha, quando conduzia um veículo pesado articulado (com reboque), por conta da proprietária do veículo, a “Sociedade FF, Ldª, sob cuja autoridade, direcção e fiscalização exercia funções de motorista.

Tal acidente consistiu no despiste desse veículo – seguro na R., seja quanto a seguro obrigatório automóvel, seja quanto à cobertura facultativa de “ocupantes da viatura” – que, em auto-estrada, saindo da via pelo lado direito atento o seu sentido de marcha, foi embater na barreira lateral, após o que caiu num precipício e sofreu explosão.

Das lesões assim sofridas resultou a morte do dito condutor, não tendo sido possível determinar em que circunstâncias se verificou o despiste.

Sendo o acidente simultaneamente de viação e de trabalho, correu termos processo laboral, no âmbito do qual as autoras receberam a quantia de € 3.600,00 a título de despesas de funeral, sendo, porém, que despenderam neste € 5.958,12, pedindo agora a diferença.

           

A ré contestou, recusando a responsabilidade pelo acidente de viação, invocando que as autoras não são “terceiros/lesados” para efeitos de seguro obrigatório automóvel, ficando excluídos da cobertura do seguro os danos sofridos pelo motorista do veículo causador do acidente e todos os danos decorrentes daqueles, excepcionando a prescrição do direito indemnizatório, afirmando a culpa do condutor do veículo no despiste ocorrido, e concluindo pela sua total absolvição.

           

Na réplica, as autoras vieram pugnar pela improcedência da deduzida excepção da prescrição.

No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de prescrição.

           

Foi proferida sentença em 08.12.2015 (fls 1933 a 1954), julgando a acção parcialmente procedente, assim condenando a ré a pagar:

“I - A ambas autoras a quantia global de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) a título de indemnização pela perda do direito à vida de EE, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a presente data até efectivo e integral pagamento;

II- À autora AA a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a presente data até efectivo e integral pagamento;

III- À autora BB a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a presente data até efectivo e integral pagamento;

 IV- A ambas as autoras a quantia de € 2.358,12 […] (dois mil trezentos e cinquenta e oito euros e doze cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da citação até efectivo e integral pagamento».

De tal sentença recorreu a ré, tendo sido proferido um primeiro acórdão, datado de 15.11.2016 (fls 2032 a 2046) que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.

           

Interposto recurso de revista pelas autoras foi, ao abrigo do artº 656º do CPC, proferida decisão sumária pelo anterior Relator no STJ em 31.05.2017 (fls 2101 a 2104), a anular o acórdão recorrido e a determinar a baixa dos autos ao tribunal da Relação a fim de ser apreciada a impugnação da matéria de facto suscitada nas contra-alegações em sede de ampliação do âmbito do recurso, por tal questão constituir condição prévia necessária à apreciação do recurso de revista pelo STJ.

Proferido novo acórdão pela Relação que, após ter apreciado a mencionada impugnação da matéria de facto, concluindo pela sua alteração parcial em medida praticamente irrelevante, decidiu no mesmo sentido, julgando improcedente a acção.

Deste novo acórdão interpuseram as autoras novo recurso de revista pedindo a confirmação da sentença proferida pela 1ª instância, tendo apresentado as seguintes CONCLUSÕES:

I. O presente recurso de revista tem como fundamento a violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável, nos termos do artº 674º nº 1, alínea a), do CPC, tendo o acórdão recorrido feito incorrecta interpretação de factos provados e incorrecta subsunção dos mesmos às normas legais contidas nos artigos 350°, n° 2, 496°, n° 2, 500°, 503°, n° 1, todos do CC.

II. Pois decidiu-se no acórdão recorrido que « (...) verificada a relação de comissão entre o falecido motorista a ser condutor por conta de outrem (a sua entidade patronal) -, e não determinada a causa concreta do despiste ocorrido, de que resultou a morte desse condutor, por não ter sido, manifestamente, ilidida a presunção de culpa, já que nada mostra que o acidente não resultou de culpa do mencionado motorista (cfr. artº 350º, nº 2, do CC).

Em suma, o acidente tem de ser imputado a título de culpa presumida - não ilidida (mencionado artº 503º, nº 3, primeira parte, do C.Civ.) - do próprio condutor sinistrado, que nele perdeu a vida»

III. Foi apreciada e definitivamente fixada a matéria de facto, pelo douto acórdão de que se recorre, nos seguintes termos:

- Factos Provados:

«- Por motivos não concretamente apurados, o veículo colidiu com a barreira lateral semi-rígida situada do lado direito, atento o seu sentido de marcha, destruindo a mesma, despenhando-se de seguida sobre o leito do riacho localizado no fundo do viaduto, incendiando-se de imediato.

  - No dia do acidente, o falecido EE, havia saído de Pombal, pelas 5 horas da manhã, hora portuguesa, tendo percorrido até ao local do acidente uma distância de cerca de 500km.)

- Factos Não Provados:

«- Momentos antes do acidente o veículo acidentado tenha obliquado para a direita, tenha começado a balouçar e o reboque tenha oscilado para a esquerda;

   - EE tenha iniciado a viagem às 6 horas da manhã, hora portuguesa, 7 horas da manhã, hora espanhola, dando-se o acidente volvidas 5 horas e 35 minutos desde que iniciara a viagem;

  - EE tenha feito o percurso referido em 10, de modo ininterrupto, sem ter feito qualquer paragem e sem ter feito qualquer paragem técnica para descanso regulamentar;

 - O facto referido em 9, ocorreu porquanto EE não conseguiu, por falta de atenção e cuidado e por cansaço e sonolência, manobrar o veículo por forma a evitar que este saísse da via e se despenhasse no precipício.»          

PRESUNÇÃO DE CULPA DO CONDUTOR

 IV. Dos factos não resultou provada a alegada responsabilidade civil por facto ilícito do condutor do veículo, não se mostrando verificados os legais pressupostos do artº 483º do Código Civil.

V. Não foi possível determinar os motivos concretos em que o acidente se verificou.

VI. As presunções tantum iuris podem ser ilididas por prova em contrário e resultam provados elementos do processo de que a presunção de culpa do condutor do veículo foi ilidida.

VII. Nenhum factualismo se provou, do qual se possa imputar ao condutor do veículo, por comportamento activo ou omissivo, na produção do acidente em termos de causalidade adequada, por culpa ou negligência.

VIII. Pelo contrário, são factos provados que o condutor cumpriu todos os requisitos necessários para uma condução regular, dentro das normas legais estradais e especialmente de segurança rodoviária, nomeadamente:

a) O condutor do veículo saiu de Pombal pelas 5 horas da manhã (hora portuguesa).

b) O acidente ocorreu às 11 horas e 35 minutos (hora portuguesa), volvidas 6 horas e 35 minutos, desde que o condutor iniciara a viagem.

c) Sendo a distância existente entre o ponto de origem e o do acidente entre 480 km a 500 km, segundo o percurso percorrido, tendo em conta a diferença horária em Portugal e Espanha (1 hora), e a velocidade máxima a que o veículo podia circular (90 km/h).

d) Desde o início do trajecto até ao local do acidente, passaram 6 horas e 35 minutos, espaço e tempo que se coaduna com o respeito da parte do condutor do descanso regulamentado de 45 minutos, por cada 4 horas e meia de condução.

e) O veículo incendiou-se de imediato após o acidente, o que, com as dimensões do mesmo, permite concluir que o camião tinha o depósito cheio, e que consequentemente o condutor efectuou o descanso obrigatório no posto de abastecimento de combustível de Santo Espírito.

f) O condutor tinha três anos de experiência profissional e era conhecedor do percurso efectuado.

g) O condutor nunca tinha sido interveniente noutro acidente de viação ou em qualquer processo contra-ordenacional.

h) O condutor era pessoa cuidadosa e preocupada no bom desempenho das suas funções.

IX. Dos factos provados relativamente ao percurso, à condução e à experiência do condutor apenas se pode concluir que o acidente não ocorreu devido a sonolência, cansaço ou imperícia do condutor.

X. Demonstrou-se sem qualquer dúvida pelos elementos carreados para os autos e vários elementos fáticos dados como provados que o facto presumido – culpa do condutor – não se verificou.

XI. Todos os factos provados demonstram ser verosímil ter-se produzido o dano, sem culpa do condutor.

XII. Não estão demonstrados factos que fundamentem a violação do dever objectivo de cuidado.

XIII. Inexiste demonstração de culpa do condutor pelo que estamos perante a eclosão de um evento indissociavelmente ligado à circulação de um veículo automóvel (responsabilidade pelo risco).

