Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A1955
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: LEGITIMIDADE
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
RECURSO DE REVISTA
PROPRIEDADE HORIZONTAL
DEFEITO DA OBRA
CADUCIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
CONDOMÍNIO
PARTE COMUM
FRACÇÃO AUTÓNOMA
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
Nº do Documento: SJ200309230019556
Data do Acordão: 09/23/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 1819/02
Data: 01/23/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - Na propriedade horizontal cada condómino é titular de um direito real composto, resultante da fusão do direito de propriedade singular sobre a fracção que lhe pertence com o direito de compropriedade, paralelo, sobre as partes comuns.
II - À questão da caducidade do direito (do condomínio) de exigir (à construtora/vendedora do prédio) a eliminação dos defeitos existentes nas partes comuns do prédio (as imperativamente comuns e as presuntivamente comuns -art.º 1421, n.ºs 1 e 2, do CC) aplica-se o prazo de 5 anos previsto no art.º 916, n.º 3, do CC, na redacção do DL n.º 267/94, de 25-10.
III - A entrega referida no n.º 2 deste preceito (e no n.º 1 do art.º 1225) deve ser entendida, não como a entrega das partes comuns ao condomínio, mas sim como a última entrega de fracção autónoma pela construtora/vendedora (ou seja, a entrega ao mais recente condómino).
IV - Esta interpretação não se justifica no tocante às partes privadas do prédio, isto é, relativamente às fracções autónomas propriamente ditas.
V - O prazo de que se trata nas normas em análise (art.ºs 916, n.º 2 e 1225, n.º 1) é um prazo de caducidade, não de prescrição; não está sujeito nem à interrupção, nem à suspensão, apenas podendo ser interrompido mediante a prática, dentro do prazo legal, do acto a que a lei confere efeito interruptivo (art.ºs 328 e 331, do CC).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Relatório
Em 28.12.99, na qualidade de representante do condomínio do edifício "Chave D Ouro", situado na Rua D. ...., em Armação de Pêra, A propôs uma acção ordinária contra B, Ldª, pedindo que a ré seja condenada a proceder, no prazo máximo de 90 dias a contar da sua citação, às obras necessárias e indispensáveis para eliminar todas as anomalias e deficiências de construção existentes nas partes comuns do edifício, ou, em alternativa, a pagar 12.000.000$00, acrescidos de IVA e de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação.
Contestando, a ré, por excepção, alegou a ilegitimidade do autor e a caducidade do direito que pretende fazer valer através da acção; por impugnação, que desconhece os problemas eventualmente existentes nas partes comuns e que não está obrigada a proceder a quaisquer reparações.
No despacho saneador foram julgadas improcedentes, quer a excepção dilatória de ilegitimidade, quer a excepção peremptória de caducidade, decisão da que a ré interpôs recurso, recebido para subir diferidamente.
Realizado o julgamento foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, condenou a ré a fazer as obras necessárias à eliminação dos defeitos existentes nas partes comuns do edifício "Chave d'Ouro".
A ré apelou.
Por acórdão de 23.1.03 a Relação de Évora negou provimento ao agravo e à apelação, confirmando o despacho saneador e a sentença.
Ainda inconformada, a ré interpôs recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:
1ª Quem intentou à acção é parte ilegítima; por um lado, por não ser administrador do condomínio (a administração é composta por um órgão colegial); por outro lado, porque quem devia estar em juízo é o condomínio e não um alegado administrador, já que só aquele tem capacidade judiciária.
2ª A administração do condomínio pode ser efectuada por pessoas singulares, pessoas colectivas ou por um órgão colegial.
3ª No caso vertente a administração do condomínio é exercida por um órgão colegial que não conferiu poderes para que um membro isoladamente intentasse a presente acção.
4ª Não existe qualquer elemento objectivo que permita concluir que afinal o primeiro elemento da "lista" é que é o administrador, e assim se aproveitar a eleição, aproveitamento esse que é inválido até por extravasar o objecto do processo e não impedir que fora dele tudo continue na mesma.
5ª O acórdão recorrido violou nessa parte o artigo 292º do Código Civil.
