Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B993
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: VEÍCULO AUTOMÓVEL
PENHORA
RESERVA DE PROPRIEDADE
VENDA
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
Nº do Documento: SJ200505120009937
Data do Acordão: 05/12/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7677/04
Data: 11/25/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : Efectuada a penhora de um veículo automóvel, na pressuposição de que não existia reserva de propriedade a favor da exequente, a acção executiva não pode prosseguir, designadamente para efeitos de se proceder à respectiva venda, sem que a exequente comprove a renúncia à reserva de propriedade e o consequente cancelamento do registo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A", SA" instaurou, no Tribunal Cível de Lisboa, contra B e mulher C execução de sentença para pagamento da quantia de 38.233,34 Euros, indicando, no requerimento inicial, para ser penhorado, além de outros bens, o veículo automóvel marca Mitsubishi, modelo 200, com a matrícula HF, que pode ser encontrado junto à residência do executado Gabriel, a quem pertence.

Levada a efeito a penhora do referido veículo, foi a mesma registada, em 26/04/2004, na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa, constatando-se da respectiva certidão de ónus e encargos que sobre o veículo HF se encontrava registada, desde 08/05/2001, a favor do "A", SA" a respectiva reserva de propriedade.

Juntos aos autos o registo da penhora e a certidão de encargos, o M.mo Juiz proferiu despacho no qual, entendendo que a execução só poderá prosseguir quanto ao referido veículo bem assim que estiver demonstrado o registo da renúncia à reserva de propriedade, determinou a suspensão da execução relativamente ao citado veículo até que esteja demonstrado no processo o registo da renúncia à reserva de propriedade.

Inconformado, agravou o exequente, sem êxito, uma vez que o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 25 de Novembro de 2004, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Interpôs, agora, o exequente recurso de agravo da 2ª instância, pretendendo a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que ordene o prosseguimento da penhora (que o mesmo é dizer da execução) do veículo dos autos.

Não foram deduzidas contra-alegações.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.
Nas alegações do recurso o recorrente formulou as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):

1. É perfeitamente admissível, é válido, é legitimo, é legal, que o detentor da reserva de propriedade possa nomear à penhora o bem sobre que incide tal reserva, sendo certo que nesse caso estará a renunciar ao seu "domínio" sobre o bem, tanto mais que nos casos em que o detentor da reserva de propriedade opta pelo pagamento da quantia em dívida - em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide - deixa de poder fazer operar a reserva de propriedade constituída, deixa de poder reivindicar para si o bem.
2. A não ser assim, em tais casos - opção pelo pagamento da quantia em dívida - o acordo, entre credor e devedor, de constituição de reserva de propriedade por parte do credor faria com que este não pudesse nomear à penhora o bem sobre o qual havia incidido tal reserva, pelo que, em tais casos a constituição de reserva de propriedade por parte do credor não só não o beneficiaria como o prejudicaria, inclusivamente, em relação aos outros credores do devedor, o que, para além de ser claramente injusto, iria contra o espírito do direito, estaria em manifesta oposição com a vontade das partes ao acordar na reserva de propriedade.

3. A validade, legitimidade e legalidade de o detentor da reserva de propriedade poder nomear à penhora o bem sobre que tal reserva incide, é ainda mais evidente e justificada nos casos em que a reserva de propriedade foi constituída pelo devedor em favor do credor apenas como mera garantia do cumprimento de um contrato de mútuo para financiamento da aquisição, pelo devedor, do veículo automóvel sobre que incide a reserva, e não para assegurar ao credor a propriedade do bem; pois nesse caso a reserva de propriedade visa apenas garantir que enquanto o contrato de mútuo não estiver cumprido o veículo cuja aquisição tal mútuo financiou não possa ser vendido pelo devedor sem conhecimento e autorização do credor, de forma a assegurar que em caso de incumprimento do contrato, pelo menos o veículo financiado possa assegurar, precisamente através da sua nomeação à penhora, o pagamento coercivo da dívida, de parte dela pelo menos, e impedir que tal veículo possa ser penhorado por terceiros.

