Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4482/20.6T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: CONTA BANCÁRIA
CONTA SOLIDÁRIA
PROPRIEDADE
TITULARIDADE
DEPÓSITO BANCÁRIO
HERDEIRO
PRESUNÇÃO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Quando estamos perante quantias e valores depositados e associados a contas bancárias, a questão da propriedade de tais valores não se confunde ou reconduz à questão de saber quem são os titulares das contas bancárias em que tais disponibilidades e valores monetários se encontram depositadas, sendo hoje pacífica a distinção entre a titularidade dos depósitos e a propriedade dos fundos depositados.
II - Na conta coletiva “solidária”, o direito que está em causa, em relação ao banco, é o direito que qualquer dos titulares tem de poder movimentar sozinho e livremente a conta, direito este, dissociado da propriedade das quantias depositadas, que se deve presumir igual entre todos os titulares da conta.
III - Assim, um herdeiro de um titular duma conta coletiva “solidária”, para ter acesso à totalidade dos valores depositados e associados à conta bancária em causa, tem que afastar tal presunção.
Decisão Texto Integral:






Proc. 4.482/20.6T8LSB.L1.S1
6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Relatório
AA, residente na rua ..., Bairro ..., ..., intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra o Banco Santander Totta, SA., com sede na rua ..., em ..., pedindo que este seja condenado:
“a) a entregar ao A. todos os montantes retidos das contas, Conta Ordenado Select Mundo 1 2 3 e Conta Select Mundo 1 2 3, as duas com o n.º ...20 e das aplicações provenientes dessas contas, no valor total de 557.290,53 euros;
b) a pagar juros de mora à taxa legal comercial contados desde a data de falecimento de BB, .../.../2019, até integral e efetivo pagamento.”
Alegou, em síntese, que, em 8/10/2018, faleceu BB, sua madrasta, que, através de testamento, instituiu o A. como seu único e universal herdeiro; sucedendo que, entre outros bens, a BB deixou duas contas coletivas solidárias no banco R., com várias aplicações financeiras associadas, sendo que, para além da BB, como primeira titular de tal conta bancária, constava, como segunda titular de tal conta bancária, CC.
Mais alegou que o saldo de tal conta e os montantes das várias aplicações financeiras que lhe estavam associadas eram da exclusiva propriedade da referida BB, razão por que o A. solicitou ao banco R. a entrega da totalidade do saldo e das aplicações financeiras, porém, o R. apenas lhe entregou a declaração destinada ao pagamento do imposto de selo com metade do valor do numerário e das aplicações financeiras, alegando que a outra metade era pertença da segunda titular, posição esta que manteve mesmo depois do A. o ter informado do óbito, em 31 de Julho de 2025, da outra titular da conta (e de lhe ter enviado cópia da respetiva habilitação de herdeiros e do testamento que deixou, em que identificava todos os seus bens, não referindo a conta bancária no R. e as aplicações financeiras associadas) e de lhe ter exposto que a conta bancária em causa foi, ao longo dos anos, apenas alimentada com fluxos financeiros com origem na BB (v. g., rendas de imóveis e pensões de reforma do pai do A. e depois da própria BB) e sempre movimentada a débito apenas pela BB (e nunca pela CC), pelo que concluiu que o banco R. “está a cometer uma ilegalidade ao reter os bens que são pertença do A.[1].

O banco R. contestou, articulado em que aceitou o essencial da factualidade alegada pelo A., invocando que, tratando-se (as contas da BB) de contas coletivas solidárias se presume que o seu saldo pertence em partes iguais às duas co-titulares, razão por que “informou o A. que apenas lhe poderia entregar metade dos valores depositados na conta em causa[2], “entrega essa que fez no dia 06/08/2019[3], e que, “quanto ao remanescente, o A., para o poder receber, teria que ilidir a citada presunção[4], “o que, pelos vistos, o A. veio tentar fazer mediante a presente ação[5], razão por que, segundo o banco R., apenas se limitou a cumprir a lei e não cometeu qualquer ilicitude ou ilegalidade,
Sendo que, “desconhece, sem obrigação de saber[6],” se a totalidade dos valores da conta (e os montantes das várias aplicações financeiras que lhe estavam associadas) eram da exclusiva propriedade da referida BB e que, “se o A. lograr ilidir a presunção e tal for declarado judicialmente, entregará imediatamente a quantia remanescente da indicada conta[7], pelo que concluiu que a “ação deve ser julgada improcedente quanto ao pedido de condenação a pagar juros de mora, seguindo-se os ulteriores termos até final, quanto ao pedido formulado em a).”