6ª Face à matéria de facto dada como provada, nomeadamente a constante das alíneas C), D) e E) dos factos assentes bem como de outros factos que se encontram documentalmente provados nos autos, nomeadamente que a escritura pública de permuta, constituição de propriedade horizontal, entregas parciais e compras e vendas do Edifício "Chave D'Ouro" se realizou em 07 de Fevereiro de 1992, resulta que ao caso vertente devessem ter sido aplicados os preceitos do Código Civil com a redacção anterior àquela que lhe foi dada pelo DL nº 267/94 de 25 de Outubro e nomeadamente os artigos 916º e 917º do CC na sua redacção originária - Acórdão do STJ n° 2/97 proferido em 04.12.96, publicado no DR, I Série, em 30.01.97.
7ª Quando a autora intentou a acção há muito que tinha caducado o direito de acção, tendo expirado, na pior das hipóteses, em 07.03.93.
8ª O entendimento preconizado de que a entrega das partes comuns do edifício só ocorre com a transmissão a favor do último adquirente de uma fracção autónoma que a adquira directamente do construtor não tem qualquer suporte na letra ou no espírito da lei e contraria claramente a própria natureza e finalidade do instituto da caducidade.
9ª À caducidade não são aplicáveis as regras da suspensão ou da interrupção, começando o prazo a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido.
10ª O entendimento do tribunal recorrido viola assim claramente o estatuído nos artºs 328º e 329º do Código Civil.
11ª O direito que o condomínio quer ver exercido com a presente acção pôde legalmente começar a ser exercido a partir de 7.2.92, data em que com a venda e entrega em permuta de fracções autónomas foram entregues as partes comuns do prédio.
12ª A sentença violou assim o disposto nos artigos 916º e 917º do CC, na redacção originária, o acórdão do STJ nº 2/97 proferido em 04.12.96, publicado no DR, I Série, em 30.01.97, e o artigo 4º, nº 2, da Lei nº 3/99 de 13 de Janeiro e artigo 297° Código Civil, ao pretender aplicar um prazo mais longo de caducidade a uma situação cujo prazo de caducidade já havia decorrido.
O autor contra alegou, defendendo a confirmação do julgado.
Fundamentação
Factos a considerar, dados por assentes na Relação:
1) No dia 5 de Junho de 1999, na sala de condomínio do Edifício Chave D' Ouro, sito em Armação de Pêra, teve lugar a assembleia geral de condóminos, cuja ordem de trabalhos teve, além de outros pontos, o de análise sobre a situação judicial, contra a empresa construtora do prédio "Sconturismo"; relativamente a tal ponto foi deliberado por unanimidade "fazer todos os esforços para prosseguir a acção judicial e evitar a prescrição dos prazos".
2) O prédio urbano em causa nos autos é constituído por sub-cave, rés-do-chão, 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º andares, e tem 118 fracções autónomas, destinadas a comércio e habitação.
3) Encontra-se registado na CRP de Silves, freguesia de Armação de Pêra, sob o nº 01226/920302, um lote de terreno para construção no qual foi construído um edifício, composto de sub-cave, cave, destinados a estacionamento, rés-do-chão, 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, e 9º andares constituído pelas fracções autónomas de A a EG, cuja aquisição se mostra registada a favor da ré desde 02/03/927.
4) Das 118 fracções autónomas existentes no prédio, a sociedade ré, como construtora do prédio, já vendeu aos actuais condóminos mais de 100 fracções autónomas .
5) Logo após a venda das primeiras fracções autónomas pela sociedade construtora do imóvel, ora ré, vários condóminos começaram a alertar os representantes legais desta sociedade para as deficiências de construção existentes nas partes comuns do ed
ifício.
6) A empena poente do prédio não está pintada.
7) O terraço de cobertura do edifício tinha fissuras provocando infiltrações .
8) As bocas de incêndio existentes no rés-do-chão, 3º, 4º, 6º, 7º e 8º andares não possuem mangueiras.
9) Os arranjos exteriores na parte da parede sul do troço norte do prédio, designadamente o passeio e os socos do edifício, encontram-se por construir.