4. O facto de a reserva de propriedade estar eventualmente registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de harmonia com o disposto nos artigos 824° do Código Civil e 888° do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.

5. No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve-se agir de acordo com o que se prescreve no artigo 832° do Código de Processo Civil caso a penhora ainda não tenha sido efectuada ou esteja a sê-lo, ou com o que se prescreve no artigo 119° do Código do Registo Predial caso a penhora já tenha sido realizada e a dúvida surja por o bem não estar registado em nome do executado mas em nome de outrem.

6. Assim, tendo o ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre o qual a mesma incide, o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo; tendo a exequente renunciado ao "domínio" sobre o bem, pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824° do Código Civil e 888° do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam, e não se prevendo no artigo 119° do Código do Registo Predial o levantamento oficioso da penhora é manifesto que no acórdão recorrido (bem como aliás havia já sucedido na 1ª instância) se errou e decidiu incorrectamente.

7. No acórdão recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu e ao confirmar-se o despacho proferido na 1ª instância, claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou o disposto nos artigos 888° do Código de Processo Civil, artigos 409°, 824° do Código Civil, e artigo 119° do Código do Registo Predial.

Importa aplicar o direito aos factos acima transcritos.

A única questão que demanda análise no âmbito do agravo é a de saber se, constando do registo automóvel a reserva da propriedade do veículo penhorado a favor da exequente, pode a execução prosseguir seus termos sem previamente estar efectuada e levada ao registo a renúncia da exequente àquela reserva.

Esta questão, se bem que encarada por aspectos não totalmente coincidentes, tem sido objecto de apreciação pelos tribunais superiores (sobretudo pelo Tribunal da Relação de Lisboa) com divergência de entendimento e, em consequência, com diferentes conclusões na interpretação e aplicação do direito.

Assim, para alguns (que constituem jurisprudência maioritária) penhorado um bem sobre o qual está registada a reserva de propriedade a favor do exequente, deve a execução ser suspensa até que se mostre comprovado o cancelamento desse registo. (1)

Sustentam outros que, requerida e ordenada a penhora sobre veículo automóvel, não é necessário que o exequente requeira o cancelamento da existente reserva de propriedade a seu favor, sendo que o facto da reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da execução. (2)

Tanto quanto é do nosso conhecimento, sobre esta questão concreta o Supremo pronunciou-se já por três vezes.

Nos Acórdãos de 30/04/98 e de 13/01/2005 (3)

, sustentando que penhorado um veículo automóvel com reserva de propriedade a favor da exequente não pode a acção executiva prosseguir sem que se demonstre o registo da renúncia àquela reserva.

Em contrapartida, no Acórdão de 02/11/2004 (4), defendendo que o exequente, ao nomear à penhora um bem relativamente ao qual possui a reserva de propriedade, abdica da manutenção do seu direito de propriedade sobre o mesmo, através da renúncia tácita e automática ao domínio que se reservara no momento da celebração do contrato, pelo que nada obsta ao prosseguimento da execução.

Adiantamos, desde já, que o nosso entendimento, pautando-se por um juízo de adesão à jurisprudência que indicamos como maioritária, coincidente aliás com a solução a que chegou o acórdão recorrido, é o de que a execução só poderá prosseguir quanto ao automóvel cuja reserva de propriedade está inscrita a favor da exequente desde que esteja demonstrada a renúncia à reserva de propriedade, bem assim como o registo de tal renúncia.

Vejamos porquê.
Estabelece o art. 409º do C.Civil que "nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento" (nº 1). "Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros" (nº 2).

