Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
250/12.7JABRG.G1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÂO
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: ACORDÃO DA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
IMPUGNAÇÃO
DUPLA CONFORME
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
HOMICÍDIO QUALIFICADO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CÔNJUGE
INTENÇÃO DE MATAR
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
ILICITUDE
DOLO DIRECTO
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 05/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS.
Doutrina:
- Augusto Silva Dias, Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal – Crimes contra a vida e a integridade física, 16/17.
- Eduardo Correia que no seio da Comissão Revisora do Código Penal – Actas das Sessões Parte Especial, 25, 44 e ss.
- Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado (17ª edição – 2009), ao referir a fls. 913, em anotação ao artigo 400º:
- Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal (4ª edição - 2011), nota 117 ao artigo 400º, fls.1049.
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, 40, 64, 66/67, 71, 81; “Homicídios em série”, Jornadas sobre a revisão do Código Penal (1998), 135.
- Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, Parte Especial, Tomo I, 25, 26, 27, 29, 42/43; Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001), 104/111.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 671.º, N.º3, 672.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º3, 410.º, N.º 2, ALS. A) A C), 414.º, N.º2, 417.º, N.º3, 420.º, N.ºS1 E 3.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 41.º, N.ºS 1 E 2, 71.º, 131.º, 132.º, N.ºS 1 E 2, AL. B).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18.º, 24.º.
LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS (LOFTJ): - ARTIGO 33.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 14.05.2009, 27.05.2009, 03.03.2010, 25.03.2010 E DE 27.05.2010, PROFERIDOS NOS PROCESSOS N.ºS 1182/06.3PAALM.S1, 145/05, 138/02.0PASRQ.L1, 427/08.0TBSTB.E1.S1 E 11/04.7GCABT.C1.S1.
-DE 06.01.2010, PROC. N.º 238/08.2JAAVR.C1.S1-3 E DE 18.02.2009, PROC. N.º 3775/08-5.
-DE 29.09.2010 E DE 11.04.2011, PROFERIDOS NOS PROCESSOS N.ºS 343/05. 7TAVFN. P1.S3 E 3989/07.5TDLSB.L1.S1.
Sumário :
I - Constitui jurisprudência constante e uniforme do STJ (desde a entrada em vigor da Lei 58/98, de 25-08) a de que o recurso da matéria de facto, ainda que circunscrito à arguição dos vícios previstos nas als. a) a c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, tem de ser dirigido ao Tribunal da Relação e que da decisão desta instância de recurso, quanto a tal vertente, não é admissível recurso para o STJ. É que o conhecimento daqueles vícios, constituindo actividade de sindicação da matéria de facto, excede os poderes de cognição do STJ, enquanto tribunal de revista, ao qual apenas compete, salvo caso expressamente previsto na lei, conhecer da matéria de direito – art. 33.º, da LOFTJ. O STJ, todavia, não está impedido de conhecer aqueles vícios, por sua iniciativa própria, nos circunscritos casos em que a sua ocorrência torne impossível a decisão da causa, assim evitando uma decisão de direito alicerçada em matéria de facto manifestamente insuficiente, visivelmente contraditória ou viciada por erro notório de apreciação.

II - O n.º 3 do art. 400.º do CPP, na versão introduzida pela Lei 48/07, de 29-08, veio submeter a impugnação de todas as decisões civis proferidas em processo penal ao regime previsto na lei adjectiva civil, no sentido de que às decisões (finais) relativas à indemnização civil proferidas em processo penal é integralmente aplicável o regime dos recursos estabelecido no CPC, designadamente o disposto nos arts. 671.º, n.º 3, e 672.º, do CPC.

III - No caso vertente optou-se pela qualificação do homicídio, sob a justificação de que não só se verifica uma situação integrante de um dos exemplos-padrão, concretamente a prevista na al. b) do n.º 2 do art. 132.º, mas também ocorre quadro circunstancial de onde resulta que o arguido agiu com a intenção conscientemente formada e directa de tirar a vida à sua companheira, o que fez munido de uma faca, com a qual desferiu oito golpes no corpo daquela, sendo três no pescoço, quatro no tórax e uma no membro superior direito, circunstâncias estas que, por si só, bastam para a acrescida censurabilidade e, de algum modo, perversidade.

IV - O indício do exemplo-padrão concretamente ocorrente, relação conjugal informal, revelador de especial censurabilidade, aliado à incomum insistência na execução do acto delituoso, o que mostra uma acrescida vontade de matar, impõe a conclusão de que a qualificação do crime é inquestionável.

V - O facto típico perpetrado pelo arguido destaca-se de entre os crimes mais graves de qualquer ordenamento jurídico-penal civilizado, gravidade que aqui atinge a sua amplitude máxima atenta a qualificação do crime. O grau de ilicitude do facto é, por isso, muito elevado. O arguido agiu com dolo directo e intenso. O seu grau de culpa, dentro de urna culpa já acentuada, situa-se em patamar muito alto.

VI - Relativamente às necessidades de prevenção geral, elas são por demais evidentes em comunidade em que o homicídio de mulheres por parte dos maridos e companheiros atinge cifras alarmantes. O desprezo revelado pela vida das vítimas não pode deixar de ser frontal e rigorosamente censurado. No plano da prevenção especial avulta a personalidade do arguido, caracterizada pelo seu temperamento violento, reflectido na forma impetuosa e intensamente violenta como se comportou.

VII - A esta luz, tento em atenção todas as circunstâncias ocorrentes, há que concluir que a pena de 21 anos de prisão fixada pelas instâncias se situa dentro das submolduras referidas, não merecendo, por isso, qualquer reparo.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

No âmbito do processo comum n.º 250/12.7JABGR, do Tribunal Judicial da comarca de Braga, AA, com os sinais dos autos, foi condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal, na pena de 21 anos de prisão. Na procedência de pedido de indemnização civil deduzido por BB contra o arguido foi este condenado a pagar a quantia de € 155.000,00, acrescida de juros à taxa legal desde a notificação até efectivo pagamento.

Na sequência de recurso interposto pelo arguido para o Tribunal da Relação de Guimarães foi aquela decisão confirmada.

O arguido interpõe agora recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

É do seguinte teor o segmento conclusivo da respectiva motivação[1]:


1ª. O acórdão de que se recorre viola, em nosso modesto entendimento, o disposto do art. 410, n° 2 al) a e c) do Código de Processo Penal, pecando desde logo, por uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou erro notório na apreciação da prova.

2º Com os elementos de que disponha não podia o Tribunal considerar que "No dia 10 de Maio de 2012, cerca das 20 horas e 56 minutos, no interior da residência da CC, onde também se encontrava o filho de ambos, por suspeitar que aquela se relacionaria com outro indivíduo na sequência de um telefonema então recebido, encetou uma discussão com ela, tendo-lhe retirado e cortado em pedaços o cartão SIM do telemóvel".

3ª Nada nos autos, indica essa factualidade e o Arguido/Recorrente apresenta uma versão totalmente diferente, corroborada pelo facto de por sua iniciativa o Arguido/Recorrente se ter em Janeiro de 2012 separado da CC.

