Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A710
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PONCE DE LEÃO
Nº do Documento: SJ200211120007106
Data do Acordão: 11/12/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 1196/01
Data: 09/27/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O Estado Português, através da Inspecção-Geral de Jogos, propôs a presente acção ordinária contra A, B, C, e D, pedindo a declaração de nulidade dos contratos de hipoteca constituídos a favor dos citados Bancos e o cancelamento das respectivas inscrições, tendo alegado, em síntese que:
- em execução dum contrato de exploração de jogos de fortuna e azar, que celebrou com a Ré A, esta adquiriu um prédio onde instalou um Casino, em Alvor, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão e reversível para o Estado quando fosse resolvido o contrato;
- o contrato foi resolvido pelo Estado que, ao pretender registar a aquisição por reversão a seu favor, foi surpreendido pelo registo de hipotecas feitas pela A a favor dos restantes RR.;
- tais hipotecas são nulas por força do disposto no artigo 715º do Código Civil, porque, se estava vedado à A alienar o prédio devido à cláusula de reversão, também não lhe era permitido onerá-lo com qualquer hipoteca.
Devidamente citados, os RR. contestaram no sentido da absolvição do pedido.
Foi proferido despacho saneador-sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo os RR. dos pedidos.
Inconformado com tal decisão o Estado Português apelou para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 27-09-2001, confirmou o decidido na 1ª instância.
Continuando inconformado, o Estado Português interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
a) No acórdão recorrido fez-se inadequada aplicação dos preceitos normativos à matéria fáctica considerada provada;
b) É incontroverso e o acórdão não o põe em causa, que, no caso de rescisão do contrato de concessão do exclusivo da exploração de jogos de fortuna ou azar na zona permanente do Algarve, a propriedade do prédio do Casino do Alvor reverte para o Estado, como na realidade se verificou;
c) O prédio do Casino do Alvor só poderia ser hipotecado pela concessionária, se o mesmo pudesse ser alienado pela mesma empresa;
d) A posição da concessionária, perante o direito de reversão de que o Estado goza, caracteriza-se tecnicamente como uma sujeição;
e) A essa sujeição corresponde, por parte do Estado, uma expectativa real de actuação automática, o que consubstancia um direito real de aquisição que recai sobre o prédio do Casino Alvor;
f) Perante esta situação, a empresa proprietária do Casino não poderia aliená-lo, face ao carácter automático da reversão e à própria natureza do direito de reversão;
g) E não podendo o concessionário alienar o prédio do Casino do Alvor não podia hipotecá-lo, em face do que dispõe o artigo 715º do Código Civil;
h) Este entendimento é sustentado pelos Professores de Direito, Marcelo Rebelo de Sousa, Diogo Freitas do Amaral e José de Oliveira Ascensão, em pareceres que se encontram juntos aos autos;
i) No acórdão recorrido fez-se uma indevida apreensão do instituto da reversão, sustentando-se, nomeadamente, que sem a constituição das hipotecas não era possível o exercício e execução do contrato de concessão; que o direito de reversão só terá a natureza de direito real se o Estado fosse anteriormente o proprietário do prédio; que a reversão é feita com ónus e encargos, conforme é regra geral; que dentro do quadro do contrato de concessão, a concessionária poderia alienar o Casino; que a tese defendida pelo Estado priva os Bancos credores hipotecários das suas garantias, com enriquecimento injusto do Estado; e que o Estado como qualquer proprietário tem de assumir o risco que deriva de adquirir um bem onerado;
j) Esses entendimentos não assentam na realidade fáctica e muito menos se conformam com as disposições legais e contratuais da concessão pelo que não poderão ser sufragados pelo Venerando Tribunal ad quem;
l) O acórdão recorrido violou o disposto no artigo 715º do Código Civil, no artigo 3º, nº 1, alíneas a) e b) do Decreto-Lei nº 49463 e no artigo 27º, nº 1, do Decreto-Lei nº 422/89.
Os autos correram os vistos legais. Cumpre decidir.
Decidindo:
Como é sabido são as conclusões das alegações do recorrente que delimitam o objecto do recurso, pelo que o Tribunal ad quem, exceptuadas as que lhe cabem ex-officio, só pode conhecer as questões contidas nessas mesmas conclusões - artigos 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil e jurisprudência corrente (por todos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.1.91, 31.1.91 e 21.10.93 in Boletins do Ministério da Justiça números 403º, páginas 192 e 382 e Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, Ano I, Tomo III, página 84, respectivamente).