Reportando-se o referido art. 409º - aliás na sequência do anterior art. 408º, que consagra a regra de que a transferência da propriedade se opera por mero efeito do contrato - aos contratos reais ou com eficácia real, de que resultam não apenas efeitos obrigacionais mas também efeitos reais (constituição ou transferência do domínio) (5) inequívoco se mostra que "a função económica da reserva de propriedade é a de garantir o crédito do vendedor pelo preço da compra. A reserva de propriedade substitui o direito de penhor sem posse do vendedor, inadmissível em face do nosso Código Civil (arts. 669º e 677º). Com a reserva de propriedade visa o vendedor precaver-se de uma eventual inexecução do contrato ou insolvência por parte do comprador, caso em que o vendedor deseja obter a restituição da coisa, fazendo valer os seus direitos quer em face do comprador, quer de terceiros, credores do comprador, ou que por ele tenham sido investidos em direitos sobre a coisa. Consegue-o convencionando que a titularidade do direito de propriedade permaneça na sua esfera jurídica até ao integral pagamento do preço".(6)

Certo que, assim sendo, não pode, desde logo, deixar de se estranhar que a cláusula de reserva de propriedade se encontre registada a favor da exequente, não vendedora mas apenas financiadora da aquisição feita pelos executados, consequentemente associada a um contrato de mútuo que tão só traduz a transferência para o mutuário do montante pecuniário a ele entregue, e desse modo, até certo ponto incompatível com a norma do art. 409º, nº 1, do C.Civil, sede principal da reserva de propriedade, que prevê apenas a sua inserção, em benefício do alienante de qualquer contrato de alienação. (7)
Naturalmente que os autos evidenciam a existência de uma relação triangular, cujo conteúdo suporta a ideia de contratos coligados: a fornecedora do automóvel vendeu-o ao executado marido; este, para conseguir o correspondente pagamento, obteve da exequente um financiamento (empréstimo) da quantia necessária; finalmente, como é usual - e aqui outra coisa se não passou - a financiadora entregou a quantia correspondente ao preço directamente à vendedora.

Não se descortina, no entanto, com facilidade o processo negocial que veio a permitir o registo da reserva de propriedade a favor da mutuante (terá havido uma dupla venda, primeiro da fornecedora à financiadora e depois, desta ao adquirente? terá ocorrido uma sub-rogação contratual da financiadora nos direitos que, ab initio, pertenciam à vendedora? ter-se-ão procurado, afinal, efeitos semelhantes aos da alienação fiduciária em garantia que, entre nós, ainda não alcançou consagração legal?).

Não obstante, e apenas para o efeito de se conhecer do recurso, há que considerar que a exequente nomeou à penhora o veículo automóvel HF e sobre ele - como, não importa para o caso - detém o registo da reserva de propriedade a seu favor.

Tradicionalmente (com raras excepções (8) a reserva de propriedade era encarada como uma condição suspensiva do negócio de alienação, mantendo-se a propriedade na titularidade do alienante até integral pagamento do preço. (9)

É bem verdade que diversas tentativas foram ensaiadas no intuito de, por forma mais consentânea com as suas características, qualificar a natureza da reserva de propriedade, sem que, todavia, qualquer delas tenha passado a prevalecer sobre a qualificação tradicional (houve quem a considerasse um direito real de garantia do vendedor, na medida em que reveste a natureza de uma garantia real do crédito e, assim, uma hipoteca mobiliária pelo preço em dívida - Wieacker; ou que o vendedor fica investido na titularidade de um direito de penhor com pacto comissório - Blomeyer); ou ainda que "nos seus termos substanciais o pacto de reserva de propriedade é uma cláusula de garantia que confere ao vendedor o poder de reivindicar o bem no caso de resolução do contrato por incumprimento do comprador" (Bianca), ou também que constitui uma cláusula específica, cláusula acessória atípica, devendo a indagação do regime aplicável partir do seu conteúdo e sentido próprios, sem passar pelo filtro da condição suspensiva e nalguns pontos até em contradição com o regime que desta resultaria (Gama Rose), ou finalmente que "na sequência do reconhecimento ao comprador de um direito real de expectativa e da posse em nome próprio, tanto o alienante como o adquirente detêm um pedaço da propriedade. Tratar-se-ia de uma transferência gradual do direito do vendedor para o comprador: a partilha de propriedade defendida por Raiser).(10)

