Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
655/11.0TBFLG.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: SOCIEDADE POR QUOTAS
PRESTAÇÃO SUPLEMENTAR
CESSÃO DE POSIÇÃO CONTRATUAL
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
CONTRATO UNILATERAL
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
Doutrina:
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, p. 447.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º A 238.º, 342.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGO 674.º, N.º3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 12-1-2012, PROCESSO N.º 1964/03, DE 28-2-2012, PROCESSO N.º 7/12, DE 8-3-2012, PROCESSO N.º 3027/07, DE 29-5-2012, PROCESSO N.º 1319/96.
Sumário :
I - Cumpre ao autor que exige do réu o pagamento da quantia de € 79 807,66, valor de alegadas prestações suplementares detidas pelo primeiro na sociedade de que ambos eram sócios, com base em contrato de cedência a favor do réu da posição contratual do primeiro, o ónus de provar que o réu se obrigou a pagar essa quantia (art. 342.º do CC).

II - Impõe-se, por isso, à luz da doutrina da impressão do destinatário que flui dos arts. 236.º a 238.º do CC, considerar se, atentas as circunstâncias atendíveis para a interpretação, o declaratário normal deve concluir que o primeiro réu estava contratualmente obrigado a pagar a aludida quantia.

III - Ora resultando tão somente do contrato que autor e réu celebraram que apenas o autor se obrigou a ceder ao primeiro réu a título de prestações suplementares o crédito por aquele detido sobre a sociedade por valor igual ao nominal, o contrato em causa deve classificar-se de contrato unilateral e não de contrato bilateral.

IV - Tal entendimento flui do teor do contrato e da própria posição assumida pelo autor quando antes de a ação ser proposta, notificou o primeiro réu para declarar se pretende manter ou não o negócio, não lhe exigindo o pagamento de qualquer quantia, mencionando que estava acordada a venda das prestações suplementares ao ora primeiro réu, negócio a efectuar subsequentemente e que não se concretizou por alegada indisponibilidade financeira do primeiro réu.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA propôs ação ordinária contra BB - Fábrica de Componentes de Borracha para Calçado, Lda. e contra CC e DD pedindo a condenação dos RR, pessoas singulares, no pagamento ao A. da quantia de 79.807,96€, da proveniência referida de 1 a 21, acrescida de juros legais desde a data da assinatura do acordo referido em 13 [ver infra alínea F) da matéria de facto] ou, quando assim se não entenda, desde a resposta do A. a que se aludiu em 11 [ ver infra alínea H] ou ainda, quando assim se não entenda, desde a citação até efetivo e integral pagamento; subsidiariamente, e para o caso de o primeiro pedido ser julgado improcedente, que se declare a nulidade da constituição de todas as prestações suplementares constituídas pelo A. em favor da primeira ré BB, no valor global de 79.807,66€, e inscritas nos últimos balanços anuais desta e, consequentemente, condenada esta 1ª ré no seu reembolso ao A. com juros legais desde a citação até integral pagamento.

2. A ação foi julgada improcedente em 1ª instância, decisão confirmada pelo Tribunal da Relação com voto de vencido.

3. O A. recorre para o STJ sustentando na minuta de recurso, em síntese, que a referida quantia de 79.807,66€, (e não 79.807,96€) que corresponde a prestações suplementares detidas pelo autor na sociedade ré, foi cedida pelo autor ao ora 1º réu, conforme contrato datado de 9-4-2010, por valor igual ao seu valor nominal.

4. Não se provou, como sustentava o réu, que essa quantia integrasse o valor de 350.000€ pelo qual foram cedidas as quotas detidas pelo autor na sociedade ré, uma cedida ao 1º réu por 190.000€, a outra cedida à sociedade por 160.000€ conforme escritura de cessão de quotas outorgada na mesma data de 9-4-2010 em que foi cedida a posição contratual nas prestações suplementares. 

5. Houve, assim, uma separação, constante de documentos autónomos, entre o valor da transmissão da quota (350.000€) e os valores respeitantes ao pagamento de suprimentos (43.956,00€: ver ata de 9-4-2010 a fls. 257 do vol I) e de cedência da referida prestação suplementar (79.807,66€).

