Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3453
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: LIVRANÇA
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
RELAÇÕES IMEDIATAS
ACORDO DE PREENCHIMENTO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
TÍTULO DE CRÉDITO
ÓNUS DA PROVA
AVAL
AVALISTA
PROTESTO
Nº do Documento: SJ200411110034532
Data do Acordão: 11/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 218/04
Data: 04/21/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I. Livrança em branco é aquela a que falta algum ou alguns dos requisitos essenciais mencionados no artº 75° da LULL, destinando-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado «acordo ou pacto de preenchimento».
II. Esse acordo pode ser expresso - quando as partes estipularam certos termos em concreto - ou tácito - por se encontrar implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título.
III. O título deverá ser preenchido de harmonia com tais estipulações ou cláusulas negociais, sob pena de vir a ser considerado tal preenchimento como «abusivo».
IV. O ónus da prova desse preenchimento abusivo impende, nos termos do artigo 342° nº 2 do C.Civil, sobre o obrigado cambiário, por se tratar de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do titulo de crédito.
V. Os meros avalistas, porque não sujeitos materiais da relação contratual (relação subjacente), não podem opor ao portador da livrança a excepção do preenchimento abusivo do título (conf. artº 17° da LULL).
VI. O aval representa um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma de honrar o título, ainda que só caucione outro co-subscritor do mesmo - princípio da independência do aval (artº 32º, aplicável "ex-vi" do artº 77º ambos da LULL ).
VII. Para accionar o avalista do aceitante (ou, no caso da livrança, o avalista do subscritor) não é necessário proceder ao protesto, uma vez que o avalista, embora subsidiariamente, se vincula da mesma forma que o aceitante.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.

1. "A", LDa, com sede no lugar de Ataúde, Paçô, Arcos de Valdevez, B, residente no lugar de Ataúde, Paçô, Arcos de Valdevez, C e marido D, residentes no lugar de Ataúde, Paçô, Arcos de Valdevez, E e mulher F, residentes no lugar de Ataúde, Paçô, Arcos de Valdevez, G e mulher H, residentes no lugar de Ataúde, Arcos de Valdevez, Viana do Castelo, e I, residente na Rua Dr. Tomás Figueiredo,..., Arcos de Valdevez, deduziram embargos de executado por apenso aos autos de execução ordinária que contra eles moveu a " CAIXA J", com sede na Rua de Aveiro,..., Viana do Castelo.
Invocaram, para tanto, e em síntese, as excepções de nulidade da livrança, nulidade da relação subjacente, substituição das obrigações emergentes da livrança, falta de interpelação e falta de protesto.
2. A embargada contestou, respondendo às excepções.
3. por sentença de 9-7-03, o Mmo Juiz do 2º Juízo Cível de Viana do Castelo julgou improcedentes os embargos.
4. Inconformados apelaram os embargantes, mas o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 21-4-04, negou provimento ao recurso.
5. De novo irresignados, desta feita com tal aresto, dele vieram os executados-embargantes recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões.
