Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3580/14.0T8VIS-A.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: PROVA POR INSPECÇÃO
PROVA POR INSPEÇÃO
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
PRESSUPOSTOS
DUPLA CONFORME
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 03/01/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
-Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª Edição, p. 116;
-António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª Edição, Almedina, p. 58, 59, 345 e 349;
-Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, Almedina, p. 494 e 497;
-J.O. Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição, Coimbra Editora, p. 210 e 211;
-José Lebre de Freitas e A. Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil. Anotado, 2.ª Edição, Tomo I, Volume 3.º, p. 17;
-Luís Correia de Mendonça, Henrique Antunes, Dos Recursos, 2009, p. 315.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.º 2, ALÍNEA D) E 671.º, N.º 2.
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 13-07-2010, PROCESSO N.º 4210/06.9TBGMR.S1;
- DE 18-04-2012, PROCESSO N.º 3962/08.6TJCBR.C1-A.S1;
- DE 18-09-2014, PROCESSO N.º 1852/12.7TBLLE-C.E1.S1;
- DE 20-11-2014, PROCESSO N.º 7382/07.1TBVNG.P1.S1;
- DE 20-05-2015, PROCESSO N.º 321/12.0YHLSB.L1.S1;
- DE 02-06-2015, PROCESSO N.º 149/14.2YHLSB.L1.S1;
- DE 13-09-2016, PROCESSO N.º 671/12.5TBBCL.G1.S1;
- DE 24-11-2016, PROCESSO N.º 1655/13.1TJPRT.P1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 26-11-2013, PROCESSO N.º 309/07.2TBLMG.P1.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:


- DE 12-05-2016, PROCESSO N.º 3/14.8TJVNF.G1.
Sumário :
I - A instituição da dupla conforme teve em vista racionalizar o acesso ao STJ e acentuar as suas funções de orientação e uniformização da jurisprudência.

II - O despacho que indefere a realização de prova por inspecção e a junção documental constitui uma decisão intercalar, pelo que a revista apenas é admissível nos termos do n.º 2 do art. 629.º ou nos termos do n.º 2 do art. 671.º, ambos do CPC.

III - A contradição de julgados, equacionada na al. d) no n.º 2 do art. 629.º do CPC e que releva como conditio da admissibilidade do recurso de revista pressupõe, além de mais, pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito.

IV - A questão de direito fundamental só é a mesma quando a subsunção do mesmo núcleo factual seja idêntica (ou coincidente) mas tenha, em termos de interpretação e aplicação dos preceitos sido feita de modo diverso. A oposição relevante caracteriza-se por ser frontal e por incidir sobre decisões expressas relativas a questões concretas, não abrangendo argumentos ou uma diversidade implícita.

V - Radicando as diferentes decisões adoptadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento sobre a pertinência das diligências de prova mencionadas em II nos distintos contextos processuais em que foram proferidas e no distanciamento temporal relativamente aos factos que, por seu intermédio, se pretendem apurar, inexiste identidade das questões fundamentais de direito dirimidas num e noutro aresto, o que conduz à inadmissibilidade da revista.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:


I – AA intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra BB - Companhia de Seguros, S. A., alegando, em síntese, que:

No dia 19 de Novembro de 2011, cerca das 15.30 horas, na estrada municipal da Ariceia, Zona Industrial de Armamar, ocorreu um acidente de viação em que intervieram o seu automóvel ligeiro de marcadorias, com a matrícula ...-...-QH, por ele conduzido, e o automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ...-...-NT, conduzido pelo seu proprietário, CC.

O acidente ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor deste último veículo, que, ao desfazer a curva ali existente, não logrou manter-se dentro da sua hemi-faixa, tendo invadido a contrária onde foi embater no veículo que tripulava.

Em consequência do embate sofreu os danos patrimoniais e não patrimoniais que descreveu (graves lesões físicas e sequelas), por cujo ressarcimento é a ré responsável, por ter assumido tal responsabilidade, através de contrato de seguro celebrado com o proprietário do veículo automóvel causador do acidente.

