Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
56/15.1T8CNT-C.C1.S2
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
MASSA INSOLVENTE
APREENSÃO DE BENS
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS PROCESSUAIS / RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE / IMPUGNAÇÃO PAULIANA.
Doutrina:
- Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª ed., p. 267.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 85.º, 88.º E 127.º.
Sumário :

1. A insolvência do terceiro adquirente dos bens objeto de impugnação pauliana tem como consequência a não continuidade desta ação (nem da subsequente ação executiva) contra os bens integrados na massa insolvente (art.85º e 88º CIRE).

2. No âmbito do art.127º do CIRE não cabe a hipótese de a impugnação pauliana ter como alvo bens integrados na massa insolvente.

Decisão Texto Integral:

6ª Secção

Processo n.º 56/15.1T8CNT-C.C1.S2

Recorrente: AA, BB e CC

Recorridos: “DD, Lda”, EE, “FF, Lda”, “GG, Lda” e “HH, Lda”.

I. RELATÓRIO

1. AA, BB e CC propuseram acção de impugnação pauliana contra “DD, Lda”, com sede nas Avenidas Novas, 1070, Lisboa, representada pelo administrador da insolvência, EE,FF, Lda”, “GG, Lda” e “HH, Lda, todas com sede na Travessa ..., ..., ....

 Pediram que se considerassem ineficazes e de nenhum efeito em relação aos autores, as alienações dos seguintes veículos: 1) veículo automóvel pesado de mercadorias da marca MITSUBISHI, com a matrícula 00-00-RV; 2) veículo automóvel pesado de mercadorias da marca VOLVO, com a matrícula 00-00-XL; 3) veículo automóvel pesado de mercadorias da marca MITSUBISHI, com a matrícula 00-00-UD; 4) reboque marca MERGUL, com a matrícula C-60001; 5) semi-Reboque marca LISTRAILLER, com a matrícula C-50005; 6) veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca SEAT IBIZA, com a matrícula 00-00-PP, podendo a autora executar tais bens no património dos obrigados à restituição, ou seja, da 4.ª ré para pagamento integral do seu crédito.

Alegaram, em síntese:

- Que eram credores da sociedade “DD, Limitada”;

- Que a 1.ª ré declarou vender ao 2.º réu os veículos acima identificados e que o 2.º réu declarou, por sua vez, vender tais veículos à ré GG;

- Que a 1.ª ré foi declarada insolvente, em 2-10-2012;

- Que as vendas dos veículos impossibilitaram a autora de obter a satisfação integral dos seus créditos, o que era do conhecimento dos réus;

- Que os veículos foram arrestados.

2. Em 7 de Junho de 2017, a ré GG foi declarada em situação de insolvência, no processo n. 2473/17.3T8CBR, no juízo de Comércio de ... do Tribunal Judicial da Comarca de ....

No âmbito do processo de insolvência, foram apreendidos para a massa insolvente os veículos acima identificados (com excepção do semi-reboque marca LISTRAILLER, com a matrícula C-50005).

3. Por despacho de 24.05.2018 foi declarada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto aos seguintes pedidos:

- Pedido no sentido de serem declarados ineficazes e de nenhum efeito, em relação à autora, as transmissões dos veículos da 1ª ré (“DD, Lda” – massa insolvente) para o 2º réu (EE), e deste 2º réu para a 4ª ré (“GG Lda”);

- Pedido no sentido de se reconhecer aos autores o poder de executar tais bens no património dos obrigados à restituição, ou seja, da 4.ª ré (GG), para pagamento integral do seu (autores) crédito.

4. Inconformados, os autores interpuseram recurso de apelação, pedindo a revogação daquela decisão e a sua substituição por decisão que declarasse a utilidade da lide, com as consequências legais.

5. O Tribunal da Relação de ... decidiu: julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.

6.  Inconformados com aquela decisão, que confirmou o decidido pela primeira instância, sem voto de vencido e sem fundamentação divergente, os recorrentes interpuseram recurso de revista excecional, com base nas alíneas a) e c) do n.1 do art. 672º do CPC (dada a existência de dupla conforme).

Nas suas alegações, formularam as extensas conclusões que se transcrevem:

«1.Vem o presente recurso interposto do Douto Acórdão, proferido em sede de recurso de apelação que, julgando improcedente o recurso interposto pelos Recorrentes, confirmam o Douto Despacho proferido em primeira instância que determinou a inutilidade parcial da lide, declarando extinta a presente instância quanto ao pedido (expresso nas alíneas a) e d)) de ineficácia dos negócios que serviram de base à transmissão de diversos bens da 1.ª Ré (DD, Lda) ao 2.º Réu (EE) e, posteriormente, deste 2.º Réu à 4.ª Ré (GG, Lda).

2. O presente recurso de revista excepcional é interposto com os seguintes fundamentos:

2.1.Na alínea a) do n. 1 do artigo 672.º do CPC (esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito), por se entender que, decidindo como decidiu, o Venerando Tribunal a quo  tomou uma decisão manifestamente inesperada e lesiva das legítimas expectativas das partes, cuja apreciação deve ser levada, em sede de revista excepcional, ao conhecimento do Venerando Tribunal de Justiça para uma melhor aplicação do Direito.