XIV. Não se provou em absoluto os motivos que originaram o acidente, designadamente a culpa, seja ela efectiva ou presumida, sendo certo que se provou que a vítima cumpriu os seus deveres de cuidado na sua condução, não tendo sido provado qualquer comportamento censurável a esta.

XV. De toda a prova produzida, quer documental, quer testemunhal, logrou-se demonstrar que o condutor do veículo respeitou os deveres legais que sobre ele impunham, como sejam, o descanso obrigatório, a velocidade que imprimia ao veículo, a sua experiência profissional, em virtude de sempre ter sido um condutor cuidadoso, atento, responsável, conhecedor do percurso, logo, das características da via, onde se deu o acidente.

XVI. Foi dado como provado que não existe qualquer nexo e imputação entre os danos e um eventual facto praticado com culpa pelo condutor do veículo ou que ao acidente se possa dever a qualquer causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, por forma a afastar qualquer responsabilidade da ré, nos termos do referido artº 505º do Código Civil.

XVII. A douta sentença da 1ª instância, afastou a responsabilidade do condutor do veículo que deriva da presunção de culpa estabelecida pelo artº 503º, nº 3, do CC, fundamentando que o Assento nº 1/83, estabeleceu que a referida presunção se aplica apenas nas relações entre o condutor do veículo por conta de outrem, como lesante e os titulares do direito a indemnização, o que significa que nos presentes autos, no âmbito das relações entre comitente e comissário, não se aplica tal presunção.

XVIII. Tratando-se de uma comissão, também o comitente é responsável, ainda que objectivamente, nos termos do artº 500º do CC, já na qualidade de comitente e não na de detentor efectivo do veículo.

XIX. A presunção de culpa estabelecida no art.º 503º nº 3, do CC, faz um tratamento diferenciado do exercício da condução baseado na condição social de quem conduz, presumindo-o culpado se conduzir por conta de outrem, não o presumindo culpado se conduzir por conta própria o que «(…) um tratamento discriminatório do condutor por conta de outrem em relação aos restantes condutores», como o diz Menezes – Direito das Obrigações, I, 10ª ed. (2013), p. 346.

XX. Maria da Graça Trigo em op. cit., p. 40, defende que a melhor forma de compatibilizar a presunção de culpa do nº 3 do artº 503º, é com o respeito pelo princípio da igualdade, mantendo-se a orientação adoptada pelo Assento nº 1/80, em que a presunção de culpa do artº 503º nº 3, do CC, ganha relevância somente nas relações internas entre o condutor-comissário e o respectivo comitente e detentor do veículo.

- Na medida em que a circulação de veículos automóveis é uma actividade vantajosa que, no entanto, acarreta perigos especiais, pelo que um regime de responsabilidade objectiva, independente de toda uma ideia assente na culpa, permite uma forma de tutela dos lesados mais radical do que aquela que resulta de um regime de presunção de culpa.

  - Tanto a responsabilidade objectiva como as presunções de culpa consubstanciam-se em formas de tutela dos lesados assentes numa linha evolutiva de progressiva protecção, onde a lógica será a da optar por uma delas consoante a especial perigosidade - uma perigosidade mais gravosa exige um regime baseado no risco - daí que não faça sentido a aplicação destes dois regimes cumulativamente à mesma actividade. O mais justo será manter-se a necessidade de o lesado provar a culpa do condutor lesante e, subsidiariamente, accionar uma responsabilidade com base no risco que aquela actividade acarreta, sendo que a presunção de culpa do condutor-comissário apenas relevaria para efeitos de responsabilização solidária do respectivo comitente.

  - Porque, de facto, não se pode imputar o acidente ao condutor do veiculo não proprietário dele, na base de que se presume a culpa do condutor por conta de outrem, nos termos da interpretação que do nº 3, do artº 503º, do CC, deu o assento 1/83, uma vez que, assim interpretado, o artº 503º, nº 3, do CC, é inconstitucional, por violar o disposto no artº 12º e 13º da CRP, inconstitucionalidade que expressamente se invoca por numa actividade em tudo idêntica - a condução de veículos automóveis - distinguir o que é igual e tratá-lo diferentemente, o exercício da condução, baseado na condição social de quem conduz, presumindo-o culpado se conduzir por conta de outrem, não o presumindo culpado se conduzir por conta própria, quando essa condição em nada altera ou modifica o exercício da condução, já que ambos têm de exercer a condução segundo as mesmas regras estradais, de prudência e de técnica.

XXI. O condutor do veículo, concentra em si mesmo, a dupla qualidade de lesante e lesado, e deste ponto de vista, não há margem para aplicação da presunção de culpa no âmbito das (relações externas), entre lesante/lesado, na medida em que não temos pré-configuradas entidades distintas de sujeito lesante de um lado, e sujeito lesado de outro.

XXII. Afastada a culpa presumida e não permitindo os factos provados considerar verificada a culpa efectiva do condutor do veículo, há que recorrer ao regime da responsabilidade pelo risco, tal como a define o artº 503º, nº 1, do CC, como fundamento legal do direito à indemnização, invocado deste acidente, tal como se fez na sentença da 1ª instância, que entende-se, efectuou a correcta aplicação da lei.

XXIII. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 05.03.2009[1], proferido nos autos de processo 8162/2008-6, determina o que compreende o risco na circulação rodoviária; e citamos

    “No risco, compreende-se tudo o que se relacione com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento, com os seus vícios de construção, com os excessos ou desequilíbrios da carga do veículo, com o seu maior ou menor peso ou sobrelotação, com a sua maior ou menor capacidade de andamento, com o maior ou menor desgaste das suas peças, ou seja, como a sua conservação, com a escassez de iluminação, com as vibrações inerentes ao andamento de certos camiões gigantes, susceptíveis de abalar os edifícios ou quebrar os vidros das janelas.

É o pneu que pode rebentar, o motor que pode explodir, a manga do eixo ou a barra de direcção que podem partir, a abertura imprevista de uma porta em andamento, a falta súbita de travões ou a sua desafinação, a pedra ou gravilha ocasionalmente projectada pela roda do veículo (há mesmo casos em que pode aqui haver culpa); até a alta velocidade constitui um risco, ao mesmo tempo que pode representar um acto culposo. Enquanto em circulação, a própria estrada pode emprestar à viatura riscos graves.

Mas não são apenas estas situações dependentes da viatura ou a ela inerentes que preenchem os riscos por ela representados; dentro do quadro de hipóteses subjacentes ao preceito estão igualmente os riscos relacionados com o próprio condutor: é do binómio veículo-condutor que se parte para se integrar a responsabilidade pelo risco. Ter-se-á neste terreno o caso do acidente devido a colapso físico do condutor do veículo (uma vertigem momentânea, um súbito colapso cardíaco). A perda súbita da consciência é mesmo considerada caso de força maior inerente ao funcionamento do veículo. Neste sentido se pronunciaram os Acórdãos do STJ, de 1 de Maio de 1971 (Bol. 207, p. 134) e de 27 de Julho de 1971 (Bol. 209, p. 120).

A própria febre alta pode ocasionar um desastre não culposo. Todavia, em regra, poderá constituir um daqueles estados transitórios de inimputabilidade, para os quais não funciona o art.º 503.º, tratar-se-á normalmente de situações de culpa, enquanto ligadas à condução e entram na sede das acciones liberae in causa (artº 488º, nº 1). De resto - já ficou salientado – até o risco pode estar, na sua origem, condicionado pela culpa (o caso da derrapagem culposa, o caso do pneu que rebenta pela grave incúria ou inconsideração relativa à sua conservação). Todavia, difícil será prová-lo.

Ao fim ao cabo, basta que o veículo esteja em movimento na estrada para já constituir um risco. E daí que, não estando provada a culpa do condutor, o acidente cabe logo, em princípio, na esfera do risco.

A questão relativa à necessidade de alegação e prova do concreto risco do veículo que tenha estado na origem do acidente, tem de ser respondida negativamente.

Exigir a concreta identificação da causa do embate para reconduzi-la ao risco próprio do veículo, equivaleria a esvaziar completamente a responsabilidade pelo risco, atenta a manifesta dificuldade que o lesado enfrentaria de averiguar e demonstrar qual o facto inerente ao veículo ou ao condutor que esteve na origem do acidente, a que é absolutamente alheio”.

XXIV. A responsabilidade fundada no risco da verificação cumulativa depende de dois pressupostos: ter o eventual responsável a direcção efectiva e utilizá-lo no seu próprio interesse, tais pressupostos estão provados nos autos, quer através de prova documental, nomeadamente o Relatório Técnico, elaboração pela Guarda Civil Espanhola, bem como através do depoimento prestado pela testemunha GG, legal representante da empresa detentora do veículo.