Com tais fundamentos concluiu por pedir a condenação da ré a pagar-lhe as quantias de €23 531,25, a título de danos patrimoniais, e €50 000,00, a título de danos não patrimoniais.

Entre os vários meios de prova indicados, requereu inspecção ao local do acidente, para comprovação do alegado nos itens 2º a 13º da petição inicial.

Na contestação foi alegado que no acidente não interveio o veículo automóvel de matrícula ...-...-NT, mas sim um outro de matrícula OD-...-..., propriedade do CC que não transferira a sua responsabilidade para qualquer seguradora pelos danos emergentes da sua circulação.

Sobre a requerida inspecção ao local recaiu o seguinte despacho:

“Entende-se que é desnecessário a requerida inspecção ao local, pelo que vai a mesma indeferida, sem prejuízo de, caso se entenda que a sua produção é imprescindível para a decisão da causa, a mesma poder ter lugar ao longo da audiência de julgamento”(….).

No decurso da audiência final, a Exma. Juíza proferiu novo despacho, relativamente à mesma diligência probatória, com o teor seguinte:

“Em face das fotografias que se encontram juntas aos autos, entendo ser desnecessária a realização da requerida inspecção ao local, pelo que vai a mesma indeferida, sem prejuízo de, caso se entenda que a sua produção será imprescindível para a boa decisão da causa, a mesma possa ter lugar no final da audiência”.

Ainda no decurso da audiência, o autor, através do seu mandatário, requereu a junção de um documento para prova de que o veículo de matrícula OD-...-... não pertence a CC que tinha acabado de depor como testemunha, o que mereceu o seguinte despacho da Exma. Juíza:

“Nos termos do disposto no artº 423º, nº 2 do C.P.C., os documentos têm que ser apresentados até 20 dias antes da data de audiência de julgamento, salvo preenchido algum dos requisitos anunciados no nº 3, o que não sucede com o documento em causa, uma vez que podia e devia ter sido junto pelo requerente em momento oportuno”.

Inconformado com os referidos despachos, apelou o autor, em recurso admitido em separado, tendo a Relação de … confirmado tais despachos e, persistindo irresignado, o autor, que, entretanto, vira a acção ser julgada improcedente e condenado por litigância de má fé, interpôs o presente recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as conclusões que se transcrevem:

1. O recorrente/Autor requereu na sua Petição, como meio de Prova a "deslocação do Tribunal ao local do acidente para comprovação do alegado nos itens 2° a 13. ° deste articulado", sendo reconduzidos aos temas de prova elencados na alínea a).

No início da audiência de julgamento, o Autor percutiu na realização deste meio de prova e sobre o mesmo recaiu o seguinte Despacho: "Em face das fotografias que se encontram juntas aos autos, entendo ser desnecessária a realização da requerida inspecção ao local, pelo que vai a mesma indeferida, sem prejuízo de, caso se entenda que a sua produção será imprescindível para a boa decisão da causa, a mesma possa ter lugar no final da audiência de julgamento. Notifique."

2. O recorrente pretendia fazer prova do local do acidente, a configuração da estrada, a largura da faixa de rodagem, da curva (se era ou não de reduzida visibilidade), ver o muro e suas características e o mais que o Tribunal reputasse importante para o objecto da causa.

3. Foi proferida sentença e o Tribunal deu como não provados todos os factos que com a Inspecção Judicial se pretendiam demonstrar.

4. O Venerando Tribunal da Relação de … caucionou o indeferimento deste meio de prova, fundamentou, com excertos da sentença, que: "Em função das circunstâncias, a final, se revelou não necessária, por isso dispensável, nos termos expressos, igualmente, em decisório, na motivação e fundamentação adrede, consignadas, designadamente, ao se fazer consignar que:" - seguem-se passagens da motivação da sentença.