Foi dispensada a audiência prévia, proferido despacho saneador – que considerou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

Instruído o processo e realizada a audiência de julgamento, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que julgou a ação parcialmente procedente e em que se decidiu:
“(…) a) condenar o Banco Réu a entregar ao A. todos os montantes depositados nas contas: Conta Ordenado Select mundo 1 2 3 e, Conta Select Mundo 1 2 3, as duas com o n.º ...20 e das aplicações provenientes dessas contas, no valor total de 557.290,53 euros;
   b) Absolver o Banco R. do mais que lhe vinha pedido. (…)”

Inconformado com tal decisão, interpôs o banco R. recurso de apelação, o qual foi julgada procedente e em consequência:
“(…)
 a) Revogam a sentença na parte que condenou o Banco Réu a entregar ao A. todos os montantes depositados nas contas: CONTA ORDENADO SELECT MUNDO 1 2 3 e, CONTA SELECT MUNDO 1 2 3, as duas com o n.º ...20 e das aplicações provenientes dessas contas, no valor total de 557.290,53 euros;
 b) Condenando o Réu a entregar ao Autor a totalidade dos valores que integram as mesmas, deduzido o quantitativo de Euros 326.023,59 que anteriormente lhe foi entregue.
 c) Mantendo no demais o julgado. (…)”

Inconformado, agora o A., interpõe o presente recurso de revista, visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que, invertendo o decidido, repristine o decidido na Sentença de 1.ª Instância.
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“(…)
A) O Réu banco não contestou o valor peticionado pelo A.
B) Esse valor ficou fixado em primeira instância, não podendo agora ser alterado.
C) O Réu foi condenado no pedido efectuado pelo A., no valor de 557.290,53 euros.
D) A sua alteração, que não em sede de julgamento de 1.ª Instância viola os princípios gerais do Processo Civil, nomeadamente o da contradita e prova em audiência de julgamento.
E) O douto Acórdão da Relação emite uma decisão confusa e que não é exequível, não definindo o valor que ao Réu tem que entregar ao A., deixando ao livre arbítrio do Réu.
F) O Acórdão em causa viola os princípios gerais da decisão.
G) Não entregando o Réu Banco ao A, o valor peticionado estaremos, no mínimo, perante um enriquecimento sem causa do Réu.
H) Viola o douto acórdão, os princípios fundamentais do processo Civil, como seja o do contraditório, da celeridade e da fixação da matéria, entre outros.
I) Bem como viola os princípios da elaboração da sentença, no que concerne à sua fundamentação, lógica, clareza e exequibilidade. (…)”

O banco R. respondeu, sustentando, em síntese, que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma processual ou substantiva, designadamente, as referidas pelo recorrente, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.
Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto
1. A 8 de Outubro de 2018 faleceu BB, madrasta do A...
2. A falecida BB, instituiu o Autor como seu único e universal herdeiro.
3. A BB deixou, entre outros bens, contas e aplicações financeiras na Instituição bancária – Banco Santander Totta, S.A...
4. Estão relacionadas duas contas à ordem solidárias, denominadas CONTA ORDENADO SELECT MUNDO 1 2 3 E CONTA SELECT MUNDO 1 2 3, com o n.º ...20, em que é BB a primeira contitular e em que é segunda titular CC[8].
5. A partir dessa conta n.º ...20 e por aplicações ordenadas exclusivamente por BB, existiam, entre outros, os seguintes instrumentos financeiros – Fundos de Investimento – depositados na R.:
1 - Select Moderado Classe B - Contrato n.º ...51 - N.º Total de Unidades de Participação: 15.291,962900;
2 - Select Defensivo Classe B - Contrato n.º ...51 - N.º Total de Unidades de Participação: 50.562,999552;
3 – Santan Multicrédito - Contrato n.º ...51 - N.º Total de Unidades de Participação: 41.679,016004.
6. O Réu Santander entregou ao A. a declaração destinada às finanças e ao pagamento do imposto de selo com metade do valor do numerário e das aplicações, alegando que a outra metade era pertença da outra segunda contitular – CC – emitindo e enviando ao A. esse segundo documento em nome de CC, documento destinado às finanças.
7. A outra contitular CC faleceu em .../.../2015.
8. A CC outorgou testamento identificando os seus bens e deixando-os num legado a DD.
9. Após o falecimento de seu marido, a BB pediu à sua amiga de infância e de toda a vida, a “de cujus” CC, que ficasse como contitular desta conta na Ré Santander Totta, por segurança futura.
