Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
232/06.8TBBRR.L2.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
EXCEÇÃO DILATÓRIA
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
RENÚNCIA
Data do Acordão: 09/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO ARBITRAL - ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - GARANTIAS DA COMPETÊNCIA / INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA - INSTÂNCIA / EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 489.º.
NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 96.º, AL. B), 97.º, 98.º, 99.º, 278.º, N.º1, AL. E), 573.º, 576.º, N.ºS 1 E 2, 577.º, AL. A), 578.º.
LEI N.º 63/2011, DE 14 DE DEZEMBRO (LEI DA ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA): - ARTIGOS 2.º, N.º4, 5.º, N.º1.
Sumário :
I - A presente acção (tendente à condenação da ré no pagamento de uma importância monetária por incumprimento do contrato) foi proposta nos tribunais comuns pelo que existiu a violação da cláusula que convencionou a arbitragem, a preterição de tribunal arbitral voluntário, o que gera a incompetência absoluta do tribunal, como decorre do disposto no art. 96.º al. b), do NCPC (2013). Constitui esta anomalia uma excepção dilatória, como resulta do art. 577.º, al. a), do NCPC (2013) e, nesta conformidade, se a excepção tivesse sido invocada tempestivamente, o tribunal não poderia conhecer do mérito da causa, conduzindo à absolvição da instância (art. 576.º n.º 2, do NCPC (2013)).

II - O tribunal conhece ex officio das excepções dilatórias, mas não a resultante da preterição do tribunal arbitral voluntário. A omissão do chamamento do tribunal arbitral para a resolução do conflito inerente ao contrato (com cláusula compromissória) terá que ser suscitada pelas partes.

III - No caso vertente, a ré deveria invocar a excepção de preterição do tribunal arbitral até à contestação ou no âmbito desta. Tendo-o feito depois, tal invocação é intempestiva.

IV - Tanto uma parte, ao introduzir o presente pleito nos tribunais estatais, como a outra, ao contestar a acção sem invocar a dita excepção e ao deduzir pedido reconvencional, renunciaram tacitamente à convenção arbitral.
Decisão Texto Integral:
                                                                              

              Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

                       

                       

                       

                        I- Relatório:

                        1-1- AA, Lda (... SA), apresentou requerimento de injunção, ao abrigo do Decreto-Lei nº 32/2003 de 17 de Fevereiro, contra BB SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 71.529,36 com base na celebração de um contrato de arrendamento entre ambas celebrado.

                        A R. apresentou oposição, tendo deduzido pedido reconvencional, pedido que foi objecto de indeferimento na 1ª instância, mas mandado admitir em sede de recurso pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

                       

                        O processo seguiu os seus regulares termos posteriores tendo a R., no início da audiência de discussão e julgamento, suscitado a incompetência absoluta do Tribunal de 1ª instância por preterição do Tribunal Arbitral, nos termos do art. 96º alínea b), do Código de Processo Civil.

                        A invocação de incompetência foi tida por tempestiva pelo Mº Juiz de Círculo que presidiu ao referido julgamento.

                        Exercendo o seu direito ao contraditório, por requerimento electrónico de 30.09.2013, a A. requereu que se julgasse extemporânea a dedução da excepção e que se designasse data para a continuação do julgamento.

                        O Mº Juiz de 1ª instância proferiu, então, decisão nos seguintes termos:

                        “(...) por preterição de tribunal arbitral, nos presentes autos intentados por AA, S.A., agora AA, S.A. absolvo a Ré BB. S,A„ da instância, ficando prejudicada a apreciação do pedido reconvencional deduzido”.

                         

                        1-2- Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a A. de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo-se aí julgado procedente o recurso e revogado a decisão proferida, determinando-se a substituição por outra que, considerando o tribunal competente, procedesse à realização do julgamento e conhecesse do objecto da acção.               

                       

                        1-3- Irresignada agora com este acórdão, dele recorreu a R. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.