Em qualquer dos casos, uma coisa é certa: o adquirente não tem a propriedade plena sobre o veículo, porquanto, além do mais, "surge-nos como inevitável em face do direito vigente a aceitação da tese de que a transferência da propriedade, estritamente entendida como transferência da titularidade do direito de propriedade, fica subordinada a uma condição suspensiva".(11)

Parece, desta forma, que, mantendo-se a reserva de propriedade a favor da exequente, o veículo não deveria ter sido penhorado, já que se não tratava de bem do executado (arts. 601º do C.Civil e 821º, nº 1, do C.Proc.Civil). (12)

Sustenta o recorrente que é perfeitamente admissível que o detentor da reserva de propriedade possa nomear à penhora o bem sobre que incide tal reserva, porquanto nesse caso estará a renunciar ao seu "domínio" sobre o bem, tanto mais que nos casos em que o detentor da reserva de propriedade opta pelo pagamento coercivo da quantia em dívida deixa de poder fazer operar a reserva de propriedade constituída, deixa de poder reivindicar para si o bem.
Mais afirmando que, a não ser assim, no caso de opção pelo pagamento da quantia em dívida, a constituição de reserva de propriedade não só não beneficiaria o respectivo titular, como até o prejudicaria, inclusivamente em relação aos outros credores do devedor.

Ainda que fosse aceitável atender a uma declaração de renúncia tacitamente efectuada através de mera actuação processual (e, a nosso ver, a propositura da acção de cumprimento não encerra qualquer vontade de renúncia à reserva (13) não pode esquecer-se que, in casu, desacompanhada da comprovação do cancelamento da reserva de propriedade, a mesma devia ser expressa e formalmente assumida em declaração dotada da força necessária para assegurar a renúncia e para servir de base ao futuro cancelamento do registo.(14)

Importa, com efeito, considerar - e aqui seguimos a argumentação do referido Ac. RL de 21/02/2002 - "que a reserva de propriedade tende a manter-se até efectivo pagamento do preço, certo que só esta circunstância desencadeia a transferência do direito de propriedade sobre a coisa vendida, ao que acresce o facto de a penhora em acção executiva não bastar, como é natural, à realização do direito de crédito do credor reservante do direito de propriedade. (...) Por outro lado, atenta a fonte contratual de que a reserva de propriedade deriva, não é um direito a que se possa renunciar livremente, porque se traduz no diferimento contratual de um dos efeitos do contrato de compra e venda acordado entre as partes. De contrário, estar-se-ia perante uma situação que significaria a extinção da expectativa (direito real de aquisição?) do comprador de adquirir o direito de propriedade por sua exclusiva vontade, o que se revela contrário ao princípio do consenso contratual que decorre do art. 406º, nº 1, do C.Civil". (15)

Ademais, como acima se deixou antever, só será eficaz a renúncia à reserva de propriedade desde que registralmente comprovada, através do respectivo cancelamento.

Estabelece, com efeito, o art. 7º do C. Registo Predial (aqui aplicável por força do disposto no art. 29º do Dec. Lei 54/75, de 12 de Fevereiro) que "o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito".

Daí que, mostrando-se inscrita na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa reserva da propriedade do veículo penhorado a favor da exequente, o que faz presumir a existência do direito e que este pertence ao titular inscrito, se deva concluir que a propriedade daquele se não transferiu para a titularidade dos executados, mantendo-se na esfera jurídica da exequente.

Por isso, e sendo certo que o registo automóvel tem que estar em conformidade com a situação substantiva dos bens, designadamente para defesa de terceiros, a penhora do bem cuja reserva de propriedade está inscrita em nome da exequente exigia que esta, previamente, demonstrasse o cancelamento dessa reserva ou que, no mínimo, comprovasse esse cancelamento antes de o processo avançar para a fase da venda executiva.