10. De igual modo, a “de cujus” CC entregou à BB, um cheque assinado por ela para esta poder movimentar as suas contas do Montepio – contas que identificou e deixou como legado – cláusulas 9.º e 10.º.
11. O A. informou a Ré do falecimento da outra contitular da conta – D. CC – enviando a certidão de óbito e habilitação de herdeiros com o testamento.
12. A R. invocou perante o A. que, apesar de ele ser o único e universal herdeiro da “de cujus” BB, teria que provar à R. que os montantes existentes na conta da “de cujus” eram de facto propriedade desta[9].
13. As contas da Ré, nomeadamente a ora em causa que tem como contitular a “de cujus” CC, iniciou-se apenas e unicamente com montantes pertença da “de cujus” BB quando faleceu o seu marido, pai do A.;
14. E desde a sua constituição e até ao seu falecimento foram acrescentados ao longo dos anos:
1. Valor da pensão do pai do A. e mais tarde de reforma da falecida BB;
2. Três décadas de rendas dos imóveis de sua pertença (que constam do doc. n.º 3);
3. Valores de juros das aplicações efetuadas ao longo destas décadas;
4. Outros valores de transferências de contas dela em outros bancos.
16. De 1987 a 2018, foi apenas a “de cujus” BB que:
 - Movimentou as contas em questão;
 - Procedeu a depósitos e levantamentos;
 - Procedeu a aplicações e liquidações das mesmas;
 - Assinou cheques e outras ordens bancárias;
 - Era para a sua residência na Av. ... em ... que era enviada toda a correspondência da conta;
 - Era apenas ela que tinha cartão multibanco e de crédito;
 - Era unicamente com ela que todos os funcionários da Ré – gerentes, subgerentes, gestores de conta e outros - quer fosse no balcão da Av. ... ou na sua residência, falavam, contactavam, pediam assinaturas, qualquer decisão ou outro assunto conexo.
17. A Sr.ª D. CC nunca movimentou a conta por qualquer forma: depósitos, levantamentos, ou fez qualquer outro movimento ou tomou alguma ação, decisão ou disposição da mesma;
18. No que diz respeito a esta conta, nunca a Ré contactou, enviou correspondência, cartões bancários, pediu assinaturas ou procedeu a qualquer outra ação ou omissão dirigida à “de cujus” CC.
19. O Réu entregou ao Autor em 6.08.2019 o valor € 326.023,59, creditando tal montante na sua conta nº ...20 (facto aditado pelo Acórdão recorrido).

*

III – Fundamentação de Direito
Tendo falecido BB (em .../.../2018), o A., seu único e universal herdeiro, assim instituído por testamento (de 29/08/2017), pretendeu ter acesso à totalidade dos valores depositados e associados às contas bancárias que a falecida detinha no Santander Totta, aqui R., porém, este permitiu-lhe o acesso a apenas metade dos valores depositados e associados às contas, invocando para tal, como fundamento, a circunstância das contas terem outros titulares (serem contas coletivas solidárias) e, por isso, a presunção do seu saldo pertencer em partes iguais às duas titulares (a falecida BB e a CC).
Comportamento este, do banco R., que o A. reputa de ilícito – invocando que o banco R. “está a cometer uma ilegalidade ao reter os bens que são pertença do A.[10] – pedindo que este seja condenado a entregar-lhe “todos os montantes retidos”.
Para tal, como se fez constar do relato inicial, alegou que os valores depositados e associados às contas bancárias em causa eram da exclusiva propriedade da falecida BB e que o invocou (e procurou demonstrar) várias vezes, sempre sem sucesso, junto do banco aqui R...
E a relevância jurídica de tais alegações – sobre a propriedade exclusiva da BB – ficou traçada no sentenciado em 1.ª Instância.
Efetivamente – sem oposição/apelação de A. ou R. – foram na sentença de 1.ª Instância, a tal propósito, efetuadas duas considerações jurídicas, uma favorável à tese do A. e outra desfavorável à tese do A...
Expendeu-se – repete-se, sem oposição/apelação de A. ou R. – na sentença de 1.ª Instância o seguinte:
“(…) A questão que se põe, é saber se a falecida era proprietária da totalidade dos montantes depositados ou se apenas de metade, sendo certo que se presume a titularidade de apenas metade no caso das contas solidárias. Necessário se torna, pois, ilidir esta presunção.
E a este respeito, desde já se diga, que o Banco, ao reter metade dos fundos agiu com a diligência e prudência devidas e exigíveis face aos padrões de atuação média de um profissional bancário. (…). A titularidade da conta não predetermina, como se sabe, a propriedade dos fundos nela contidos, que pode pertencer apenas a algum ou alguns dos seus titulares ou mesmo até porventura a um terceiro, não havendo, assim, que confundir a titularidade da dita conta com a propriedade dos valores/importâncias nela depositadas.