Com interesse para a decisão da questão mostram-se provados os seguintes factos:
1º) Por contrato celebrado em 16 de Dezembro de 1971, publicado no Diário do Governo, III série, nº 303, de 30 desse mês e ano, que consta dos autos a fls. 8 a 10 e cujo teor aqui se dá por reproduzido, foi adjudicada à 1ª Ré A a concessão do exclusivo da exploração de jogos de fortuna ou azar na zona de jogo permanente do Algarve.
2º) Este contrato veio a ser integralmente substituído pelo que foi celebrado com a mesma sociedade em 10 de Maio de 1983, que veio a ser publicado no DR, III série, nº 173, de 28.7.83, que consta de fls. 247 a 248 dos autos.
3º) O contrato de concessão veio a ser rescindido através de Resolução do Conselho de Ministros nº 8/94, de 28.4.94, publicado no Diário da República, II série, nº 99 (suplemento), de 29.4.94.
4º) Em execução do contrato de concessão, a 1ª Ré adquiriu, e aí instalou um casino, o prédio descrito na C.R.P. de Portimão sob a ficha nº 02089/250794, da seguinte forma: "Urbano - Fontes - Sapal da Penina - r/c e 1º andar para casino, áreas cobertas - 2308 m2, descoberta - 13812 m2, norte - estrada nacional, sul e poente - estrada interna da Penina, nascente - estrada municipal para Alvor - desanexado do nº 11.421, 168, V, B-27, artº nº 1931, v. P-51.840.000$00.
5º) Tal prédio encontra-se registado a favor do Estado, sendo o facto inscrito a aquisição por reversão, pela apresentação de 25.7.94 (Ap. 24), convertida pela Ap. 93/201094.
6º) Encontram-se igualmente registadas em relação a esse imóvel as seguintes hipotecas:
- a favor do B, correspondente à cota C-1, e através da apresentação 27/121290, hipoteca destinada a garantia de empréstimo do seguinte valor: capital 300.000.000$00; juro anual de 21%, elevável em 2% em caso de mora; despesas 12.000.000$00; montante máximo 519.000.000$00.
- a favor do B, correspondente à cota C-4, e através da apresentação 08/110691, hipoteca destinada à garantia de ampliação de juros do seguinte valor: juro anual mais 3,25%; montante máximo 29.250.000$00, constituindo ampliação da inscrição C- 1.
- a favor do C, correspondente à cota C-2, e através da apresentação 28/121290, hipoteca destinada a garantia de empréstimo do seguinte valor: capital 300.000.000$00; juro anual de 21%, elevável em 2% em caso de mora; despesas 12.000.000$00; montante máximo 519.000.000$00.
- a favor do C, correspondente à cota C-3, e através da apresentação 28/121290, hipoteca destinada a garantia de empréstimo do seguinte valor: capital 256.644.000$00; juro anual de 22,75%, elevado em 4% em caso de mora; despesas 10.265.760$00; montante máximo 472.866.570$00.
- a favor do C, correspondente à cota C-5, e através da apresentação 10/110691, hipoteca destinada a garantia de ampliação de juros no seguinte valor: juro anual mais 3,25%; montante máximo 29.250.000$00, constituindo ampliação da inscrição C-2.
- a favor do D, correspondente à cota C-6, e através da apresentação 25/050893, hipoteca voluntária para garantia do pagamento de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir, provenientes de todas e quaisquer operações bancárias do seguinte valor: capital 650.000.000$00; juro anual de 22%, elevado em 2% em caso de mora; despesas 13.000.000$00; montante máximo 1. 131.000.000$00.
7º) As hipotecas inscritas a favor do B e C, foram constituídas através de escritura pública lavrada no 17º Cartório Notarial de Lisboa, em 6.6.91, de fls. 55 a 59 do livro de notas para escrituras diversas nº 144-E, a qual foi outorgada para cumprimento do contrato celebrado entre a 1ª Ré e as 2ª e 3ª Rés, por escrito particular autenticado em 5.7.90.