E ainda,

2.2. Na alínea c) do n.º 1 do art. 672.º do CPC (o Acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito), uma vez que:

2.3. Quanto à questão da aplicação do regime previsto nos n.º 2 e 3 do artigo 127.º do CIRE, o Acórdão recorrido contraria o entendimento sufragado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão  de 22.05.2012 (relatado pelo Exma. Senhora Juiz Conselheira Rosário Gonçalves,  processo n.º 552/10.7TCFUN.L1.-1, disponível em www.dgsi.pt, cuja cópia se junta como doc. n.º 1) nos termos do qual, perante uma acção de impugnação pauliana com contornos iguais aos dos presentes autos, entendeu aplicar o regime previsto dos referidos preceitos legais, em detrimento, inclusivamente, de preceitos invocados pelo Acórdão recorrido para sustentar a sua não aplicação à acção de impugnação pauliana em apreço, tais como o artigo 1..º e 88.º do CIRE. E onde se concluiu a final que “A declaração de insolvência não determina sem mais, a extinção da presente acção de impugnação, nem deixa de ter interesse para os autores. O seu prosseguimento ou não, dependerá da actuação do administrador da insolvência, no sentido da resolução ou não dos actos das insolventes, o que se desconhece nos autos. Nestes termos, a declaração de insolvência das Rés não conduz à inutilidade superveniente da lide, continuando o processo a fazer e a ter sentido útil”.

Da admissibilidade do presente recurso à luz do previsto na al. a) do n.º 1 do art. 672.º do CPC:

 3. Neste conspecto, o Venerando Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se  aduzindo que “[p]ara que esteja verificado o requisito da alínea a) do n.º 1 do artigo 721.º-A do Código de Processo Civil é necessário que a “vexata quaestio” jurídica seja controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (negrito nosso) (Revista excepcional n.º 413/08.0TYVNG.P1.S1, cujo relator foi o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas, cujo sumário se encontra acessível em

http://www.stj.pt/ficheiros/jurispsumarios/revistaexcecional/revistaexcepcional2011-02.pdf).

Este mesmo areópago, em acórdão datado de 04/02/2010, esclareceu que “[e]ntende-se existir “relevância jurídica” quando estejam em causa questões de manifesta dificuldade e complexidade, para cuja solução jurídica se torne necessário um profundo e pormenorizado estudo e reflexão por se tratar de questão de decisão duvidosa, sobre a qual haja fortes divergências ou que, à partida, se revele susceptível de originar essas divergências por força do seu melindre ou da dificuldade de descortinar a intenção do legislador aquando de alterações ou inovações legislativas” (Revista excepcional n.º 1847/08.5TVLSB-A.L1.S1, cujo relator foi o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Silva Salazar, acessível no mesmo local). 

 4. Deste modo, “[s]ó há relevância jurídica necessária uma melhor aplicação do direito quando se trate de uma questão manifestamente complexa, de difícil resolução, cuja subsunção jurídica imponha um importante e detalhado exercício de exegese, um largo debate pela doutrina e jurisprudência com o objectivo de se obter um consenso em termos de servir de orientação, quer para as pessoas que possam ter interesse jurídico ou profissional na resolução de tal questão a fim de tomarem conhecimento da interpretação com que poderão contar, quer para as instâncias, por forma a obter-se uma melhor aplicação do direito” (acórdão de 02/03/2010, proferido no âmbito da Revista excepcional n.º 785/08.6TBOER.L1.S1, cujo relator foi o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Silva Salazar, idem).

5. Entendem, assim, os Recorrentes convocar muito respeitosamente o Douto exame deste Venerando Tribunal, ao abrigo do disposto na alínea a) do art.º 672.º do CPC, para a apreciação da seguinte questão jurídica:

- A interpretação do artigo 127.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), mais concretamente dos seus n.º 2 e 3, mormente quanto à sua restrição ou não, a determinadas acções de impugnação paulianas, mais concretamente àquelas (como a dos presentes autos) em que o crédito cuja garantia patrimonial se pretende acautelar com a acção não tem como devedor o insolvente, mas sim o adquirente posterior dos bens, demandado ao abrigo do disposto no artigo 613.º do Código Civil, entretanto, declarado insolvente, na pendência da acção de impugnação pauliana.

6. Pese embora o Douto Acórdão recorrido reconheça sem qualquer margem para dúvida que a acção proposta nos presentes autos é uma típica acção de impugnação pauliana e que o artigo 127.º do CIRE dispõe sobre este tipo de acções, afirmando, inclusivamente, que o n.º 2 do citado preceito prevê situações em que a declaração de insolvência do devedor não torna inútil o prosseguimento das acções de impugnação pauliana à data da declaração, sufraga porém, a final, o entendimento que “(…) as acções de impugnação pauliana tidas em vista pelo artigo 127.º do CIRE têm contornos diferentes dos da presente acção”.

 7. Acrescentando que “(…) Uma vez que a presente acção de impugnação pauliana não se ajusta à acção que está prevista no artigo 127.º do CIRE, o regime deste preceito não lhe é aplicável. E não lhe sendo aplicável, falece razão aos recorrentes quando ancoram nele a pretensão de prosseguimento da presente acção”.