4ª E por nesse dia ter já a mala feita para sair novamente de casa, facto corroborado pela testemunha de Acusação DD, que posteriormente, quando foi limpar a casa viu uma mala com roupas e objectos de higiene pessoal do Arguido/Recorrente.

5ª Nenhuma das amigas da CC que foram testemunhas nos presentes autos referiu saber ou ter conhecimento de qualquer outro relacionamento mantido pela CC que não com o Arguido/Recorrente.

6ª Por força do Principio do ln Dúbio Pro Reu deveria ter dada como provada a versão do Arguido, ou seja que o mesmo pretendia sair de casa e separar-se novamente da CC e esta numa tentativa de evitar que ele sai-se novamente de casa ameaçou que o iria impedir de ver o filho de ambos, tendo acto contínuo cortado com uma tesoura o seu cartão SIM, o que despoletou a reacção do arguido/Recorrente.

7ª No facto provado nº 11 o Tribunal não podia considerar facto provado que foi a CC que ordenou ao Arguido que saísse da sua habitação, desde logo porque não está de acordo com as declarações do Arguido/Recorrente, declarações essas como já se disse corroboradas pela existência da mala com pertences seus.

8ª E porque tal não resulta de qualquer prova produzida e carreada para os autos que a CC tivesse em algum momento ordenado a saída do Arguido/Recorrente de casa.

9ª O Tribunal também não poderia considerar provado que " No dia 7 de Maio de 2012, no início da Tarde, o arguido dirigiu-se à escola Básica e Secundária de …, onde a CC se encontrava a trabalhar, e, após terem discutido no interior do veículo do arguido estacionado no exterior do recinto da escola, este puxou-lhe pelos cabelos quando ela se afastava em direcção à escola. "

10ª Desde logo porque existe prova documental que contraria tal afirmação, nomeadamente quanto à hora e data da alegada ocorrência, visto existirem registos de que o Arguido/Recorrente se encontrava a trabalhar.

11ª Para além de que, não se entende que o Tribunal dê como provado que tais factos tenham ocorrido ao inicio da tarde, quando a única testemunha que assistiu à alegada agressão, EE, fixa o tempo de tal ocorrência entre as 16H15 -16H30M, por ser nesse horário que ocorre o intervalo de 30 minutos, após o qual dá o toque de entrada para as aulas.

12ª Acresce que, o Arguido/Recorrente não podia estar em dois locais, Terras … e F…, à mesma hora.

13ª Ainda que se desse como provado que o Arguido/Recorrente nessa data se tivesse deslocado à escola onde a CC leccionava nunca se poderia dar como provado a alegada agressão.

14ª A única testemunha que supostamente assistiu aos factos acaba por afirmar que o Arguido/Recorrentes e a CC estavam a discutir e a mesma se afastou sem terminar a conversa, querendo o Arguido/Recorrente terminar a mesma, o que depreendeu pela sua atitude de insistir em continuar a conversa.

15ª Pelo que, sempre se terá que equacionar e admitir que a intenção do Arguido/Recorrente seria não a de agredir deliberadamente a CC, mas sim chama-la para terminarem a conversa que estavam a ter.

16ª Pelo que deverão estes factos ser dados como não provados.

17ª Não se concorda que o Tribunal tenha dado como não provado que ". O arguido nunca foi agressivo com a CC. ", na verdade, não resulta que o Arguido tenha sido agressivo com a CC, quer fisica, quer psicologicamente.

18ª Isto porque, os e-mails e mensagens trocados entre o Arguido/Recorrente e a CC versam única e exclusivamente sobre a partilha do dinheiro do casal, situação que ocorre na maioria dos divórcios/separações.

19ª Com excepção do episódio da suposta agressão, sendo que não se concebe que o Arguido/Recorrente tenha agredido a CC, nada mais é produzido em sede de Audiência de Discussão e Julgamento que justifique que tal ponto tenha sido dado como não provado.

20ª Nem se concebe como é desconsiderado por completo o testemunho do ex-senhorio, Sr. FF, pessoa que viveu durante pelo menos 2 (dois) anos como vizinho do 1º andar do Arguido/Recorrente e da CC.

21ª Sendo certo que, salvo todo o respeito por opinião contrária, não é necessário frequentar a casa de um casal para se saber se os mesmos discutem, tal ouve-se!

22ª O mesmo sucedendo com a testemunha GG, vizinho do 2º andar, na mesma casa, não podem estes depoimentos serem menos valiosos e valoradas do que os das testemunhas da Acusação.

23.a O Tribunal deveria ter dado como factos provados que "Durante a discussão ocorrida no dia 10 de Maio de 2012, a CC afirmou que se iria mudar com o BB para longe e que ele nunca mais iria ver o filho, o que fez o arguido temer perder o filho por a CC ter familiares em França" e, ainda que "Por este motivo o arguido praticou os factos descritos na factualidade provada".

24ª Ficou demonstrado que o que levou o Arguido/Recorrente a perder a cabeça e praticar os factos de que foi acusado foi o facto de a CC ter ameaçado ir para longe com o filho de ambos e com isso impedi-lo de contactar com o mesmo para reforçar a ameaça cortou o seu cartão SIM.

25ª- Acresce a tudo isto que nenhuma das amigas da CC que foram testemunhas nos presentes autos referiu saber ou ter tido conhecimento de qualquer outro relacionamento mantido pela CC que não com o Arguido/Recorrente.

26ª Perante a possibilidade de perder o contacto com o seu filho, o Arguido/Recorrente perdeu a cabeça, como o mesmo assume e se penitencia.

27ª Por força do princípio ln Dúbio Pro Reu a versão dos factos apresentada pelo Arguido/Recorrente deverá ser dada como provada.

28ª Também não se aceita que o Tribunal tenha considerado não Provado que "Os factos praticados pelo Arguido foram-no em segundos. "

29ª Outra conclusão não se poderá chegar de que os golpes proferidos pelo Arguido/Recorrente na CC foram-no em segundos.

30ª Nada nos autos contraria tal facto, nem mesmo os relatórios periciais e/ou os depoimentos das testemunhas, nem mesmo as regras de experiência.

31ª Não pode o Tribunal fundamentar tal decisão no facto de dar como provado que a CC não morreu de imediato, são actos e factos completamente diferentes que não podem ser confundidos.

32ª Diz-nos, também, as regras de experiência que o normal é tal ter sido em acto contínuo e momentâneo.

33ª Pelo que, deverão os supra mencionados factos serem dados como provados.

34ª      Parece-nos claro que existe insuficiência da matéria de facto para justificar e suportar a decisão que foi proferida, violando desta forma a aI. c) do nº 2 do art. 410º do C.P.P.

35ª Foi o arguido/Recorrente condenado pela prática de um crime de Homicídio Qualificado p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nº 2, al b) do Código Penal.

36ª Parece-nos que não andou bem o tribunal a quo quando condenou o Arguido/Recorrente pela prática de um crime de homicídio qualificado, antes deveria ter condenado pela prática de um homicídio simples p. e p. pelo artº 131º do C.P.