8º) A hipoteca inscrita a favor do D, foi constituída através de escritura pública lavrada no 7º Cartório Notarial de Lisboa, em 23.7.93, de fls. 44 a 47 do livro de notas nº 71-B, acto esse rectificado por escritura lavrada no mesmo cartório em 23.9.93, a fls. 23 v. E 24 do livro de notas nº 72-B.
Passemos ao direito aplicável.
De acordo com as alegações e respectivas conclusões, a única questão a resolver consiste em saber se são ou não nulas as hipotecas constituídas sobre o prédio do Casino do Alvor.
A recorrente entende que tal prédio só poderia ser hipotecado pela concessionária se também o pudesse alienar, faculdade essa que não se verifica em face do direito de reversão do Estado no caso de rescisão do contrato de concessão do exclusivo da exploração de jogos de fortuna ou azar na zona permanente do Algarve.
Mais entende a recorrente que ao direito de reversão corresponde uma sujeição a que corresponde, por parte do Estado, uma expectativa real de actuação automática, que se traduz num direito real de aquisição sobre o prédio onde funcionava o Casino; e, face ao carácter automático e à natureza do direito de reversão, a concessionário não poderia alienar o prédio e, consequentemente, também não o poderia hipotecar em face do disposto no artigo 715º do Código Civil, que é do seguinte teor: "Só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respectivos bens".
Antes de mais importa esclarecer que estamos perante uma questão jurídica com importantes efeitos práticos que, naturalmente, não se pode resolver objectivamente, num sentido ou noutro, com recurso a considerações destituídas duma estrita fundamentação jurídica, como sejam os benefícios que o Estado já teve com a concessão do jogo, o prejuízo que terá se ficar com os prédios desvalorizados pelas hipotecas, ou ainda o prejuízo dos Bancos por ficarem privados das garantias dos créditos concedidos.
São os riscos inerentes a qualquer negócio, por mais avultados que sejam, mas que devem ser omitidos a partir do momento em que não relevam para uma decisão judicial.
Procurar-se-á contribuir, in casu, com outros argumentos para além dos já constantes das decisões das instâncias de carácter jurídico, isto para não repetir apenas o que já está escrito - e bem - nestes mesmos autos.
É indiscutível a titularidade por parte do Estado do direito de reversão sobre o prédio em causa, direito esse de origem legal - legislação à qual mais adiante se fará referência - e também contratual (factos nºs 1 e 2, com referência aos respectivos documentos).
É igualmente pacífico que o exercício de tal direito operou automaticamente com a rescisão do contrato de concessão (facto nº 3).
O problema que colocam as conclusões d) e e) é a da natureza jurídica do direito de reversão, que a recorrente considera ser um direito real de aquisição.
A primeira dificuldade levantada por esta tese reside no facto de tal direito não ser um exclusivo da legislação sobre o jogo e da forma como tem sido encarado: trata-se dum direito que se encontra inclusivamente no Código Civil, através da cláusula de reversão em matéria de doações (artigo 960º) e convenções antenupciais (artigos 1700º e 1707º), mas sobretudo com grande aplicação prática no domínio das expropriações em geral e, em particular, da reforma agrária - o que se traduz em centenas de decisões judiciais nas várias instâncias.
Que se saiba não lhe tem sido reconhecida natureza real nem para tal se encontra fundamento. E não faz sentido que em matéria de jogo tenha natureza real mas já não a tenha noutros domínios até porque, conforme se verá já de seguida, a legislação do jogo não traz qualquer contributo nesse sentido.
A segunda dificuldade reside num princípio que, diversamente de outros, no nosso ordenamento jurídico preside aos direitos reais.
Trata-se do princípio da tipicidade ou do numerus clausus, ou seja, existe uma tipologia legal taxativa de direitos reais em conformidade com o disposto no artigo 1306º do Código Civil.
Significa isto que só por lei podem ser criados novos direitos reais, ficando os particulares impedidos de o fazer por via contratual.
Não existe, no entanto, qualquer enumeração, pelo que terá de ser através da interpretação do texto legal em causa, que o intérprete poderá, ou não, qualificar determinado direito como real, de acordo com as características essenciais que distinguem os direitos reais, como a preferência ou prevalência e a sequela.