XXV.       A responsabilidade pelo risco assenta no nexo de causalidade, com os riscos específicos do veículo, a qual aproveita a terceiros, incluindo neste caso o condutor do veículo, no entendimento referido pelo Professor Antunes Varela, que aproveita a terceiros e às pessoas transportadas, como determina o artº 504º, nº 1.

XXVI. Nos terceiros, como referido pelo Professor Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, I, 6ª edição revista e actualizada, nota 1, pg 638): «Devem ser incluídas ainda as pessoas que se ocupam na actividade do veículo (o condutor, o guardador, o cobrador ou o fiscal dos transportes colectivos), desde que o acidente se relacione com   os riscos próprios daquele»,e concomitantemente decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra, acórdão de 12.11.2013, proferido nos autos de processo 323/10.0T2AND.C1.

XXVII. Deste modo, a responsabilidade da ré Seguradora, para quem a proprietária do veículo havia transferido o risco de circulação do veículo e reboque acidentados, só ficaria excluída, nos termos do art.º 505.º, ou seja, se a culpa do acidente em causa nos autos pudesse ser imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou resultasse de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

XXVIII. Contudo dos factos provados não existe nexo de imputação entre os danos e um eventual facto praticado pela vítima, ou até que o acidente se possa dever a qualquer causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, por forma a afastar a responsabilidade da ré.

XXIX. Segundo o Ac. do TRL, de 17/02/2005, proferido nos autos de processo 827/2005-6[2], declarou-se que:

«Porém, como também tem sido entendido com certa uniformidade na jurisprudência, só a existência de uma relação de comissão faz presumir a culpa do condutor, sendo certo que essa relação de comissão tem de ser encontrada fora de aplicação do art.º 503.º, n.º 1, pois as expressões aí referidas – “direcção efectiva” e “interesse próprio” – são apenas elementos balizadores dessa norma, ou seja, somente dizem respeito à responsabilidade pelo risco e apenas servem para determinar esta e não a responsabilidade por culpa, mesmo que presumida. Convém, a propósito citar o Assento do STJ, de 20-10-94 – que tem força obrigatória geral, no que respeita à uniformização de jurisprudência (face ao estabelecido no artº 732.º-A do CPC) – que veio estabelecer que o dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se aleguem e provem factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do art.º 500.º, n.º 1 do CC, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo.

Sucede que a verificação de tal relação de comissão, não assenta no simples facto de alguém conduzir um veículo por “conta de outrem”, ou “sob a direcção e interesse de outrem”, pois que, como se referiu, as expressões ”direcção efectiva” e “interesse próprio”, constantes do art.º 503.º, n.º 1, são tão somente elementos balizadores dessa norma.

Note-se ainda que, conforme Parecer do Professor António Varela: “Nenhum fundamento existe para distinguir, nos seus efeitos, entre a culpa (do comissário) provada por presunção legal, nos termos da primeira parte do n.º 3, do art.º 503.º, do Código Civil, e a culpa demonstrada por qualquer outro meio de prova”. E se “havendo apenas culpa presumida, o comissário responde por todos os danos causados aos lesados, sem qualquer limitação fundada no risco e apenas podendo beneficiar da redução prevista no art.º 494.º do Código Civil, e também o comitente responde por todos os danos causados no acidente.

No mesmo sentido se defendeu no Ac. da Relação do Porto, de 10-12-98, que “a responsabilidade do condutor comissário pelos danos causados, quando não ilidiu a presunção legal da sua culpa, repercute-se no proprietário do veículo.”»

DA EXCLUSÃO DA GARANTIA DO SEGURO

XXX. Suscitada pela ré Seguradora a questão da exclusão da cobertura pela garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, os danos corporais sofridos pelo condutor de veículo responsável pelo acidente, bem como os danos decorrentes daqueles, ao abrigo das excepções previstas no artº 14º, nº 1, da LSOA.

XXXI. Dispõe o artº 14º nº 1, do Dec-Lei 291/2007: «excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles, preceituando o nº 2, al. e), da mesma disposição legal, que excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados (…) ao cônjuge, ascendentes, descendentes (…)»

XXXII. Estas disposições legais prevêem assim três tipos de danos:

   a) Os danos corporais sofridos pelo condutor responsável pelo acidente;

    b) Os danos decorrentes daqueles danos corporais;

   c) Os danos materiais causados, entre outras pessoas, ao cônjuge e descendentes.

XXXIII. Os danos invocados pelas AA, ora recorrentes, são danos não patrimoniais sofridos pelas próprias com a morte do seu marido e pai, bem como, não patrimoniais por este sofridos, a que acrescem danos patrimoniais, correspondente à diferença do valor efectivamente pago com o funeral do falecido com o valor que foi pago às AA, ora recorrentes, no processo laboral.

XXXIV. Acórdão de que se recorre enuncia o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 05/06/2014, segundo o qual se firmou a orientação jurisprudencial no sentido de que, no caso de morte do condutor do veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no n.º 2, do art.º 496.º, do C.C., não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte».,

XXXV. O pressuposto da exclusão mencionada no n.º 1, do art.º 14.º, do LSOA, e do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 05/06/2014 é que o condutor em causa seja responsável pelo acidente.

XXXVI. Nos presentes autos, não se prova que o condutor do veículo seja responsável pelo acidente, nem que o acidente tenha sido causado por culpa exclusiva do mesmo.

XXXVII. Os danos relativamente aos quais a indemnização é peticionada pelas AA, aqui recorrentes, são danos próprios sofridos directamente por estas (danos morais causados pela perda da vitima), bem como os patrimoniais decorrentes das despesas de funeral por elas suportadas, que são passíveis de indemnização nos termos dos artigos 495.º, n.º 1 e 496.º, n.º 3, 2.ª parte do Código Civil, tendo previamente sido decidido de forma favorável às AA pelos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça proferidos em 20/10/1998 e em 11/03/1999, e pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.02.2012

XXXVIII. As A.A., aqui recorrentes, não estão a reclamar a indemnização de qualquer direito que existisse na titularidade das relações jurídicas patrimoniais do seu familiar, condutor do veículo, mas sim de um direito próprio, estranho a esse seu familiar, embora originado na consequência funesta que lhe adveio com o acidente.

XXXIX. A garantia de seguro já não exclui os danos próprios, de natureza não patrimonial, sofridos pelo cônjuge e filhos do condutor do veículo, decorrentes da sua morte, consistentes nos sofrimentos, desgosto e tristeza que essa mesma morte lhes provocou.

XL. O ressarcimento dos danos reclamados pelas autoras não está excluído da garantia do seguro e, como tal, está a ré seguradora obrigada a indemnizá-las dos danos não patrimoniais que lhes provocou a morte de seu marido e pai, já tendo sido decido de forma equivalente por este Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão proferido em 08/01/2009, nos autos de processo 08B3796.

XLI. O douto acórdão recorrido fez incorrecta interpretarão de factos provados e incorrecta subsunção dos mesmos às normas legais contidas nos artigos 350.º, n.º 2, 496.º, n.º 2, 500.º, 503.º, n.º 1, todos do CC.

Terminam, pedindo que seja revogado o acórdão recorrido e a confirmação da sentença proferida em 1ª instância.

A parte contrária respondeu, pugnando pela manutenção do acórdão da Relação de Coimbra.

Por decisão sumária de 19.12.2018 (fls 2218 a 2238), proferida pelo anterior Relator, foi concedida a revista e condenou a ré no pagamento às autoras dos montantes indemnizatórios fixados na sentença.

Não se conformando com tal decisão sumária, a recorrida DD de Seguros, SA, nos termos do disposto no artigo 652º nº 3 do Código de Processo Civil, reclamou para a Conferência, a fim de, sobre a matéria, recair um acórdão.

Em síntese, referiu que o caso dos autos prende-se com acidente rodoviário em que a vítima conduzia, por conta da sua empregadora, um pesado com reboque numa AE e ao passar sobre um viaduto, por motivos não concretamente apurados, colidiu com a barreira lateral do lado direito, despenhando-se de seguida, sobre o leito do riacho localizado no fundo do viaduto, incendiando-se de imediato e daí resultando a sua morte.

A decisão sumária, não obstante reconhecer que o regime da presunção de culpa do condutor por conta de outrem (artigo 503/3 1ª parte do C.C.) seja desde há muito objecto de controvérsia na doutrina e jurisprudência, afasta no caso (acção intentada pela viúva e filha da vítima a efectivarem direitos indemnizatórios emergentes do dano morte da vítima, seu familiar e condutor do pesado) a aplicação da referida presunção pelo facto dos danos terem atingido apenas o próprio condutor por conta de outrem (comissário) sem que tenham existido outros lesados (terceiros) e só quanto a estes (se existissem) é que prevaleceriam os efeitos da presunção em causa.