6. Se as partes quisessem transmitir pelo preço da quota os créditos de suprimentos de prestações suplementares não só teriam consignado isso na escritura, como não teria havido qualquer pagamento adicional para além dos 350.000€ nem teria sido celebrado o contrato de cedência da posição contratual relativo às prestações suplementares formalizado por documento particular na mesma data, como se disse, em que foi outorgada a escritura de cessão de quotas.

7. O crédito de prestações suplementares, a ser integrado no valor estipulado para a cedência das quotas, teria então de ser integrado, na respetiva proporção no valor da quota adquirida pela sociedade e não cedido na totalidade a favor do 1º réu.

8. Analisada a cláusula segunda do mencionado contrato de cedência à luz da doutrina da impressão do destinatário constante dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, onde se lê " cede […] por valor igual ao seu valor nominal" esse valor nominal, no contexto gramatical da afirmação constante da indicada cláusula, não pode ser outro se não o valor de 79.807,66€ referente a créditos de prestações suplementares que o autor detinha na sociedade, ficando afastada qualquer interpretação que permita concluir que o negócio de cedência desse crédito foi gratuito ou sem contrapartida.

9. Não é aceitável uma interpretação que conduza à solução de que esse valor estaria integrado no valor a pagar da quota social porque não foi somente o réu marido o cessionário da participação alienada pelos autores, mas também, e em percentagem maior, a própria sociedade que, assim, deveria, como se disse, então ficar com um crédito na proporção da quota que adquiriu, sendo certo que nenhuma das quotas do autor, que resultaram de divisão da quota única por ele detida tendo em vista a cessão ao 1º réu e à sociedade, foram objeto de cedência pelos respetivos valores nominais.

10. Em momento algum os RR ousaram afirmar que a cedência do crédito do autor relativo às prestações suplementares foi um negócio gratuito ou sem contrapartida, o que vale por dizer que a cedência implicou uma venda pelo valor nominal do crédito dessas prestações.

11. Ora, de acordo com o princípio do equilíbrio das prestações a que alude o artigo 237.º do Código Civil, a interpretação que melhor se ajusta é a da obrigação de pagamento do valor das prestações suplementares que o autor detinha na sociedade ré no montante de 79.807,66€ e desde logo porque o réu marido nada tem a perder na medida em que se tornou credor da sociedade pelo valor de tais prestações.

12. Conclui o autor a sua minuta de recurso mencionando que os RR. não efectuaram o pagamento devido, "pelo menos desde a data da interpelação concretizada por via da notificação judicial avulsa, ou, quando não  assim, então a partir da citação; os réus singulares incorreram em mora e na consequente obrigação de indemnizar o autor, por incumprimento culposo da sua parte (como se presume), correspondendo a indemnização à obrigação do pagamento dos respetivos juros de mora - tudo, nos termos conjugados dos artigos 405.°, 406.º, 577.°, 578.° do Código Civil, sendo - como assinalado - de presumir a culpa dos réus no incumprimento por força do disposto no artigo 799.° do mesmo diploma.

13. O acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento em matéria de direito porquanto não interpretou devidamente o contrato em causa à luz da boa aplicação das regras de interpretação previstas nos artigos 236°/1 e 237.º ambos do Código Civil, nem aplicou, como deveria, os normativos antecedentemente invocados de que resultaria, como resultará, a procedência da acção e a consequente condenação dos réus singulares no pedido principal que contra eles vem formulado.

14. Termos em que, sufragando-se o entendimento expresso na douta declaração de voto de vencido por via do qual deveria já ter sido dado provimento ao precedente recurso, deverá, por isso, revogar-se o acórdão recorrido, substituindo-o por um outro que, julgando a acção procedente, condene os réus singulares no pagamento ao autor da quantia peticionada acrescida dos juros, nos termos referidos, com o que farão V. Exªs a merecida e habitual JUSTIÇA".