Mais diz que "nada impõe que tal diligência seja levada a cabo no início da audiência de julgamento, podendo, outrossim, ter lugar depois de produzida a restante prova e antes dos debates sobre a matéria de facto. Por se tratar de prova real e directa, a inspecção judicial não deve ser indeferida com o simples fundamento de que a factualidade em questão não pode ser provada através de prova testemunhal".

5. A decisão recorrida substituiu-se à 1ª instância contraditando aquela premissa.

6. Assim, só ficamos com a "desnecessidade" por se ter firmado e afirmado que "em face das fotografias que se encontram juntas aos autos, entendo ser desnessária a realização da requerida inspecção ao local".

7. Tendo, a final, serem não provados os que se pretendiam demonstrar com a requerida e mantida pretensão da prova por inspecção judicial.

8. E, naquele, poderia a Senhora Juíza inflectir na decisão tomada em sede de sentença.

9. E é com este específico fundamento que se encontra a motivação no Acórdão que aqui se opõe e já identificado, Tribunal da Relação do … de 26/11/2013, Relator Desembargador Rodrigues Pires, proc. n.° 309/07.2TBLMG.P1: "Trata-se da prova directa por excelência. Ao passo que nos outros meios probatórios o juiz se serve de intermediários - o documento, a testemunha, o perito, a parte - na inspecção judicial não há intermediário algum: o magistrado é posto em contacto directo e imediato com o próprio facto a provar."

10. Trata-se de pontos factuais para os quais a prova por inspecção, assente na percepção directa dos factos pelo próprio tribunal, se mostra útil. Ora, a Mm" Juíza que presidiu à audiência de julgamento, no fim da sessão que se realizou em 7.6.2011, face ao teor do depoimento de parte e dos esclarecimentos prestados pelas testemunhas, concluiu não haver necessidade do Tribunal se deslocar ao local.

Porém, com tal decisão negou à autora a produção de um meio de prova que esta requerera, sendo que dois dos pontos factuais visados com a sua realização não vieram a lograr respostas positivas.

Ora, entendemos que a inspecção judicial só não deve ser efectuada se a mesma se mostrar de todo desnecessária e inútil para a descoberta da verdade e, no caso "sub judice", não era possível fazer semelhante juízo.

Admite-se que a Mm" Juíza, após a produção da prova testemunhal e a prestação do depoimento de parte, que são os elementos probatórios mencionados no seu despacho, se considerasse devidamente esclarecida até porque logo a seguir agendou data para alegações finais (cfr. fls. 193).

Nada mais disse sobre a inspecção ao local, por si considerada como desnecessária.

A convicção que formou objectivar-se-ia nas respostas restritiva ao n.° 7 e negativa ao n.° 13 da base instrutória.

Sucede que a inspecção ao local fora requerida pela autora precisamente para, entre outros, conseguir provar esses dois factos.

Tendo efectuado a inspecção, a Mm" Juíza poderia reforçar a convicção que formou, mas, deslocando-se ao local do litígio, também poderia inflecti-la.

Ao não efectuá-la, a Mm" Juíza retirou, desde logo, à autora a produção de um meio de prova que poderia contraditar a sua convicção e levá-la a decidir aqueles dois pontos factuais de forma diversa."

11. Assim, existe oposição de julgados sobre a mesma questão - inspecção judicial -tendo como preposições opostas:

Não podia o Tribunal recorrido substituir-se à 1ª instância para complementar a desnecessidade da inspecção judicial;

Este meio de prova foi indeferido no início da audiência de julgamento, por o Tribunal julgar desnecessária em face das fotografias juntas;

Era a diligência essencial para prova dos quesitos elencados que obtiveram respostas negativas, cujo ónus da prova incumbia ao recorrente;