 

A recorrida discorda neste aspecto da decisão sumária, na medida em que, não obstante o acidente se tenha traduzido num despiste isolado do veículo seguro, de que resultou a morte do condutor, é aplicável a presunção de culpa do artigo 503/3, 1ª parte do C.C., tanto mais que o referido condutor, no caso, assume a dupla qualidade de lesante e lesado e as AA/recorrentes apresentam-se igualmente como lesadas, e esta solução decorre claramente do estatuído no já citado artigo 503/3, 1ª parte do C.C. - Assento 1/83 (válido para as relações externas e internas) e AUJ 12/2014.

No âmbito da outra temática objecto da decisão sumária - denegação dos direitos efectivados pelas AA por via da exclusão do artigo 14º do DL 291/2007, no âmbito do funcionamento do regime do seguro automóvel obrigatório - também a recorrida discorda da solução encontrada na decisão sumária.

Neste ponto a decisão sumária, depois de afastar a aplicação da presunção de culpa, chama à colação a responsabilidade adveniente dos riscos próprios do veículo (do comitente) do artigo 503/1 do C.C., sustentando que o próprio condutor, nos termos do artigo 504/1 do CC, também fica desde logo ao abrigo dos efeitos benéficos da responsabilidade objectiva, como se terceiro fosse, quiçá pessoa transportada.

Neste mesmo tema, acrescenta ainda que, inexistindo culpa efectiva e ou presumida do condutor do pesado, os danos corporais sofridos por este, não restam excluídos à luz do artigo 14/1º do SORCA, pelo facto da culpa subjectiva (efectiva ou presumida) - e que inexiste - ser “conditio sine qua non” da verificação e procedência da exclusão.

A recorrida rejeita em absoluto a opção da decisão sumária pela verificação no caso da responsabilidade objectiva, porque a imputação do acidente a titulo de culpa presumida “ut supra” é inconciliável com a responsabilidade pelo risco, afastando-a.

 

Além disso, as exclusões da garantia do seguro a que alude o artigo 14º do SORCA aprovado pelo DL 291/2007 de 21/08, abrangem o condutor do veículo (que não é terceiro) e responsável pelo acidente.

Acresce até que - se por hipótese absurda viesse a subsistir a regência da responsabilidade objectiva - ainda assim, nos termos e para os efeitos do artigo 14º/2 alínea a) do SORCA e não obstante o teor do AUJ de 05/06/2014, a exclusão do artigo 14º/1 verifica-se porque a expressão inserida na norma “danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente” , tem um sentido mais consentâneo com a noção de causalidade e de imputabilidade de dado acidente a determinado veículo do que consonância com a noção de responsabilidade civilística em sentido técnico jurídico e a exclusão opera quando dado veículo e seu condutor tenham dado causa a um acidente e os consequentes danos sejam imputáveis no sentido de causados ou desencadeados pela viatura, irrelevando se no rigor técnico ocorre responsabilidade subjectiva, efectiva ou presumida e ou porventura tão só objectiva (vide Ac. do TRG de 18/04/2013 in Processo 13/ 11.7 TBMN.G1; Ac. do TRG de 18/06/2013 - in Proc. 476/12.3 TBBCL G1; Ac. do TRC de 28/05/2013 in Proc. 368/12.6 TBTND. C1; Ac do STJ de 01/12/2015 in Proc 529/11.5TBPSR.S1)

Termina, pedindo que seja revogada a decisão sumária que foi proferida e substituída por outra, agora colegial, que denegue a revista, absolvendo a ré recorrida e ora reclamante de todos os pedidos indemnizatórios formulados pelas recorrentes.

 Ouvida a parte contrária, nada respondeu.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) Fundamentação de facto

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1º - As autoras são as únicas e universais herdeiras de EE, falecido em 14.10.2009, sendo a autora AA [o] cônjuge sobreviv[o] e BB filha de ambos, nascida a ....2005.

2º - No dia 14 de Outubro de 2009, cerca das 12 horas e 35 minutos, ao KM 77.860, em Villacastin, A.P.6, Espanha, sentido Adanero-Villalba ocorreu um acidente de viação, no qual foi único interveniente o veículo matrícula ...-DL-... e reboque matrícula VI-..., conduzido pelo falecido EE.

3º - Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 2º, EE conduzia o referido veículo articulado por conta da sociedade FF, para a qual trabalhava e sob cuja autoridade, direcção e fiscalização exercia funções de motorista.

4º - O local do acidente constitui um viaduto numa auto-estrada com portagem e, à data do acidente, era composta por duas vias em cada sentido de trânsito, com 3,70 metros cada uma, separadas por uma linha longitudinal descontínua, com traçado rectilíneo, descendente com uma inclinação de 2%.

5º - O viaduto referido em 4º tinha uma altura de cerca de 35 metros no seu centro, não dispunha de faixas de emergência e era ladeado por uma barreira lateral semi-rígida.

6º - A velocidade permitida para o local era 90 Km/hora para veículos articulados.

7º - No momento do acidente fazia bom tempo, não chovia, o piso estava seco e o sol estava num dos seus pontos mais altos, não existindo quaisquer circunstâncias atmosféricas que impedissem ou pusessem em perigo a circulação de veículos.

- (Inexiste facto provado nº 8).

9º - Por motivos não concretamente apurados, o veículo colidiu com a barreira lateral semi-rígida situada do lado direito, atento o seu sentido de marcha, destruindo a mesma, despenhando-se de seguida sobre o leito do riacho localizado no fundo do viaduto, incendiando-se de imediato.

10º - No dia do acidente o falecido EE havia saído de Pombal, pelas cinco horas da manhã, hora portuguesa, tendo percorrido até ao local do acidente uma distância de cerca de 500 Km.

11º - Em consequência do acidente referido em 9º, EE sofreu lesões que foram causa directa, necessária e adequada da sua morte.

12º - No âmbito do processo de trabalho nº 1319/09.6 TTCBR do 2º Juízo do Tribunal de Trabalho de Coimbra, que correu termos na sequência do acidente referido em 9º, entre o mais a companhia de seguros CC SA pagou à autora AA a quantia de € 3.600,00 a título de despesas de funeral.

13º - A autora AA despendeu com o funeral de EE a quantia global de € 5.958,12.

14º - À data do acidente EE tinha 31 anos de idade, era saudável, robusto, bem disposto, com projectos para o futuro e com uma grande alegria de viver.

15º - EE, juntamente com as autoras, constituíam uma família harmoniosa, unidos por fortes laços afectuosos.

16º - EE

era marido e pai dedicado, meigo e estimado por toda a família, amigos e pessoas da localidade onde vivia, estando plenamente integrado na vida familiar e social.

17º - As autoras sentiram enorme dor, terrível desgosto e tristeza com a morte do seu marido e pai, não se conformando com a tragédia que as atingiu.

18º - A morte súbita, inesperada, brutal, prematura do seu marido e pai, causou às autoras grande abalo emocional, que em muito fez e as faz sofrer, que sentem uma enorme dor e tristeza.

19º - Em consequência da morte de EE, ficou subitamente alterada toda a dinâmica e projectos de vida familiares.

20º - Nas semanas seguintes à morte do seu marido, AA não conseguiu dormir, perdeu o apetite e chorava onde quer que se encontrasse e ainda na presente data chora a morte do seu marido, sofrendo muito com a sua perda.

21º - A autora BB tinha apenas quatro anos de idade quando o seu pai faleceu.

22º- A autora BB viu-se, e vê-se, prematuramente privada do carinho do pai, numa fase da sua vida, infância e posterior adolescência, em que mais dele precisava e precisa.

23º - A morte de EE causou um vazio enorme no espírito das autoras do qual resultaram traumas psíquicos e psicológicos dos quais nunca se recompuseram.

24º - Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., em vigor desde Maio de 2006, a responsabilidade civil dos danos causados a terceiros pelo veículo articulado ...-DL-... e reboque ..., foi transferida para a ré, pela proprietária do veículo, a sociedade FF, Lda.

25º - Em 23.05.2008 a sociedade FF, Lda solicitou ao seu mediador de seguros um pedido de cotação referente a uma alteração à apólice mencionada em 24º, que englobasse toda a sua frota automóvel e que tivesse, além do mais, cobertura de ocupantes.

26º - Em 14.05.2010, a sociedade FF, Lda. solicitou formalmente alteração à apólice de seguro referida em 24 por forma a na mesma incluir a cobertura de ocupantes, o que sucedeu com efeitos a partir de Maio de 2010, de que não dispunha até essa data.