8. Na verdade, entende o Venerando Tribunal a quo, dever ser interpretado os referidos preceitos apenas e tão só quanto a impugnações paulianas “(…) intentadas por credores da insolvência contra actos praticados pelo devedor (insolvente) em prejuízo daqueles(…)”, excluindo a aplicação do regime previsto no n.º 2 e 3 do referido artigo “às impugnações paulianas em que o crédito cuja garantia patrimonial se pretende acautelar com a acção não tem como devedor o insolvente, mas sim o adquirente posterior dos bens, demandado ao abrigo do disposto no artigo 613.º do Código Civil, entretanto, declarado insolvente, na pendência da acção de impugnação pauliana”.

9. Com esta interpretação, respeitável mas, salvo o devido respeito, censurável, censurável e nunca antes visto, considerou o Venerando Tribunal a quo que pelo facto do “(…) acto impugnado ser um acto praticado pelo devedor insolvente e por a procedência da acção de impugnação pauliana ter por efeito o direito de executar os bens no património de terceiro, que está vedado aos credores a instauração de acções de impugnação pauliana de actos praticados pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador da insolvência. Compreende-se: se o acto praticado pelo devedor é resolvido pelo administrador da insolvência, os bens regressam à massa, conforme resulta do n.º 1 do artigo 126.º do CIRE, e o produto da liquidação aproveita a todos os credores. “

10. Concluindo “(…) que a procedência da acção de impugnação pauliana prevista no artigo 127.º do CIRE não tem como efeito o reconhecimento do direito de executar bens que integram a massa insolvente. Embora o direito que está pressuposto em tal acção seja um direito de crédito sobre o insolvente, o direito à execução reconhecido ao impugnante incide sobre bens de terceiro.”

  11. Ora, independentemente do mérito dessa posição é introduzida pelo Tribunal a quo, na interpretação dos preceitos legais ínsitos nos n.º 2 e 3 do artigo 127.º do Código Civil, um critério restritivo na sua aplicação, sem dúvida inovador,

 12. Que afasta o critério de interpretação na norma enunciada no artigo 9.º do Código Civil.

13. Emerge, assim, do Douto Acórdão proferido, interpretação dos n. 2 e 3 do artigo 127.º do CIRE, merecedora de profunda reflexão, atentas as consequências (perigosas, consideram os Recorrentes) da introdução de tal restrição.

 14. Invadindo, também perigosamente, no entender dos Recorrentes, a esfera da competência do legislador, ao promover uma interpretação de normas legais no sentido que verdadeiramente, subverte aquele que lhes pretendeu atribuir o legislador. 

 15. O que, só por si, tornará tal interpretação susceptível de declaração de inconstitucionalidade.

 16. “Como diz Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1987, págs. 182 e 189), o texto ou letra da lei é o ponto de partida da interpretação e, como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei. A letra, o enunciado linguístico, é, assim, um ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, n.º 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) «que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso».([1])

 17. Uma interpretação inovadora de um preceito legal, como a feita pelo Venerando Tribunal a quo, aos n.º 2 e 3 do artigo 127.º do CIRE - justificará no entender dos Recorrentes, a necessidade da sua ulterior reflexão.

18. De facto, decidindo como decidiu, entende-se, salvo o devido respeito, que o Venerando Tribunal a quo tomou uma decisão manifestamente inesperada e lesiva das legítimas expectativas das partes, cuja apreciação deve ser levada, em sede de revista excepcional, ao conhecimento do Venerando Tribunal de Justiça para uma melhor aplicação do Direito.

19. Interpretação que os aqui Recorrentes não poderão deixar de refutar porquanto:

20. De facto, atendendo que a situação em apreço nos autos se enquadra no regime da impugnação pauliana e não no âmbito de uma comum acção declarativa em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente ou acções de natureza exclusivamente patrimonial, nada na redação dos n.ºs  2 e 3 do artigo 127.º do CIRE, nos leva à conclusão que tal regime não se aplicará às acções de impugnação pauliana com os contornos destes autos.

 21. Se é verdade que o legislador teve o cuidado no n.º 1 do artigo 127.º do CIRE de “vedar aos credores da insolvência a instauração de novas acções de impugnação pauliana”, já não procedeu a qualquer outra restrição no n.º 2 e 3 do referido artigo cuja epígrafe é, simplesmente, “Impugnação Pauliana”.

22. Resultando pois dos n.º 2 e do n.º 3 do artigo 127.º do CIRE que as acções de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência não só não são apensadas ao processo de insolvência, como podem prosseguir os seus termos, no interesse do credor impugnante.

23. E tanto assim é que o próprio Juiz do processo de insolvência da Ré GG (terceiro adquirente), por despacho datado de 15.12.2017, junto nos autos em 11.04.2018, veio informar que “não interessa a apensação da ação de impugnação pauliana em apreço, atento o disposto no art. 127., n,º 2 do CIRE”.

24. O que foi, aliás, decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 22.05.2012([2]) [referido a seguir no fundamento de oposição de Acórdãos]:

«A declaração de insolvência não determina sem mais, a extinção da presente acção de impugnação, nem deixa de ter interesse para os autores.

O seu prosseguimento ou não dependerá da actuação do administrador da insolvência, no sentido da resolução ou não dos actos das insolventes.(…)”.