37ª. Para que opere a qualificação do crime de homicídio é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no nº1 do artº 132º do Código Penal, ou seja, que a morte seja produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, sendo indicadores dessa especial censurabilidade ou perversidade as alíneas do nº 2 do mencionado artigo 132º do Código Penal.

38ª No caso em apreço o tribunal a quo integra a conduta do Arguido/Recorrente na al. b) do nº 2 do art. 132º do Código Penal.

39ª Não basta, para a qualificação de homicídio qualificado o mero preenchimento de uma das alíneas do nº 2 do artº 132º do Código Penal, é necessário e exigido, sempre, que se verifique uma especial censurabilidade ou perversidade do Arguido.

40ª Para justificar essa especial censurabilidade ou perversidade o tribunal a quo elencou uma serie de factos, que no entender do Tribunal demonstram a especial censurabilidade ou perversidade.

41ª Ora o Arguido/Recorrente não concorda com a conclusão do Tribunal.

42ª Tratou-se de um acto instantâneo, não premeditado.

43ª Embora os factos praticados tenham sido contra a pessoa com quem mantinha uma relação de 4 anos, tal facto por si só não pode ser qualificador, sob o risco de todos os crimes ocorridos entre cônjuges teriam que ser qualificados, pois o normal é os mesmos ocorrerem dentro das habitações.

44ª Quanto às alíneas e) e f) também as mesmas não poderão revelar para a qualificação como especial censurabilidade ou perversidade pois as mesmas não revelam especial censurabilidade ou perversidade demonstrado antes os cenários característicos de um crime cometido com um objecto contundente, bem como, a reacção normal de qualquer pessoa que é atacada, correndo-se o risco de ter que qualificar todos os homicídios que ocorressem através de objectos contundentes, bem como, qualificar todos os homicídios onde se demonstre que a vítima se tentou proteger.

45ª Relativamente à alínea g), também não poderá a mesma revelar para a qualificação do crime pois é perfeitamente normal que num crime de homicídio que decorreu da utilização de uma faca que exista sangue em abundância, para além de que, o facto de o Arguido ter limpo o apartamento e a si, só demonstra que pelo menos se preocupou com o filho menor, no sentido de este não se aperceber do sucedido.

46ª Relativamente à alínea h) o arguido não prestou assistência à vítima, porque, segundo o mesmo, esta morreu logo após os golpes por si infligidos, pelo menos foi essa a sua convicção.

47ª O crime foi cometido em segundos e num acesso de fúria, sem qualquer premeditação.

48ª Constitui hoje em dia aquisição pacífica na doutrina e na Jurisprudência a afirmação de que as diversas situações elencadas Nº 2 do art. 132º do Código Penal não são de preenchimento automático.

49ª É, assim, certo que a existência de alguma das circunstâncias referidas no nº 2 do art. 132º do Código Penal não conduz necessariamente à especial censurabilidade ou perversidade da cláusula geral do nº 1 do mesmo artigo, como é também incontestável que outras circunstâncias não catalogadas podem conduzir a tal censurabilidade ou perversidade, o que, porém, não significa que as circunstâncias não previstas possam ser descobertas discricionariamente pelo julgador.

50ª O Arguido/Recorrente não praticou o crime de homicídio com especial censurabilidade ou perversidade, pelo que, nunca poderá o Arguido/Recorrente ser condenado por um crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art. 131º e 132º do Código Penal, mas sim pelo crime de Homicídio Simples p. e p pelo art. 131.° do Código Penal.

51ª Ainda que se venha a entender que o Arguido/Recorrente deve ser condenado pelo cometimento de um crime de Homicídio Qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º do Código Penal e não por um crime de Homicídio Simples, p. e p. pelo art. 131.° do Código Penal, sempre se terá que ter em consideração que o Arguido/Recorrente não tem antecedentes criminais.

52ª Nunca foi uma pessoa agressiva e muito menos que se previa que uma situação deste género fosse acontecer.

53ª O seu comportamento, depois do sucedido, tem sido correcto e pacífico, demonstrando assim O Arguido/Recorrente AA, ser uma pessoa educada, bem comportada, adversa à violação da ordem jurídica.

54ª Os actos que foram praticados e dados aqui como provados, só demonstram que a atitude do arguido foi momentânea, foi uma reacção ao facto de este ver a hipótese de ficar sem o filho, se tomar cada vez mais numa certeza.

55ª Sopesadas as sobreditas circunstâncias atenuantes julga-se adequado proceder à aplicação de pena menos gravosa que uma medida privativa de liberdade por 21 (vinte e um anos) anos.

56ª Pelo que errou o tribunal a quo.

57ª Errou, por um lado, quanto à determinação da medida da pena, pois fixou um quantum que é manifestamente elevado para um indivíduo nas concretas condições do arguido, e por outro, se afigura desajustado das necessidades de prevenção geral e especial.

58ª A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos, entendida como tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal, e a reintegração social do agente (artigo 40.°, nº1, do Código Penal).

59ª Feita a opção pelo tipo de pena, em concreto, para cada género de crime, o critério legal que servirá de guia da medida da pena é o do artigo 71.°, nºs 1 e 2, do Código Penal, onde se explicita que a medida da pena se determina em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.

60ª, O Arguido/Recorrente sempre se mostrou disponível para colaborar com a investigação, confessou o crime e não tem antecedentes criminais.

61ª Pelo que ao arguido-deverá ser aplicada uma pena bastante inferior à aplicada em 1ª instância .

62ª Para justificar a aplicação da pena de prisão de prisão de 21 (vinte e um anos) o tribunal considerou factos, que o Arguido/Recorrente não pode aceitar, nomeadamente que o Arguido discutiu com a vítima e cortou o cartão SIM desta em pedaços.

63ª Tal não foi isto que aconteceu na noite em que a CC faleceu.

64ª Não pode o tribunal considerar tal facto como provado e justificar a pena aplicado com base no mesmo pois a acontecer tal viola o tribunal o Principio ln Dúbio Pró Réu, uma vez que o Arguido apresenta uma versão dos factos totalmente diferente.

65ª Considerou o Tribunal que os factos foram praticados com dolo directo, que constitui o grau mais alto de culpa, a verdade é que os mesmos foram praticados em segundos sem qualquer tipo de premeditação.

66ª Não pode o Tribunal considerar que a ilicitude é elevadíssima pelo facto de ter ocorrido em casa da vítima, uma vez que também era a casa do Arguido/Recorrente.

67ª Também no que ao horário diz respeito não se tratava de "noite", o momento da ocorrência dos factos situa-se a seguir à hora do jantar, pelo que tal também não é demonstrativo da elevada ilicitude dos factos praticados pelo Arguido/Recorrente.

68ª O filho embora também estivesse na casa, não assistiu e não se apercebeu do ocorrido.

69ªA arma utilizada no crime foi de ocasião, uma vez que estavam a discutir na cozinha e o Arguido/Recorrente pegou numa faca que lá se encontrava.

70ª O abundante sangramento também não é demonstrativo de um elevado grau de ilicitude porque o mesmo é condizente com o tipo de arma e ferimentos infligidos.