Factos não provados:

a) Momentos antes do acidente o veículo acidentado tenha obliquado para a direita, tenha começado a balouçar e o reboque tenha oscilado para a esquerda;

b) EE tenha iniciado a viagem às 6 horas da manhã hora portuguesa, 7 horas da manhã hora espanhola, dando-se o acidente volvidas 5 horas e 35 minutos desde que iniciara a viagem;

c) EE tenha feito o percurso referido em 10º de modo ininterrupto, sem ter feito qualquer paragem e sem ter feito qualquer paragem técnica para descanso regulamentar;

d) O facto referido em 9º ocorreu porquanto EE não conseguiu, por falta de atenção e cuidado e por cansaço e sonolência, manobrar o veículo articulado por forma a evitar que este saísse da via e se despenhasse no precipício;

e) O falecido EE representou a sua morte, a angústia e desespero foram enormes e sentiu as dores físicas resultantes do embate que foram brutais;

f) O falecido deu-se conta da inevitabilidade do embate, com o inerente susto e do perigo iminente para a sua vida;

g) O embate causou grande sofrimento ao falecido, nos momentos que precederam a sua morte;

h) O falecido esteve consciente do intenso e profundo sofrimento que mediou a colisão e a sua morte;

i) No período antes da morte, a vítima sofreu muitas dores, sentiu angústia e terror pela morte assistindo conscientemente à gravidade das lesões por si sofridas e posterior morte, que provavelmente representou na sequência de tais lesões;

j) A autora AA era casada com o falecido apenas há seis anos;

l) A ré tenha aceite a proposta referida em 25º, não constando a cobertura “ocupantes” na apólice vigente à data do acidente mencionado em 2º um mero lapso;

m) Após a ocorrência do acidente de viação, descrito nos presentes autos, teve a sociedade FF, Lda conhecimento do lapso referido em l), não sendo essa a vontade negocial da sociedade FF, Lda que pretendeu a cobertura “ocupantes” na data referida em 25º.

B) Fundamentação de direito

Por decisão sumária de 19.12.2018 (fls 2218 a 2238), proferida pelo anterior Relator, foi concedida a revista e condenou a ré no pagamento às autoras dos montantes indemnizatórios fixados na sentença.

Não se conformando com tal decisão sumária, a recorrida DD de Seguros, SA, nos termos do disposto no artigo 652º nº 3 do Código de Processo Civil, reclamou para a Conferência, a fim de, sobre a matéria, recair um acórdão.

Tendo em conta o disposto no nº 4 do artigo 635º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas conclusões do mesmo.

A mencionada decisão sumária, decidiu nos seguintes termos:

“ - Da existência de presunção de culpa do condutor do veículo seguro;

- Do funcionamento do regime do seguro automóvel obrigatório;

- Do direito à indemnização e respectivo quantum.

                                                            

Da existência de presunção de culpa do condutor do veículo seguro.

Conforme se referiu na decisão singular proferida a fls. 2101 e ss., com a presente acção pretendem as Autoras a condenação da seguradora no pagamento das seguintes quantias: (i) € 50.000 pela perda do direito à vida; (ii) € 10.000 pelos danos morais sofridos pela própria vítima; (iii) € 20.000 e € 15.000 pelos danos morais sofridos, respectivamente, pelas Autoras viúva e filha; e (iv) € 2.358,18 a título de despesas de funeral correspondente à diferença entre o que despenderam e o que foi liquidado pela seguradora do acidente de trabalho.

De acordo com a matéria de facto (entretanto reapreciada pela Relação mas apenas alterada na parte em que no facto provado n.º 9 deixou de constar o segmento “circunstâncias não concretamente apuradas”) o acidente ocorreu em 14-10-2009, em Espanha, quando o falecido conduzia, por conta da sua entidade patronal, um veículo pesado com reboque numa auto-estrada sendo que, ao passar sobre um viaduto, por motivos não concretamente apurados, colidiu com a barreira lateral do lado direito, despenhando-se de seguida sobre o leito do riacho localizado no fundo do viaduto, incendiando-se de imediato e daí resultando a sua morte.

Na sentença proferida pela 1.ª instância foi a acção julgada parcialmente procedente - apenas improcedendo o pedido (ii) e fixando-se o pedido (iii) em valor inferior ao peticionado — por se ter, essencialmente, considerado que, não obstante não poder ser imputada ao condutor do veículo, a responsabilidade pelo acidente a título de culpa efectiva ou presumida, seria possível enquadrar o mesmo na responsabilidade objectiva nos termos do art.º 503.º, n.º 1, do CC.

Por essa via, considerou a sentença que o acidente ainda se incluía nos riscos próprios do veículo e que o condutor ainda aproveita da responsabilidade imputada ao comitente nos termos do art. 504.°, n.° 1, do CC, sem que o regime do contrato do seguro, em especial o art.º 14.º do DL 291/2007 que exclui a cobertura do seguro em certas circunstâncias em que a responsabilidade do acidente é imputável ao próprio condutor, o impeça por se considerar que o mesmo não foi responsável pelo acidente.

Interposto recurso de apelação pela ré seguradora, tanto no acórdão inicialmente proferido (que foi objecto de anulação tendo em vista a reapreciação da matéria de facto impugnada), como no aresto que se lhe seguiu que corresponde ao acórdão ora recorrido, foi concedido provimento ao recurso, julgando a Relação a acção improcedente e absolvendo a ré do pedido.

Considerou-se, em síntese, que tendo o acidente consistido num despiste, sozinho, do veículo seguro, de que resultou a morte do condutor, é aplicável a presunção de culpa prevista no art. 503.º, n.º 3, 1.ª parte, do CC, sendo que, por aplicação do Assento n.º 1/83, válido para as relações externas e internas, e do AUJ n.º 12/2014 não têm as aqui Autoras direito a qualquer indemnização, sendo o mesmo igualmente afastado por via das exclusões do seguro obrigatório previstas no art. 14.º do DL n.º 291/2007.

A questão essencial a decidir é, assim, a de saber se, no caso dos autos, em que não se provou qualquer factualidade que permita imputar um juízo de culpa subjectiva ao condutor do veículo sinistrado, pode em relação aos danos e montantes indemnizatórios em causa nos autos, ser aplicada a presunção de culpa a que se refere o art. 503.º, n.º 3, primeira parte, do CC.

Esta presunção, como é sabido, diz respeito aos condutores de veículos por conta de outrem, dispondo o referido segmento do preceito legal em causa que: “Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte;”.

Consagrou-se, assim, um tratamento mais severo do condutor por conta de outrem a nível da responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação daquele que se verifica em relação à generalidade dos condutores.

Tal diferenciação de tratamento decorre da circunstância do Assento n.º 1/80 ter uniformizado jurisprudência no sentido de “o disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil não ter aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre”, tornando a situação dos condutores por conta de outrem (muitas vezes trabalhadores) mais gravosa, na medida em que apenas em relação a estes passou a vigorar uma presunção de culpa, antecedente lógico de um eventual juízo de imputação da responsabilidade a nível objectivo com fundamento no risco.

Este regime de presunção de culpa do condutor por conta de outrem e as consequências do mencionado Assento foram, desde há muito, objecto de acesa controvérsia na doutrina e na jurisprudência, inclusive, a nível da sua constitucionalidade, radicando as críticas essencialmente na desigualdade de tratamento do condutor-comissário em relação ao condutor-proprietário[3].

Nesse sentido, pode dizer-se que a posição do comissário, a nível da responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação, foi-se progressivamente tornando mais gravosa, desde logo, por efeito dos assentos que foram sendo tirados pelo Pleno deste Supremo Tribunal, na altura com valor de fonte de direito nos termos do revogado art. 2.º do CC.

Assim, através do Assento n.º 1/83, foi entendido que “a primeira parte do n.º 3 do art. 503.º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização”.

Posteriormente, não se seguindo a proposta de alguma doutrina de apenas abranger, no caso do comissário, a culpa efectiva e não a culpa presumida[4], foi proferido o Assento n.º 3/94 que decidiu que “A responsabilidade por culpa presumida do comissário, estabelecida no artigo 503.°, n.° 3, primeira parte, do Código Civil, é aplicável no caso de colisão de veículos prevista no artigo 506.°, n.° 1, do mesmo Código” e o Assento n.º 7/94 que, por sua vez, considerou que “A responsabilidade por culpa presumida do comissário, nos termos do artigo 503.º, n.º 3, do Código Civil, não tem os limites fixados no n.º 1 do artigo 508.º do mesmo diploma”.

Tem assim prevalecido na jurisprudência a tese de Antunes Varela que defendeu a mencionada diferenciação de tratamento e aplaudiu os Assentos que foram sendo sucessivamente tirados, considerando-os em “perfeita coerência de pensamento”[5], por se mostrar plenamente justificada a mencionada presunção de culpa designadamente, por haver na condução por conta de outrem um perigo sério de afrouxamento na vigilância do veículo, que a lei não pode subestimar, para além do risco de fadiga do comissário e de os condutores por conta de outrem serem, por via de regra, condutores profissionais, e estimular-se, desta forma, a celebração de seguros de responsabilidade civil que cubram todo o montante da indemnização a que possam estar sujeitos[6].