25. Ademais é regra consabida que o património do devedor é responsável pelo cumprimento das suas obrigações – art. 601.º do Código Civil – daí, que ao credor seja dada a possibilidade de se precaver, com garantias reais ou pessoais, ou ambas, que exige do devedor, para assegurar a satisfação do seu crédito. Sendo, pois, a impugnação pauliana um desses meios de conservação de garantia patrimonial previstos na lei.

26. De facto, a acção de impugnação pauliana consiste na faculdade concedida por lei ao credor, de atacar os actos do seu devedor que realizados, dolosamente, façam perigar a satisfação do seu crédito.

27.  Reacção essa admissível, quer em relação à primeira alienação realizada pelo devedor (artigos 610.º e ss.do Código Civil), quer em relação a alienações subsequentes efectuadas pelo adquirente dos bens (artigo 613º do Código Civil) e constitui uma acção específica, destinada à impugnação desses actos.([3])

28. Dispondo o art. 616.º, n.º 1 do Código Civil que “Julgada procedente a impugnação o credor tem o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”.

29. Assim, «Os actos gratuitos, ou onerosos, praticados em desfavor do credor são intrinsecamente válidos; todavia, o credor impugnante tem direito à restituição dos que forem necessários à satisfação do seu crédito, podendo directamente agredir o património de quem estiver obrigado à restituição» - Acórdão do STJ, de 11.07.2013, proc. n.º 532/14.3TBBJA-FE1, disponível em www.dgsi.pt.

30. No “Código Civil Anotado”, de Pires de Lima e Antunes Varela, Vol I., págs. 633/634, em comentários ao preceito: “São três os direitos conferidos pelo n.º 1: o direito à restituição na medida do interesse do credor, o direito a praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei e o direito de execução no património do obrigado à restituição”. Sendo este último confirmado, aliás, na segunda parte do artigo 818.º do Código Civil. ([4])

31. Sendo que, como afirma Cura Mariano, in “Impugnação Pauliana, 2.ª ed., págs. 242 a 245, e citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ([5])«A expressão utilizada “direito à restituição” não deve ser encarada no sentido de uma viagem de regresso entre patrimónios. Esta denominação não significa a reentrada dos bens alienados no património do devedor, num movimento retroactivo, nem sequer a entrega dos mesmos ao credor; mas tão somente o restabelecimento da garantia patrimonial diminuída, através da exposição desses bens, independentemente da sua situação jurídica, aos meios legais conservatórios e executórios colocados à disposição do credor impugnante. Com a impugnação pauliana não se obtém a restauração do património do devedor, mas sim a reconstituição da garantia patrimonial do crédito do impugnante.

Neutralizam-se algumas das consequências do acto impugnado relativamente ao credor impugnante, sem afectar a sua validade, numa demonstração da sua filiação nos quadros da ineficácia stricto sensu.

Os bens alienados continuam, assim, a desempenhar no património do terceiro a sua função de garantia do cumprimento das obrigações do alienante, ficando apenas desactivado o efeito indirecto da subtracção à garantia patrimonial próprio dos actos de transmissão de bens. O direito de propriedade do adquirente sobre os bens em causa é um direito debilitado, uma vez que estes respondem por dívida de terceiro.

O “direito à restituição” traduz-se assim num direito potestativo do credor, integrante da estrutura complexa unitária do direito de crédito que consiste em poder sujeitar à execução de medidas conservatórias determinados bens do adquirente os adquiridos ao devedor, sendo aquele alheio à relação constitutiva do crédito.» (sublinhado nosso)

32. Para além de que, o próprio CIRE, no seu artº127.º, n.º 3 estatui “Julgada procedente a acção de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 616.º do Código Civil, com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos”.

33. Ora, a este propósito em anotação a tal normativo, escrevem, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado” (Pág. 450): «Na aferição do interesse do credor, o preceito em anotação atende ao disposto no art. 616.º do Código Civil, nomeadamente ao seu n.º 4, quando estabelece que a impugnação só aproveita ao impugnante. A nova lei afasta-se assim da anterior, a qual, no seguimento da nossa tradição, determinava que a procedência da impugnação aproveitaria à comunidade dos credores(..). Nesta base, o interesse do credor impugnante é aferido, segundo a estatuição do n.º 3…; isto significa que o seu crédito é considerado, quanto à medida do direito à restituição, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do referido artigo 616.º, tal como tenha sido reclamado e verificado no processo de insolvência.» (sublinhado nosso)

34. Assim, e como bem refere Cura Mariano, in “Impugnação Pauliana”([6]) com respeito à relação entre o credor impugnante e os credores do terceiro adquirente «A solução reside numa ponderação da valia dos interesses deste último e dos credores do adquirente que, a partir da transmissão dos bens em causa, passaram a contar com este reforço da garantia patrimonial dos seus créditos.

Tendo todos eles a legítima aspiração de verem cumpridas as prestações a que têm direito, é nossa opinião que a protecção aos interesses do credor impugnante não pode ser feita através do sacrifício dos credores do adquirente. Não sofrendo o acto impugnado de qualquer vício que afecte a sua validade, não devem estes, totalmente alheios ao prejuízo sofrido pelo credor impugnante, verem diminuída, injustificadamente, a sua garantia. Do mesmo modo que são poupados o próprio adquirente e os sub-adquirentes de boa fé, quando o acto envolveu da sua parte um sacrifício patrimonial, por maioria de razão, também a impugnação pauliana não deve afectar os direitos patrimoniais dos credores do adquirente atingido pelo exercício desta figura.(….)