1ª- A livrança dos autos foi entregue à embargada em branco, ou seja, aquando da sua subscrição dela não constava qualquer dos elementos que da mesma actualmente constam;
2ª- Os elementos actualmente constantes do título não foram preenchidos por qualquer dos embargantes, mas sim pela embargada através dos seus funcionários, sem que aqueles dessem o seu expresso consentimento;
3ª- A livrança em mérito foi preenchida abusivamente e arbitrariamente pela embargada e em desrespeito com o acordado entre a embargada e embargantes;
4ª- A livrança dos autos foi pelos embargantes entregue à embargada, com o único propósito de garantir a quantia mutuada até à realização da escritura de hipoteca, após o que dever-lhe-ia ser restituída;
5ª- O preenchimento abusivo determina, necessária e obrigatoriamente, a nulidade da livrança;
6ª- O acordo de preenchimento dos autos constitui uma autorização de preenchimento com um conteúdo de tipo genérico;
7ª- Uma autorização de preenchimento que não especifique os valores e condições em que um título cambiário deverá ser preenchido, tem uma natureza genérica e é, por isso, nula, em face ao disposto no art. 18.* do D. L. n° 446/85 de 25 de Outubro - Clausulas Contratais Gerais;
8ª- Por escritura pública outorgada no dia 02.07.01, no Cartório Notarial de Ponte de Lima a embargada e a embargante sociedade constituíram uma hipoteca sobre dois bens imóveis;
9ª- Com a constituição da hipoteca as partes procederam à substituição da obrigação que dera origem à livrança dos autos;
10ª- A obrigação decorrente da livrança dada à execução por meio da criação de uma nova obrigação em lugar dela e consubstanciada na referida escritura de hipoteca, foi, assim extinta;
11ª- Com a formalização da escritura de hipoteca, outorgada em 02.07.2001, inexiste qualquer relação jurídica que pudesse estar subjacente à emissão da livrança dos autos;
12ª- À posição majoritária da doutrina e jurisprudência, que considera a desnecessidade de protesto para accionar o avalista do aceitante ou subscritor de uma letra ou livrança, subjaz uma concepção do aval como garantia pessoal da obrigação avalizada;
13ª- Essa concepção do aval, praticamente incontestada no domínio do direito português anterior à LULL não se encontra, no entanto, consagrada neste diploma, pelo que não pode aceitar-se em face do direito actualmente vigente;
14ª- Tal concepção do aval imporia, como corolário lógico, que a existência, validade e conteúdo da obrigação avalizada determinariam a existência validade e conteúdo da obrigação do avalista, de tal modo que, sendo inválida ou extinguindo-se a primeira, a mesma sorte deveria ter a segunda, e, tendo aquela certo conteúdo, não poderia esta ter conteúdo mais amplo,
15ª- O art° 32°-lI da LULL no entanto, determina que o avalista é obrigado mesmo que a obrigação do seu avalizado seja nula (excepto se se tratar de vício de forma), o que por contrariar o corolário da concepção dominante do aval e atingindo essa concepção na sua própria essência, revela que a referida concepção não se encontra consagrada na ordem vigente;
16ª- A própria letra da lei (artº. 32º - I, LULL) não consagra a referida concepção tradicional do aval, já que, ao usar a expressão da mesma maneira se refere apenas ao modo como o avalista responde e não às circunstâncias em que responde, como seria essencial num entendimento do aval como garantia pessoal da obrigação avalizada;
17ª- A determinação das circunstâncias em que o avalista responde, porque não decorrem do citado art° 32°-I, terão de buscar-se noutras disposições da LULL nomeadamente nos seus art°s 32°-ll e 53°-l;
18ª- Uma correcta concepção do aval, no domínio da LULL vê-o, não como garantia pessoal da obrigação avalizada, mas como garantia do pagamento pontual da letra ou livrança,
19ª- A letra (ou livrança) destina-se a ser paga pelo seu aceitante (ou subscritor);
20ª- Os demais subscritores cambiários constituem-se meros garantes do seu cumprimento pontual - podendo essas garantias ser legais (como no caso dos sacadores ou endossantes) ou voluntárias (como no caso dos avalistas) -, não assumindo qualquer obrigação em relação ao seu pagamento;
21ª- Os demais subscritores cambiários - entre os quais os avalistas - garantem, desta forma, que, se a letra (ou livrança) for pontualmente apresentada ao seu aceitante (ou subscritor) para que a pague, este cumprirá essa obrigação à simples apresentação desse título;
22ª- Só uma vez verificado esse condicionalismo em que a garantia funciona e se esse resultado não se produzir (ou seja, se o sacado de uma letra ou subscritor de uma livrança recusar o seu pagamento pontual), é que os garantes (entre os quais o avalista) se tornarão responsáveis por esse facto.