Sem prejuízo do interesse da discussão em torno da referida presunção de culpa do comissário, da interpretação que foi feita a este respeito pela jurisprudência deste Supremo Tribunal e do juízo de não-inconstitucionalidade reiterado pelo TC (que para alguma doutrina pode e deve ser invertido), no caso presente, face aos termos em que a questão vem discutida pelas instâncias, apenas está em causa saber se essa presunção de culpa abrange a situação e os danos concretos peticionados nos autos, sem ser necessário pôr em causa todo este lastro doutrinário e jurisprudencial do passado.

Com efeito, conforme já assinalámos, tendo as instâncias concordado quanto à aplicação da lei portuguesa no que se refere à determinação da responsabilidade civil e à aplicabilidade das normas do seguro obrigatório, divergiram, contudo, quanto à existência de uma situação de responsabilidade civil objectiva nos termos do art. 503.º, n.º 1, do CC – opção seguida pela 1.ª instância – ou quanto à aplicação no caso dos autos – um acidente em que apenas foi interveniente o condutor por conta de outrem – da presunção de culpa prevista no art. 503.º, n.º 3, 1.ª parte, do CC – opção seguida no acórdão recorrido que a sentença expressamente rejeitara.

No entendimento perfilhado na sentença apesar de ser indiscutível que o condutor falecido conduzia sob as ordens e no interesse da sua entidade patronal, tomadora do seguro, não se aplicaria a presunção do art. 503.º, n.º 3, do CC, na medida em que o Assento n.º 1/83 veio estabelecer que essa presunção aplica-se nas relações entre o condutor como lesante e os titulares do direito de indemnização, pelo que situando-se o caso no âmbito das relações entre comitente e comissário, não será a mesma aplicável.

Ao invés, o acórdão recorrido, defendeu que embora o mencionado Assento n.º 1/83 apenas faça referência às relações externas, também é válida a presunção de culpa para as relações internas, sendo pressuposto do conflito que deu origem ao Assento que a presunção se aplicava nas relações internas dos vários responsáveis pelo risco.

Assim, e após reconhecer que no caso do comissário não existirá uma responsabilidade objectiva concorrente com o do comitente que cumprisse ilidir, acaba por perfilhar o entendimento que a presunção de culpa se deve aplicar tanto nas relações externas como nas internas, sendo que relativamente a estas últimas a justificação da presunção de culpa serviria antes para fundar o direito de regresso do comitente não culposo sobre o comissário, à luz do regime do art. 500.º do CC (cfr. fls. 2126).

Ora, sem prejuízo da valia do entendimento perfilhado pela Relação, afigura-se-nos, face aos elementos de interpretação da lei e ao próprio contexto e teor do Assento n.º 1/83, que esta não será, no caso presente, a melhor solução.

Desde logo, por não estarmos perante qualquer acção de regresso intentada pelo comitente (ainda que através da sua seguradora) contra o comissário para ressarcimento do que houvesse pago em sede indemnizatória (necessariamente a terceiros) e a título de responsabilidade objectiva, em relação à qual pudesse, eventualmente (não se toma aqui posição a este respeito por não se tratar de matéria objecto do recurso), justificar-se a existência de uma presunção de culpa com base no art. 503.º, n.º 3, 1.ª parte, ou no art. 500.º do CC.

Trata-se, ao invés, de uma acção intentada pela viúva e pela filha do falecido condutor do veículo acidentado tendo em vista o pagamento de indemnizações derivadas da morte deste (perda do direito à vida, dano de presciência da morte, danos não patrimoniais reflexos e diferença respeitante a despesas de funeral), sem que exista qualquer pagamento prévio do comitente a título de responsabilidade objectiva que justifique um direito de regresso.

Depois, e para além desta diferenciação do objecto das acções que, para nós, levaria a afastar a interpretação que o acórdão recorrido fez do âmbito de aplicação da presunção de culpa do condutor por conta de outrem, verifica-se da consulta aos Acórdãos do STJ de 19-10-1978, de 19-12-1979 e de 31-12-1980, todos publicados no BMJ e aos quais faz referência o Assento, que a afirmação da existência de uma presunção de culpa nas relações internas radica no pressuposto que sobre o próprio comissário recairia uma responsabilidade pelo risco, caso em que se justificaria aplicar a presunção de culpa nas relações entre o comitente e o comissário.

Ora, não se tratando no caso presente de qualquer situação de conflito de fontes de responsabilidade objectiva (que, como veremos, inexiste em relação ao comissário), e tendo o Assento por base situações de facto em que os lesados eram terceiros, carece de fundamento invocar a doutrina deste para a aplicar na situação dos autos em que estão em causa os danos derivados da morte do condutor por conta de outrem, único interveniente no acidente de viação.

Mas, bem mais relevante do que estas advertências prévias, é que, segundo cremos, a doutrina do Assento n.º 1/83 não se aplica às relações entre o comitente e o comissário, limitando-se o objecto do assento - que actualmente equivale a um segmento uniformizador –, às relações entre o comissário e os terceiros lesados.

Essa mesma exclusão foi sucessivamente afirmada na fundamentação do Assento em causa quando se diz, e foi já transcrito no acórdão recorrido, que:

“A presunção de culpa do condutor por conta de outrem, estabelecida no n.º 3 do citado art. 503.º, de modo algum poderá considerar-se aplicável nas relações internas entre os vários responsáveis pelo risco, mas sim nas relações entre o lesante e o titular do direito à indemnização, por ser inconcebível que, com a prova de exclusão de culpa sua, o comissário, no exercício dessas funções, afaste responsabilidade pelo risco, uma que a lei não o responsabiliza a tal título por não ter a direcção efectiva e interessada do veículo, o que constitui fundamento dessa responsabilidade”.

No mesmo sentido, já anteriormente ao Assento n.º 1/83, escrevia Sousa Ribeiro, de forma impressiva:

“É, assim, insustentável, a todas as luzes, a ideia de que a presunção de culpa do art. 503.º, n.º 3, funciona apenas nas relações internas dos vários responsáveis. A inversa, quanto a mim, é que é verdadeira: tal presunção deve operar, exclusivamente, no plano das relações externas”.

Uma interpretação contrária a esta, “(…) iria, de resto, chocar frontalmente contra o substrato teleológico do regime das presunções de culpa. Inspiradas numa ideia de favorecimento da vítima, nada autoriza a sua transferência para o plano das relações internas, em proveito do responsável que se apresenta como dotado, em regra, de maior capacidade económica, e como o principal beneficiário das vantagens da actividade de que resultou o dano. Desvios aos princípios gerais só serão admissíveis, neste domínio, quando a favor do comissário, de molde a atenuar a sua responsabilidade face ao comitente”[7].

Conclui-se, pois, que a ideia repetida, de forma algo acrítica ou imprecisa, por alguma doutrina e jurisprudência de que a presunção de culpa do art. 503.º, n.º 3, primeira parte, se aplica nas relações internas entre o comitente e o comissário, ou esquece que o seu pressuposto era a concorrência de duas fontes de responsabilidade civil objectiva (que não se verifica) ou está a pensar nas acções de regresso por danos pagos a terceiros pelo comitente com base na responsabilidade objectiva, ignorando que podem estar em causa danos sofridos pelo próprio comissário, em relação aos quais não se encontra justificação para a existência ou para a extensão desta presunção de culpa.

Isso mesmo foi afirmado pelo STJ – ainda que em situação fáctica diversa da presente – no Acórdão de 02-12-2010 (Revista n.º 1617/06.5TBSTB.E1.S1, relatado por Lopes do Rego), onde já se intuía que a mencionada presunção de culpa não podia valer nas relações entre o comitente e o comissário em relação a danos sofridos pelo próprio.

Pode, então, ler-se, nesse sentido, no sumário do referido aresto:

«Não pode invocar-se a presunção de culpa contida no art. 503º, nº 3, para, na indefinição factual acerca da dinâmica do acidente, considerar culpado o condutor/comissário relativamente aos danos sofridos por ele próprio, consubstanciados na lesão de bens corporais e da saúde – já que tal norma delimita o âmbito da presunção de culpa e da consequente responsabilidade apenas relativamente aos danos que, enquanto lesante, o comissário causar (e não aos que ele próprio sofrer, na veste de lesado, em consequência do acidente)..

