Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
453/11.1TBCDN-M.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO
DETERMINAÇÃO DO VALOR
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I- Ao recurso do acórdão que decide o modo de cálculo da majoração da remuneração variável do administrador de insolvência (prevista no n.7 do art.23º do EAJ) aplica-se o art.14º do CIRE, o qual, pela sua natureza especial, afasta a aplicação das regras gerais do recurso de revista previstas no CPC, embora não prescinda dos pressupostos gerais de admissibilidade dos recursos ordinários exigidos pelo art.629º, n.1 do CPC.

II- No cálculo da majoração da remuneração do administrador de insolvência, o valor de 5% referido no n.7 do art.23º do EAJ, com a redação dada pela Lei n.9/2022, não tem como objeto o montante total apurado para satisfação dos créditos (ou seja, o apurado depois de extraída a parcela correspondente à percentagem da remuneração variável prevista nos números 4 e 6 do art.23º).

III- Essa percentagem de 5% incide sobre o resultado de uma operação aritmética prévia destinada a apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”.

Decisão Texto Integral:


Processo n.453/11.1TBCDN-M.C1.S1

Recorrente: AA

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Nos autos de insolvência supra referidos (nos quais foram declarados insolventes BB e CC), a Administradora da Insolvência – AA – apresentou os cálculos para o pagamento da sua remuneração variável.

2. O credor Banco Comercial Português manifestou-se contra o cálculo apresentado respeitante à remuneração prevista no n.7 do art.23º do EAJ.

3. A primeira instância, por decisão de 11.01.2023, entendeu que a majoração a que respeita o n. 7, do artigo 23º do EAJ não era de € 24.158,27, como a administradora da insolvência havia apresentado, mas sim de € 6.148,77.

4. Discordando da interpretação que a primeira instância havia feito do disposto no n.7 do art.23º do EAJ, a requerente interpôs recurso de apelação. Porém, o TRC, por acórdão de 14.03.2023, veio a confirmar a decisão recorrida.

5. Inconformada com o referido acórdão, a apelante interpôs recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

«A. Salvo douta e melhor opinião, parece-nos que a decisão proferida deve ser alterada, uma vez que o Acórdão recorrido está em contradição com outros já transitados em julgado, proferidos por outras Relações no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de Direito, designadamente com:

- Acórdão da Relação de Lisboa de 20.12.2022, proferido no processo n.º 415/13.4TYLSB-E.L1, acessível em www.dgsi.pt. (doc....).

- Acórdão da Relação do Porto de 10-01-2023, proferido no processo n.º 3454/20.5T8STS-K.P1, acessível em www.dgsi.pt. (doc....).

B. Assim, o Acórdão recorrido está em oposição com os acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 20.12.2022, proferido no processo n.º 415/13.4TYLSB-E.L1, acessível em www.dgsi.pt, (acórdão fundamento) e pelo Acórdão da Relação do Porto de 10-01-2023, proferido no processo n.º 3454/20.5T8STS-K.P1, acessível em www.dgsi.pt., sem que exista jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça conforme ao primeiro (cfr. art. 14.º, n.º 1 do CIRE).

C. Pelo que dúvidas não restam acerca da contradição do Acórdão recorrido, com os Acórdãos da Relação de Lisboa e do Tribunal da Relação do Porto, supra transcritos e cujas cópias de encontram juntas como documentos n.º ... e ..., e que versam sobre a mesma questão de fundamental de direito, (forma de cálculo da remuneração variável prevista no n.º 7 do artigo 23.º da Lei 9/2022 de 11/01) e que se encontram em oposição.

D. A Jurisprudência que fez a correta aplicação e interpretação do artigo 23.º n.º 7 da Lei 9/2022 de 11/01 é, salvo melhor e mais fundamentado entendimento, a que foi adotada nos acórdão fundamento acima junto, e onde foi considerado que a majoração de 5% prevista no nº 7 do art. 23º do Estatuto do Administrador Judicial deve ser calculada sobre o montante disponível para a satisfação dos créditos (montante dos créditos satisfeitos) e não sobre a percentagem dos créditos verificados que venha a ser satisfeita com o mesmo montante.

E. Devendo, por isso, por ser este o correto entendimento do sentido e âmbito de aplicação do preceito em crise a ser adotado.