Porém, nas relações internas, desconhecendo-se o acordo ou a relação jurídica de que resultou a sua abertura, havia que presumir, nos termos dos art. 512.º e 516.º do Cód. Civil, que ambas as titulares da conta participavam no crédito em partes iguais e, nesse contexto, participando ambas presuntivamente, em partes iguais, no referido crédito, o procedimento do Banco, ao pretender repartir os fundos pelas co-titulares ou por quem demonstrasse ser o seu legítimo herdeiro, apresentava-se o mais ajustado e consentâneo com as circunstâncias, na medida em que ainda não fora ilidida a presunção de contitularidade, o que veio a ocorrer apenas no âmbito desta ação.
A questão da propriedade do dinheiro depositado é distinta e independente do regime de movimentação dos depósitos. A abertura de uma conta solidária confere a todos os titulares a faculdade de mobilizar os fundos depositados na conta, mas não pré-determina a propriedade dos activos contidos mesma, que poderão ser da exclusiva propriedade de um ou de alguns titulares da conta ou, inclusive, de um terceiro.
Na verdade, não cabe ao Banco averiguar, em cada caso, da ilisão ou não da presunção, do art.º 516º do Cód. Civil, sendo questão a ser dirimida em sede judicial. Assim, afigura-se-nos correta a conduta do R., não tendo praticado qualquer ato ilícito.
Em suma, o procedimento adotado pelo Banco em repartir os fundos existentes na conta coletiva solidária aplicando a presunção estabelecida no art.º 516º do Cód. Civil, é de total lealdade, boa fé e lisura, não deixando igualmente de revelar, atentas as circunstâncias, a diligência e prudência exigíveis a um profissional bancário. Tal procedimento de modo algum pode ser tido por ilícito e muito menos culposo, pelo que nele não poderá o A. fundar qualquer responsabilização do Banco.
Porém, no caso sub-judice, evidente se tornou, em face da factualidade dada como provada que a presunção legal da compropriedade dos valores depositados foi ilidida nos termos do art.350º do C Civil, e, sendo assim, a ação terá de proceder na parte em que vem pedida a condenação do Banco na entrega dos restantes valores depositados nas referidas contas solidárias.
Porém, e não se encontrando o Banco em mora, já que atuou de forma lícita, não há lugar a qualquer pagamento de juros.
De igual forma, não será o Banco condenado no pagamento de custas, nos termos do disposto no art. 535º do CPC. (…)”
Ou seja, sem oposição/apelação de A. ou R., a sentença de 1.ª Instância considerou/concluiu, em termos desfavoráveis ao A., que o banco R., ao permitir ao A. o acesso a apenas metade dos valores, teve um comportamento totalmente lício e irrepreensível, por ser de presumir, nos termos dos artigos 512.º e 516.º do C. Civil, que apenas metade dos valores depositados e associados à conta bancária em causa eram da exclusiva propriedade da falecida BB e por tal presunção judicial só numa ação judicial (como a presente) ser ilidível; e considerou/concluiu, em termos favoráveis ao A., que este ilidiu tal presunção, ou seja, que demonstrou que a totalidade dos valores depositados e associados à conta bancária em causa eram da exclusiva propriedade da falecida BB.
Na verdade, quando estamos perante quantias e valores depositados e associados a contas bancárias, a questão da propriedade de tais valores não se confunde ou reconduz à questão de saber quem são os titulares das contas bancárias em que tais disponibilidades e valores monetários se encontram depositadas, sendo hoje pacífica a distinção entre a titularidade dos depósitos e a propriedade dos fundos depositados.
Efetivamente, o depósito de dinheiro/valores num banco não passa de um mero contrato obrigacional, “pelo qual uma pessoa (depositante) confia dinheiro a uma instituição bancária (depositário), a qual, tornando-se proprietária dos fundos depositados, fica com direito de livremente dispor deles para as necessidades da sua atividade profissional e assume a obrigação de restituir outro tanto em conformidade com o estipulado pelas partes[11], contrato de que, após ser validamente celebrado (isto é, após, o depositante haver entregue os fundos a depositar - contrato real), resulta a obrigação de restituir a cargo do banco, obrigação de restituir que, no chamado depósito ou conta coletiva solidária[12], vincula o banco a restituir a totalidade dos fundos depositados a qualquer um dos titulares da conta.