6. Contra-alegou a entidade recorrida (exequente) sustentando a correcção do julgado, formulando, por seu turno, as seguintes conclusões:
1.ª- A "declaração de autorização" do preenchimento da livrança entregue pela recorrente e demais embargantes à recorrida, permitia a esta completar a livrança nos termos referidos em tal declaração;
2.ª- A sociedade recorrente não pode opor à recorrida o eventual preenchimento da livrança contrariamente a qualquer suposto acordo, pois que a recorrida não a adquiriu de má fé - vd. art° 10° LULL;
3.ª- A permissão que consta da referida "declaração..." está perfeitamente determinada - reporta- se ao contrato de crédito aí indicado - a obrigação de pagamento existe e diz claramente respeito aos embargantes;
4.ª- A constituição da hipoteca que consta da escritura de 02.07.01 goza de autonomia em relação à garantia do aval que ficou estabelecida no contrato de crédito junto ao requerimento i. executivo;
5.ª- Quer pelas condições específicas que ficaram consignadas no contrato de crédito, quer pelo período de tempo que mediou entre esse contrato e a escritura de hipoteca...;
6.ª- quer pelos próprios termos que esta escritura regista, é forçoso concluir que a hipoteca nunca teve em vista substituir o aval dado pelos embargantes individuais;
7.ª- A sociedade recorrente não tem legitimidade para discutir uma tal questão, que só interessaria aos demais embargantes que todos se conformaram core a douta decisão proferida;
8.ª- Pelo mesmo motivo, a sociedade recorrente está impedida de discutir a questão da validade do aval por falta de protesto da livrança pois que tal diz apenas respeito aos embargantes não recorrentes;
9.ª- De todo o modo, sendo negar-se provimento à revista confirmando - se o douto acórdão proferido.
7. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.
8. Em matéria de facto relevante, deu a Relação por assentes, por remissão para a decisão de 1ª instância, os seguintes pontos.
1º- A embargada é uma instituição de crédito sob a forma cooperativa, que prossegue a actividade bancária;
2º- Em 07.02.01, através da proposta de crédito n° 59024382335, a embargada concedeu à primeira embargante um empréstimo subordinado, para além de outras, às seguintes condições:
a)... o montante do empréstimo seria de 30 000 000$00 a ser reembolsado na sua totalidade em 09.03.01;
b)... sobre tal quantia vencer-se-ia o juro à taxa nominal de 6,75 % acrescida no caso de mora na amortização do empréstimo da sobretaxa de 4 pontos percentuais a título de cláusula penal;
c)... os juros seriam pagos na mesma data do reembolso do capital duas livranças, nos montantes respectivos de 750.000$00 e 5.250.000$00, com vencimentos em 20.02.92 e 20.05.92,respectivamente;
d)... assumia o encargo pelo pagamento das despesas inerentes à celebração e execução do contrato de empréstimo, bem como as despesas judiciais e extrajudiciais, incluídas as com honorários de advogados que a Caixa viesse a suportar em vista à cobrança do seu crédito;
e)... no caso de incumprimento das obrigações assim assumidas vencer-se-ia automaticamente toda a dívida;
f)... oferecia como garantia do cumprimento de tais obrigações o aval em livrança a dar pelos demais executados.