                       

                        A recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:

                        A. A douta sentença proferida pelo Tribunal Judicial do Barreiro - que viria a ser revogada pelo douto acórdão ora em crise - não merecia censura, pelo que deveria ter sido integralmente confirmada;

                        B. Pois, as normas jurídicas foram, por aquele Douto Tribunal de 1ª instância devidamente interpretadas e aplicadas.

                        C. Salvo o devido respeito, não assiste razão ao Venerando Tribunal a quo ao revogar a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância por considerar que a arguição da excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral deve ser efectuada até à contestação.

                        D. As partes celebraram um "contrato de uso e fruição", em cuja cláusula 12ª - que não foi objecto de alteração posterior - convencionaram que "as dúvidas ou divergências quanto à interpretação das cláusulas do presente contrato bem assim como qualquer outro litígio decorrentes do seu incumprimento serão decididos por uma comissão de três árbitros, um indicado pela AA, outro pela usufrutuária e o terceiro por acordo dos outros dois árbitros. Não havendo acordo entre eles o terceiro árbitro será nomeado pelo Presidente da Associação Industrial portuguesa. A arbitragem terá lugar em Lisboa";

                        E. A convenção arbitral, estipulada pelas partes naquele contrato, impõe todos os litígios do mesmo emergente sejam decididos por arbitragem;

                        F. A convenção de arbitragem celebrada em conformidade com a lei e a vontade das partes obriga-as a promover a composição do litígio no Tribunal Arbitral, não se tratando de uma opção ou alternatividade;

                        G. A celebração de uma convenção arbitral, para além de ter um efeito positivo que consiste na força potestativa decorrente da convenção, na medida em que qualquer um dos outorgantes pode iniciar um processo arbitral, obrigando o outro a vincular-se às suas decisões, acarreta também um efeito negativo que se caracteriza pela impossibilidade de uma das partes recorrer à intervenção do tribunal estadual, de tal modo que se o fizer, o outro contraente pode arguir a excepção dilatória de preterição de Tribunal Arbitral, determinando a absolvição da instância [artigos 576°, n°2 e 577.°, alínea a) CPC];

                        H. A incompetência absoluta do tribunal pode ser invocada não apenas na contestação mas também em momento posterior, em qualquer estado do processo até trânsito em julgado da decisão;

                        I. Na verdade, ao invés do, aliás doutamente, decidido pelo Venerando Tribunal da Relação "a quo", a excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral pode ser arguida até ao trânsito em julgado da sentença proferida sobre o fundo da causa, nos termos do disposto nos art°s 97° nº 1 e 98° do CPC;

                        J. A preterição do Tribunal Arbitral constitui uma excepção dilatória de conhecimento não oficioso que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigos 97° nº 1, 98.°, 99.°, 278.°, n° 1, al. e), 576.°, n°s 1 e 2, 577.° alínea a), 578.° CPC).

                        K. Esta excepção dilatória constitui um caso excepcional à regra que prevê que "toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado", estatuída no artigo 573.° CPC. [cfr., entre outros, Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra 4-05-2004 e Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 27-10-1988].

                        L. O princípio da concentração da defesa na contestação, previsto no artigo 573.° CPC, sofre vários desvios, como é o caso da incompetência absoluta do tribunal que consubstancia um caso de defesa diferida por expressa determinação da lei.

                        M. De acordo com a devida interpretação do art° 97° do CPC (e de acordo com Jurisprudência devidamente firmada), à arguição da preterição do tribunal arbitral cabe-lhe um regime de excepção, sendo que a mesma pode ser arguida até ao trânsito em julgado da sentença sobre o fundo da causa.

                        N. Como, doutamente, ensina, nomeadamente, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, a incompetência material que resulta da circunstância de a acção ter sido intentada num tribunal judicial quando o deveria ser num tribunal não judicial pode ser arguida pelas partes até trânsito em julgado da decisão de mérito;

                        O. Arguida a excepção de preterição do Tribunal Arbitral, o tribunal estadual não goza de qualquer poder discricionário na sua apreciação: verificados os respectivos pressupostos deve julgar procedente a excepção e absolver o excepcionante da instância.

                        P. Sucede, porém, que o Venerando Tribunal da Relação "a quo", procedeu a uma incorrecta interpretação e aplicação do Direito, ao considerar que a contestação constitui o limite temporal para invocar a excepção dilatória de preterição de Tribunal Arbitral.