Ou seja, na conta coletiva “solidária” – como era o caso – o direito que está em causa, em relação ao banco, é o direito que qualquer dos titulares tem de poder movimentar sozinho e livremente a conta, direito este que, é absolutamente pacífico, está dissociado da propriedade das quantias depositadas[13], se deve presumir igual entre todos os titulares da conta (cfr. artigo 516.º do C. Civil).
Daí que, concordamos, o A. – não sendo titular das contas, mas apenas herdeiro de um dos titulares, ou seja, do património de um dos titulares – para ter acesso à totalidade dos valores depositados e associados às contas bancárias em causa, tivesse que afastar tal presunção, não nos parecendo, porém, que, para o afastamento duma tal presunção, seja sempre absolutamente necessária a instauração duma ação.
Veja-se o caso dos autos: a factualidade dada como provada que permitiu ilidir a presunção decorrente do art. 516.º do C. Civil consta dos pontos 11 e 13 a 18 dos factos provados, factualidade que o A. levou ao conhecimento do R. antes da propositura da presente ação e que, aliás, era, na sua maior parte, do conhecimento pessoal do próprio banco R. (como resulta dos documentos bancários por si próprio emitidos); que, na presente ação, se limitou, quanto à alegação (do A.) da BB ser a proprietária da totalidade dos valores, a dizer que “desconhece, sem obrigação de saber[14],” e que, “se o A. lograr ilidir a presunção (…), entregará imediatamente a quantia remanescente da indicada conta”, dispensando a diligência – compatível com o comportamento tido – de fazer intervir nos autos o sucessor da outra titular da conta (da CC), para este também ficar vinculado ao caso julgado dum dos fundamentos desta ação: serem os valores depositados na conta propriedade, na totalidade, da BB (o que exprime e significa que o sucessor da outra titular da conta não tem nos mesmos “metade”).
Seja como for, o que vimos de dizer é, no caso, irrelevante, uma vez que, repete-se, ficou em definitivo decidido nos autos (pela a sentença de 1.ª Instância) que o banco R. teve um comportamento totalmente lício e irrepreensível e que, para ilidir a presunção do art. 516.º do C. Civil, tinha o A. que intentar uma ação como a presente, em que, como também está em definitivo decidido, o A. logrou ilidir tal presunção, ou seja, demonstrou que a totalidade dos valores depositados e associados às contas bancárias em causa eram da exclusiva propriedade da falecida BB.
E é justamente aqui, estabelecidas tais premissas, que surge a apelação do banco R. e agora a revista do A. (em que nada de verdadeiramente jurídico e substantivo, perdoe-se-nos, está em causa).
O que é que aconteceu?
A sentença da 1.ª Instância não incluiu nos factos provados e no raciocínio final da sua fundamentação jurídica ter o banco R. entregue ao A., no dia 06/08/2019 (cfr. art. 11.º da contestação), metade dos valores depositados (valores que, de acordo com a presunção do art. 516.º do C. Civil, o banco nunca discutiu pertencerem à falecida BB).
Foi desta omissão da sentença da 1.ª Instância que o banco R. apelou e foi esta omissão que o Acórdão recorrido corrigiu, acrescentado, previamente, aos factos provados o montante de € 326.023,59 entregue pelo banco R. ao A..
E é contra esta correção que o A. ora se insurge.
Vejamos:
O que temos nos autos – alegado e provado – sobre os saldos das contas e aplicações da BB é, com todo o respeito, uma apreciável confusão.
O A. juntou os documentos bancários apropriados e indispensáveis à prova de tais saldos, mas não alegou devidamente o que deles consta; o banco R., estranhamente, não soube, em momento algum (e produziu inúmeras peças processuais), corrigir os lapsos alegatórios do A.[15], esclarecer e fazer luz sobre os saldos em causa[16]; e as Instâncias, em linha com a incorreta alegação do A., deram como provados factos que não batem certo com os atinentes documentos bancários, os quais são, salienta-se, o único suporte probatório do que, a tal propósito, foi dado como provado[17].
Sustentando o A., desde o primeiro momento (e como nesta ação logrou demonstrar), que os valores depositados nas contas eram, na totalidade, propriedade da BB, o que tinha que alegar era a totalidade dos valores existentes e associados a tais contas (valores que, diga-se, respeitam, no essencial, apenas a uma das duas contas).
Mas não foi isso que o A. fez: percorrendo os documentos juntos pelo A. com a PI e confrontando-os com o alegado pelo A., constatamos que, no art. 5.º da PI (que depois deu origem, mais ou menos “acriticamente”, ao ponto 5 dos factos provados da sentença da 1.ª Instância), começou por alegar o que consta da declaração de saldos da CC (à data do óbito desta, em 31/07/2015), declaração essa junta a fls. 22, após o que alegou o que consta da declaração de saldos da mesma CC (agora à data de 17/07/2019), declaração essa junta a fls. 22.