Além da ponderação da valia dos interesses do credor impugnante e dos credores do adquirente nos aconselhar a limitação dos efeitos da ineficácia aqui defendida, também a própria segurança do tráfico jurídico beneficia com esta solução, uma vez que diminui o número de relações afectadas pela intervenção da impugnação pauliana e a profundidade da intervenção na vida negocial. (…) Com a entrada em vigor do C.I.R.E., deixou de existir qualquer distinção nos efeitos da impugnação pauliana relativa a actos do devedor que veio a ser judicialmente declarado insolvente, pelo que os credores do adquirente concorrerão em qualquer caso com o credor impugnante.”

35. Nesse sentido afirma Maria do Rosário Epifânio, in “Manual de Direito da Insolvência”, p. 219([7]) «Finalmente, e agora no âmbito restrito da impugnação pauliana, se a acção for julgada procedente, o interesse do credor impugnante será aferido em função do crédito, tal qual foi reclamado, e é independente das alterações resultantes de um eventual plano de pagamentos ou de insolvência (n.º 3 do art. 127.º)»

36. Pelo exposto, entendem assim os ora Recorrentes que a declaração de insolvência da Ré GG, Lda não conduz à inutilidade superveniente da lide nos termos do disposto no artigo 277.º, al. e) do CPC, continuando o processo a fazer e a ter sentido útil, aplicando ao caso sub judice o regime contido do n.º 2 e 3 do artigo 127.º do CIRE.

37. Na medida que tanto os credores do adquirente como o próprio credor impugnante têm legítimas aspirações de verem cumpridas as prestações a que têm direito, sob pena, de assim não se entender, o próprio credor impugnante ser totalmente desprotegido face a uma declaração de insolvência do terceiro adquirente, o qual, para além de mais agiu com má fé na transmissão em causa [permitindo um total esvaziamento do disposto no artigo 616.º do Código Civil e uma total desprotecção jurídica do credor impugnante - em detrimento do direito à tutela jurisdicional efectiva contida no artigo 2.º do CPC].

38. Só uma decisão com este conteúdo respeitará o critério de interpretação da lei, enunciado no artigo 9.º do Código Civil que, dever reconhecer-se, o Venerando Tribunal a quo, não só desconsiderou, como ostensivamente, terá violado.

Por oposição com o entendimento versado no Acórdão do Venerando Tribunal da Relação datado de 22.05.2012, no processo n.º 552/10.7TCFUN.L1.-1

39. Entendem os Recorrentes que o Acórdão recorrido ao decidir excluir da aplicação do regime contido nos n.º 2 e 3 do artigo 127.º do CIRE às acções de impugnação pauliana em que o crédito cuja garantia patrimonial se pretende acautelar com a acção não tem como devedor o insolvente, mas sim o adquirente posterior dos bens, demandado ao abrigo do disposto no artigo 613.º do Código Civil, entretanto, declarado insolvente, na pendência da acção de impugnação pauliana -  entra em contradição com o decidido no acórdão do Venerando Tribunal da Relação datado de 22.05.2012, no processo n.º 552/10.7TCFUN. L1.-1

40. Neste Acórdão de 22.05.2012 (relatado pelo Exma. Senhora Juiz Conselheira Rosário Gonçalves,  processo n.º 552/10.7TCFUN.L1.-1, disponível em www.dgsi.pt, cuja cópia se junta como doc. n.º 1), a questão a dirimir consistia, precisamente, em aquilatar se a declaração de insolvência das Rés - a saber, respectivamente devedora e terceira adquirente-, na pendência da acção de impugnação pauliana, acarretaria a inutilidade superveniente da lide.

41. Porém, e contrariamente, ao decidido no Acórdão recorrido, o referido Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que se “(…)  no caso concreto, estamos na presença de uma acção de impugnação pauliana, em que os autores alegam um direito de crédito pecuniário sobre a ré C, a prática por esta de um acto de transmissão de bens para a ré D, com o agravamento da satisfação do seu crédito e a má-fé desta, requerendo que o tribunal declare constituídos os seus direitos à restituição dos bens transmitidos ao património da devedora ao reconhecimento dos seus direitos.

Tal acção já se encontrava em juízo, quando ocorreu o trânsito em julgado das sentenças que declararam a insolvência de ambas as rés. (…)”, então “(…) a situação em apreço, enquadra-se no regime de impugnação pauliana e não no âmbito de uma comum acção declarativa em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente ou acções de natureza exclusivamente patrimonial. (…)” .

42. Concluindo que “Dispondo o n.º 2 do mesmo preceito (diga-se o artigo 127.º do CIRE), o seguinte; - As acções de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência ou proposta ulteriormente não serão apensas ao processo de insolvência e, em caso de resolução do acto pelo administrador da insolvência, só prosseguirão os seus termos se tal resolução vier a ser declarada ineficaz por decisão definitiva, a qual terá força vinculativa no âmbito daquelas acções quanto às questões que tenha apreciado, desde que não ofenda caso julgado de formação anterior. (….) resulta que a impugnação pauliana, não só não é apensada ao processo de insolvência, como pode prosseguir os seus termos, no interesse do credor impugnante, como o prevê o n.º 3 do mesmo preceito.  A declaração de insolvência não determina sem mais, a extinção da presente acção de impugnação, nem deixa de ter interesse para os autores. O seu prosseguimento ou não, dependerá da actuação do administrador da insolvência, no sentido da resolução ou não dos actos das insolventes, o que se desconhece nos autos.”