F. Pelo que, salvo douta e melhor opinião, parece-nos que o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra viola frontalmente o disposto no artigo 23.º n.º 5, n.º 6 e n.º 7 da Lei 9/2022 de 11/01, devendo, por isso, ser revogado e substituído por outro que considere correta a formula de cálculo da majoração de 5%, nos termos apresentados pela A.I., em consonância com o entendimento perfilhado pelo acórdão fundamento, e que corresponderá ao montante de 49.899,63 Euros (Artigo 23.º n.º 7 da Lei 22/2013 (EAJ) na redação da Lei 9/2022 de 11.01) e não de 39.376,15 Euros, - conforme consta do Ac. recorrido – fixando-se a remuneração variável no total de remunerações de 49.899,63 Euros acrescidos de IVA à taxa em vigor, no valor global de 61.376,54 Euros, deduzidos da parte já recebida (-11.228,21 Euros acrescidos de IVA =13.810,70 Euros), pelo falta receber o montante de 38.671,42 Euros, acrescidos de IVA (à taxa de 23%, = 8.894,43 Euros), o que perfaz o valor de 47.565,85 Euros.

Termos em que deve merecer provimento o recurso e consequentemente ser:

Revogado o Acórdão recorrido, uma vez que viola frontalmente o disposto no artigo 23.º n.º 5, n.º 6 e n.º 7 da Lei 9/2022 de 11/01, devendo por isso ser revogado, substituindo-o por outro que considere correta a formula de cálculo da majoração de 5%, nos termos apresentados pela A.I., - que corresponde ao montante de 49.899,63 Euros ( Artigo 23.º n.º 7 da Lei 22/2013 (EAJ) na redação da Lei 9/2022 de 11.01) e não de 39.376,15 Euros, - conforme perfilhado no acórdão recorrido, fixando a remuneração variável no total de remunerações de 49.899,63 Euros, acrescidos de IVA à taxa em vigor, no valor global de 61.376,54 Euros, deduzidos da parte já recebida (-11.228,21 Euros acrescidos de IVA =13.810,70 Euros), pelo que falta receber o montante de 38.671,42 Euros, acrescidos de IVA (à taxa de 23%, = 8.894,43 Euros), o que perfaz o valor de 47.565,85 Euros.»

Cabe apreciar.

*

II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso

1.1. Verificam-se os requisitos gerais de admissibilidade previstos no art.629º, n.1 do CPC. A recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso, dado que o acórdão recorrido lhe foi desfavorável, o valor da ação é superior à alçada do tribunal da Relação, e a diferença entre o valor que a recorrente pretende receber a título de majoração (nos termos do art.23º, n.7 do EAJ) e o valor que as instâncias lhe reconheceram é de cerca de €18.000.

Dado que o acórdão recorrido foi proferido em processo de insolvência, ao recurso de revista aplica-se o regime previsto no art.14º do CIRE, o qual, pela sua natureza especial, afasta a aplicação das regras gerais do recurso de revista previstas no CPC [nomeadamente, os artigos 671º, 672º e 629º, n.2, alínea d)].

Assim, o facto de o acórdão recorrido ter confirmado a decisão da primeira instância (sem voto de vencido e sem fundamentação divergente) não afeta a admissibilidade da revista, porquanto esta só será admissível caso se verifique a oposição de acórdãos exigida pelo art.14º do CIRE.

Dispõe o art.14º do CIRE:

No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme”.

Afirma a recorrente que o acórdão recorrido se encontra em oposição com o acórdão do TRL, de 20.12.2022, proferido no processo n. 415/13.4TYLSB-E.L1 (relatora Fátima Reis Silva), que indica como acórdão fundamento[1].

Efetivamente, constata-se a invocada existência de oposição de decisões sobre a mesma questão jurídica, ou seja, o modo de interpretar o alcance do disposto no n.7 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial, na vigência da mesma legislação e face a factualidades tipicamente equiparáveis.