Não se alcança a razão do lapso: porquê os saldos da CC? porquê por duas vezes, na data do seu óbito (ocorrido 3 anos antes do da BB) e na data de 17/07/2019? porque é que, efetuando-se tal repetição, não se deu conta da mudança na composição do saldo entre uma data e outra (deixando de haver, em 2019, os 2 depósitos e passando a haver uma nova e terceira aplicação financeira/fundo de investimento)?
Tanto mais que o A. até tinha (e juntou) o documento bancário que lhe permitia a correta alegação, ou seja, tinha e juntou a declaração de saldos da BB (à data do óbito desta, ocorrido em .../.../2018), declaração essa por si junta a fls. 18 verso, ou seja, uma vez que o banco R. imputava à herança da BB (também em tal documento, junto a fls. 18 verso) tão só metade dos valores existentes e associados à conta bancária em causa, o que a A. tinha muito simplesmente que fazer era multiplicar por dois a imputação (à herança da BB) que consta de tal declaração junta a fls. 18[18] para assim encontrar/alegar a totalidade dos valores existentes e associados a tal conta bancária (o mesmo é dizer, a totalidade dos valores depositados, todos eles da propriedade da BB).
Perante isto, olhando para o que seria a alegação correta (a extrair do documento junto a fls. 18) e o que o A. alegou no art. 5.º da PI, constatamos que está tudo bastante errado na alegação ali efetuada: faltam valores e há, acima de tido, coisas em duplicado e, seguramente, tendo o banco entregue, em 06/08/2019, o montante de € 326.024,50 ao A., os valores retidos pelo R. não ascendem, longe disso, aos € 577.290,53 referidos e pretendidos pelo A.[19].
O grande “mal”, perdoe-se-nos a expressão, nem está tanto na utilização, para a alegação factual, da declaração de saldos da CC (embora, em 2018, à data do óbito da BB, a composição da declaração de saldos da CC[20] já não pudesse ter os 2 depósitos, tendo, ao invés, a nova e terceira aplicação financeira/fundo de investimento, que se vê na declaração de saldos da BB à data do óbito desta), mas sim no facto de se ter alegado sempre a totalidade das unidades de participação, quando seria só metade de tal totalidade que tinha que ser alegada (como resulta de todos os documentos em causa, em que há um “quadradinho” respeitante ao “número de unidades de participação por herança” e não foi o número constante de tal quadradinho, mas o seu dobro, que foi alegado), pelo que, feitas as contas, os valores alegados (com a exceção da referida mudança de composição) estão-no em duplicado e aquilo que o A. designa/conclui como valor retido (com a exceção/incremento, repete-se, da referida mudança de composição) será o valor total (e não apenas metade) dos valores existentes e associados à conta bancária em causa, à data da decesso da BB.
Enfim, como começámos por referir, a revista tem pouco de verdadeiramente jurídico: do que se trata – para responder à revista e confirmar o decidido no Acórdão recorrido– é de colocar as contas/factos no “são” e a partir daqui concluir.
O banco R. alegou (no art. 11.º da contestação) que entregou ao A., no dia 06/08/2019, a “metade” que nunca discutiu pertencer à falecida BB; foram, entretanto, juntos documentos bancários de que resulta a entrega ao A., em 06/08/2019, do montante de € 326.024,59[21] e o A. nunca respondeu ou se opôs, nos termos do art. 3.º/4 do CPC, ao recebimento de tal montante, pelo que tal facto logo devia ter sido dado como provado na sentença da 1.ª Instância.
E nunca se opôs por tal ser a pura expressão da verdade: aliás, quer na contra alegação da apelação, quer na alegação da revista, o A. não só aceita explicitamente ter recebido tais € 326.024,59, como inclusivamente diz que recebeu mais € 75.472,15, ou seja, ao todo, em 06/08/2019, € 472.465,23[22]; e que, além de tais montantes, o banco ainda lhe adiantou mais € 70.968,49 (para o pagamento, segundo diz, do imposto de selo).
Daí que, não contestando ter recebido o montante acrescentado aos factos e mandado deduzir no Acórdão recorrido, venha agora “apenas” dizer que o banco R. não contestou o valor por si peticionado e que tal valor já foi fixado em 1.ª Instância.