15. Sustentam os réus, nas suas alegações, que o valor patrimonial da participação social do A. e dos suprimentos ascende a 400.486,90€, recebendo o autor, a título de negócio realizado, o valor de 393.956,00€, largamente superior à soma dos valores nominais da quota (50.000,00€), suprimentos (43.956,00€) e prestações suplementares (79.807,66€) que dá o total de 172.763,66€,

16. Por outro lado, a ausência de previsão, no contrato de cedência de posição contratual nas prestações suplementares, da obrigação de pagamento do preço, prazo e forma, leva, por si, e em conexão com a sobredita exigência dos cheques visados à inequívoca conclusão de que o valor das prestações suplementares não era, nem é devido (não é para pagar); e, por essa razão, em tal documento não ficou expressa a obrigação de pagamento de preço, prazo e forma.

17. Não resulta da factualidade qualquer deliberação social no sentido da restituição das prestações suplementares ou que o réu tenha assumido obrigações de pagamento através de declaração expressa ou tácita.

18. A verdade é que, como declaratário, o réu nunca teve para si que a declaração do A. de cedência da posição contratual nas prestações suplementares consubstanciava uma cedência onerosa; e sempre considerou que essa era, também, a vontade real do A. - cedência gratuita, não cedência onerosa.

19. Factos provados

A) No dia 09/04/2010, no Cartório Notarial de Celorico de Basto o 2.º réu na qualidade de primeiro outorgante e o A. e sua mulher na qualidade de segundos outorgantes celebraram a escritura pública designada de divisão, cessão e unificação de quotas e renúncia de gerência, declarando, entre o mais que aqui se dá por reproduzido, que: - o primeiro e o segundo outorgante marido que «são os únicos sócios da sociedade comercial por quotas com a firma BB - Fábrica de Componentes de Borracha para Calçado Lda. (…) com o capital social de cem mil euros.

Que no referido capital o primeiro outorgante é titular de duas quotas, uma no valor nominal de dois mil quatrocentos e noventa euros e noventa e nove cêntimos (bem próprio), e outra no valor nominal de quarenta e sete mil quinhentos e seis euros (bem comum), e o segundo outorgante de uma quota no valor nominal de cinquenta mil euros.

Pelo segundo outorgante foi dito que divide a sua quota de valor nominal de cinquenta mil euros, em duas, uma no valor nominal de vinte e quatro mil e quinhentos euros e outra com valor nominal de vinte e cinco mil e quinhentos euros.

Que cede ao primeiro outorgante a quota no valor nominal de vinte e quatro mil e quinhentos euros pelo valor de cento e noventa mil euros, e cede à sociedade supra referida a outra quota com valor nominal de vinte e cinco mil e quinhentos euros, pelo valor de cento e sessenta mil euros. (…)

Pelo Primeiro outorgante, foi dito:

Que aceita a presente cessão nos termos exarados, para si, e para a mencionada sociedade.

(…)

Pelos segundos outorgantes foi ainda dito:

Que já receberam o referido valor da cessão das quotas, e ao primeiro outorgante e sua representada dão quitação.»

B) Na mesma data, o A. foi reembolsado pela 1ª ré., do valor dos suprimentos que lhe havia efectuado até aquela data, no montante de 43.956,00€.

C) Ao tempo das aludidas cessões de quotas, o A. tinha efectuado a favor da 1ª Ré, um montante, no valor de 79.807,66€, a título de "Prestações Suplementares".

D) Tal montante era o correspondente a metade das prestações suplementares globais com que os então únicos sócios – A e 2º réu marido -, tinham contribuído para a sociedade, conforme resulta da inscrição contabilística nos últimos balanços anuais da 1ª ré.

E) O contrato de sociedade não consigna a exigência de constituição de “prestações suplementares”.

F) Na mesma data da escritura referida em A), o 2º réu marido na qualidade de primeiro outorgante e o A., na qualidade de segundo outorgante, assinaram um documento designado de "Contrato de Cedência de Posição Contratual nas Prestações Suplementares", com o seguinte teor:

«1.º O Primeiro e Segundo outorgante têm na sociedade BB (…) o montante global de 159.615,32€ (…) dividido em duas partes iguais cada uma de 79.807,66€ (…) correspondente a prestações suplementares que os sócios possuem na dita sociedade.