                        Q. Todavia, o artigo 97.° n°1  CPC estipula, expressamente, que a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.

                        R. Sendo que a excepção constante daquele art° 97° do CPC se reporta, exclusivamente, à oficiosidade do conhecimento daquela incompetência, a qual, nos casos de preterição do tribunal arbitral, está excluída, carecendo a mesma de ser suscitada por qualquer uma das partes;

                        S. A recorrente ao invocar a excepção dilatória de preterição de Tribunal Arbitral antes do início do julgamento fê-lo, pois, tempestivamente;

                        T. Aliás, nada nos autos permite afirmar-se - como o faz, infundadamente, o Venerando Tribunal "a quo" - que a Ré tenha "renunciado tacitamente" à arguição daquela excepção dilatória.

                        U. Nos termos do disposto nos artigos 97.°, n° 1 e 98.° CPC a invocação da excepção dilatória de preterição de Tribunal Arbitral está na disponibilidade das partes até ao trânsito em julgado da sentença sobre o fundo da causa;

                        V. In casu, a excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral foi arguida antes de se dar início à audiência de discussão e julgamento, ou seja, em momento muito anterior ao trânsito em julgado da sentença, respeitando, portanto, o disposto no artigo 97.°, n° 1 CPC, pelo que deve ser considerada tempestiva, como bem decidiu o Douto Tribunal de 1ª instância na sua mui douta decisão;

                        W. O Venerando Tribunal da Relação a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que entendeu que a excepção dilatória em causa só poderia ter sido invocada pela ora requerente até à contestação (artigo 573.° CPC), violando, assim, as normas dos artigos 96.°, alínea b), 97.°, n° 1, 98.°, 99.°, n° 1, 278.°, n° 1, alínea a), 576.°, n° 2, 577.°, alínea a) e 578.° CPC.

                        X. O Tribunal a quo deveria ter julgado procedente a arguição da excepção dilatória de preterição de Tribunal Arbitral, por tempestiva, pois a mesma pode ser arguida até trânsito em julgado da sentença e, em consequência, deveria ter absolvido a Ré da Instância (em conformidade com os artigos 96.°, alínea b), 97.°, n° l, 98.°, 99.°, nº 1, 278.°, n° 1, alínea a), 576.°, n° 2, 577.°, alínea a) e 578.° CPC).

                        Y. Ao ter decidido nos termos em que decidiu, o Venerando Tribunal da Relação "a quo" violou, entre outras do Mui Douto suprimento de Vossas Excelências, as normas dos artigos 96.°, alínea b), 97.°, n° 1, 98.°, 99.°, n° 1, 278.°, n° 1, alínea a), 576.°, n° 2, 577.°, alínea a) e 578.° CPC

                        Nestes termos, nos demais de Direito e, principalmente, nos do Mui Douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser concedido provimento ao presente recurso de Revista, e, consequentemente, ser revogada a douta decisão recorrida, sendo a mesma substituída por Douto Acórdão que, tal como a douta decisão do Tribunal de 1ª Instância, efectue devida interpretação e aplicação do Direito aos factos e, consequentemente:

                        a) Julgue procedente a excepção dilatória de preterição de Tribunal Arbitral e, nessa conformidade, absolva a Ré da instância (artigos 99.°, n°1, 278.°, n° l alínea a) e 576.°, n°2 CPC); e que

                        b) Condene a Recorrida nas custas do processo, como é, aliás, de elementar JUSTIÇA

                         A recorrida contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação do acórdão recorrido.

                       

                        Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

                       

                        II- Fundamentação:

                        2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas a questão que ali foi enunciada.

                        Nesta conformidade, será o seguinte o assunto a apreciar e decidir:

                        - Se foi tempestiva a arguição da excepção de preterição do Tribunal Arbitral feita pela R. no início da audiência de discussão e julgamento.

                       

                        2-2- Com vista à decisão, o acórdão recorrido deu como assente as seguintes circunstâncias:

                        1- O requerimento de injunção que deu origem à presente acção foi apresentado em 13 de Novembro de 2005 (fls. 2).

                        2- Com a referida injunção a A. peticionava a condenação da R. a pagar-lhe as quantias referentes às contrapartidas da prestação dos serviços descritos no contrato de uso e fruição nos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2005 (fls. 2).