Mas não pode ser: a alegação repetida dos valores existentes e associados às contas bancárias em causa é, como se explicou, manifesta e a 1.ª Instância nem sequer fixou, no que era o ponto 5 dos factos (da sentença que proferiu), que o banco R. retém o valor de € 577.290,53, antes se limitando a dar como provado, ao arrepio do que resulta dos documentos, as unidades de participação alegadas em duplicado.
É certo que, estranhamento, o banco R. nunca desenredou (nem sequer agora, na contra alegação da revista, logrou dizer, claramente, onde “está o gato”) o lapso do A., porém, não aceitou (cfr. art. 18.º da contestação) o montante alegado/indicado como retido pelo A., pelo que, mal fora – muito mal andaria o direito e justiça – se, pretendendo o A., no fundo e em síntese, receber duas vezes uma mesma verba[23], pudesse ser dada procedência à sua pretensão (por uma parte não ter sabido revelar os lapsos cometidos pela outra).
Pelo que, aqui chegados, abundantemente explicado que o “mal” vem do início, do que foi indevidamente alegado e do que, ao arrepio dos documentos juntos pelo próprio A. e aceites pela R. (que era, aliás, a autora dos mesmos), foi dado como provado, temos duas soluções:
Fazer baixar o processo às Instâncias, nos termos do art. 682.º/3 do CPC, para que a matéria de facto seja corrigida e ampliada, em conformidade com o que, a partir dos documentos, pode/deve ser considerado como a totalidade dos exatos valores existentes e associados às contas bancárias da BB.
Ou produzir uma decisão que, incorporando o já decidido nos autos quanto aos valores depositados serem, todos eles, propriedade da BB, irá permitir o acesso do A. à totalidade dos valores (na medida em que o banco R. não mais lhe oporá a necessidade de ilidir, com a propositura duma ação, a presunção do art. 516.º do C. Civil).
Entendemos ser, no caso, adequada esta segunda solução.
É certo que não ficará definido o valor exato a entregar pelo R. ao A., porém, como é muito evidente, também tal condenação em quantia exata não poderia, com o grau de alegação (e de “confusão”, com todo o respeito) efetuada, ser aqui proferida.
Para se ter uma ideia do que se quer significar basta dizer, em linha com o que se já referiu, que, a partir dos documentos bancários juntos pelo A., a “metade” da herança (que o banco imputou à CC) a que o A. agora passa a ter acesso era constituída, designada e principalmente, por Unidades de Participação em Fundos de Investimento, ou seja, tendo-se considerado lícito o comportamento do banco R., de recusar o acesso até ao momento a tal metade da herança, o valor exato a receber pelo A. estará dependente da flutuação do valor unitário das UP até ao momento presente, ao que haverá ainda que debitar as várias despesas e comissões bancárias que sejam efetivamente devidas, pelo que é tal liquidação – em que não pode ser esquecido o que antes já foi feito, em termos de resgates e entregas ao A. – que terá que ser efetuada pelas as partes, sendo que, depois, não havendo acordo, o recurso ao tribunal será inevitável (começando-se, naturalmente, por uma ação declarativa e não, logo, pela execução).
Ora, é justamente isto que a decisão recorrida – “condenando o Réu a entregar ao Autor a totalidade dos valores que integram as mesmas, deduzido o quantitativo de Euros 326.023,59 que anteriormente lhe foi entregue” – exprime, definindo que deve ser entregue a totalidade dos valores e remetendo as partes para a liquidação do que falta entregar (considerando/deduzindo o que já foi entregue)[24].
É quanto basta para, concluindo, julgar improcedentes as alegações do A./recorrente.

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IV - Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar a revista.
Custas, nas Instâncias e neste Supremo, pelo A..

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Lisboa, 24/05/2022

António Barateiro Martins (Relator)
Luís Espírito Santo
Ana Moura Resende

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Art. 44.º da PI.
[2] Art. 10.º da contestação.
[3] Art. 11.º da contestação.
[4] Art. 12.º da contestação.
[5] Art. 13.º da contestação.
[6] Art. 19.º da contestação.
[7] Art. 23.º da contrstação.
[8] Não é bem isto que resulta dos documentos bancários, mas não é relevante (aparentemente, a CC era contitular apenas da conta ...20, havendo outra conta – a ...01 – de que era titular apenas a BB).
[9] Este facto foi eliminado no Acórdão recorrido por “conter matéria de direito”, porém, não é o caso, uma vez que se limita a conter o que o banco R. disse ao A. para entregar ao A. a totalidade dos valores depositados nas contas.
[10] Art. 44.º da PI.
[11] José Maria Pires, Direito Bancário, II Vol., pág. 168.