2.º Pelo presente documento o segundo outorgante cede ao primeiro outorgante o valor de 79.807,66€ (…) que este detém a titulo de prestações suplementares na sociedade “BB (…)” por valor igual ao seu valor nominal.

3.º Com a presente cedência o 2.º outorgante nada mais tem a reclamar da empresa “BB (…)” seja a que título for.

Ambos os outorgantes aceitam o presente contrato, sendo o mesmo realizado de livre e de boa fé e de acordo com as vontades dos cedentes»

G) O A. procedeu à notificação judicial avulsa do 2.º réu para que o mesmo no prazo de oito dias lhe dissesse se pretendia manter o negócio mencionado em F) ou não – conforme teor de fls. 17 a 22 destes autos, que aqui se dá por reproduzido.

H) O A. recebeu do 2º réu marido a carta, datada de 08/11/2010, nos termos da qual o mesmo afirma, entre o mais que aqui se dá por reproduzido: «(…) Passado mais algum tempo e várias negociações chegamos a um acordo pelo valor de 400.000,00€, com todos os direitos e obrigações, ao que aceitaste.

(…) acabaste por acordar em deduzir 6.000,00€ e eu paguei de imediato.

Assim actualmente não tens qualquer crédito ou dívida perante mim ou face à BB, seja a que título for.

Assim, feito o acordo, cedeste a tua participação social na empresa, pelo valor de 394.000,00€, a qual incluía naturalmente todos os direitos inerentes, suprimentos, prestações suplementares e ainda todos os valores em dívida pelo exercício da gerência.

Lembro-te que existem como bem sabes, documentos subscritos pelas partes que respeitam à cessão propriamente dita, suprimentos e às prestações suplementares. (…)»

I) Consta da ata n.º12, datada de 31/12/1994, que os sócios da 1.ª ré BB (…) reuniram em assembleia geral extraordinária e ali declararam reconhecer a necessidade de reforço dos capitais próprios da sociedade ali se mencionando que «a constituição de prestações suplementares, no valor de doze milhões de escudos fosse subscrita por todos os sócios, na proporção directa da sua participação do capital social». – e demais teor que aqui se dá por reproduzido.

J) Das actas da Sociedade 1ª Ré BB, mormente daquelas juntas aos autos, não consta, para além do que resulta da alínea que antecede, qualquer outra deliberação no sentido da exigência/realização de prestações suplementares, nem também qualquer deliberação quanto ao modo, prazo e condições da respectiva devolução.

K) O autor já recebeu o valor acordado para a cessão de quotas da sociedade 1ª Ré.

20. Factos não provados

Com interesse para a decisão da causa não se provou que:

1. A. e 2.º R marido acordaram, antes da escritura a que se alude em A), e como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele, A., na 1.ª R, ao 2.ºR. marido mediante o pagamento pelo 2º Réu ao 1º do valor de 79.807,66€, a acrescer ao valor acordado para a cessão de quotas e ao valor do reembolso dos suprimentos.

2. As partes acordaram fixar o valor total do negócio de cedência em 400.000,00€, aqui se incluindo já o valor referenciado como «prestações suplementares» que caberiam ao A. na quantia de 79.807,66€.

3. O documento designado de contrato de cedência a que se alude em F) só foi efectuado para efeitos contabilísticos.

Apreciando

21. A questão que está em causa é a de saber se à luz do disposto nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil deve ou não considerar-se que o contrato de cedência celebrado entre o 1º réu e o autor das prestações suplementares que este detinha sobre a sociedade é ou não um contrato oneroso dele resultando para o réu a obrigação de pagamento da quantia de 79.807,66€ e, no caso afirmativo, se deve considerar-se provado que o preço foi pago por ter sido integrado no valor estipulado para a cessão de quotas do A. a favor do réu; no caso de não se considerar provado que a aludida quantia acrescia ao valor acordado para a cessão de quota de 190.000€ para o réu (o autor cedeu ainda outra quota à sociedade no montante de 160.000€), não se provando o contrário, ou seja, que a aludida quantia não se integrava no valor pago pela cessão, qual o entendimento a seguir face às regras sobre o ónus da prova.