71ª O facto de a vitima ter 35 anos e deixar um filho com menos de dois anos que tinha afeição e carinho pela mãe. 

72ª Não se refuta sequer a consequência da perda de vida, nem se poderia, o Arguido/Recorrente merece ser castigado.

73ª Mas não podemos esquecer que o filho, também o é do Arguido/Recorrente," sendo a pena aplicada ao mesmo mais gravosa e longa, fará com que o seu filho fique privado mais tempo do contacto com o mesmo.

74ª Se o Arguido/Recorrente com os actos que praticou privou o menor do afecto e carinho da mãe, actores importantes para o são desenvolvimento físico e psíquico do menor, não é menos verdade que ao manter o pai do menor preso por 21 (vinte e um anos) o tribunal privará o menor da presença e do carinho do pai.

75ª Acresce que, o Arguido/Recorrente sempre demonstrou grande afecto, carinho e preocupação pelo seu filho.

76ªFacto é que após o sucedido, tudo fez para que o menor não se apercebe-se do ocorrido, chegando mesmo a levar o mesmo ao infantário, afastando-o do local do crime.

77ª O facto de a vítima não ter tido morte imediata, ter-se defendido e ter caminhado sobre o próprio sangue, também não pode ser valorado para a aplicação da medida da pena, uma vez que face à arma utilizada no crime, diz-nos as regras de experiencia, que as vitimas muito raramente têm morte imediata.

78ª Relativamente ao facto de se ter defendido tal é perfeitamente normal e recorrente da própria natureza humana, o que justifica que tenha caminhado sobre o próprio sangue.

79ª O Arguido confessou integralmente os factos por si praticados e mostrou um arrependimento sincero, não pode o tribunal considerar que a confissão não foi integral e sem reservas só porque o Arguido/Recorrente não confirma na íntegra o vertido na Acusação.

80ª Quanto ao arrependimento sempre mostrou o mesmo um arrependimento sincero e nada nos autos demonstra o contrário.

81ª Relativamente ao facto de o Arguido não ter prestado assistência á vitima e ter permanecido no local do crime por mais de 24h, o Arguido/Recorrente só não prestou assistência à CC pois foi sua convicção que a mesma havia falecido de imediato.

82ª A sua preocupação a seguir foi para com o bem estar do filhos de ambos, tudo fazendo para que o mesmo não se apercebe-se do sucedido.

83ª Face ao exposto e nos termos do artigo 71.°, nºs 1 e 2, do Código Penal deveria ter sido aplicada ao Arguido/Recorrente uma pena bastante inferior àquela que lhe foi efectivamente aplicada pelo Tribunal.

84ª Foi o Arguido/Recorrente, ainda condenado a pagar ao demandante a quantia de € 155.000,00 (cento e cinquenta e cinco mil euros), acrescida de juros desde a citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.

85ª Ora se bem que é verdade que não há preço que pague a vida humana, face à factualidade e circunstancialismos que medeiam os factos em apreço nos presentes autos entende o Arguido/Recorrente que o valor fixado é muito elevado, devendo ser fixado valor inferior.

Na contra-motivação o Ministério Público pugna pela rejeição do recurso sob o entendimento de que é manifestamente improcedente.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:


I Como decorre das respectivas conclusões, são duas as questões submetidas a reexame:

- Insuficiência para a decisão da matéria de facto ou erro na apreciação da prova (conclusões 1-34);

- Qualificação do homicídio (conclusões 35-50);

- Medida da pena (conclusões 51-83);

- Indemnização civil (conclusões 84-85).

II Respondeu o Ministério Público (1144-1146) defendendo a rejeição do recurso, face à sua manifesta improcedência.

III

1. Ao STJ, enquanto tribunal de revista, não compete o reexame de matéria de facto.

 Na verdade, e sem necessidade de particulares considerações, é pacífico (actualmente sem controvérsia), que as questões relativas à matéria de facto mostram-se definitivamente resolvidas pela Relação, escapando, pois, aos poderes de cognição do STJ.

 E assim, neste segmento, deve o recurso ser rejeitado.

2. Cremos não merecer qualquer reserva a qualificação do homicídio - alínea b), n.º 2, do artigo 132.º do Código Penal -, pelos fundamentos constantes do acórdão (1061-1065).

 Como refere o Professor Figueiredo Dias[2] não é o “maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado. Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada”.

 Nesta ordem, como tem vindo a ser entendido pela jurisprudência do STJ (por todos Acórdãos de 06-01-2010, proc. n.º 238/08.2JAAVR.C1.S1-3 e de 18-02-2009, proc. n.º 3775/08-5), o tipo de culpa agravado, tanto pode resultar «de um maior desvalor da acção, como de uma motivação especialmente reprovável»[3].

 «A densificação dos conceitos de especial censurabilidade ou perversidade obtém-se através de circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e que são descritas como exemplo-padrão; a ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime, assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos»[4].

 Ora, foi precisamente este o entendimento acolhido pela 1.ª instância, sufragado pelo acórdão recorrido.

 No caso, o acrescido desvalor da atitude é bem retratado na matéria de facto provada, não se mostrando provado qualquer estado compreensível de emoção.

 Sublinhe-se, igualmente, que nem sequer resulta demonstrada qualquer atitude anterior (ou concomitante) por banda da vítima significativa de qualquer desrespeito pelos deveres conjugais (para além da suspeita de que aquela se relacionaria com outro indivíduo na sequência de um telefonema então recebido…).

 Pelo contrário, resulta provado que o arguido, durante o seu casamento anterior, teve desentendimentos com a então sua mulher, assumindo comportamentos que repetiu com a actual companheira (vejam-se os n.º s 38 e 8 da matéria de facto provada), numa revelação de não aceitação do termo das relações.

 Acresce que a agressão letal decorreu poucos dias depois da vítima permitir que o arguido voltasse a residir com a mesma, e na sequência de uma discussão gerada pela referida suspeita e da ordem para sair de casa.

 Não é compreensível nem aceitável pelo homem normalmente sensível e fiel ao direito que meras e inconsistentes suspeitas sobre o relacionamento da companheira, que acabara por readmiti-lo na vida conjugal, com um terceiro, provoque uma alteração do estado emocional, com relevo na diminuição da culpa.

 Pelo contrário, a violenta reacção letal contra a sua companheira, com manifesto desprezo pela pessoa com quem viveu em união de facto durante cerca de 4 anos e de quem tinha um filho, confere-lhe a carga de especial censurabilidade prevista no artigo 132.º do Código Penal.

3. Falecendo a pretensão de desqualificação, cremos, igualmente, que a pena fixada para o homicídio não é merecedora de censura, sendo adequada à culpa do arguido, acatando os critérios que a devem determinar.

 Sendo certo que o dolo é o normal dos crimes de homicídio, o número de facadas e sua localização revelam uma intensidade acrescida no propósito de tirar a vida à vítima.

 A confissão foi parcial, e não foi apurada «a existência de arrependimento sincero…»

 As exigências de prevenção geral são particularmente elevadas face ao número crescente de violência conjugal em que as mulheres são maioritariamente (na quase totalidade) vítimas.