Depois de realizada toda a demais prova até aos debates não ocorreu novo despacho em que a Mm" Juíza considerasse desnecessária e inútil a inspecção para a descoberta da verdade e, no caso sub judice, não era possível fazer semelhante juízo;

O Tribunal recorrido não pode sustentar a posteriori a desnecessidade da inspecção judicial, até porque a Senhora Juíza se a efectivasse até podia inflectir a sua posição;

A mesma não deve ser indeferida, com o fundamento de que o Tribunal poderia já estar esclarecido a partir dos depoimentos prestados e se dos mesmos resultaria, como resultou, não serem provados todos os factos que a diligência se propunha provar e mesmo outros que seriam importantes para o desfecho do pleito.

12. A pretensão de juntar documento foi indeferida por extemporânea, nos termos do Art. 423°, n.° 2 do CPC, ou seja, até 20 dias antes da audiência de julgamento.

13. A decisão recorrida mantém o decidido em 1.ª instância, dizendo que a junção de documento após o encerramento da audiência, só é possível no caso de recurso e desde que sejam necessários para o seu conhecimento.

14. Mais refere (é aqui o ponto fundamental para a Revista):

"Em tais termos, pois que o ónus da prova (art. 342.° do Código Civil) é a obrigação que recai sobre os sujeitos processuais da realidade de tais actos. A traduzir-se, para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova, tal como nos autos, por banda dos recorrentes" (sublinhado e bold nossos).

15. O direito invocado pela 1.ª instância para manter o decidido pela 2.ª instância para manter o decidido pela 1ª instância de indeferimento da junção do documento não se aplica ao caso concreto, porque a norma apenas se reporta às situações em que a parte tem o ónus da prova do facto e o documento serve para o provar.

16. Sendo que a 1.ª instância vem a dar como provado que o veículo OD-...-... era propriedade da testemunha CC, sem suporte documental ou testemunhal que elidisse a presunção do registo que se pretendia demonstrar.

Nesta situação, a norma invocada não regula a situação porque não há articulado com o qual o documento pudesse ser junto.

Antes está em causa a procura da verdade material.

17. A Relação entra em contradição com o acórdão oponente, Tribunal da Relação de …, de 12/05/2016, processo n° 3/14.8TJVNF.G1;

I) - "O dever do juiz ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto a factos que lhe é licito conhecer, constitui um poder vinculado, de forma a permitir que o processo possa prosseguir com regularidade e possibilitar uma decisão de mérito sobre a pretensão das partes".

18. E também está em causa o princípio do inquisitório:

Se a parte (a Ré/recorrida) alega que o veículo era da propriedade de F (a testemunha CC) deveria fazer prova do facto e tratando-se de facto sujeito a registo, não tendo a parte junto o documento, deveria, de acordo com aquele princípio ordenar a sua junção.

19. Termos em que deve ser dado provimento à presente revista, com as necessárias consequências.

A ré apresentou contra-alegação a pugnar pela intempestividade, inadmissibilidade e insucesso do recurso que foi admitido na Relação.

Distribuído o processo, no Supremo Tribunal de Justiça, o relator proferiu a decisão datada de 06.12.2017 que constitui folhas 203 a 209 e cujo teor aqui se tem por reproduzido, na qual entendeu que o recurso de revista interposto é inadmissível e, apesar de recebido na Relação, não seria de conhecer do seu objecto.

É desta decisão que vem interposta a presente reclamação para a conferência, insistindo o autor, nos termos constante de folhas 219 a 222, cujo teor aqui se tem por reproduzido, pela admissibilidade do recurso de revista que interpôs.


II - Perante os passos processuais atrás enunciados, há que apreciar, agora, do acerto da decisão do relator de não admitir o impetrado recurso de revista.

Como se sabe, as decisões judiciais são impugnáveis por meio de recurso (artigo 627º do Cód. Proc. Civil), a interpor por quem tiver legitimidade e dentro de prazos peremptórios de curta duração, na medida em que há necessidade de não protelar no tempo a firmeza da definição das situações jurídicas levada a efeito pelo tribunal (artigos 631º, n.ºs 1 a 3, e 638º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil).