10) As lajes do tecto da sub cave tinham as armaduras à vista e oxidadas, provocado pelo desprendimento do betão de recobrimento das armaduras.
11) O custo das obras a efectuar para correcção dos factos acima mencionados orça em 12.000.000$00.
12) Consta do artº 11º, nº 1, do Regulamento do edifício "Chave D'Ouro": a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador; e do art. 15° n° 1: o administrador é eleito e exonerado pela assembleia de condóminos. Se a assembleia não eleger o administrador, este será nomeado pelo tribunal, a requerimento de qualquer dos condóminos.
13) Da acta nº 11 da assembleia de condóminos do mesmo prédio, datada de 5.6.99, consta como ponto nº 1 da ordem de trabalhos: eleição da nova administração; e consigna: relativamente ao primeiro ponto da ordem de trabalhos, foi deliberado por unanimidade eleger uma nova administração constituída por condóminos do prédio, tendo sido eleitos - Sr. A, 5° andar porta nº ....; Sr. C - 5° andar porta nº ....; Sr. D, 8° andar porta nº .....; Sr. E, 7° andar porta nº .....
14) Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Silves, em 25.11.92, a ré e A celebraram contrato de compra e venda respeitante à fracção autónoma designada pelas letras "CA", destinada a habitação, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, situado na rua projectada à Rua D. João II, Panasqueira, Armação de Pêra, Silves, descrito na competente conservatória sob o nº 1226 e inscrito a favor da sociedade vendedora pela inscrição de aquisição GI, e com o seu especial regime sob a inscrição Fl, omisso à matriz com declaração para a sua inscrição apresentada na Repartição de Finanças de Silves a 25.10.91.
15) Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Silves em 10.01.95 a ré e E celebraram contrato de compra e venda respeitante à fracção autónoma designada pelas Letras "DC", destinada a habitação, do prédio urbano anteriormente referido, agora inscrito na matriz respectiva sob o artigo 1771º.
Nas cinco primeiras conclusões da minuta a recorrente coloca de novo o problema da ilegitimidade do autor. A questão, porém, foi objecto do recurso de agravo apresentado à Relação e aí decidida por unanimidade em sentido contrário à pretensão da ré. Com efeito a 2ª instância, confirmando a decisão da 1ª, julgou improcedente a excepção arguida. Assim, atento o disposto nos artºs 722º, nº1, e 754º, nº 2 e 3, do CPC, não há lugar ao conhecimento desta parte do recurso de revista, pois estamos em presença duma decisão interlocutória proferida na 1ª instância e o acórdão recorrido não se mostra em oposição com outro, do Supremo Tribunal ou de qualquer Relação, sem que tenha sido fixada jurisprudência com ele conforme.
Nas restantes conclusões está posta a questão da caducidade do direito accionado.
A Relação entendeu que é aplicável o prazo de cinco anos previsto no artº 916º, nº 3, do Código Civil, na redacção do DL 267/94, de 25/10; considerou que a entrega referida no nº 2 deste preceito - e no nº 1 do artº 1225º - deve ser entendida, não como a entrega das partes comuns ao condomínio, mas sim como a última entrega das fracções autónomas pelo construtor/vendedor (ou seja: a entrega ao mais recente condómino).
A recorrente argumenta que esta interpretação não tem suporte na letra ou no espírito da lei, contrariando a natureza e a finalidade do instituto da caducidade; por outro lado, acrescenta ainda, a vingar a tese do acórdão recorrido corre-se o risco de nunca poder operar a caducidade se porventura o construtor não conseguir vender todas as fracções autónomas, pois não se aplicam ao instituto da caducidade as regras da suspensão ou da interrupção, começando o prazo prescricional a correr no momento em que o direito puder ser legalmente exercido.
Entendemos que a Relação decidiu bem, não procedendo a argumentação da recorrente.