22. Antes de prosseguir, cumpre esclarecer que não está em causa, neste recurso, o pedido subsidiário, pois, como salientou o autor, " já nas alegações orais produzidas no final da audiência de julgamento […] abandonou a arguição da nulidade das prestações suplementares e o pedido que com base na mesma havia formulado".

23. Saliente-se ainda que é incontroverso que (a) as prestações suplementares foram realizadas e, em consequência da sua realização, ambos os sócios eram credores da sociedade a título de prestações suplementares no montante de 79.807,96€ cada um (ver alíneas C) e D) dos factos provados).

24. Está igualmente adquirido nos autos o seguinte:

- Que o valor estipulado pela cessão de quotas (o autor dividiu em duas a sua quota no valor nominal de 50.000€, cedendo a de 24.500€ ao 1º réu por 190.000€ e a de 25.500€ à sociedade por 160.000€) foi pago (alínea K) dos factos provados).

- Que o autor recebeu ainda da sociedade a quantia de 43.596,00€ de que era credor a título de suprimentos (alínea B) dos factos provados).

- Que esse valor de 43.596,00€ não se integra no valor de cedência das quotas constante da escritura.

- Que não consta das atas da sociedade qualquer deliberação no sentido de exigência/realização de prestações suplementares, nem qualquer deliberação quanto ao modo, prazo e condições da respetiva devolução).

- Que não se julgou verificada a nulidade da constituição de prestações suplementares.

- Que a Relação considerou que não foi possível apurar o sentido inequívoco das declarações negociais implicadas no contrato referido em F) da matéria de facto (contrato de cedência da posição contratual nas prestações suplementares) nem a vontade real subjacente.

25. Nas alegações de recurso insurge-se o recorrente quanto à resposta dada em matéria de facto pelas instâncias no tocante ao quesito 1º em que não se deu como provado que " a A. e o 2.º réu marido acordaram, antes da escritura de cessão de quotas e como parte integrante do conjunto do negócio, que o primeiro cederia a sua posição contratual nas prestações suplementares constituídas por ele A., na 1ª ré, ao 2.º réu marido pelo valor de 79.807,66€".

26. O Supremo Tribunal de Justiça como decorre do disposto no artigo 674.º/3 do CPC/2013 e conforme jurisprudência consolidada há dezenas de anos não intervém na fixação dos factos materiais da causa.

27. No que respeita aos poderes de cognição do STJ importa ter presente a jurisprudência, há muito igualmente consolidada, segundo a qual a determinação da vontade real dos contraentes constitui matéria de facto da competência das instâncias, constituindo já matéria de direito averiguar o sentido da declaração negocial à luz dos critérios que resultam do disposto no artigo 236.º e seguintes do Código Civil (ver, na jurisprudência mais recente, os Acs do STJ de 12-1-2012, rel. Sérgio Poças, revista n.º 1964/03, de 28-2-2012, rel. Alves Velho, revista n.º 7/12, de 8-3-2012, rel. Serra Baptista, revista n.º 3027/07, de 29-5-2012, rel. Gregório Jesus, rev. n.º 1319/96).

28. A matéria constante dos factos quesitados que não se provaram resultou da posição assumida pelos RR no sentido de que o valor das prestações suplementares detidas pelo autor seriam cedidas ao réu pelo valor de 79.807,66€ como parte integrante do conjunto do negócio, incluindo-se no valor total da cedência o valor das prestações suplementares que o A. já recebeu, tendo sido para efeitos contabilísticos elaborado o documento particular de cedência na mesma data em que foi outorgada a escritura de cessão de quotas.

29. De acordo com a doutrina da impressão do destinatário que promana dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil importa operar com a hipótese de um declaratário normal, sendo atendíveis "todos os coeficientes que um declaratário medianamente instruído, diligente sagaz, na posição do declaratário efetivo, teria tomado em conta, relevando' os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, os hábitos do declarante (de linguagem ou outros) […]" (Teoria Geral do Direito Civil, Mota Pinto, 4.ª edição, pág. 447).

30. Como se vê, o próprio réu assumiu que o valor em causa de prestações suplementares era um valor a pagar pela cedência só que não provou, contrariamente ao que sustentou, que tal valor estava incluído no valor global pago pela cessão feita pelo autor de 393.956,00€ e não 400.000,00€ por se ter acordado uma dedução de 6.045,00€ por se proceder a pagamento imediato (artigos 20.º,29.º e 30.º da contestação).