IV Quanto à condenação no pedido de indemnização civil, não representando o Ministério Público qualquer das partes, carece de legitimidade para a correspondente pronúncia.

V Em suma, e face ao exposto, entendemos que o recurso não merece provimento nas duas questões colocadas a reexame, devendo ser rejeitado no que respeita ao pretendido reexame da matéria de facto .

O recorrente não respondeu.

No exame preliminar deixou-se consignado que o recurso deve ser parcialmente rejeitado, decisão que por razões de economia e de celeridade processual se relegou para julgamento em conferência.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


*


Delimitando o objecto do recurso verificamos serem quatro as questões nele suscitadas:

a) Arguição dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova, visando-se o reexame da matéria de facto, com alteração de alguns dos factos considerados provados e não provados;

b) Requalificação jurídica dos factos;

c) Medida da pena;

d) Modificação do quantum indemnizatório fixado pelas instâncias no âmbito do pedido de indemnização civil deduzido. 


*


Rejeição Parcial do Recurso

Como se deixou consignado no exame preliminar o recurso deve ser parcialmente rejeitado. Como questão prévia que é há que dela conhecer desde já.

O artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estabelece que o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência, se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do artigo 414º, n.º 2, ou o recorrente não apresente, complete ou esclareça as conclusões formuladas e esse vício afectar a totalidade do recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 417º.

Por sua vez, o n.º 2 do artigo 414º preceitua que o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível, quando for interposto fora de tempo, quando o recorrente não tiver as condições necessárias para recorrer ou quando faltar a motivação.

Em caso de rejeição do recurso, o acórdão limita-se a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos processuais e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão – artigo 420º, n.º 3.

Constitui jurisprudência constante e uniforme deste Supremo Tribunal (desde a entrada em vigor da Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto) a de que o recurso da matéria de facto, ainda que circunscrito à arguição dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 410º, tem de ser dirigido ao Tribunal da Relação e que da decisão desta instância de recurso, quanto a tal vertente, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça[5]. É que o conhecimento daqueles vícios, constituindo actividade de sindicação da matéria de facto, excede os poderes de cognição do Supremo Tribunal, enquanto tribunal de revista, ao qual apenas compete, salvo caso expressamente previsto na lei, conhecer da matéria de direito – artigo 33º, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais[6]. O Supremo Tribunal de Justiça, todavia, não está impedido de conhecer aqueles vícios, por sua iniciativa própria, nos circunscritos casos em que a sua ocorrência torne impossível a decisão da causa, assim evitando uma decisão de direito alicerçada em matéria de facto manifestamente insuficiente, visivelmente contraditória ou viciada por erro notório de apreciação.

Nesta conformidade, por irrecorribilidade da decisão impugnada no segmento em que vêm arguidos os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova e se visa o reexame da matéria de facto, há que rejeitar nesta parte o recurso interposto pelo arguido AA, deixando-se consignado, no entanto, que o acórdão recorrido, como é patente, não enferma de qualquer um dos arguidos vícios.


*


O legislador penal em 2007 entendeu alterar o regime recursório em matéria de decisões proferidas sobre o pedido de indemnização civil, pondo em causa o princípio da adesão consagrado no artigo 71º, do Código de Processo Penal, e estabelecendo posição contrária à assumida por este Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão n.º 1/02, publicado no DR I-A, de 02.05.21, que fixou jurisprudência no sentido de que: «No regime do Código de Processo Penal vigente – n.º 2 do artigo 400º, na versão da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto – não cabe recurso ordinário da decisão final do Tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente decisão penal».

Com efeito, de acordo com o n.º 3 do artigo 400º, dispositivo introduzido pela Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto: «Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil».

Com esta alteração o legislador subtraiu ao regime de recursos da lei adjectiva penal as decisões relativas à indemnização civil, submetendo-as integralmente ao regime da lei adjectiva civil, o que fez, conforme afirmação consignada na motivação da proposta de lei n.º 109/X, a bem da “igualdade” entre todos os recorrentes em matéria civil, dentro e fora do processo penal.

À alteração introduzida subjaz, pois, o propósito de colocar em pé de igualdade todos aqueles que pretendam impugnar decisão civil proferida, dentro ou fora do processo penal, ou seja, quer a respectiva causa ou pleito se desenvolva em processo penal ou em processo civil.

Daqui resulta, necessariamente, que o n.º 3 do artigo 400º veio submeter a impugnação de todas as decisões civis proferidas em processo penal ao regime previsto na lei adjectiva civil, no sentido de que às decisões (finais) relativas à indemnização civil proferidas em processo penal é integralmente aplicável o regime dos recursos estabelecido no Código de Processo Civil. É este o único entendimento possível face à ratio do preceito em causa[7].

De acordo com o n.º 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil (n.º 3 do artigo 721º do Código pré-vigente):

«Não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte»[8].

No caso vertente verificamos que o acórdão recorrido confirmou a decisão proferida sobre o pedido civil em 1ª instância, sem voto de vencido.

Por outro lado, não se verifica qualquer das situações de excepção previstas no artigo 672º, do Código de Processo Civil (artigo 721º-A, do Código pré-vigente).

Assim sendo, certo é não ser admissível o recurso interposto pelo arguido e demandado AA na parte em que impugna a vertente civil do acórdão recorrido[9].


*


Passando ao conhecimento da parte não rejeitada do recurso importa ter presente a decisão proferida sobre a matéria de facto.

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

«1. O arguido AA e CC viveram conjuntamente e em economia comum, como se marido e mulher fossem, durante cerca de 4 anos, tendo de tal relacionamento nascido em 29 de Junho de 2010 o seu filho BB.

2. No dia 13 de Janeiro de 2012, o arguido AA e a CC separaram-se por iniciativa do arguido que, nesse dia, tinha enviado uma mensagem a dizer que a amava.

 3. Na sequência da separação a CC, que lecionava a disciplina de geografia na Escola Básica e Secundária de …, esteve sem trabalhar desde 16 de Janeiro de 2012 e durante duas semanas por se encontrar física e psicologicamente debilitada.

4. A CC esteve a viver com o filho em casa da ama em período não apurado da segunda quinzena de Janeiro de 2012.

5. Entre a segunda quinzena de Janeiro e 27 de Março de 2012, o arguido, contra a vontade da CC, manteve o menor na sua companhia durante alguns dias, após o que o entregou à mãe.

6. No dia 06 de Fevereiro de 2012, com base nas declarações do arguido, o Ministério Público em representação do menor BB, propôs acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais contra AA e CC por pretender, além do mais, que o menor fosse provisoriamente confiado à guarda e cuidados do pai.

7. Não obstante a separação, o arguido AA e CC sempre mantiveram contacto um com o outro.

8. Entre finais de Janeiro e inícios de Maio de 2012, o arguido ameaçou a CC que lhe tirava o filho e que se matava se ela não o aceitasse de volta.