                        3- A Cláusula 12ª do contrato de uso e fruição celebrado entre as partes estabelece "as dúvidas ou divergências quanto à interpretação das cláusulas do presente contrato bem assim como qualquer outro litígio decorrente do seu incumprimento serão decididos por uma comissão de três árbitros, um indicado pela AA, outro pela usufrutuária e o terceiro por acordo dos outros dois árbitros. Não havendo acordo entre eles o terceiro árbitro será nomeado pelo Presidente da Associação Industrial portuguesa. A arbitragem terá lugar em Lisboa" (fls. 144 dos autos).

                        4- A R. deduziu Oposição à Injunção em 17 de Janeiro de 2006 não tendo ali sido invocada a preterição do Tribunal Arbitral (fls. 6 a 35 dos autos)

                        5- Em 18 de Setembro de 2009 foi proferido saneador-sentença em que se decidiu que “o Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia (...) inexistem outras excepções dilatórias (...) - (fls. 544/546 dos autos).

                        6- Por acórdão de 21 de Outubro de 2010 o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu da admissibilidade do pedido reconvencional, da ampliação do pedido e determinou a elaboração da Base Instrutória (fls. 677 a 699 dos autos).

                        7- Por despacho de 17 de Dezembro de 2012 foi designado o dia 20 de Setembro de 2013 para a audiência de discussão e julgamento (fls. 1138)

                        8- No início da audiência de discussão e julgamento, que teve lugar em 20 de Setembro de 2013, a R. invocou a preterição do Tribunal Arbitral (acta referência Citius …).

                        9- No despacho/sentença impugnando o Tribunal julgou verificada a excepção de incompetência absoluta por preterição de Tribunal Arbitral (despacho referência …). ----------------------------------

                        2-3- Como já se viu, o douto acórdão recorrido revogou a decisão de 1ª instância, tendo considerado o tribunal judicial (onde acção havia sido interposta) como competente para apreciar o pleito. Fundamentou esta posição, em síntese, atendendo ao estipulado no art. 489º do anterior C.P.Civil (actual art. 573º), em conjugação com as disposições relativas à Lei da Arbitragem (quer da anterior, quer da actual), devendo-se concluir que se impunha à R. a invocação da excepção dilatória de preterição do tribunal arbitral voluntário no âmbito da contestação apresentada sob pena de, fazendo-o posteriormente, ser considerada tal invocação como intempestiva. Porque a invocação da excepção, no caso, foi feita somente no início da audiência de discussão e julgamento e não na contestação, foi tal arguição julgada extemporânea e, consequentemente, foi determinado o prosseguimento da acção com a realização do julgamento e apreciação do objecto da acção.

                        Por sua vez o recorrente defende, em resumo, que a incompetência absoluta do tribunal pode ser invocada não apenas na contestação mas também em momento posterior, em qualquer estado do processo até trânsito em julgado da decisão, de harmonia com o disposto nos arts. 97° nº 1 e 98° do Novo C.P.Civil (diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem). A preterição do Tribunal Arbitral constitui uma excepção dilatória de conhecimento não oficioso que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (arts. 97° nº 1, 98, 99°, 278° nº 1 al. e), 576° nºs 1 e 2, 577° alínea a)). Esta excepção dilatória constitui um caso excepcional à regra que prevê que "toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado", estatuída no artigo 573°. O princípio da concentração da defesa na contestação, previsto no artigo 573°, sofre vários desvios, como é o caso da incompetência absoluta do tribunal que consubstancia um caso de defesa diferida por expressa determinação da lei. De acordo com a devida interpretação do art. 97° e de acordo com jurisprudência devidamente firmada, à arguição da preterição do tribunal arbitral cabe-lhe um regime de excepção, sendo que a mesma pode ser arguida até ao trânsito em julgado da sentença sobre o fundo da causa. Arguida a excepção de preterição do tribunal arbitral, o tribunal estadual não goza de qualquer poder discricionário na sua apreciação. Verificados os respectivos pressupostos deve julgar procedente a excepção e absolver o excepcionante da instância.