Contudo, a natural escassez dos meios disponibilizados para administrar a Justiça e a necessidade da sua racionalização impõem que se coloque algum condicionamento na admissibilidade ilimitada de recursos, em especial para o Supremo Tribunal de Justiça, que constitui o grau superior de jurisdição na hierarquia dos tribunais judiciais. Daí que o referido princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais sofra várias excepções, mormente no acesso ao topo da hierarquia, entre elas figurando, a chamada “dupla conforme” (artigo 671º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil), instituída com o deliberado objetivo de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e acentuar as suas funções de orientação e uniformização da jurisprudência e que é traduzida numa pronúncia com o mesmo sentido decisório das duas instâncias[1] a tornar inadmissível o recurso do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância[2].

Da análise e cotejo das decisões da 1ª instância e da Relação resulta que ambas as instâncias convergiram no indeferimento quer da realização da inspecção ao local, quer da junção do documento. Existe, assim, dupla conforme, na medida em que há total conformidade ou coincidência entre a decisão da 1ª instância e o acórdão da Relação que, frise-se, foi tirado, por unanimidade e com idêntica fundamentação. Por tal motivo, mesmo que comportasse recurso de revista (e não comporta, como adiante se verá) o impetrado recurso não seria admissível, por força da regra da dupla conforme (artigo 671º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil).

Por outro lado, importa também sublinhar que, nos termos do artigo 671º do Cód. Proc. Civil, apenas comportam recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos da Relação que, incidindo sobre decisões da 1ª instância, conheçam do mérito da causa ou ponham termo ao processo, absolvendo o réu da instância (cfr. n.º 1 desse artigo). Tratam-se, portanto, de decisões finais[3], sejam de mérito ou de conteúdo processual, encontrando-se excluídos do âmbito do recurso de revista, entre outros, os acórdãos da Relação que incidam sobre decisões intercalares da 1ª instância, a não ser que o recurso seja sempre admissível, nos termos do artigo 629º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, ou exista contradição jurisprudencial ainda não superada (artigo 672º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil)[4].

No caso, o acórdão da Relação foi proferido no âmbito de recurso de apelação autónoma, com subida em separado – artigos 644º, n.º 2, h), e 645º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil -, visando a impugnação de decisão interlocutória da 1ª instância, como inegavelmente são os despachos a indeferir a realização da inspecção judicial e a junção de documento. Não se trata, de modo algum, de decisão final enquadrável, portanto, na previsão do n.º 1 do artigo 671º do Cód. Proc. Civil, e, por isso, não comportaria recurso de revista.

A irrecorribilidade é, no entanto, excepcionada se invocada alguma das situações elencadas no artigo 629º, n.º 2, alíneas a), b), c) e d), do Cód. Proc. Civil, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados. Não se verificando qualquer uma destas situações especiais permissivas da revista «atípica», cujo objectivo é garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução pelo mais Alto Tribunal os conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações, em matérias que, de acordo com a regra geral, nunca poderiam vir a ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça[5].

A presente revista tem por fundamento precisamente a contradição de julgados, caindo, portanto, no âmbito do artigo 629º, n.º 2, alínea d), do Cód. Proc. Civil, e, nessa medida, o prazo de interposição do recurso é, como bem assinala o despacho que o admitiu, de 30 dias (e não 15 como defende a recorrida)[6], cabendo verificar, então, se ocorre a invocada condição de admissibilidade do recurso, ou melhor, apurar se existe contradição com os dois arestos indicados pelo reclamante (recorrente).