43. De facto, no referido Acórdão do Tribunal da Relação, não houve qualquer afastamento do regime previsto nos n.º 2 e 3 do artigo 127.º do CIRE, quando na verdade o que se encontrava em apreciação era factualidade em muito semelhante/idêntica aos dos autos a saber:

-  1.º Os Autores (A e B) deduziram, em 24.09.2010, acção de impugnação pauliana contra as Rés (C e D), requerendo que o tribunal se dignasse:

“1.º – Declarar constituído o direito dos A.A. à restituição das fracções autónomas “E””I”, “O” e “V”, do prédio urbano descrito (…) ao património da R. C, na medida necessária à satisfação do seu crédito de 380.000,00€, e respectivos juros à taxa legal dos juros civis (…) até integral pagamento;

2.º- declarar constituído o direito dos A.A. de executarem essas fracções autónomas no património da D, até ao montante necessário à satisfação daquele crédito e juros;

3.º - e condenar esta R. no reconhecimento desses direitos constituídos aos A.A.”;

- 2.º As Rés C. e D. foram declaradas em estado de insolvência no âmbito do processo nos 1123/10.3TBFUN, do 4.º Juízo Cível de Santa Cruz e 1642/10.1TBSCR do Tribunal Judicial de Santa Cruz, tendo as respectivas sentença transitado em julgado em 27 de Outubro de 2010 e 21 de Fevereiro de 2011.

44. Na verdade, e contrariamente ao referido no Acórdão recorrido, o mencionado Acórdão da Relação de Lisboa encerra uma situação igual aos dos presentes autos.

45. De facto, também nos presentes autos:

- 1.º Os Autores (AA, BB e CC) deduziram, em 26.01.2015, acção de impugnação pauliana contra os Réus: DD, Lda (1. Ré); EE (2.º Réu) FF, Lda (3.ª Ré); GG, Lda (4.ª Ré), pedindo, além do mais, se considerarem ineficazes e de nenhum efeito em relação a eles, autores, as transmissões dos seguintes veículos: 1) veículo automóvel pesado de mercadorias da marca Mitsubishi, com a matrícula 00-00-RV; 2) veículo automóvel pesado de mercadorias da marca VOLVO, com a matrícula 00-00-XL; 3) veículo automóvel pesado de mercadorias da marca Mitsubishi, com a matrícula 00-00-UD; 4) do reboque marca MERGUL, com a matrícula C- 6001; 5) do semi-Reboque marca LISTRAILLER, com a matrícula C-50005; 6) do veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca SEAT IBIZA, com a matrícula 00-00-PP, da 1.ª Ré (DD Lda) para o 2.º Réu (EE) e deste 2.º Réu para a 4.ª Ré (GG, Lda), podendo os Autores executarem tais bens no património dos obrigados à restituição, ou seja, da 4.ª Ré (GG, Lda – Terceira adquirente) para pagamento integral do seu crédito junto da 1.ª Ré DD, Lda.

- 2.º A Ré GG, Lda (Terceira adquirente) - foi declarada em estado de insolvência no âmbito do processo n.º 2473/17.3T8CBR, no Juízo de Comércio de ... do Tribunal Judicial da Comarca de ..., isto é, na pendência da acção de impugnação pauliana.

- 3.º Por despacho proferido em 24 de Maio de 2018 foi declara extinta a presente instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto ao pedido anteriormente referido em 1.º

46. Todavia, no referido Acórdão do Tribunal da Relação, não houve qualquer afastamento do regime previsto nos n.º 2 e 3 do artigo 127.º do CIRE, quando na verdade o que se encontrava em apreciação era factualidade em muito semelhante/idêntica aos dos autos, a saber: acção de impugnação pauliana em que o crédito cuja garantia patrimonial se pretende acautelar com a acção não tem como devedor o insolvente, mas sim o adquirente posterior dos bens, demandado ao abrigo do disposto no artigo 613.º do Código Civil, entretanto, declarado insolvente, na pendência da acção de impugnação pauliana

47. Pelo exposto, o Acórdão recorrido encontra-se em contradição com o sufragado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa em Acórdão datado de 22.05.2012, no processo n.º 552/10.7TCFUN.L1-1, cujo entendimento se deve manter e reafirmar no caso vertente – em face do que deve ser aplicado o regime previsto no n.ºs 2.º e 3.º do artigo 127.º do CIRE também às impugnações paulianas com os contornos aos dos presentes autos.

Pelo exposto,

48. O Acórdão recorrido violou os artigos: 8.º., n.3, 9.º, 601.º, 610.º, 613.º, 616.º e 818.º do Código Civil; 2.º e 277.º, al. e) do Código de Processo Civil e 127.º, n.º 2 e 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).»