                        Vejamos:

                        Como as circunstâncias assentes revelam, as partes litigantes celebraram uma convenção de arbitragem[1] tendente a solucionar os conflitos resultantes de “dúvidas ou divergências quanto à interpretação das cláusulas do presente contrato bem assim como qualquer outro litígio decorrente do seu incumprimento”. Ou seja, voluntariamente, as partes decidiram cometer a resolução de conflitos a surgir na vigência do contrato, a uma arbitragem.

                        Como a presente acção (tendente à condenação da R. no pagamento de uma importância monetária por incumprimento do contrato) foi proposta nos tribunais comuns, existiu, obviamente, em violação da dita cláusula, a preterição de tribunal arbitral voluntário, o que gera a incompetência absoluta do tribunal, como decorre do disposto no art. 96º al. b). Constitui esta irregularidade uma excepção dilatória, como resulta do art. 577º al. a)[2] e, nesta conformidade, o tribunal não poderia conhecer do mérito da causa, determinando, antes, a absolvição da instância[3] (art. 576º nº 2).

                        Segundo cremos, até aqui não se nos afigura ocorrer qualquer dúvida. A questão coloca-se sobre o saber-se se a invocação da excepção pela R. foi tempestiva ou extemporânea, tendo as instâncias dado ao tema, como se viu, respostas divergentes.

                        Também se nos afigura isenta de dúvidas a impossibilidade do conhecimento oficioso da excepção por parte do tribunal[4]. Com efeito, neste sentido, expressamente estabelece o art. 578º[5]o tribunal deve conhecer oficiosamente as exceções dilatórias, salvo da incompetência absoluta decorrente da violação de pacto privativo de jurisdição ou de preterição de tribunal arbitral voluntário…”. Daqui decorre, que o tribunal conhece ex officio das excepções dilatórias, mas não as resultantes da preterição do tribunal arbitral voluntário (e dos outros casos indicados). A omissão do chamamento do tribunal arbitral para a resolução do conflito (inerente ao contrato) deve ser suscitada pelas partes.

                        O mesmo resulta, segundo cremos, do disposto no art. 97º nº 1 que refere que “a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e, exceto se decorrer da violação de pacto privativo de jurisdição ou preterição de tribunal arbitral voluntário, deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgada proferida sobre o fundo da causa”. Isto é, incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal. Porém, se a incompetência resultar da preterição de tribunal arbitral voluntário (ou a violação de pacto privativo de jurisdição), a correspondente arguição da excepção só poderá ser realizada pelas partes.

                        Posto entremos no objecto essencial da presente revista que será o de saber até que momento (processual) a parte interessada poderá invocar a excepção de preterição de tribunal arbitral voluntário, mais concretamente se o poderá fazer até ao trânsito em julgado da sentença sobre o fundo da causa, como defende a recorrente, ou se terá que efectuar a arguição na contestação (ou oposição), como se decidiu no douto acórdão recorrido e sustenta a recorrida.

                        A recorrente afirma que o art. 97º nº1 estipula, expressamente, que a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, sendo que a excepção constante no dispositivo se reporta, exclusivamente, à oficiosidade do conhecimento daquela incompetência a qual, nos casos de preterição do tribunal arbitral, está excluída, carecendo a mesma de ser suscitada por qualquer uma das partes. Conclui, assim, que a recorrente ao invocar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral antes do início do julgamento fê-lo tempestivamente.

                        Não podemos aceitar este entendimento. Do que trata o dispositivo é do regime de arguição da incompetência absoluta (legitimidade e oportunidade). A incompetência absoluta pode ser invocada pelas partes e deve ser do conhecimento oficioso, excluindo-se, porém, esta apreciação nos casos de violação de pacto privativo de jurisdição ou preterição de tribunal arbitral voluntário. Nestas hipóteses a arguição terá que ser efectuada pelas partes. Como nos parece patente, somente o conhecimento ex officio pelo tribunal poderá ser feito até existir sentença com trânsito em julgada proferida sobre o fundo da causa.