3º- Na mesma data, a primeira embargante subscreveu a livrança junta a tIs. 8 dos autos principais, no montante de 30 287 499$00 e com vencimento em 09.03.01;
4º- Os restantes embargantes apuseram as suas assinaturas no verso da livrança, sob a frase "Dou o meu aval à subscritora;
5º- Aquando da subscrição da livrança, a mesma encontrava-se em branco, contendo apenas as assinaturas dos embargantes;
6º- os restantes elementos: local, valor, data de emissão, data de vencimento, promessa de pagamento, nome do beneficiário do pagamento, nome e morada do subscritor e local de pagamento foram preenchidos posteriormente pela embargada;
7º- Aquando da subscrição da livrança, os embargantes entregaram à embargada uma "Declaração com os seguintes dizeres:
"Em garantia do cumprimento das obrigações ou responsabilidades assumidas do contrato de crédito n° 59024382335 de 07.02.01 e/ou dele emergentes, junto remetemos uma livrança por nós subscrita em branco favor de: CAIXA J (ou a favor de quem esta designar), ficando V. Exas autorizados a preencher, quando e como entenderem, fixando-Ihe a data, o vencimento, que poderá ser mesmo à vista, o montante de capital mutuado, respectivos juros contratuais e quaisquer outras despesas, sempre que deixemos de cumprir qualquer das obrigações emergentes deste contrato;
8º- Os avalistas da livrança de caução acima identificados dão o seu acordo às estipulações deste contrato, pelo que, em confirmação, assinam também a presente carta contrato";
9º- Por escritura pública celebrada em 02.07.01 no Cartório Notarial de Ponte de Lima, a primeira embargante constituiu a favor do Banco BPI, SA e da embargada hipoteca sobre um prédio urbano e um prédio rústico de sua propriedade ali descritos;
10º- Na referida escritura ficou consignado que aquela hipoteca era constituída para garantia do pagamento, além do mais, de responsabilidades, contraídas em escudos ou em qualquer outra moeda, assumidas e a assumir perante o BPI e a embargada, até ao limite de 42. 000.000$00 para a embargada, dos quais 11 000 000$00 eram para reforço de garantia de um empréstimo então em vigor.
Passemos agora ao direito aplicável.
9. No fundo as questões dirimendas constituem uma mera "redição" dos thema decidenda" já submetidos ao escrutínio das instâncias, os quais se consusbtanciam nos seguintes pontos centrais.
- alegada nulidade da livrança por força da violação do pacto de preenchimento;
- substituição da garantia da livrança pela constituição da garantia de hipoteca;
- falta de interpelação;
- falta de protesto do título alegadamente geradora da inexigibilidade do crédito ao subscritor da livrança e seus avalistas.
10. Violação do pacto de preenchimento.
Insistem os ora recorrentes na tese de que o título dado à execução teria sido objecto de preenchimento abusivo.
A livrança dada à execução foi adquirida pela entidade ora embargada, com a assinatura da subscritora - e ainda dos ora embargantes e das dos outros executados na qualidade de avalistas - com a importância e a data de vencimento em branco.
É aquilo a que se chama uma «livrança em branco», isto é aquela a que falta algum ou alguns dos requisitos essenciais mencionados no artº 75° da LULL.
Como é sabido, a livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado «acordo ou pacto de preenchimento».
Esse acordo pode ser expresso - quando as partes estipularam certos termos em concreto - ou tácito - por se encontrar implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título.
O título deverá ser preenchido de harmonia com tais estipulações ou cláusulas negociais, sob pena de vir a ser considerado tal preenchimento como «abusivo».
O ónus da prova desse preenchimento abusivo impende, nos termos do artigo 342° nº 2 do C.Civil, sobre o obrigado cambiário, por se tratar de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do titulo de crédito.
Ora, vem assente nos autos que aquando da subscrição da livrança, os embargantes subscreveram e fizeram entrega à exequente/embargada uma documento escrito (declaração) no qual davam o seu consentimento expresso para o preenchimento (pela entidade credora) da livrança com a faculdade de aposição de todos os documentos em falta logo que incursos em falta de cumprimento das obrigações emergentes do contrato.
Destarte, o preenchimento da livrança - dentro dos latos termos previamente acordados e balizados - em nada viola o aludido "pacto" -
Mas há mais.
Os embargantes, na sua qualidade de meros avalistas, que não na de sujeitos materiais da relação contratual (relação subjacente), jamais poderiam «a se» opor à entidade bancária exequente, ora recorrida, a excepção do preenchimento abusivo do título (conf. artº 17° da LULL). Com efeito, não eram sujeitos da relação jurídica de mútuo estabelecida entre a firma subscritora e a entidade exequente, e só uma tal relação legitimaria uma conjectural oposição, quiçá por pretenso abuso de preenchimento.