O acórdão fundamento entendeu que:

«A majoração de 5% prevista no nº 7 do art. 23º do Estatuto do Administrador Judicial deve ser calculada sobre o montante disponível para a satisfação dos créditos (montante dos créditos satisfeitos) e não sobre a percentagem dos créditos verificados que venha a ser satisfeita com o mesmo montante

Por sua vez, no acórdão recorrido, confirmando a decisão da primeira instância, entendeu-se, sobre o alcance no n.7 do referido art.23º que:

«(…) a primeira parte do preceito remete, a nosso entender, de uma forma que se nos afigura inequívoca, para um critério de fixação da remuneração em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, que não se compadece, de modo algum, com uma remuneração fixada numa percentagem (5%) a incidir sobre o montante dos créditos satisfeitos sem qualquer consideração pela percentagem que esses créditos representam no valor global dos créditos que haviam sido reclamados e admitidos (…)»

Encontra-se, assim, justificada a intervenção do STJ, nos termos do art.14º do CIRE, pelo que a revista é admissível.

1.2. Não está em causa, na presente revista, a apreciação do valor global da remuneração variável a atribuir à administradora da insolvência, dado que a recorrente não discorda (tal como não discordou no recurso de apelação) do montante fixado nos termos do art.23º, n.4, alínea b) do EAJ. Está em discussão apenas o valor da majoração a que respeita o n.7 do referido artigo 23º. O objeto do recurso respeita, portanto, apenas a esta questão.

2. Factualidade provada

Para além da informação que já resulta do relatório, releva ainda a seguinte factualidade, que as instâncias deram como provada:

«1. BB e CC foram declarados insolventes por sentença proferida a 16/11/2011 já transitada em julgado, tendo sido nomeada administradora da insolvência a Srª Drª AA.

2. Foi levada a cabo a liquidação do ativo dos devedores.

3. Encontra-se junta, a 09/12/2022, Relação de Créditos Reconhecidos, atualizada depois dos cancelamentos ou acionamentos das respetivas garantias bancárias, no total de créditos reconhecidos de 1.897.445,46€, sendo 38.545,07€ (23.834,09€ + 14.710,98€) ainda sob condição.

4. Elaborada a conta de custas, a mesma já foi paga.

5. Tiveram lugar as seguintes despesas:

- da liquidação constante da prestação de contas: 37.281,46€.

- da conta de custas: 6.784,00€.

6. O total das receitas atingiu o valor de 558.892,67€.

7. A administradora da insolvência já recebeu em 28.05.2021, o valor de 11.228,21€ acrescido de IVA (no total de 13.810,70 €) calculado até 25.02.2021.»

3. O direito aplicável

3.1. Como supra referido, o objeto do presente recurso respeita apenas à questão de saber como deve ser interpretado o disposto no n.7 do art.23º do EAJ, para se concluir se o acórdão recorrido fez a correta aplicação dessa norma no cálculo da majoração devida à administradora de insolvência, apesar de a recorrente, nas conclusões das suas alegações, se referir globalmente a todo o valor da sua remuneração variável.

3.2. No requerimento que apresentou para cálculo da sua remuneração variável, a administradora de insolvência, no referente à parcela a que respeita o n.7 do art.23º (majoração), formulou a seguinte equação: 483.165,35 x 5% = 24.158,27.

Porém, a primeira instância não acolheu essa fórmula de cálculo, tendo justificado a sua decisão nos seguintes termos:

«Para calcular a majoração a que se reporta o n.º 7 do art. 23.º haverá, em primeiro lugar, que deduzir ao resultado da liquidação (€517.287,21) a remuneração variável calculada nos termos do n.º 4, al. b), e a remuneração fixa (€31.813,16 e €2.460,00). O total, de 483.014,05€, é dividido pelo montante dos créditos reconhecidos (1.897.445,46€). Obter-se-á assim o grau de satisfação dos créditos admitidos, que é de 25,46%. O montante ao qual se aplicará o fator de majoração de 5% será, então, de €122.975,38 (€483.014,05 x 25,46%), e a majoração será de 6.148,77€ (€122.975,38 x 5%).

Adicionando a remuneração prevista no art. 23.º, n.º 4, al. b), de 25.864,36€, à majoração, de 6.148,77€, obtemos o valor de 32.013,13€, sem IVA. Com IVA (7.363,02€) totaliza 39.376,15€.

Contudo, a Ilustre administradora da insolvência já recebeu em 28.05.2021, o valor de 11.228,21€ acrescido de IVA (no total de 13.810,70€) calculado até 25.02.2021, tendo por isso a receber agora 25.565,45€.»