Quando não permitir-se-ia a manutenção nos autos de uma situação claramente contraditória: por um lado, através da penhora (devidamente registada) e subsequente sujeição à venda executiva, atingir-se-ia o pagamento do exequente (e eventuais credores reclamantes) pelo produto da venda do bem; por outro lado, e enquanto durasse a execução, no período que antecedesse a venda continuaria, por força da reserva de propriedade (também devidamente registada) o exequente a gozar da faculdade de exercer o seu direito de resolução do contrato, ressarcindo-se, nomeadamente, através da restituição do veículo.

Acresce que se algum prejuízo lhe advém do facto de a reserva de propriedade lhe não permitir reaver o veículo (tratando-se da resolução de um contrato de mútuo, naturalmente o que haverá a restituir é a quantia emprestada) essa situação apenas é imputável a si próprio, porquanto se serviu da convenção de reserva de propriedade em negócio jurídico para o qual a mesma não era adequada.

Defende, ainda, o recorrente que o facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de harmonia com o disposto nos artigos 824° do Código Civil e 888° do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.

E que, no caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve-se agir de acordo com o que se prescreve no artigo 832° do Código de Processo Civil caso a penhora ainda não tenha sido efectuada ou esteja a sê-lo, ou com o que se prescreve no artigo 119° do Código do Registo Predial caso a penhora já tenha sido realizada e a dúvida surja por o bem não estar registado em nome do executado mas em nome de outrem.

Começando pela análise do art. 119º do C. Registo Predial (aplicável, como vimos, ao registo de automóveis) atentemos no que se estabelece no respectivo nº 1: "havendo registo provisório de arresto, penhora ou apreensão em falência ou insolvência de bens inscritos a favor de pessoa diversa do requerido ou executado, o juiz deve ordenar a citação do titular inscrito para declarar, no prazo de dez dias, se o prédio ou direito lhe pertence".

Antes de mais, cumpre esclarecer que "os registos referidos no nº 1 são provisórios por natureza, nos termos da al. a) do nº 2 do art. 92º, e são oficiosamente convertidos em definitivos, em face de certidão comprovativa de o citado ter declarado que os bens não lhe pertencem, ou de não ter feito nenhuma declaração, expedida pelo tribunal à conservatória (nº 3)". (16)

A função desta norma é, como naturalmente se deduz, a de estabelecer um mecanismo que permita a conversão de um registo provisório em definitivo, a de providenciar por uma actualização dos factos inscritos no registo para evitar a sustação de execuções pelo simples facto de o bem penhorado estar indevidamente registado a favor de pessoa diferente do executado.

In casu, como claramente se infere da competente certidão (fls. 59) o registo da penhora é definitivo. Donde, como é natural, por falta do pressuposto da provisoriedade, não se justifica o recurso ao disposto naquele art. 119º, nº 1.

Acresce que o recurso ao mecanismo previsto em tal disposição apenas se justifica relativamente a discrepâncias entre a titularidade do bem e o respectivo registo, quando respeitem a pessoas diversas do exequente e não, como ocorre no caso concreto, com relação a situações em que ele próprio surge como titular inscrito, nas quais existe conhecimento exacto e sem controvérsia da titularidade do direito de propriedade sobre o bem penhorado.

No que concerne à disciplina dos arts. 824° do Código Civil e 888° do Código de Processo Civil, aquando e após a venda do bem penhorado, não se nos afigura adequado o entendimento propugnado pelo recorrente de que o tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos (incluindo a reserva de propriedade) que sobre o bem incidam.

Dispõe actualmente o art. 888º do C.Proc.Civil que "após o pagamento do preço e do imposto devido pela transmissão, o agente de execução promove o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam nos termos do nº 2 do artigo 824º do Código Civil e não sejam de cancelamento oficioso pela conservatória".