Excluída a origem contratual, no caso vertente ficam imediatamente desconsiderados para este efeito os contratos de adjudicação da concessão do jogo, a que se referem os factos nºs 1 e 2, que, de qualquer modo, nada adiantariam conforme rapidamente se apercebe pela sua leitura.
As disposições legais que prevêem a reversão para o Estado dos edifícios onde funcionam os casinos (artigo 3º, nº 1, alíneas a) e b), do Decreto nº 49463, de 27-09-69 (1) - e não de 27-12-69 como constante e erradamente se repete nos autos - e artigos 27º, nº 1: (2) e 120, nº 2, do Decreto-Lei nº 422/89, de 02-12 (3)), após o termo da concessão, nada adiantam sobre as características desse direito.
O artigo único do Decreto nº 134/71, de 08-04, limita-se a estender a três casinos, em vez de dois, a exploração do jogo na zona permanente do Algarve.
Os referidos textos legais limitam-se a referenciar um direito de reversão sem mais nada adiantarem, sem, em suma, acrescentarem qualquer característica ou consequência da sua consagração legal que não seja o mero reconhecimento do direito, o que se traduz na ausência de qualquer dado que permita concluir pela sua natureza real ou obrigacional.
Se é assim, em face do princípio da tipicidade e da ausência na lei de quaisquer elementos que permitam reconhecer natureza real ao direito de reversão, a consequência só pode ser o não reconhecimento como um direito real de aquisição.
Nesta perspectiva ganha relevância a questão da titularidade originária, ou não, do prédio do casino por parte da concessionária.
É evidente que quando o prédio onde funciona o casino pertence ao Estado, como em regra sucederá segundo a previsão da al. a) do artº 27º do Decreto-Lei nº 422/89, está fora de questão a possibilidade de oneração por parte da concessionário do jogo, pois é indiscutível a directa aplicação da proibição (cfr. artigo 715º do Código Civil).
Diferente será a situação se o prédio pertence à própria concessionária.
É um facto já anteriormente reconhecido, porque a lei não distingue, que finda a concessão por resolução, o edifício onde funciona o casino reverte para o Estado.
Mas, por falta de qualquer limitação legal - que a legislação do jogo nunca impôs, sendo certo que o Estado, autor da legislação, a partir do momento em que não concretizou a natureza do direito de reversão, poderia impedir expressamente a oneração do prédio pela concessionária se fosse essa a sua intenção - e a menos que ao direito de reversão fosse reconhecida natureza real, vigorará a regra geral vigente para qualquer proprietário: a livre possibilidade de onerar ou alienar, sem prejuízo de reversão para o Estado do edifício em que funciona o casino no final da concessão, onerado ou não.
Assim e em consequência, entendemos que não tem razão de ser a tese da recorrente, concluindo-se que a concessionária poderia livremente hipotecar o prédio de que era proprietária até à reversão para o Estado.
Neste sentido se pronunciou já este Supremo Tribunal de Justiça em recente acórdão de 4 de Julho de 2002, concretamente no processo nº 1613/02 da 2ª secção (www.dgsi.pt), onde, confirmando-se o julgado nas instâncias, de igual modo, se decidiu que as hipotecas registadas a favor dos bancos recorridos não eram nulas.

Termos em que ACORDAM os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento à revista e, em consequência, decidem confirmar o acórdão recorrido.
Sem custas, por delas estar isenta o recorrente.
Lisboa, 12 de Novembro de 2002
Ponce de Leão
Silva Paixão
Armando Lourenço
------------------------------
(1) Releva, fundamentalmente, a alª b): "Construção na sede da zona, segundo programa estabelecido pelo Conselho de Inspecção de Jogos e pela Direcção Geral de Turismo, de um casino, luxuoso e confortável, reversível para o Estado, com todo o seu recheio, pertenças e anexos, no termo da concessão..."
(2) "Os casinos, salvo casos excepcionais, são estabelecimentos do património privado do Estado ou para ele reversíveis, por este afectados à exploração e prática dos jogos de fortuna ou de azar e actividades complementares, em regime de concessão, nas condições estabelecidas no presente diploma..."
(3)"Rescindidos os contratos, o Estado fica imediatamente investido na propriedade dos bens reversíveis e na posse dos seus bens afectos à concessão, sem direito por parte da concessionária a qualquer indemnização.".