9. Durante tal período, o arguido tentou aproximar-se da CC que, inicialmente incomodada com o seu comportamento, apresentou queixa contra ele mas depois acabou por dela desistir, tendo, em inícios do mês de Maio de 2012, permitido que o arguido voltasse a residir consigo, pernoitando na sua residência sita na Rua …, em …, nesta cidade e comarca de Braga.

 10. No dia 10 de Maio de 2012, cerca das 20 horas e 56 minutos, no interior da residência da CC, onde também se encontrava o filho de ambos, por suspeitar que aquela se relacionaria com outro indivíduo na sequência de um telefonema então recebido, encetou uma discussão com ela, tendo-lhe retirado e cortado em pedaços o cartão SIM do telemóvel.

11. Seguidamente, porque a CC lhe tivesse ordenado que saísse da sua habitação, o arguido dirigiu-se à cozinha onde se muniu de uma faca de cozinha com 19 centímetros de comprimento e 9 centímetros de lâmina, com a qual desferiu oito golpes no corpo daquela, sendo três no pescoço, quatro no tórax e um no membro superior direito.

12. Como consequência direta e necessária, a CC ficou com lesões nos Hábitos externo e interno, situadas na cabeça, no pescoço, no tórax, no abdómen, no membro superior direito e no membro inferior esquerdo.

13. Das lesões verificadas a nível do hábito externo, 8 correspondem a soluções de continuidade produzidas por arma branca, 5 das quais apresentavam trajeto em profundidade, três no pescoço e duas no tórax

14. Estas lesões, nomeadamente as lesões traumáticas cervicais (laceração da artéria carótida direita e da traqueia), as lesões traumáticas torácicas (laceração do ventrículo direito, com consequente tamponamento cardíaco) e as lesões traumáticas abdominais (laceração da artéria aorta abdominal), melhor descritas no relatório de autópsia - que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais -, e que foram provocadas pelos golpes com a lâmina da faca desferidos pelo arguido, foram causa direta e necessária da morte de CC, ocorrida a 10 de Maio de 2012.

15. Entre o momento em que lhe foi infringido o primeiro golpe e o seu decesso, a CC caminhou sobre o próprio sangue.

16. No dia 11 de Maio, cerca das 7 horas e 45 minutos, o arguido deixou o filho no infantário …, em Real, tendo regressado a casa da CC onde permaneceu até às 12h.

17. Entre as 12h e as 15h deslocou-se a local não apurado, no veículo da CC, após o que regressou a casa desta onde permaneceu até comparecer a autoridade policial, alertada por colegas da CC

18. Para se introduzir no apartamento a autoridade policial teve de arrombar a porta de entrada e, no interior dele, a porta de acesso ao quarto.

19. O arguido encontrava-se deitado no interior da banheira existente na casa de banho adstrita ao quarto e, quando a autoridade policial entrou no interior do quarto, após ter sido interpelado, levantou-se e vestiu-se.

20. No dia 11 de Maio de 2012, cerca das 23 horas, em cima da mesa-de-cabeceira do quarto da residência da falecida CC, em frente à porta de entrada, encontrava-se um telemóvel da marca Samsung, de cor preta, táctil, sem qualquer cartão SIM, tendo a tampa deslocada e a bateria parcialmente retirada.

21. Em cima do balcão da cozinha estava um cartão SIM da operadora TMN, cortado em vários pedaços, junto a uma tesoura; um croissant com um granulado azul que aparentava tratar-se de veneno para ratos e uma frigideira com uma papa também com tal granulado azul.

22. Dentro da máquina de lavar roupa estavam:

1. um isqueiro de cor vermelha;

2. uma t-shirt azul;

3. umas calças de ganga azuis;

4. uma toalha de rosto azul;

5. uma toalha de banho azul claro;

6. uma toalha amarela, de bidé;

7. uma toalha cor-de-rosa, de banho;

8. uma toalha de rosto, de cor verde, todos já lavados.

23. Na casa de banho, no interior da banheira, meia cheia de água, estava uma faca de cozinha, com cabo em madeira, possuindo 19 centímetros de comprimento, sendo 9 centímetros de lâmina; no lavatório, blisters vazios e cápsulas abertas, algumas das quais com o conteúdo junto às mesmas e um secador de cabelo pousado no chão junto à banheira e ligado a uma extensão elétrica que o ligava à corrente elétrica

24. Aquando dos factos, o arguido tinha 35 anos e media 1,72cm. Por sua vez, a CC tinha 35 anos, media 1,58 m e pesava 42 Kg, apresentando uma compleição física frágil que o arguido não podia ignorar.

25. Ao agir do modo descrito atuou o arguido AA em livre manifestação de vontade no propósito concretizado de desferir e vibrar golpes e espetar a lâmina da faca de cozinha que empunhou no corpo da sua companheira CC, de forma a, propositadamente, tirar-lhe a vida, o que logrou, assim determinando e causando a morte da sua companheira CC, mãe do seu filho BB.

26. Não obstante soubesse ser a sua conduta proibida não se absteve de a empreender.

27. O arguido apresentava ferimentos superficiais e recusou deslocar-se ao Hospital.

28. No dia 7 de Maio de 2012, no início da tarde, o arguido dirigiu-se à Escola Básica e Secundária de …, onde a CC se encontrava a trabalhar, e, após terem discutido no interior do veículo do arguido estacionado no exterior do recinto da escola, este puxou-lhe pelos cabelos quando ela se afastava em direção à escola.

29. No dia 17.04.2012, o arguido solicitou ao Banco HH uma simulação de crédito imobiliário no valor de € 50.000,00.

30. O arguido contactou a empresa "A Transportadora II, Ldª" para, em 12 de Maio de 2012, pelas 15h, efetuar o transporte de um quarto sem roupeiro e de uma máquina de lavar da Avenida …, em Vila Verde, para …, Braga.

31. No dia 09 de Maio de 2012 planeavam férias em comum de 26.08 a 02.09.

32. A CC era uma pessoa estimada e considerada na escola onde lecionava.

33. Tinha uma forte ligação afetiva com o filho que com ela residia, o que lhe dava força para viver.

34. A CC sustentava e proporcionava ao menor conforto material e emocional.

35. O menor tinha e tem afeição e carinho pela mãe com quem viveu desde o nascimento, exceto durante alguns dias, entre a segunda quinzena de Janeiro e 27 de na sua companhia.

Março de 2012, em que o arguido, contra a vontade da CC, manteve o menor a;

36. Terá de viver com a ausência da figura materna e do seu apoio que o confortaria perante as angústias e problemas que surgem na infância, adolescência e idade adulta.

37. Também não terá presente o avô materno que se suicidou no dia 12 de Fevereiro de 2013, figura emocionalmente próxima da CC e que acompanhou todo o processo médico imediato à morte desta.

38. O arguido esteve casado durante quatro anos com JJ tendo esta saído de casa em 5 de Novembro de 2008, após ter chamado a autoridade policial pelas 4h30m na sequência de desentendimentos entre ambos por o arguido não querer que ela trabalhasse por sentir ciúmes dela, o que a levou a dizer-lhe que abandonava o lar conjugal, juntamente com o filho menor de ambos, atualmente com 6 anos de idade, na sequência do que o arguido lhe disse que se ela o abandonasse se matava.