Conclui-se, assim, que na interpretação do art.23º, n.7 feita pela administradora judicial (e suportada em alguma jurisprudência) esta teria direito a receber uma majoração de € 24.158,27, enquanto que na interpretação feita pela primeira instância, e confirmada pelo acórdão recorrido, o valor dessa majoração será de 6.148,77€.

3.3. Trata-se de uma matéria que tem dividido a jurisprudência das Relações, e sobre a qual o STJ já tomou posição, concretamente pela jurisprudência da 6ª Secção à qual cabe a competência especializada em matéria de insolvência.

Efetivamente, no acórdão do STJ, de 18.04.2023, proferido por este mesmo coletivo[2], no processo n. 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1, entendeu-se que a interpretação correta no disposto no n.7 do art.23º do EAJ era aquela que foi também seguida pelo acórdão recorrido nos presentes autos.

Dado estar em apreço a mesma questão de direito, e tendo presente a respetiva abrangência problemática, convocam-se para fundamentar a questão em análise as razões expostas na referida decisão de 18.04.2023, que aqui se reproduzem (com alguns ajustamentos):

«No caso decidendo, o STJ é chamado a concluir se o valor de 5% referido no n.7 do art.23º do EAJ, com a redação dada pela Lei n.9/2022, tem como objeto o “montante dos créditos satisfeitos” (ou seja, o montante total apurado para satisfação subsequente dos créditos); ou se essa percentagem incide sobre o resultado de uma operação aritmética prévia destinada a apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”.

A formulação literal do n.7 do art.23º do EAJ não é isenta de dificuldades interpretativas.

Tais dificuldades identificam-se também quanto à determinação do sentido e alcance de outras disposições que regem a remuneração do administrador judicial (tanto enquanto administrador de insolvência, como enquanto administrador judicial provisório), das quais aqui se não cuidará porque o objeto do presente recurso se restringe ao n.7 do art.23º[3].

A remuneração do administrador judicial em processo de insolvência, havendo liquidação, é integrada por uma parte fixa (art.23º, n.1) quantificada em €2.000[4] e por uma parte variável, subdividida em dois vetores: um previsto nos números 4 e 6 do art.23º e outro previsto no n.7 (majoração). É apenas este segundo vetor da remuneração variável que está em causa no presente recurso.

Dispõe o n.7 do art.23º do Estatuto do Administrador Judicial[5]:

«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.»

 A tese defendida pela recorrente (e com respaldo no acórdão fundamento) implica desconsiderar um segmento literal do n.7 do art.23º; precisamente aquele onde se lê: «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos».

Amputando a norma deste segmento literal, ela apresentaria a seguinte configuração:

«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado (…) em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos (…)».

Com tal literalidade, o n.7 do art.23º expressaria claramente a tese que o recorrente pretende ver aí consagrada.

Porém, desconsiderar um segmento de uma norma (como se dele tivesse sido amputada) equivale a fazer uma interpretação ab-rogante dessa norma, ou seja, significa concluir que o legislador expressou aquilo que não queria dizer, e que, portanto, tal disposição não pode ter qualquer sentido normativo útil.

O intérprete concluiria, como afirma Oliveira Ascensão «(…) que esse texto proclamado como lei não contém, apesar das aparências, nenhuma regra.»[6]

Porém, tendo presentes o “princípio do aproveitamento das leis” e a “presunção de racionalidade da legislação”[7], no percurso interpretativo do conjunto das regras que disciplinam a remuneração do administrador de insolvência, chega-se à conclusão que não existe oposição com qualquer outra norma que permita sustentar uma interpretação ab-rogante (lógica ou valorativa) do segmento literal «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» do n.7 do art.23º.

Efetivamente, numa análise intra-sistemática, conclui-se que esse segmento do n.7 não conflitua com qualquer outro dos números do art.23º (que preveem hipóteses distintas da hipótese de majoração da remuneração do administrador). Ampliando o campo de análise às demais normas que, direta ou indiretamente, respeitam à matéria da remuneração do administrador, também não é identificável qualquer disposição de natureza especial ou de prioridade sistemática que pudesse esvaziar de sentido lógico ou normativo o segmento do n.7 do art.23º que aqui está em equação.

Conclui-se, portanto, não existir fundamento para fazer uma interpretação ab-rogante do referido segmento dessa norma.