31. Não se pode agora, nem tão pouco o podia fazer a Relação salvo alteração da matéria de facto, extrair por presunção judicial (artigo 351.º do Código Civil) conclusão contrária, ou seja, concluir que o mencionado valor se integraria no valor da cedência de quotas acrescido do valor do pagamento dos créditos por suprimentos (350.000,00€ + 43.956,00€), hipótese que a Relação aventou, mas não assumiu, e bem.

32. No contrato de cedência menciona-se expressamente que " o valor de 79.807,66€ que o cedente - ora autor - detém na sociedade ré a título de prestações suplementares" é cedido " pelo valor igual ao seu valor nominal".

33. A letra do texto é, a nosso ver, inequívoca (artigo 236.º/1 e 238.º/1 do Código Civil) no sentido de que foi assumida uma cedência onerosa de prestação suplementar detida pelo autor na sociedade ré coincidindo o valor da cessão com o valor nominal.

34. A 1ª instância considerou que o documento em causa não demonstra que o negócio subjacente tenha correspondido a uma venda ou a uma transmissão a título oneroso do crédito cedido pois o autor não provou "que o 1º réu se tenha comprometido, com a aludida cedência, a satisfazer o valor das prestações suplementares cedidas".

35. Estamos - ver alínea F) da matéria de facto provada - face a um contrato em que o cedente, e apenas ele, se obriga nos termos que constam da cláusula segunda, ou seja, a ceder ao réu marido " o valor de 79.807,66€ que este detém a título de prestações suplementares na sociedade BB […] por valor igual ao seu valor nominal". Com a presente cedência o autor, conforme consta da cláusula terceira, declara " que nada mais tem a reclamar da empresa 'BB' seja a que título for".

36. Os contratos podem ser bilaterais quando geram obrigações para ambas as partes, mas podem também ser unilaterais quando geram obrigações apenas para uma das partes.

37. Ora o contrato em causa é um contrato unilateral, visto que o 1º réu ficou com o direito de exigir do autor a cedência da prestação suplementar de que o autor é titular sobre a sociedade mediante o pagamento da referida quantia.

38. No entanto, o autor não ficou credor dessa quantia precisamente porque o 1º réu não assumiu a obrigação de pagamento; ou seja, o aludido contrato não se traduz num contrato sinalagmático em que o autor se obriga a ceder ao réu marido a sua posição contratual de credor da sociedade pelo valor da aludida prestação e este se obriga a pagar a quantia estipulada.

39. Se este é o sentido que decorre do texto do contrato, é este o sentido que igualmente resulta da posição assumida pelo autor quando, antes da ação ser proposta, notificou judicialmente o réu (ver fls. 19 e 20 dos autos), referindo o que se passa seguidamente a transcrever:

"AA vem requerer a notificação judicial avulsa de CC […] nos termos e com os seguintes fundamentos:

1. Em 9-4-2010 o requerente e o requerido/notificado outorgaram no cartório notarial de […] a cessão de quotas do primeiro para o segundo e para a representada deste BB […] nas proporções constantes da referida escritura.

2. Relativamente às prestações suplementares de que o requerente era detentor, estava acordada a sua venda ao agora notificando CC.

3. Tal negócio não se concretizou por alegada indisponibilidade financeira daquele.

4. Assim, requer que seja notificado para, em 8 dias, vir dizer se pretende manter o negócio ou não".

40. Resulta claramente deste texto, em consonância com o que consta do mencionado contrato de cedência, que dispunha o réu do direito de, querendo, exigir do autor a cedência do crédito deste sobre a sociedade; constata-se que o autor estava interessado na efetivação do contrato que não se terá concretizado por alegada indisponibilidade financeira.

41. Se o contrato de cedência implicasse obrigações recíprocas é evidente que o autor não notificaria o réu nos termos em que o fez, exigir-lhe-ia o pagamento do preço, constituindo tal notificação interpelação que faria o réu incorrer no pagamento de juros moratórios como reclama o autor na petição na qual, diga-se, sempre admite que afinal a interpelação apenas se deu com a citação e não antes com a notificação judicial avulsa. Não há, na verdade, com a notificação judicial avulsa nenhuma exigência de pagamento de preço.