39. Aquando dos factos a CC auferia cerca de € 1.130,00.

40. O arguido trabalhava como empregado de balcão numa loja de venda ao público da …, em …, Vila Nova de Famalicão, auferindo a remuneração base ilíquida de € 844,00, pagava € 101,00 de prestação de alimentos ao filho menor, € 184,00 de prestação relativa à aquisição de um veículo automóvel e € 280,00 de renda da casa sita em Vila Verde.

41. O arguido é um dos dois descendentes do segundo casamento do progenitor e tem mais três irmãos consanguíneos.

42. O pai exercia a profissão de guarda noturno e a mãe de empregada fabril.

43. O arguido concluiu o 9° ano de escolaridade, começou a trabalhar aos 16 anos numa fábrica de sapatos e, em seguida, trabalhou, durante sete anos, como repositor nos Hipermercados Continente.

44. No estabelecimento prisional revela uma postura disciplinada e discreta e é visitado pela família de origem e pelo descendente que é acompanhado pela progenitora.

45. Não tem antecedentes criminais».


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Requalificação dos Factos

Alega o recorrente AA que a qualificação do homicídio depende da ocorrência de uma especial censurabilidade ou perversidade reveladas através das circunstâncias em que a morte é causada, que se consubstanciam ao nível da efectivação do facto por uma forma de realização especialmente desvaliosa, não bastando o mero preenchimento de uma das situações previstas nas alíneas do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal, o que se não verifica no caso vertente, sendo que as instâncias para justificar a especial censurabilidade ou perversidade elencaram uma série de actos, que no seu entender demonstram especial censurabilidade ou perversidade, conclusão com a qual não concorda, tanto mais que o seu comportamento não foi premeditado, tendo sido assumido instantaneamente, num acesso de fúria.

Decidindo, dir-se-á.

No nosso ordenamento jurídico o crime de homicídio qualificado não é um tipo legal autónomo, com elementos constitutivos específicos, constituindo antes uma forma agravada de homicídio[10], em que a morte é produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade[11].

A qualificação do homicídio assenta, pois, num especial tipo de culpa, num tipo de culpa agravado, traduzido num acentuado desvalor da atitude do agente, que tanto pode decorrer de um maior desvalor da acção, como de uma motivação especialmente reprovável[12].

Como refere Figueiredo Dias, o pensamento da lei é o de imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas[13]. Ou, como entende Teresa Serra, citando Sousa Brito, a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto e a especial perversidade à atitude do agente[14].

No n.º 2 do artigo 132º indicam-se circunstâncias susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, elementos indiciadores da ocorrência de culpa relevante, cuja verificação, atenta a sua natureza indiciária, não implica, obviamente, a qualificação automática do homicídio, isto é, sem mais. Qualificação que, por outro lado, atenta a natureza exemplificativa das referidas circunstâncias, o que claramente resulta da letra da lei, concretamente da expressão entre outras[15], pode decorrer da verificação de outras situações valorativamente análogas às descritas no texto legal[16], sendo certo, porém, que a ausência de qualquer das circunstâncias previstas nas alíneas a) a m) do n.º 2 do artigo 132º, constitui indício da inexistência de especial censurabilidade ou perversidade do agente, ou seja, indicia que o caso se deve subsumir no artigo 131º (homicídio simples)[17].

Tudo dependerá, como doutamente refere Figueiredo Dias[18], de uma imagem global do facto agravada que corresponda ao especial tipo de culpa que aqui se deve ter em conta. Tipo de culpa que, perante a inexistência de qualquer uma das circunstâncias previstas no texto legal, só se deve ter por verificado perante circunstâncias extraordinárias ou um conjunto de circunstâncias especiais (reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente), que exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente à imagem de cada um dos exemplo-padrão enunciados no texto legal[19].

As circunstâncias em questão são, assim, não só um indício, mas também uma referência.

Circunstâncias que, não fazendo parte do tipo objectivo de ilícito, se devem ter por verificadas a partir da situação tal qual ela foi representada pelo agente, perguntando se a situação, tal qual foi representada, corresponde a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga; e se, em caso afirmativo, se comprova uma especial censurabilidade ou perversidade do agente[20].

No caso vertente optou-se pela qualificação do homicídio, sob a justificação de que não só se verifica uma situação integrante de um dos exemplos-padrão, concretamente a prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 132º (prática do facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou mesmo sexo com quem o agente matenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1º grau), mas também ocorre quadro circunstancial de onde resulta que o arguido agiu com a intenção conscientemente formada e directa de tirar a vida à sua companheira, o que fez munido de uma faca de cozinha com 19 centímetros de comprimento e 9 centímetros de lâmina, com a qual desferiu oito golpes no corpo daquela, sendo três no pescoço, quatro no tórax e uma no membro superior direito, circunstâncias estas que, por si só, bastam para a acrescida censurabilidade e, de algum modo, perversidade.

Ora, estamos inteiramente de acordo com a opção tomada.

O indício do exemplo-padrão concretamente ocorrente, relação conjugal informal, revelador de especial censurabilidade, aliado à incomum insistência na execução do acto delituoso, traduzida no elevado número de facadas desferidas, das quais quatro no tórax e três no pescoço, o que mostra uma acrescida vontade de matar, impõe a conclusão de que a qualificação do crime é inquestionável.

Medida da Pena

Sob a alegação de que se entregou voluntariamente às autoridades e se dispôs a ajudar na investigação, compareceu na audiência de julgamento e ali confessou integralmente o crime, para além de que não tem antecedentes criminais, entende o arguido AA dever ser aplicada uma pena bastante inferior à que as instâncias lhe impuseram.

A determinação da medida concreta da pena faz-se com recurso ao critério geral estabelecido no artigo 71º, do Código Penal, tendo em vista as finalidades das respostas punitivas em sede de Direito Criminal, quais seja a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 41º, n.º 1, do Código Penal –, sem esquecer, obviamente, que a culpa constitui um limite inultrapassável da medida da pena – n.º 2 daquele artigo.

Efectivamente, a partir da revisão operada em 1995 ao Código Penal, a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena, no sentido de que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que dentro desse limite máximo a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

É este o critério da lei fundamental – artigo 18º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995[21].

Também este Supremo Tribunal se orienta em sentido concordante ao assumir que a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.

Daqui decorre que o juiz pode impor qualquer pena que se situe dentro do limite máximo da culpa, isto é, que não ultrapasse a medida da culpa[22], elegendo em cada caso aquela pena que se lhe afigure mais conveniente, tendo em vista os fins das penas com apelo primordial à tutela necessária dos bens jurídico-penais do caso concreto, tutela dos bens jurídicos não, obviamente, num sentido retrospectivo, face a um facto já verificado, mas com significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; neste sentido sendo uma razoável forma de expressão afirmar-se como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou de prevenção geral de integração, dando-se assim conteúdo ao exacto princípio da necessidade da pena a que o artigo 18º, n.º 2 da Constituição da República, consagra[23].