Por conseguinte, estando em causa na presente acção danos sofridos pelo próprio comissário, não será aplicável nem a doutrina nem o espírito do Assento n.º 1/83, já que referindo-se a presunção de culpa aos danos causados nas relações entre o condutor como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização, as chamadas relações externas, não se estende tal presunção aos danos sofridos pelo próprio condutor por conta de outrem que pretenda ser indemnizado por esses danos.

Com efeito, nessa situação – que é a dos autos - soçobram as necessidades e exigências de tutela de terceiros lesados que demandam o accionamento da presunção de culpa, sendo que o seu funcionamento nas relações entre o comitente e o comissário, qualificadas como relações internas pelas instâncias, apenas favorece o primeiro (e a seguradora deste enquanto tomador do seguro), imputando ao próprio lesado uma carga probatória da inexistência de culpa no acidente que apenas torna mais gravosa a ressarcibilidade dos danos próprios em favor de uma tutela do comitente que carece da justificação.

Concluímos, pois, que estando em causa um acidente do qual apenas derivaram danos para o próprio condutor por conta de outrem, sem que se conheçam as causas para o despiste e sem que tenham existido outros lesados, não é de aplicar a presunção de culpa a que se refere o art. 503.º, n.º 3, primeira parte, do CC, sendo tal matéria excluída do efeito persuasivo da doutrina firmada pelo Assento n.º 1/83.

Não se aplicando a presunção de culpa em causa, e afastando-nos nessa medida do acórdão recorrido, resta o recurso à via objectiva seguida pela sentença da 1.ª instância, valendo aqui as razões aí expedidas para justificar a aplicação da responsabilidade pelo risco do comitente do art. 503.º, n.º 1, do CC.

Verificam-se, no caso, os pressupostos cumulativos da direcção efectiva do veículo e da sua utilização no seu próprio interesse, por parte do comitente, no caso a sociedade tomadora do seguro de responsabilidade civil automóvel, sendo esta considerada detentora do veículo para efeitos de aplicação do preceito em causa.

No mais, não obstante a escassez da factualidade provada, a circunstância de ter ficado provado que o desastre se deu quando o veículo pesado circulava numa auto-estrada e foi colidir com a barreira lateral semi-rígida situada do lado direito, atento o seu sentido de marcha, destruindo a mesma, despenhando-se de seguida sobre o leito do riacho localizado no fundo do viaduto, incendiando-se de imediato, é suficiente para considerarmos, à luz da jurisprudência que tem vindo a ser seguida nos nossos tribunais e à suficiência do nexo de causalidade exigível, que a responsabilidade pelo acidente tem como causa os riscos próprios do veículo.

Com efeito, conforme refere Antunes Varela, dentro desta fórmula legal cabem, tanto os danos provenientes dos acidentes provocados pelo veículo em circulação como os causados pelo veículo estacionado, sendo que quanto à primeira situação, tanto faz que o veículo circule em via pública ou fora de qualquer via, já que no risco compreende-se tudo quanto se relacione com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento[8].

Para além disso, dentro dos riscos próprios do veículo cabem os ligados ao condutor, na medida em que este assegura a circulação desse veículo, pelo que o perigo de síncope, de colapso cardíaco ou qualquer outra doença súbita de quem conduz faz realmente parte dos riscos próprios do veículo e, como tal, se integra no domínio da responsabilidade objectiva característica dos acidentes de viação.

Fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objectiva ficam: os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo; os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte como tais; os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido causados por qualquer coisa móvel[9].

Ora, no caso, não obstante o esforço argumentativo das Recorrentes em pretender extrair da matéria de facto uma demonstração da ausência de culpa do condutor seu familiar, malogradamente falecido, não se provou qualquer factualidade relevante para efeitos de culpa, pelo que resta imputar a responsabilidade pelo acidente com base num risco próprio do veículo, pois que o acidente ocorreu quando o veículo se encontrava em circulação e, sem motivo apurado, saiu da via de rodagem, embateu na guarda lateral e caiu de um viaduto, provocando a morte do condutor, estando, pois, no caso, e por se inserir ainda no círculo de actividade geradora do risco, preenchidos os pressupostos de aplicação previstos no art.º 503.º, n.º 1, do CC.

Por último, sendo o acidente em causa nos autos enquadrado na responsabilidade objectiva, atento o disposto no art. 504.º, n.º 1, do CC, tal aproveita ao próprio condutor do veículo interveniente no acidente.

Tal tem sido reiteradamente afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, conforme referenciado na sentença da 1.ª instância.

Pelo exposto, sendo o condutor do veículo sinistrado beneficiário para efeitos de aplicação do art. 504.º, n.º 1, do CC, encontram-se abrangidos pela responsabilidade objectiva imputada nos autos os danos sofridos pelo próprio ou daí decorrentes, em termos que melhor serão descriminados infra.

Do funcionamento do regime do seguro automóvel obrigatório.

Tendo concluído pela responsabilidade objectiva do detentor do veículo, nos termos do art. 503.º, n.º 1, do CC, resta apurar se, apesar disso, pode operar a exclusão prevista no art. 14.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21-08.

As instâncias, de forma coerente com a imputação da responsabilidade civil a que procederam nas respectivas decisões, concluíram divergentemente: no caso da sentença da 1.ª instância, entendeu-se que os danos decorrentes do acidente não se encontravam excluídos da cobertura do seguro, uma vez que não se apurou qualquer culpa efectiva ou presumida; no acórdão recorrido, a Relação aplicou a referida exclusão da cobertura do seguro por ter entendido existir responsabilidade do condutor por funcionar, no caso, a presunção de culpa a que nos vimos referindo.

Como é sabido, nos termos do art. 4.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21-08, “Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.”.

A regra é de que a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo (cfr. art. 6.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007), sendo que, no caso presente, tal dever foi cumprido pela proprietária do veículo, no caso a sociedade FF, Lda..

Com efeito, ficou provado que, à data do acidente, se encontrava transferida a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo veículo para a companhia de seguros ora ré, pelo que os danos decorrentes da respectiva circulação encontram-se, em princípio, cobertos pelo mencionado contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Estando assente que o mencionado seguro abrange o acidente ocorrido em Espanha e os danos aí ocorridos (cfr. arts. 10.º e 11.º do DL n.º 291/2007), resta decidir se se verifica a mencionada exclusão, prevista no art. 14.º do DL n.º 291/2007, sendo certo que no n.º 1 se referem os “danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles”, enquanto o n.º 2 respeita a “quaisquer danos materiais causados” ao condutor do veículo responsável pelo aci-dente e às demais pessoas aí elencadas.

A respeito da mencionada exclusão e da sua abrangência na vigência do anterior regime do contrato de seguro automóvel, no caso, sendo aplicável o art. 7.º do DL n.º 522/85, de 31-12, foi tirado o AUJ n.º 12/2014 que uniformizou jurisprudência no seguinte sentido:

“No caso de morte do condutor de veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte”.

Tal entendimento, objecto de controvérsia e de diversos votos de vencido, veio a ter consagração legal no actual regime do contrato de seguro automóvel – que é o aplicável aos autos -, com o acrescento à parte final do art. 14.º, n.º 1 do DL n.º 291/2007, da exclusão respeitante aos danos corporais da menção aos “danos daí decorrentes”, pretendendo-se abranger os denominados danos reflexos dos danos sofridos pelo condutor do veículo.

Em qualquer caso, pressuposto de aplicação dessa ex-clusão quanto aos danos corporais ou materiais, é de que o condutor seja responsável pelo acidente, sendo que, no caso presente, e pelas razões já supra referidas, não se apurando qualquer culpa, seja efectiva ou presumida, do condutor do veículo vítima do acidente, apenas resta concluir, como fez a sentença proferida pela 1.ª instância, que não se aplica qualquer exclusão.

Assentando, pois, a responsabilidade pelo acidente numa situação de aplicação da responsabilidade objectiva, ou pelo risco, nos termos do art. 503.º, n.º 1, do CC, não existem fundamentos para excluir da cobertura do contrato de seguro obrigatório os danos em causa na presente acção, não sendo, pois, caso de aplicação do art. 14.º do DL n.º 291/2007.

Acresce que, ao contrário do que se entendeu no acórdão recorrido, não devem ser excluídos desta obrigação de pagamento quaisquer dos danos peticionados, incluindo os danos morais dos familiares da vítima, com base num eventual entendimento de que tais danos sofridos pela viúva e pela filha do falecido, ainda seriam danos abrangidos pela presunção de culpa do art. 503.º, n.º 3, 1.ª parte, do CC, nas relações externas, com a consequente exclusão do seguro por haver uma culpa presumida.