                        De resto, segundo cremos, a interpretação que preconizamos está conforme as regras gerais de processo civil e, nesta conformidade, é protectora da unidade sistema jurídico. Na verdade, como decorre do disposto no art. 573º nº 1 (artigo 489º nº 1 do Código de Processo Civil em vigor à data da instauração da acção), toda a defesa do demandado deve ser deduzida na contestação (excepto os incidentes que a lei manda deduzir em separado)[6]. Depois da contestação só podem ser deduzidas excepções (e incidentes e meios de defesa) que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que deva conhecer oficiosamente (nº 2 da disposição).

                        Está este dispositivo em consonância com o disposto no art. 5º nº 1 da Lei nº 63/2011, de 14 de Dezembro (Lei da Arbitragem Voluntária) que estabelece que “o tribunal estatal no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou eficaz ou é inexequível’. Ou seja, perante esta disposição, a questão de preterição do tribunal arbitral deve ser deduzida pelo R. até ao momento da contestação (ou na linguagem legal “até ao momento em que apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa”), devendo o tribunal (estatal) absolvê-lo da instância (a não ser que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou eficaz ou é inexequível)[7].

                        Isto é, também face a este dispositivo, próprio da lei da arbitragem voluntária, o demandado deve deduzir a incompetência absoluta do tribunal relativa à preterição do tribunal arbitral até à dedução da sua oposição sobre o fundo da causa.

                        É certo que quando foi instaurada a presente acção, ainda não vigorava este dispositivo (entrou em vigor três meses após a data da sua publicação, ou seja, em 24-3-2012). Mas o certo é que o disposto no art. 489º nº 1 do C.P.Civil vigente à data da instauração da acção, impunha que toda a defesa do demandado fosse deduzida na contestação, pelo que seria aí que deveria ser arguida a excepção.

                        No douto acórdão deduzido disse-se ainda, a este respeito, que “muito embora não houvesse (na Lei de Arbitragem então vigente – Lei 31/86 de 29/8 -) uma disposição concreta sobre o conhecimento da incompetência por parte do Tribunal estatal, havia uma disposição relativa ao conhecimento da incompetência do Tribunal arbitral voluntário”, pois dispunha no seu artigo 21º nº 3 que “a incompetência do tribunal só pode ser arguida até à apresentação da defesa quanto ao fundo da causa, ou juntamente com esta[8]. É certa esta asserção. Resulta, assim, que, se bem que este dispositivo dissesse respeito ao conhecimento da sua própria competência pelo tribunal arbitral voluntário (e não à apreciação da competência do tribunal estatal), o certo é que se vislumbra, segundo cremos, no preceito, o patente objectivo de obrigar a decisão da questão da competência do tribunal até à apresentação da defesa do demandado (quanto ao fundo da causa). O dispositivo determinava, assim, que se “arrumasse” a questão processual da competência do tribunal até ao dito momento. Não sendo suscitada a questão até essa altura, a competência do tribunal resultaria indiscutível e, assim, poder-se-ia conhecer do mérito, sem perigo de vir a ser invalidada essa apreciação por essa razão adjectiva, frustrando o labor prestado.

                        Significa isto que do cotejo entre o citado 489º nº 1 do C.P.Civil então vigente (hoje art. 573º nº 1) e as normas atinentes às Leis de Arbitragem, é de concluir que a R. deveria invocar a excepção de preterição do tribunal arbitral até ao momento da apresentação da contestação ou no âmbito desta. Fazendo-o depois, será tal invocação intempestiva.

                       

                        Por outro lado, como resulta do art. 2º nº 4 da Lei 31/86 de 29/8, vigente no momento da feitura do negócio e na data da propositura da acção, a convenção de arbitragem poderia ser revogada até à pronúncia da decisão arbitral, por escrito assinado pelas partes. E percebe-se que assim pudesse ser. Porque resultava de acordo dos interessados a submissão do litígio à convenção de arbitragem, também, desde que houvesse anuimento das mesmas partes, tal convénio poderia ser revogado. Havendo revogação bilateral expressa[9], deveria entender-se que as partes haviam decidido a renunciar ao direito de dirimir o litígio em tribunal arbitral.