Considerando que o legislador se pode expressar de modo imperfeito, mas que não cria disposições inócuas, deverá o intérprete encontrar um sentido normativamente útil para o referido segmento do n.7 do art.23º, tendo presentes os parâmetros previstos no art.9º do Código Civil.

Nestes termos, e num percurso dialógico com a tese do recorrente, cabe apurar se as alterações introduzidas pela Lei n.9/2022 permitirão uma interpretação restritiva do n.7 do art.23º, teleologicamente orientada pelo propósito legislativo de aumentar a majoração da remuneração do administrador.

Para se responder a tal questão, e perceber se a Lei n.9/2022 teve como propósito alterar o critério normativo destinado a encontrar a fórmula da majoração, há que ter presente a evolução legislativa das disposições reguladoras da majoração da remuneração do administrador de insolvência.

 

Que a Lei n.9/2023 alterou a percentagem a aplicar ao montante a ser considerado para efeitos de majoração não existem dúvidas, pois a nova redação dada ao n.7 do art.23º é clara ao consagrar uma percentagem de 5%, em vez da percentagem que se encontrava estabelecida, entre 1% a 1.6%, pela Portaria n.51/2005, de 20 de janeiro (que, nessa matéria, ficou esvaziada de sentido normativo).

Questão diferente, e é essa que ocupa o objeto do presente recurso, é a de saber a que montante se aplica aquela percentagem de 5%.

Como já referido, a atual redação do n.7 do art.23º do EAJ foi introduzida pela Lei n.9/2022. Porém, a expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» não surgiu ex novo com a reforma introduzida por essa lei; ela já constava das normas que antecederam o n.7 do art.23º.

Tal expressão tem um lastro legislativo que remonta à Lei n.32/2004 (antigo Estatuto do Administrador da Insolvência)[8], cujo artigo 20º, n.4 dispunha:

«O valor alcançado por aplicação da tabela referida no n.º 2 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1.»

A portaria para a qual esta norma remetia era a Portaria n.51/2005, de 20 de janeiro, do Ministério das Finanças e da Administração Pública e do Ministério da Justiça, cujo Anexo II continha uma tabela onde se encontravam previstos os fatores de majoração da remuneração do administrador, estabelecendo uma lista de correspondência entre a percentagem dos créditos reclamados que foram satisfeitos e o respetivo fator de majoração (entre 1% e 1,6%).

Quando a Lei n.32/2004 foi revogada pela Lei n.22/2013 (que estabeleceu o Estatuto do Administrador Judicial) aquela norma passou a corresponder ao n.5 do artigo 23º do EAJ, com o seguinte teor:

«O valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.os 2 e 3 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1. »

Continuou a fazer-se a remissão para a referida Portaria n.51/2005, a qual continuou em vigor, apesar de ter ficado desatualizada, pois literalmente continuava a referir-se ao artigo 20º da Lei 32/2004 (revogada pela Lei 22/2013).


Com a alteração introduzida no art.23º pelo DL n.52/2019 (de 17 de abril), o alcance normativo do n.5 deste artigo não se alterou, tendo a alteração consistido apenas num ajustamento à numeração que antecedia esta norma. O seu teor passou a ser o seguinte:

«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 3 e 4 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1.»

Com a Lei n.9/2022, a previsão que até então se encontrava no n.5 do art.23º passou para o n.7 deste artigo, tendo desaparecido a remissão para a Portaria n.51/2005. Ao mesmo tempo, o legislador operou uma alteração relativamente às percentagens que antes constavam dessa portaria. Assim, em vez da percentagem que variava entre 1% e 1.6%, aplicáveis ao montante resultante do fator de satisfação, a lei 9/2022 estabeleceu uma percentagem fixa de 5%, que passou a constar do n.7 do art.23º.

Constata-se, assim, que com a Lei n.9/2022 o legislador não abandonou o critério normativo correspondente à expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos», que já vinha da Lei n.32/2004.

Todavia, na nova redação do n.7, ao procurar explicitar o objeto de referência daquela percentagem, o legislador referiu-se ao «montante dos créditos satisfeitos», o que sustenta a tese do recorrente no sentido de os 5% respeitarem à totalidade dos créditos satisfeitos, rectius, ao montante total destinado à satisfação dos créditos.