É que não só tal se revelaria pouco lógico e coerente com o sistema de articulação entre o instituto da responsabilidade civil e o do seguro obrigatório – aplicando-se aos danos dos familiares da vítima, para efeitos de responsabilidade civil, uma presunção de culpa do condutor por conta de outrem que se destina a beneficiar terceiros lesados para depois os excluir da indemnização por efeito da exclusão da cobertura do seguro com o argumento de serem familiares próximos do condutor – como não encontra correspondência com o que se deve entender como danos reflexos, no caso, dos familiares da vítima falecida.

Com efeito, “a doutrina e a jurisprudência têm entendido que, em caso de morte, e segundo os n.ºs 2 a 4 do art. 496.º do CC, «a indemnização» por danos não patrimoniais deve atender ao dano da perda da vida, ao dano sofrido pela vítima antes de morrer e aos danos sofridos pelos familiares da vítima com a sua morte”.

Nesse sentido, discute a doutrina “se, ocorrida a morte da vítima, nasce, por um mesmo título de aquisição, um direito de indemnização unitário, que visa compensar quer os danos morais correspondentes à perda da vida, sofridos pela própria vítima, quer os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares designados pelos n.ºs 2 a 4 do artigo 496.º, ou se, diferentemente, ocorrida a morte da vítima, há uma pluralidade de direitos de indemnização, que não se confundem, designadamente quanto à sua natureza, modo de aquisição, titulares e regimes.”

Acompanhando a doutrina que entende que todos esses danos integram um direito unitário à indemnização decorrente da perda da vida[10], consideramos que em relação aos danos em causa nos presentes autos, e em particular quanto aos danos sofridos pelos familiares da vítima com a sua morte, não existe um grau de autonomização que justifique um tratamento equivalente aos dos terceiros lesados, antes se aproximando de danos decorrentes do próprio falecimento que, nessa medida, só com morte da vítima seu familiar, e por causa desta, se verificam e justificam atribuir uma indemnização.

Tal leva-nos a concluir por um tratamento igualitário destes danos, designadamente, para efeitos de considerar os danos sofridos pelos familiares da vítima como sujeitos aos mesmos pressupostos de responsabilidade civil e de cobertura do seguro que se aplicam aos danos sofridos directamente pela própria vítima, designadamente, o dano de perda da vida e o dano sofrido pela vítima antes de morrer.

Esta solução é a que se melhor conjuga, aliás, com a doutrina que veio a ter vencimento no AUJ n.º 12/2014, na medida em que tendo-se ai considerado que os danos dos familiares ainda se integravam no âmbito da exclusão da cobertura referente aos danos próprios sofridos pelo condutor, necessariamente se optou por uma visão, senão unitária do direito à indemnização por morte, pelo menos, por um tratamento equivalente, que é a solução que aqui se entende ser mais adequada.

Termos em que se conclui pela não exclusão dos danos em causa nos autos do âmbito de cobertura do seguro automóvel obrigatório.

Do direito à indemnização e respectivo quantum

Tendo concluído pela obrigação de indemnizar por parte da companhia de seguros aqui Ré, por efeito da responsabilidade objectiva do detentor do veículo e da não-exclusão dos danos em causa nos autos da cobertura do seguro, resta decidir do respectivo quantum indemnizatório.

A este respeito, entendeu a sentença da 1.ª instância fixar em € 50.000,00 a indemnização pela perda do direito à vida de EE, em € 15.000,00 e em € 10.000,00, as indemnizações a título de danos não patrimoniais sofridos, respectivamente, pela viúva e pela filha do falecido, e € 2.358,12 a título de danos patrimoniais a respeito da diferença referente às despesas de funeral do montante já liquidado no âmbito do processo laboral, sendo certo que nada se provou acerca de um eventual dano de presciência da morte, pelo que improcedeu este segmento indemnizatório.

Justificaram-se tais quantitativos, designadamente, na circunstância do falecido ter apenas 31 anos de idade, ser uma pessoa saudável, robusto e bem disposto, ter projectos para o futuro e uma grande alegria de viver, sendo pessoa estimada pela família, amigos e pessoas da localidade onde vivia, estando plenamente integrado na vida familiar e social.

Especificamente, quanto aos danos sofridos pelas familiares do falecido, e reconhecendo-se a dificuldade na sua fixação, ponderou-se que as Autoras constituíam, com o seu marido e pai, uma família harmoniosa, unida por fortes laços afectuosos, tendo a morte deste causado enorme dor e tristeza, alterando a sua dinâmica e projectos familiares, com consequências no bem estar psíquico das Autoras (cfr. fls. 1952 e 1953).

Tratando-se de montantes indemnizatórios fixados com base na equidade, tem entendido uniformemente a jurisprudência do STJ, que o juízo das instâncias deve ser mantido sempre que se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.

Ora, no caso presente, para além dos danos patrimoniais que foram fixados com base na diferença apurada entre as despesas de funeral efectivamente incorridas e o suportado no âmbito da responsabilidade laboral, todos os demais montantes indemnizatórios fixados na sentença a título de danos não patrimoniais foram quantificados de acordo com a equidade.

Nessa medida, e não se afastando significativamente, tanto o valor arbitrado pela perda do direito à vida como os valores arbitrados pela perda do cônjuge e do progenitor, dos valores comummente atribuídos pela jurisprudência[11], e não sendo tal matéria objecto de recurso autónomo ou subordinado por parte das aqui Recorridas, apenas resta confirmar o juízo formulado pela sentença e condenar a aqui Ré nos valores aí fixados.

3. DECISÃO.

Pelo exposto decido conceder a revista, condenando a Ré no pagamento às Autoras dos montantes indemnizatórios fixados na sentença.

Custas pela Recorrida”.


***

Esta Conferência, após a análise dos elementos constantes dos autos, mormente a fundamentação constante da decisão sumária, de um lado, e a argumentação constante do requerimento da DD - Companhia de Seguros, SA, de 16.01.2018, do outro, sufraga e faz prevalecer aquela fundamentação, não se lhe afigurando a mesma, e a decisão de que é suporte, susceptíveis de qualquer reparo negativo.

Por conseguinte, não havendo motivo para decidir de outro modo, ratifica-se a decisão sumária acabada de transcrever.

Custas pela reclamante/recorrida.

Lisboa, 28 de Março de 2019

Ilídio Sacarrão Martins (Relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Paula Sá Fernandes

______
[1]http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/6c602ed9b68379ba8025757b005c3877?OpenDocument&Highlight=0,8162%2F2008-6
[2]http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/68081d7c83a836a98025700a003c64b3?OpenDocument&Highlight=0,827%2F2005-6
[3] Joaquim de Sousa Ribeiro, “O ónus da prova da culpa na responsabilidade civil por acidente de viação”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, Tomo II, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1979, pág. 480 e ss., Maria da Graça Trigo, “Das presunções de culpa no regime de responsabilidade civil por acidentes de viação”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 32 (Out-Dez 2010), pág. 22 e ss..
[4] Joaquim de Sousa Ribeiro, ob. cit., em adenda ao estudo aí publicado e analisando criticamente o Assento n.º 1/80, sugeria: “a melhor orientação ainda será, segundo creio, a de considerar tanto a previsão do art. 506.º, n.º 1, como a do art. 508.º excluídas do âmbito do art. 503.º, n.º 3, 1.ª parte, norma que é, assim, submetida a uma interpretação fortemente restritiva. Tudo se passará, ao fim e ao cabo, como se as referências daqueles preceitos à culpa tivessem em vista apenas, a culpa efectiva, e não a culpa presumida (pág. 541).
[5] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10.ª Edição, Almedina, 2000, pág. 661.
[6] Antunes Varela, ob. cit., pág. 662.
[7] Ob. cit., pág. 536.
[8] Ob. cit., págs. 667 e 668, incluindo citação da obra de Dário Martins de Almeida.
[9] Ob. cit., pág. 669.
Tal tem sido, aliás, o entendimento seguido pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, designadamente, nos Acórdãos de 22-01-2009 (Revista n.º 3404/08,), de 14-04-2011 (Revista n.º 3075/05.2TBSTS. P1.S1, relatado por Maria dos Prazeres Beleza) e de 13-09-2016 (Revista n.º 152/13.0TBIDN.C1.S1, relatado por Fonseca Ramos).
[10] Vide Maria Gabriela Páris Fernandes, ob. cit., pág. 395, nota 12, elencando como partidários desta tese, entre outros, Pires de Lima, Antunes Varela, Capelo de Sousa, Ribeiro de Faria, Branquinho Ferreira Dias, Cura Mariano, Espinosa Gomes da Silva.
[11] Haveria, quanto muito, um afastamento para menos, conforme se pode concluir da análise comparativa feita por Maria Gabriela Páris Fernandes, ob. cit., pág. 401, remetendo para diversa jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.
[12] Da responsabilidade do relator nos termos do artº 663º nº 7 do CPC.