7. A Formação a que alude o art.672º, n.3 decidiu admitir a revista excecional com base na alínea a) do n.1 do art.672º, para que se esclarecessem dúvidas quanto à interpretação e alcance do art.127º do CIRE, o que se justificaria para uma melhor aplicação do direito.

II. OBJECTO DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. Objeto do recurso:

No caso em apreço, o objeto do presente recurso é delimitado não apenas pelas conclusões das alegações do recorrente, mas também pelo âmbito com que foi admitido pela Formação enquanto revista excecional. Nestes termos, é o seguinte o problema a decidir:

Saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito ao entender que o art. 127º do CIRE não se aplica à hipótese do presente caso ou se, pelo contrário, devia ter aplicado esse artigo, mandando prosseguir a ação de impugnação pauliana contra o adquirente dos bens, declarado insolvente.

 

3. Factualidade relevante:

A factualidade relevante é a que resulta do relatório supra apresentado.

4. O direito aplicável:

4.1. Entendem os recorrentes «que a declaração de insolvência da Ré GG, Lda não conduz à inutilidade superveniente da lide nos termos do disposto no artigo 277.º, al. e) do CPC, continuando o processo a fazer e a ter sentido útil, aplicando ao caso sub judice o regime contido do n.º 2 e 3 do artigo 127.º do CIRE.»

4.2. No acórdão recorrido, para além de outros fundamentos que sustentaram a decisão (e que agora não estão em causa), entendeu-se que o art.127º do CIRE não fornece a base legal para sustentar a pretensão dos recorrentes no sentido da prossecução da ação de impugnação pauliana quando o terceiro foi declarado insolvente e os seus bens passaram a integrar a massa insolvente.

Tal decisão foi justificada nos termos que se reproduzem:

«(…) as acções de impugnação pauliana tidas em vista pelo artigo 127.º têm contornos diferentes dos da presente acção.

Assim, aquelas são intentadas por credores da insolvência contra actos praticados pelo devedor (insolvente) em prejuízo daqueles e caracterizam-se pelo seguinte:

- Em primeiro lugar, o crédito que motiva a impugnação é um crédito sobre o insolvente; 

- Em segundo lugar, o acto impugnado que envolve a diminuição da garantia patrimonial do crédito é um acto praticado pelo devedor insolvente;

- Em terceiro lugar, em caso de procedência da acção, os bens que ficam sujeitos ao direito do credor da insolvência são bens de terceiro, não da massa insolvente.

É por o acto impugnado ser um acto praticado pelo devedor insolvente e por a procedência da acção de impugnação pauliana ter por efeito o direito de executar os bens no património de terceiro, que está vedado aos credores a instauração de acções de impugnação pauliana de actos praticados pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador da insolvência. Compreende-se: se o acto praticado pelo devedor é resolvido pelo administrador da insolvência, os bens regressam à massa, conforme resulta do n.º 1 do artigo 126.º do CIRE, e o produto da liquidação aproveita a todos os credores.

E é ainda por o acto impugnado ser um acto praticado pelo devedor insolvente e por a procedência da acção de impugnação pauliana ter por efeito o direito de executar os bens no património de terceiro, que as acções de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência ou propostas ulteriormente não serão apensas ao processo de insolvência e, em caso de resolução do acto pelo administrador da insolvência, só prosseguirão os seus termos se tal resolução vier a ser declarada ineficaz por decisão definitiva. A justificação desta solução continua a ser a acima exposta: na hipótese de a resolução ser declarada eficaz, os bens regressam à massa insolvente e aproveitam a todos os credores da insolvência.

Segue-se do exposto que a procedência da acção de impugnação pauliana prevista no artigo 127.º do CIRE não tem como efeito o reconhecimento do direito de executar bens que integram a massa insolvente. Embora o direito que está pressuposto em tal acção seja um direito de crédito sobre o insolvente, o direito à execução reconhecido ao impugnante incide sobre bens de terceiro.

E acrescenta-se: «(…) os contornos da presente acção de impugnação pauliana são diferentes.

Em primeiro lugar, o crédito cuja garantia patrimonial se pretende acautelar com a acção não tem como devedora a insolvente; o devedor é outro, no caso a 1.ª ré.

Em segundo lugar, o acto que envolveu a diminuição da garantia patrimonial do crédito dos autores e que está a ser impugnado não foi praticado pela insolvente; foi praticado pela devedora (1.ª ré).

A ora insolvente foi demandada na qualidade de adquirente posterior dos bens, ao abrigo do disposto no artigo 613.º do Código Civil; não foi demandada na qualidade de devedora que praticou o acto que envolveu a diminuição da garantia patrimonial do crédito.

Em terceiro lugar, o direito que os autores querem ver reconhecido, como consequência da procedência da acção de impugnação pauliana, é o de executarem bens da massa insolvente.

Uma vez que a presente acção de impugnação pauliana não se ajusta à acção que está prevista no artigo 127.º do CIRE, o regime deste preceito não lhe é aplicável. E não lhe sendo aplicável, falece razão aos recorrentes quando ancoram nele a pretensão de prosseguimento da presente acção

 

4.3. Na tese dos recorrentes, o n.2 e o n.3 do art.127º do CIRE permitiriam a continuação da ação de impugnação pauliana contra o terceiro adquirente final dos bens (GG), entretanto declarado insolvente, e a posterior execução dos respetivos créditos nesse património, independentemente de os bens desse terceiro terem passado a integrar a massa insolvente.