[12] Conta constituída por diversas pessoas, com a faculdade atribuída a cada uma delas da sua livre movimentação - cfr. José Maria Pires, Direito Bancário, II.º Vol., pág. 168.
[13] O banco pode nem sequer saber – e em regra não sabe, nem se interessa por saber – qual a quota de cada um dos titulares da conta coletiva “solidária”.
[14] Embora conhecesse a generalidade dos factos que conduziram à ilisão da presunção.
[15] Lapsos que resultam do confronto com os documentos bancários que o próprio A. juntou.
[16] Não alegou sequer, na contestação, a quantia exata e concreta que entregou à A., logrando, ao arrepio do art. 425.º do CPC, juntar, com a apelação, documento demonstrativo de haver entregue € 326.024,59 (embora nas conclusões da alegação fale em € 326.023 e o Acórdão recorrido tenha colocado no dispositivo € 326.023,59).
[17] É verdade que a competência do Supremo é dirigida à aplicação do direito aos factos fixados pelas instâncias, razão pela qual, o recurso de revista tem como fundamento a violação da lei, substantiva ou processual (cfr. art. 674.º/1/a) e b) CPC), sendo o julgamento da matéria de facto pela Relação, em princípio, definitivo, porém, do que aqui se trata é de, perante os documentos bancários juntos e aceites por ambas as partes, tentar perceber os factos e os lapsos cometidos (quer na alegação quer na fixação dos mesmos), razão pela qual se corrigiu o que vinha, desde a 1.ª Instância, dado como provado no ponto 5 dos factos provados (correção dos lapsos que é autorizada pela circunstância de se haver descurado o valor probatório dos documentos bancários e o acordo das partes sobre os mesmos – cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., pág. 454 e 463).
[18] Repare-se – chama-se a atenção do A. – que a declaração de saldos da CC datada de 17/07/2019, ou seja, após o decesso da BB, tem, em termos de unidades de participação dos 3 fundos de investimento, exatamente o mesmo número que a declaração de saldos da BB, à data do óbito desta, ocorrido em ../../2018, estando a diferença, naturalmente, no valor unitário de cada uma das diferentes unidades de participação (já que uma declaração é 17/07/2019 e a outra é de ../../2018).
[19] Os € 577.290,53 eram a soma da totalidade (e não apenas de metade) dos valores depositados em data anterior à entrega de tais € 326.024,50; e este montante, entregue em data posterior (em 06/08/2019), é mais da metade aritmética do referido valor pela razão indiciada no documento junto pela R. com a apelação (fls. 974 verso dos autos): para efetuar a entrega dos € 326.024,50, procedeu o banco R. a resgates nos 3 fundos de investimento e um deles, o “Select Moderado Classe B”, acabou por ser imputado na totalidade à herança da BB e por ser resgatado na totalidade, fazendo assim que a “metade” entregue seja maior que a “metade” que falta entregar e que, por certo, possam estar mais ou menos certos os cerca de 250.000,00 que o banco R. diz que ainda não foram entregues (embora o banco R. não tenha sabido dar esta explicação, que é patenteada pelo confronto entre os diversos documentos juntos/relevantes). Aliás, não se percebe a razão para o “Select Moderado Classe B” ter sido imputado na totalidade à herança da BB e para ser resgatado na totalidade, uma vez que o que  podia ser imputado na totalidade à herança da BB e resgatado na totalidade era, aparentemente, o “Santander Multicrédito” (que não existia associado às contas, na data de decesso da CC). Seja como for, é tudo isto (e o que mais relevar) que tem que ser considerado e tomado em conta na liquidação entre as partes do que ainda falta entregar.
[20] Não tendo presente – ignorando o banco R. – que ela havia falecido 3 anos antes.
[21] O próprio A. junta extrato da sua conta pessoal, no mesmo banco Santander, com o crédito, em tal data, de tal montante, crédito esse com a seguinte descrição elucidativa: “4297 herança BB”.
[22] Não se percebe (embora o crédito de tais € 75.472,15 também esteja documentado na mesma conta do A., com a mesma descrição elucidativa: “4297 herança BB”), o que significa que há aspetos factuais que as partes necessariamente conhecem e não quiseram ou não souberam esclarecer.
[23] E dando-se até o caso, como reconhece, de ter recebido mais € 75.472,15.
[24] Entrega que, claro, só dará lugar ao levantamento quando o A. demonstrar que se encontra pago o imposto do selo relativo aos valores em causa ou, caso se verifique a isenção deste imposto, que se encontra cumprida a obrigação de declaração da transmissão junto do serviço de finanças competente (cfr. artigo 63.º - A do Código do Imposto do Selo).