Como se sabe, a contradição aqui equacionada e que releva como conditio da admissibilidade do recurso de revista pressupõe, além de mais, pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito, sendo que a questão de direito fundamental só é a mesma quando a subsunção do mesmo núcleo factual seja idêntica (ou coincidente), mas tenha, em termos de interpretação e aplicação dos preceitos legais sido feita de modo diverso[7]. Além disso, a oposição terá de ser frontal e incidir sobre decisões expressas relativamente a concreta questão, não abrangendo os argumentos ou fundamentos utilizados, nem sendo suficiente a oposição meramente tácita ou sequer uma diversidade implícita ou pressuposta[8].

Significa isto que, para este efeito, se deve considerar que existe oposição/contradição de julgados quando, por um lado, exista identidade da questão fundamental de direito – o que pressupõe que o núcleo factual seja idêntico (ou, em larga medida, coincidente) – e, por outro, a interpretação e aplicação dos mesmos preceitos hajam sido efectuadas de modo oposto ou, pelo menos, diverso.

Posto isto, cotejemos, o acórdão recorrido e o acórdão fundamento (o proferido pela Relação do Porto, em 26.11.2013, no processo n.º 309/07.2TBLMG.P1), a fim de neles descortinar razões de identidade, no que toca à necessidade de realização da inspecção ao local, que, a ser aplicável o citado preceito adjectivo – artigo 629º, n.º 2, alínea d), do Cód. Proc. Civil - levarão à admissão do recurso.

No acórdão recorrido, os passos processuais a considerar foram já enunciados, sendo de frisar que no processo está em causa um acidente de viação ocorrido em Novembro de 2011, enquanto no acórdão fundamento está em causa a (i)legalidade de obras realizadas num prédio pelo ali réu e que o ali autor pretende ver desfeitas, repondo a anterior situação.

Vale isto por dizer que no primeiro se procurava apurar um facto passado há quase 6 anos, precisamente o acidente do qual já não existem vestígios, quedando a configuração e características da via, essas perceptíveis pelas fotografias juntas, enquanto no último se visava detectar e observar um facto ainda actual, as obras levadas a cabo no prédio pelo ali réu.

Fica, assim, evidenciado que a razão de ser para as discrepantes soluções a que chegaram os acórdãos em tela radica no respectivo substrato fáctico, mormente, no que concerne à actualidade dos factos a apurar e na existência de fotografias a permitir percepcionar a configuração e características da via em que o acidente ocorreu, pelo que, neste contexto, e atentando nas particularidades acima focadas, não se pode considerar, como sustenta o reclamante (recorrente), que a questão é idêntica.

Pelo contrário, o contexto processual é profundamente diferente e, por isso, o juízo formulado no acórdão recorrido que levou à conclusão de que a realização da inspecção ao local não era necessária, ou melhor, era dispensável foi necessariamente divergente da consideração tecida no acórdão fundamento acerca da pertinência da realização dessa diligência probatória.

Deste modo, apesar de se ter como certo que, em ambos os arestos, se interpretaram as mesmas normas jurídicas – essencialmente, o disposto nos artigos 490º e 493º, do Cód. Proc. Civil –, não se pode deixar de reconhecer que existem diferenças não menosprezáveis entre a factualidade e o contexto processual considerados num e noutro acórdão. E, sendo assaz díspares nos seus contornos, jamais se poderia considerar que as referidas normas foram interpretadas e/ou aplicadas em sentidos opostos ou sequer diversos naquelas decisões.

E, se assim é no tocante à temática da inspecção ao local, o mesmo óbice existe também quanto à indeferida junção do documento, confirmada pelo acórdão recorrido que, na óptica do reclamante (recorrente), estaria em contradição com o acórdão fundamento, o proferido pela Relação de …, em 12.05.2016, no proc. n.º 3/14.8TJVNF.G1.