Constituída a propriedade horizontal, o conteúdo do direito de propriedade até então existente sofre uma modificação simultaneamente quantitativa e qualitativa, já que o direito de propriedade exclusiva sobre cada uma das fracções faz-se acompanhar de um direito de compropriedade sobre as partes comuns do edifício; e o conjunto de ambos os direitos é incindível; por isso, nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem a nenhum dos condóminos é lícito renunciar à parte comum como meio de se desonerar das despesas necessárias à sua conservação ou fruição (artº 1420º, nºs 1 e 2, do CC). Diz-se a este propósito que cada condómino é titular de um direito real composto, resultante da fusão do direito de propriedade singular sobre a fracção que lhe pertence com o direito de compropriedade, paralelo, sobre as partes comuns; compropriedade que, ao contrário do que sucede na compropriedade "normal" ou típica, regulada nos artºs 1403º e seguintes do CC, tem a particularidade de ser forçada, justamente porque não é possível sair da indivisão enquanto subsistir a propriedade horizontal.
Ora, é exactamente porque a propriedade horizontal apresenta esta especial configuração jurídica que a interpretação dos artºs 916º, nº 2, e 1225º, nº 1, feita pela 2ª instância se mostra adequada, conduzindo ao resultado mais acertado. Com efeito, se a entrega a que os dois textos legais aludem não fosse reportada, no que se refere às partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal, à realizada ao mais recente condómino, é manifesto que os futuros condóminos, - comproprietários, como todos os restantes, das referidas partes comuns -, seriam penalizados sem nenhuma razão plausível pela eventual incúria dos adquirentes primitivos na denúncia dos defeitos ali detectados. Para além da flagrante injustiça que isso constituiria para todos os condóminos que adquirissem fracções mais de cinco anos decorridos sobre a constituição da propriedade horizontal, semelhante solução frustraria em medida insuportável o desiderato do legislador ao alargar os prazos de denúncia dos defeitos através das modificações introduzidas no Código Civil pelo DL 267/94, de 25/10: protecção do consumidor, e, designadamente, do comprador de imóveis destinados a habitação, o qual, num país com o nível de vida do nosso compromete nessa aquisição, dum modo geral, uma parte considerável do seu património, também por força das distorções existentes no mercado imobiliário. O construtor/vendedor, por seu turno, ficaria praticamente livre de quaisquer responsabilidades relativamente a defeitos que fossem ocorrendo nas partes comuns do edifício; de facto, sabe-se que são raros os casos em que cinco anos bastem para vender a totalidade das fracções autónomas dum edifício em propriedade horizontal, nomeadamente quando estas ascendem a várias dezenas, como sucede com frequência nos centros urbanos; e mais rara ainda é a hipótese da venda simultânea de todas as fracções autónomas.
Decerto, o prazo de que se trata nas normas em análise é um prazo de caducidade, não de prescrição; não está sujeito, portanto, nem à interrupção, nem à suspensão, apenas podendo ser interrompido mediante a prática, dentro do prazo legal, do acto a que a lei confere efeito interruptivo (artºs 328º e 331º do CC). Isto, porém, em nada enfraquece a posição jurídica do construtor/vendedor. Bem ao contrário, fortalece-a, impedindo que a "balança" do equilíbrio contratual se incline em demasia para o lado do comprador mediante protelamento no tempo do seu direito de denúncia dos defeitos. Importa sublinhar, de resto, que se trata aqui dos defeitos detectados nas partes comuns do edifício (as imperativamente comuns e as presuntivamente comuns - artº 1421º, nºs 1 e 2, do CC), ficando de fora, como é óbvio, as partes privadas, as fracções propriamente ditas; não se justifica em relação a estas a interpretação das normas ajuizadas a que damos o nosso assentimento, "adaptada", como se disse, à particular natureza jurídica da propriedade horizontal, mas também imposta pela lógica, pela razoabilidade e pelos princípios da equivalência das prestações e da confiança.
Deste modo, provado que a acção foi proposta em 28.12.99 e que a mais recente venda duma fracção autónoma do edifício ocorreu em 10.1.95 (facto 15), segue-se que a caducidade do direito ajuizado não operou.
Decisão
Nestes termos, nega-se a revista e condena-se a recorrente nas custas.
Lisboa, 23 de Setembro de 2003
Nuno Cameira
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos (dispensei o visto)