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O bem jurídico tutelado no crime de homicídio é, obviamente, a vida humana, bem jurídico inviolável – artigo 24º, da Constituição da República Portuguesa –, situado no ponto mais alto da hierarquia dos direitos fundamentais em qualquer Estado de direito.

O facto típico perpetrado pelo arguido AA destaca-se, pois, de entre os crimes mais graves de qualquer ordenamento jurídico-penal civilizado, gravidade que aqui atinge a sua amplitude máxima atenta a qualificação do crime.

O grau de ilicitude do facto é, por isso, muito elevado.

O arguido AA agiu com dolo directo e intenso.

O seu grau de culpa, dentro de uma culpa já acentuada, situa-se em patamar muito alto.

Relativamente às necessidades de prevenção geral elas são por demais evidentes em comunidade em que o homicídio de mulheres por parte dos maridos e companheiros atinge cifras alarmantes. O desprezo revelado pela vida das vítimas não pode deixar de ser frontal e rigorosamente censurado.

No plano da prevenção especial avulta a personalidade do arguido, caracterizada pelo seu temperamento violento, reflectido na forma impetuosa e intensamente violenta como se comportou.

Ao contrário do que alega, não se entregou às autoridades, nem confessou integralmente os factos, dos quais se não mostrou arrependido.

É delinquente primário, no entanto, a primariedade é circunstância de pouco ou reduzido valor, tanto mais que o arguido ainda é um adulto jovem.

Como atrás se deixou consignado, a defesa da ordem jurídico-penal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura pena abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente, entre estes limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de ressocialização.

A esta luz, tento em atenção todas as circunstâncias ocorrentes, há que concluir que a pena de 21 anos de prisão fixada pelas instâncias se situa dentro das sub-molduras referidas, não merecendo, por isso, qualquer reparo.


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Termos em que se acorda:

a) Rejeitar o recurso no segmento em que visa o reexame da matéria de facto, com arguição dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, bem como na parte em que vem impugnada a vertente civil da decisão recorrida;

b) Negar provimento ao recurso quanto à requalificação jurídica dos factos e à medida da pena, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 6 UC a taxa de justiça.


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Lisboa, 07 de Maio de 2014

       Oliveira Mendes (relator)

       Maia Costa

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[1] - O texto que a seguir se transcreve, bem como os demais que mais adiante se irão transcrever, correspondem ipsis verbis aos constantes dos autos.
[2] in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 27
[3] Citado acórdão do processo 238
[4] Citado acórdão do processo 3775
[5] - Em recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça só é admissível o reexame da matéria de direito, estando fora dos seus poderes de cognição o reexame da matéria de facto, quer por via de impugnação quer por via de arguição dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal – artigo 434º daquele diploma legal.
Entre muitos outros, os acórdãos de 09.05.14, 09.05.27, 10.03.03, 10.03.25 e de 10.05.27, proferidos nos Processos n.ºs 1182/06.3PAALM.S1, 145/05, 138/02.0PASRQ. L1, 427/08.0TBSTB.E1.S1 e 11/04.7GCABT.C1.S1.
[6] - É do seguinte teor o artigo 33º, da LOFTJ, redacção da Lei n.º 58/08, de 28 de Agosto:
«Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito».

[7] - Neste preciso sentido também se pronuncia o saudoso Conselheiro Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado (17ª edição – 2009), ao referir a fls. 913, em anotação ao artigo 400º:
«O n.º 3, introduzido pela supramencionada Lei na anot. 1, veio contrariar a jurisprudência fixada pelo STJ. Haja ou não lugar a recurso da matéria penal, pode haver lugar a recurso da parte relativa à indemnização civil, se o puder haver perante a lei civil, e conforme se estabelece no n.º 2.
No mesmo sentido parece inclinar-se Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal (4ª edição - 2011), nota 117 ao artigo 400º, fls.1049.
[8] - É do seguinte teor o artigo 672º, do Código de Processo Civil:
«Excepcionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:
a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;
b) Estejam em causa interesses de particular relevância social;
c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme».
[9] - Neste preciso sentido já nos pronunciámos neste Supremo Tribunal, entre outros, nos acórdãos de 10.09.29 e de 12.04.11, proferidos nos Processos n.ºs 343/05. 7TAVFN. P1. S3 (Recurso n.º 22599/10) e 3989/07.5TDLSB.L1.S1 (Recurso n.º 44125/12).
[10] - Como refere Teresa Serra, Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, 81, o homicídio qualificado é um caso especialmente grave de homicídio, pelo que é correcto afirmar que este caso especialmente grave está totalmente referido ao tipo de homicídio simples previsto no artigo 131º.
 Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 25, assume posição coincidente ao defender que o homicídio qualificado não é mais que uma forma agravada do homicídio simples previsto no artigo 131º.
[11] - Sob a epígrafe de homicídio qualificado estabelece o n.º 1 do artigo 132º do Código Penal:
«Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos».
[12] - Neste sentido se pronuncia a doutrina mais representativa – entre outros, Figueiredo Dias, ibidem, I, 29, Teresa Serra, ibidem, 40, Augusto Silva Dias, Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal – Crimes contra a vida e a integridade física, 16/17, e Eduardo Correia que no seio da Comissão Revisora do Código Penal – Actas das Sessões Parte Especial, 25, referiu ter sido sempre sua intenção considerar as circunstâncias do n.º 2 do artigo 138º (actual artigo 132º) como simples elementos da culpa.
Em sentido não coincidente pronuncia-se, isoladamente, Fernanda Palma, ao defender que não se pode fundamentar um tipo qualificado unicamente com base num critério de culpa, devendo considerar-se um misto de ilicitude e de culpa – Direito penal, parte especial (crimes contra as pessoas), 44 e ss.
[13] - Ibidem, 29.
[14] - Ibidem, 64.
[15] - É do seguinte teor o corpo do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal:
«É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:…».
[16] - Cf. Figueiredo Dias, ibidem, 26 e Teresa Serra, ibidem, 66/67.
[17] - Cf. Teresa Serra, ibidem, 71.
[18] - ibidem, 26.
[19] - Neste sentido Teresa Serra, ibidem, 71 e “Homicídios em série”, Jornadas sobre a revisão do Código Penal (1998), 135, segundo a qual a decisão do juiz terá de ser uma decisão vinculada, sendo que de outra forma o juiz deixará de ter critérios seguros na sua decisão, e esta passa a ser discricionária; se não se guiar pelos exemplo-padrão previstos na lei o juiz tenderá a guiar-se pelos seus próprios critérios do que seja censurabilidade ou perversidade. Estar-se-á então perante analogia aplicada à mais gravosa norma incriminadora prevista no Código Penal, o que seria inadmissível e, desde logo, inconstitucional, sendo certo que o princípio da legalidade vigora, não apenas para o pressuposto da ilicitude, mas para todos os pressupostos da punibilidade e para as próprias sanções jurídico-penais.

[20] - Cf. Figueiredo Dias, ibidem, 42/43.
[21] - Vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001), 104/111.
[22] - O mínimo da pena, como já ficou dito, é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, ou seja, nunca pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados.
[23] - Cf. Figueiredo Dias, ibidem, 105/106.