Com efeito, cotejando o teor dos dois acórdãos a equacionar, constata-se que o acórdão recorrido versa sobre um acidente de viação, enquanto o acórdão fundamento respeita a um invocado reconhecimento de dívida e acordo de pagamento. No primeiro, a 1.ª instância considerou-se plenamente capaz e habilitada, com os elementos probatórios a que tivera acesso, a dirimir a controvertida situação factual referente à identificação e propriedade do veículo automóvel causador do acidente e concomitante desresponsabilização da seguradora demandada, enquanto, no segundo, ficou a dúvida sobre a assinatura do ali réu no documento.

São, portanto, bem diferentes os contextos processuais e naturalmente também distintas as decisões tomadas em cada um desses acórdãos. Num caso, a controvérsia sobre o acidente e veículos intervenientes estava esclarecida em ordem a desresponsabilizar a seguradora e daí a desnecessidade de produção de novos meios de prova, sejam os indicados pelas partes ou da iniciativa do tribunal, enquanto no outro a dúvida sobre a controvérsia relativa à assinatura e decorrente responsabilidade do réu mantinha-se, impondo-se, por isso, avançar para a produção de novas provas na tentativa dessa dúvida ser dissipada.

Tudo isto para dizer, em suma, que inexiste identidade de questões fundamentais de direito dirimidas nos arestos postos em confronto, sejam os referentes à realização da inspecção, sejam os relativos à junção de documentos ou produção de quaisquer outras provas.

Cai, assim, por terra a argumentação que ex adversu o reclamante (recorrente) delineou com o fito de justificar a admissibilidade do recurso de revista que impetrou, inclusive a relativa ao pormenor do momento em que o despacho de indeferimento da inspecção foi prolatado (se no inicio ou no decurso da audiência), pormenor de todo irrelevante, para este efeito.

Significa isto que não assiste razão àquele em se insurgir contra a decisão do relator de não admitir o interposto recurso de revista e que, mau grado ter sido recebido na Relação, por despacho não vinculante para o STJ (artigo 641º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil), não seria de tomar conhecimento do seu objecto, o que implica o total inêxito da reclamação e a inerente confirmação do despacho reclamado.


III – Decisão

Nos termos expostos, indefere-se a reclamação e confirma-se inteiramente o despacho reclamado, fixando em 3 UC a respetiva taxa de justiça a cargo do reclamante, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Notifique.


*


Lisboa, 01 de Março de 2018


António Joaquim Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Volume II, 2015, Almedina, pág. 497.
[2] António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, pág. 349, e J.O. Cardona Ferreira, in Guia de Recursos em Processo Civil, 6ª edição, Coimbra Editora, págs. 210 e 211.
[3] Cfr, neste sentido, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Volume II, 2015, Almedina, pág. 494.
[4] Cfr, neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª edição, Almedina, pág. 345.
[5] Cfr, neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 18.09.2014 (processo 1852/12.7TBLLE-C.E1.S1), de 02.06.2015 (processo 149/14.2YHLSB.L1.S1) e de 24.11.2016 (processo 1655/13.1TJPRT.P1.S1), acessíveis através de www.dgsi.pt.
[6]Cfr, neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª edição, Almedina, pág. 345.
[7] Cfr, neste sentido, Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª edição, pág. 116, José Lebre de Freitas/A. Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição., Tomo I, Volume 3.º, pág. 17 (por referência a anterior versão do CPC, mas ainda actualizadas), e António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, 4ª edição, págs. 58 e 59.
[8] Cfr, neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, 4.ª edição, págs. 58 e 59, Luís Correia de Mendonça/Henrique Antunes, in Dos Recursos, 2009, pág. 315, e, entre outros, os acórdãos do STJ de 13.07.2010 (processo 4210/06.9TBGMR.S1), de 18.04.2012 (processo 3962/08.6TJCBR.C1-A.S1), de 20.11.2014 (processo 7382/07.1TBVNG.P1.S1), de 20.05.2015 (processo 321/12.0YHLSB.L1.S1) e de 13.09.2016 (processo 671/12.5TBBCL.G1.S1), acessíveis através de www.dgsi.pt.