Apesar de literalmente imperfeita, essa expressão [montante dos créditos satisfeitos] não é necessariamente contraditória com o segmento literal que a antecede.

Na realidade, o montante a que se chega depois de aplicado o fator correspondente ao grau de satisfação dos créditos não deixa de ser um montante de créditos satisfeitos, ou seja, um montante destinado à satisfação de créditos.

Feito este percurso histórico, pode concluir-se que se o legislador da Lei n.9/2022 tivesse pretendido alterar o critério normativo (que já vinha da Lei n.32/2004) dificilmente se compreenderia que não o tivesse feito de forma clara, abandonando a expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos».

Porém, não se identifica qualquer argumento sólido para sustentar essa eventual mudança de orientação legislativa. É inequívoco que a Lei n.9/2022 pretendeu favorecer o administrador, alterando a percentagem da majoração para 5%, em vez dos valores mais reduzidos que constavam da Portaria n.51/2005. Mas não é possível concluir que o legislador o tivesse pretendido favorecer em mais do que isso.

Ao manter o valor da remuneração fixa (em 2.000 €), no n.1 do art.23º, não parece que o legislador tenha dado um sinal de pretender melhorar significativamente a remuneração do administrador independentemente dos resultados alcançados pelo seu labor em cada caso concreto. Neste sentido, é possível concluir que o legislador terá pretendido fazer depender uma maior remuneração de um maior grau de empenho do administrador na satisfação do interesse dos credores.

Por outro lado, tendo presente que a Lei n.9/2022 transpôs a Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, importa indagar se (nos considerandos ou no articulado) tal Diretiva contém alguma referência à remuneração do administrador.

Entre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de insolvência, encontra-se o artigo 27º daquela Diretiva, o qual se refere à supervisão e à remuneração do administrador.

No n.4 deste artigo dispõe-se que:

«Os Estados-Membros asseguram que a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos.»

Embora desta disposição não resulte um comando legislativo destinado a modelar diretamente as normas reguladoras da remuneração do administrado, o apelo a um propósito de eficiência compatibiliza-se melhor com uma majoração calculada «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» (como consta do n.7 do art.23º do EAJ) do que com uma interpretação que não depende de qualquer grau de satisfação.

Pode ainda acrescentar-se que, caso subsistissem dúvidas interpretativas quanto à definição do critério de calculo da majoração que o legislador terá pretendido consagrar no n.7 do art.23º, constatando-se que determinado critério favorece mais os interesses do administrador, enquanto que o critério alternativo favorece mais os interesses dos credores, sempre os princípios estruturantes do regime da insolvência haveriam de ser ponderados para dissipar tais dúvidas. E a resposta encontrar-se-ia no artigo 1º do CIRE, nos termos do qual o processo de insolvência tem como finalidade a satisfação dos credores, nomeadamente através da repartição do produto da liquidação do património do devedor.»

Em resumo, concluiu-se que o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei ao confirmar a decisão da primeira instância, pois aplicou o disposto no n.7 do art.23º do EAJ no sentido juridicamente mais correto.

*

DECISÃO: Pelo exposto, decide-se pela improcedência da revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 16 de maio de 2023

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins

Sumário, art.o 663, n.o 7, do CPC.


_________________________________________________


[1] Publicado em:
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/58ea129dc250c6e08025893b0056d436?OpenDocument

[2] Publicado em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f34907e46eeccf1680258996002ab8f1?OpenDocument
[3] Para uma análise detalhada dos múltiplos problemas interpretativos emergentes da atual disciplina da matéria sobre a remuneração do administrador judicial, veja-se: Nuno Araújo, “A remuneração do Administrador Judicial depois de abril de 2022”, in Data Venia – Revista Jurídica Digital, n.13, 2022.
[4] Este montante já constava da Portaria n.51/2005 (de 20 de janeiro), passando a ser referido diretamente pelo n.1 do art.23º após a alteração introduzida pela Lei n.9/2022, a qual manteve tal montante inalterado.
[5] Aprovado pela Lei n.22/2013 (entretanto, objeto de múltiplas alterações).
[6] O Direito – Introdução e Teoria Geral (13ª ed.), página 428.
[7] Vd. Oliveira Ascensão, op. cit., página 429.
[8] Revogada pela Lei n.22/2013.