Estabelece, por sua vez, o art. 824º do C.Civil que "a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida" (nº 1), sendo que "os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo" (nº 2).

Antes de mais, e apenas para maior amplitude de raciocínio, poderemos admitir que é possível, tendo em conta o princípio da liberdade contratual, a aplicação desta figura (reserva de propriedade) a contratos diferentes, nomeadamente ao de mútuo a prestações que com o de compra e venda de veículo automóvel apresenta uma relação de estreita conexão, consubstanciada no facto de o objecto do primeiro - quantia mutuada - representar o preço do segundo". (17)

Teria sido isso que se passou no caso sub judice em que a reserva da propriedade sobre o veículo foi estabelecida, não a favor do vendedor, mas em benefício do mutuante, justamente porque o primeiro recebeu, mercê do contrato de mútuo outorgado pelo comprador, o preço convencionado no âmbito da compra e venda do veículo.

Dir-se-á, antes de mais, que o facto de a reserva de propriedade ter sido (eventualmente) constituída para garantia do direito de crédito do recorrente, advindo do financiamento destinado à aquisição do veículo, de nada releva no sentido da sua pretensão, uma vez que na reserva de propriedade, conquanto direito real de gozo, a função de garantia está sempre presente.

Todavia, sempre será de entender que a situações como a agora mencionada não deixam de ser aplicáveis, como é evidente, os efeitos prescritos na lei e próprios da reserva de propriedade como se esta houvesse sido constituída a favor do vendedor. Mesmo que a reserva de propriedade haja sido funcionalmente utilizada e registada para garantia do pagamento da dívida do financiador, nunca será juridicamente um direito real de garantia, mas, em termos de rigor, uma condição suspensiva aposta com respeito à transmissão da propriedade.

Donde surja líquida a conclusão de que a reserva de propriedade não constitui uma garantia real coberta pelas normas dos arts. 824º do C.Civil ou do art. 888º do C.Proc.Civil, que apenas abarcam os direitos reais de garantia e os demais direitos reais (como a reserva de propriedade) que não tenham registo anterior ao registo da penhora.

Ora, como a reserva de propriedade, direito real de gozo sobre o veículo automóvel penhorado, está inscrita no registo automóvel com anterioridade em relação ao acto de penhora, certo é que não podia caducar, por força do disposto no nº 2 do artigo 824º do CC, com o acto da venda do veículo.

Assim, realizada a venda do veículo automóvel penhorado, não podia o tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 888º do C.Proc.Civil, ordenar o cancelamento da inscrição respeitante à reserva de propriedade, com a consequência de o adquirente ter de suportar aquele ónus na sua esfera jurídico-patrimonial.

Encontramo-nos, pois, perante uma situação em que a penhora (já que foi feita) pode manter-se, mas com base nela não pode a execução prosseguir para a fase da venda, sem que, previamente, o recorrente renuncie à reserva de propriedade e inscreva no registo o respectivo cancelamento.

Perante a anomalia de haver sido ordenada e realizada a penhora de um veículo automóvel em relação ao qual a exequente é titular do direito de propriedade e não qualquer dos executados, a solução não pode deixar de ser no sentido da suspensão da acção executiva em relação à referida penhora até que a agravante demonstre em juízo o cancelamento do registo da reserva de propriedade em causa (artigos 276º, n° 1, alínea c) e 279º, ex vi do n° 1 do art. 466, do C.Proc.Civil).

Consequentemente, não assistindo razão ao agravante, impõe-se-nos confirmar a decisão recorrida, na qual não foi violada qualquer das normas por ele invocadas.

Nestes termos, decide-se:

a) - negar provimento ao recurso de agravo interposto pelo exequente "A, SA";

b) - confirmar o acórdão recorrido;

c) - condenar o agravante nas custas do recurso.