Entendeu-se, no acórdão recorrido, que tal tese não tinha suporte legal, pois a configuração do caso concreto não cabe na previsão normativa do art.127º.

Podemos, desde já, afirmar que o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito.

Estabelece o art.127º CIRE:

«1- É vedada aos credores da insolvência a instauração de novas acções de impugnação pauliana de actos praticados pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador da insolvência.

2 - As acções de impugnação pauliana pendentes à data da declaração da insolvência ou propostas ulteriormente não serão apensas ao processo de insolvência, e, em caso de resolução do acto pelo administrador da insolvência, só prosseguirão os seus termos se tal resolução vier a ser declarada ineficaz por decisão definitiva, a qual terá força vinculativa no âmbito daquelas acções quanto às questões que tenha apreciado, desde que não ofenda caso julgado de formação anterior.

 3 - Julgada procedente a acção de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 616.º do Código Civil, com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos

O artigo 127º do CIRE, ao disciplinar a relação entre a impugnação pauliana e a resolução em benefício da massa, só pode ter pressuposta a hipótese de os bens alvo da impugnação pauliana ou da resolução se encontrarem na titularidade de um terceiro, e não do insolvente que praticou o ato de alienação.

O que justifica que uma ação de impugnação pauliana continue o seu percurso e não seja apensa aos autos da insolvência é o facto de os bens “perseguidos” se encontrarem na titularidade de terceiros e, por isso, não integrarem a massa insolvente. O art.127º não contém uma permissão de prossecução de uma ação de impugnação pauliana contra bens que se encontram apreendidos para a massa insolvente.

A acolher-se a interpretação que os recorrentes fazem do art.127 do CIRE, seria completamente destituído de lógica jurídica, e teleologicamente incompreensível, o facto de este artigo fazer depender a continuação da impugnação pauliana da circunstância de não ter existido, ou de ter sido improcedente, a ação de resolução em benefício da massa insolvente.

Não existe, assim, qualquer dúvida de que o caso dos presentes autos não cabe no âmbito de aplicação do art.127º do CIRE, pelo que desta norma não se pode extrair qualquer permissão legal para a continuação da ação de impugnação pauliana contra os bens integrados na massa insolvente.

E é também esta a interpretação que se conjuga com o disposto nos artigos 85º e 88º do CIRE.

Estabelece o art.85º, n.1:

«Declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo.»

Dispõe o art.88º, n.1 do CIRE:

«A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes

4.4. A declaração de insolvência, altera, assim, o estatuto dos bens que compunham o património do insolvente.

Ao serem integrados na massa insolvente, esses bens passam a ter como desígnio a satisfação do interesse dos credores, com respeito pelo princípio da igualdade de tratamento. 

Assim, caso o impugnante pauliano tenha um fundamento legal que lhe permita ver o seu crédito reconhecido e graduado concorrerá, como os demais credores, a ser pago pelos bens que passaram a integrar a massa insolvente[8].

Como afirma Cura Mariano: “(…) é nossa opinião que a proteção aos interesses do credor impugnante não pode ser feita através do sacrifício dos credores do adquirente. Não sofrendo o acto impugnado de qualquer vício que afete a sua validade, não devem estes, totalmente alheios ao prejuízo sofrido pelo credor impugnante, verem diminuída, injustificadamente, a sua garantia.”[9]

Em resumo, o acórdão recorrido nenhuma censura merece, pois fez a correta aplicação do direito ao caso concreto.

*

DECISÃO: Pelo exposto, decide-se negar a revista, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes

Lisboa, 17 de dezembro de 2019

Maria Olinda Garcia - Relatora

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

SUMÁRIO:

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([1]) ABÍLIO NETO, in Código Civil Anotado, 20.ª Ed. Actualizada, Abril 2018, EDIFORUM p. 21 e 22
([2])Proc. n.º 552/10.7TCFUN.L1-1, disponível em www.dgsi.pt
([3]) vide Acórdão do TRE, datado de 07.12.2017, proc. n.º 532/14.3TBBJA-FE1, disponível em www.dgsi.pt
([4]) neste sentido o Ac. Do STJ de 11.07.2013, proc. n.º 283/09.0TBVFR-C-P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
([5]) datado de 11.07.2013, proc. n.º 283/09.0TBVFR-C-P1.S1, disponível em www.dgsi.pt

([6]) 2.ª Ed – Revista e Aumentada, Almedina págs.267 a 269.
([7])2013, 5.ª Edição, Almedina.

[8] Neste sentido, vd. acórdão do STJ, de 11.07.2019, no proc. n. 341/13.7TBVNO-I.E1.S1 (relator Ricardo Costa): “O credor impugnante pauliano concorre em igualdade com os demais credores da insolvência do insolvente adquirente do bem-alvo na impugnação pauliana, salvaguardando-se o princípio par conditio creditorum e sendo tratado o seu crédito como se tivesse sido reclamado e verificado no processo de insolvência.”
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d20057aa7c5a829d80258434004c4d53?OpenDocument

[9]  Impugnação Pauliana (2ª ed.), pág. 267.