42. Não se provou, como se disse, que esse valor de 79.807,66€ já tivesse sido pago integrado no valor de cessão das quotas, entendimento que apontaria para uma leitura do contrato em causa como um contrato bilateral; certo que, face à posição assumida pelo réu na contestação, a ausência de prova do pagamento da cessão nos aludidos termos deixava aberta a porta ao entendimento de que a aludida quantia estava em dívida e, assim sendo, não tendo o réu cumprido o ónus de prova do pagamento, impunha-se, por conseguinte, a sua condenação no pagamento face ao disposto nos artigos 342.º e 799.º do Código Civil. Daí o voto de vencido.

43. Sucede, porém, que independentemente da posição assumida pelo réu na contestação, cumpria ao autor o ónus de provar que era credor do primeiro réu de acordo com o contrato estabelecido, o que importaria a consideração do contrato em causa como contrato bilateral de cedência de posição contratual.

44. Ora, de acordo com a doutrina da impressão do destinatário, que impõe a procura de um sentido para a declaração negocial que há de ser aquela que o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (artigo 236.º/1 do Código Civil), o sentido que se alcança, no caso vertente, atenta a própria posição assumida pelo autor, não é a que ele defende na petição.

45. Assim sendo, não pode a ação proceder pois o autor não provou - e dele era o ónus da prova (artigo 342.º do Código Civil) - ser credor da obrigação de pagamento da aludida quantia precisamente porque, nos termos do contrato firmado, se constata que réu não assumiu essa obrigação.

46. De facto, o autor assumiu a obrigação de cedência da prestação suplementar de que era detentor, desde logo assumindo que nada mais tinha a reclamar da sociedade - o que deixava claro para futuro que apenas estaria em causa esse crédito - tendo em vista a futura venda ao primeiro réu desse crédito. O réu que nessa mesma data de 9-4-2010 adquirira a quota do autor por si e em representação da sociedade tinha todo o interesse em que desde logo ficasse clarificado que o autor não dispunha de mais nenhum crédito sobre a sociedade.

47. Refira-se, para terminar, que a ser efetivada a cedência da quota, tal cedência constitui negócio oneroso e, como é evidente, o contrato de cedência em causa não se traduz numa doação do crédito a favor do primeiro réu.

48. A revista não pode, por conseguinte, deixar de improceder.

Concluindo:

I - Cumpre ao autor que exige do réu o pagamento da quantia de 79.807,66€, valor de alegadas prestações suplementares detidas pelo primeiro na sociedade de que ambos eram sócios, com base em contrato de cedência a favor do réu da posição contratual do primeiro, o ónus de provar que o réu se obrigou a pagar essa quantia (artigo 342.º do Código Civil).

II - Impõe-se, por isso, à luz da doutrina da impressão do destinatário que flui dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, considerar se, atentas as cláusulas do contrato e as demais circunstâncias atendíveis para a interpretação, o declaratário normal deve concluir que o primeiro réu estava contratualmente obrigado a pagar a aludida quantia.

III - Ora resultando tão somente do contrato que autor e réu celebraram que apenas o autor se obrigou a ceder ao primeiro réu a título de prestações suplementares o crédito por aquele detido sobre a sociedade por valor igual ao nominal, o contrato em causa deve classificar-se de contrato unilateral e não de contrato bilateral.

IV - Tal entendimento flui do teor do contrato e da própria posição assumida pelo autor quando, antes de a ação ser proposta, notificou o primeiro réu para declarar se pretende manter ou não o negócio, não lhe exigindo o pagamento de qualquer quantia, mencionando que estava acordada a venda das prestações suplementares ao ora primeiro réu, negócio a efetuar subsequentemente e que não se concretizou por alegada indisponibilidade financeira do primeiro réu.

Decisão: nega-se a revista.

Custas pelo autor

Lisboa, 8-10-2015

Salazar Casanova (Relator)

Lopes do Rego

Orlando Afonso