Lisboa, 12 de Maio de 2005
Araújo Barros,
Oliveira Barros,
Salvador da Costa.
---------------------------------
(1) Acs. RL de 02/06/99, no Proc. 0032956 (relator Moreira Camilo); de 18/02/2002, no Proc. 0050632 (relatora Ana Paula Boularot); de 18/02/2002, no Proc. 00888867 (relatora Maria do Rosário Morgado); de 11/04/2002, no Proc. 0024576 (relator Salvador da Costa); de 18/04/2002, no Proc. 00304498 (relatora Catarina Manso); de 05/12/2002, no Proc. 0089506 (relator Granja da Fonseca); de 16/01/2003, no Proc. 0095882 (relator Farinha Alves); de 20/03/2003, no Proc. 0004856 (relatora Fernanda Isabel Pereira); de 13/05/2003, no Proc. 1410/2003-7 (relatora Rosa Maria Coelho); de 27/05/2003, no Proc. 4467/03-1 (relator António Geraldes); de 09/07/2003, no Proc. 4400/2003-2 (relatora Graça Amaral); de 03/06/2004, no Proc. 2826/2004-2 (relator Francisco Magueijo); e de 14/12/2004, no Proc. 9857/2004-7 (relator António Geraldes).
(2) Ademais dos juntos aos autos pela agravante, Acs. RL de 28/02/2002, no Proc. 00110498 (relator Bruto da Costa); de 27/02/2003, no Proc. 0007856 (relator Urbano Dias); e de 21/12/2004, no Proc. 10130/2004-1 (relator André dos Santos).

(3) Proferidos, respectivamente, nos Processos 1111/98 da 2ª secção (relator Simões Freire) e 3754/04 da 2ª secção (relator Abílio Vasconcelos).

(4) Exarado no Proc. 1765/04 da 6ª secção (relator Sousa Leite).
(5) Cfr. Almeida Costa, "Direito das Obrigações", 5ª edição, Coimbra, 1991, pag. 226.

(6) Luís Lima Pinheiro, "A Cláusula de Reserva de Propriedade", Coimbra, 1988, pags. 23 e 24.
(7) Ana Maria Peralta, "A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade", Coimbra, 1990, pag. 2.

(8) Luís Cunha Gonçalves, "Dos Contratos em Especial", Lisboa, 1953, pag. 260, considerava o negócio sujeito a condição resolutiva

(9) Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pag. 376; Vaz Serra, in RLJ Ano 112º, pag. 235; Almeida Costa, obra citada, pag. 232; Armando Braga, "Contrato de Compra e Venda", Porto, 1990, pag. 69. Cfr., na jurisprudência, Acs. STJ de 22/02/83, in BMJ nº 324, pag. 578 (relator Santos Silveira); e de 01/02/95, in BMJ nº 444, pag. 609 (relator Sousa Inês).

(10) Referências extraídas de Luís Lima Pinheiro, obra citada, pags. 93 a 120.

(11) Luís Lima Pinheiro, ibidem, pag. 113 e autores aí citados em nota.
(12) Cfr. Acs. RL de 11/02/2001, no Proc. 0096631 (relator Flávio do Casal); de 11/02/2002, no Proc. 0005297 (relator Rua Dias); e de 13/01/2004, no Proc. 8847/2003-1 (relatora Ana Grácio).

(13) Cfr. Luís Lima Pinheiro, obra citada, pag. 69.

(14) Ac. RL de 21/02/2002, in CJ Ano XXVII, 2, pag. 113 (relator Salvador da Costa).
(15) Cfr. Raul Ventura, "O Contrato de Compra e Venda no Código Civil", in ROA Ano 43, 1983, pag, 614; Ana Maria Peralta, obra citada, pags. 90 a 97.
(16) Isabel Pereira Mendes, "Código de Registo Predial", 5ª edição, Coimbra, 1992, pag. 243.
(17) Cfr. Vasco da Gama Lobo Xavier, "Venda a Prestações, Algumas notas sobre os artigos 934º e 935º do Código Civil", Coimbra, 1977, pags. 23 a 25.