                        Para além desta revogação expressa, poderia existir (e poderá) a revogação tácita, o que sucederia (e sucederá) quando uma das partes, em violação da convenção arbitral estabelecida, propõe o pleito nos tribunais estatais e a parte contrária contesta a acção sem levantar a pertinente excepção de preterição dos tribunais arbitrais. Neste caso é de considerar que, tanto uma como outra parte, decidiram renunciar, de forma implícita, ao foro arbitral. E nestas circunstâncias, por não ser a excepção do conhecimento oficioso, o tribunal comum terá que fazer prosseguir o processo, não se podendo abster de apreciar o mérito dos autos.

                        No caso dos autos, apesar de não se verificar a revogação expressa, o certo é que a R., omitindo a invocação da correspondente excepção, contestou a acção (proposta pela A. no Tribunal Judicial do Barreiro) e deduziu pedido reconvencional, onde deduziu pretensões próprias contra a parte contrária, a A.[10]. Significa isto que, tacitamente, tanto uma parte, ao introduzir o presente pleito nos tribunais estatais, como a outra, ao contestar a acção sem invocar a dita excepção e ao deduzir pedido reconvencional, renunciaram à convenção arbitral.

                                                

                        Fazendo uma súmula do que se disse, concluímos que a excepção deveria ter sido deduzida pela R. até ao momento da sua contestação. Fazendo-o depois, deverá ser tal invocação considerada como intempestiva.

                        A R. ao ter contestado a presente acção sem a invocação da excepção de preterição do tribunal arbitral e ao deduzir o pedido reconvencional, renunciou tacitamente à convenção arbitral.

                        Foi, assim, correcta a decisão recorrida.

                        Nos termos dos arts. 663º nº 7 e 679º elabora-se o seguinte sumário:

                        A presente acção (tendente à condenação da R. no pagamento de uma importância monetária por incumprimento do contrato) foi proposta nos tribunais comuns pelo que existiu a violação da cláusula que convencionou a arbitragem, a preterição de tribunal arbitral voluntário, o que gera a incompetência absoluta do tribunal, como decorre do disposto no art. 96º al. b). Constitui esta anomalia uma excepção dilatória, como resulta do art. 577º al. a) e, nesta conformidade, se a excepção tivesse sido invocada tempestivamente, o tribunal não poderia conhecer do mérito da causa, conduzindo à absolvição da instância (art. 576º nº 2).

                        O tribunal conhece ex officio das excepções dilatórias, mas não a resultante da preterição do tribunal arbitral voluntário. A omissão do chamamento do tribunal arbitral para a resolução do conflito inerente ao contrato (com cláusula compromissória) terá que ser suscitada pelas partes.

                        No caso vertente, a R. deveria invocar a excepção de preterição do tribunal arbitral até à contestação ou no âmbito desta. Tendo-o feito depois, tal invocação é intempestiva.

                        Tanto uma parte, ao introduzir o presente pleito nos tribunais estatais, como a outra, ao contestar a acção sem invocar a dita excepção e ao deduzir pedido reconvencional, renunciaram tacitamente à convenção arbitral.

                        III- Decisão:

                        Por tudo o exposto, nega-se a revista.

                        Custas pela recorrente.

Lisboa, 30 de Setembro de 2014

Garcia Calejo (Relator)

Helder Roque

Gregório Silva Jesus

______________________________
[1] Cláusula compromissória, já que se refere a litígios eventuais, potenciais ou futuros.
[2] Também face ao anterior C.P.Civil, a preterição do tribunal arbitral constituía uma excepção dilatória (art. 494º al. j)).
[3] O mesmo no anterior C.P.Civil, art. 493º nº 2.
[4] A própria recorrente aceita esta circunstância.
[5] No mesmo sentido o disposto no art. 495º do anterior C.P.Civil.
[6] O que não sucede, como se sabe, no incidente relativo à incompetência absoluta do tribunal.
[7] Circunstâncias estas absolutamente ausentes da discussão dos autos.
[8] Como se refere no acórdão deste STJ de 21-1-2011 vigorava “,entre nós, o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, designado em idioma germânico por Kompetenz-kompetenz e que, na sua acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral”.
[9] Nos termos indicados na lei.
[10] De sublinhar até que, não tendo sido admitido na 1ª instância esse pedido reconvencional, através de recurso da R., tal pedido acabou, através de acórdão de 21-10-2010 do Tribunal da Relação de Lisboa, por ser aceite.