Como assim, os embargantes/ora recorrentes, na qualidade de "avalistas" jamais poderiam opor ao primeiro portador da livrança os meios de defesa que competiriam à subscritora avalizada (que não o próprio pagamento da dívida).
A prestação de aval pelos ora recorrentes, através da aposição no título das respectivas assinaturas, é incontroversa. E, quanto ao pretenso abuso do pacto de preenchimento da livrança, os factos potencialmente integradores de tal alegação perfilar-se-iam sempre como de todo em todo irrelevantes em ordem à definição da respectiva responsabilidade como meros avalistas.
O que até certo ponto tem a ver com a diferença de natureza jurídica da fiança por um lado - com o seu carácter acessório relativamente a uma dada obrigação principal (artº 627° e segs. do C. Civil) - e do aval por outro ( artºs 30º e 31°, aplicáveis por força do artº 77º da LULL).
O aval é, nos termos desse artº 30º da LULL, o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra (ou livrança) garante o pagamento desse título, por parte de um dos respectivos subscritores.
A este propósito, Ferrer Correia, in "Lições de Direito Comercial", vol. III, Coimbra 1956, pág. 197 e segs., chama a atenção para a responsabilidade do avalista não ser subsidiária da do avalizado, mas solidária, pelo que o avalista não goza do benefício da excussão prévia. Nos termos do § 2º do artº 32º " a sua (do avalista) obrigação matém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu for nula por qualquer razão que não seja um vício de forma". A nulidade intrínseca da obrigação avalizada não se comunica, pois, à do avalista, sendo que a este assistirá, se pagar o título, o direito de regresso contra os signatários anteriores ao avalizado (artº 32º § 3º da LULL).
Concluía, assim, o citado ilustre mestre coimbrão que o aval se não confunde com a fiança, não obstante admitir a natureza garantística do primeiro, cuja acessoriedade, por tais razões, apelidou de «imprópria» (conf. ob. cit., págs. 200 e 201).
O aval representa, desse modo, um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma de honrar o título, ainda que só caucione outro co-subscritor do mesmo - princípio da independência do aval (artº 32º, aplicável "ex-vi" do artº 77º ambos da LULL).
Ademais, não vem provado que emirja do título qualquer restrição à responsabilidade dos avalistas, menção essa que, de qualquer modo, a ser relevante, sempre se reportaria à relação subjacente de empréstimo (concessão de crédito), de cuja celebração os mesmos não foram partícipes.
E aos avalistas encontrar-se-ia sempre vedado opor ao portador (primeiro preenchedor do título) uma excepção que, na hipótese vertente, apenas aos sujeitos da relação subjacente (no caso, a firma subscritora/mutuária) seria permitido perante aquele credor/mutuante.
Tal como se considerou no Ac deste Supremo Tribunal de 3-7-00, in CJSTJ, Ano VIII, Tomo II, pág 139 e ss", sem embargo de deverem ser qualificadas como de «imediatas» as relações entre o avalista do aceitante e o sacador ou entre o avalista do subscritor e o beneficiário - visto que as suas obrigações, independentes das dos avalizados, têm como primeiro credor o interveniente cambiário que assim se lhes opõe - mesmo nesse domínio das «relações imediatas» a obrigação cambiária continua a ser literal e abstracta, embora a relação subjacente possa fundar excepções que funcionam como uma contraprestação, compensando-a ou anulando-a" (sic).
Em suma a qualidade de mero «avalista» (do subscritor da promessa de pagamento da livrança) não legitima a oponibilidade (por esse avalista) da excepção de preenchimento abusivo para com o credor-beneficiário dessa promessa.
11. Substituição da obrigação.
Sustentam os embargantes que pela escritura pública de 02.07.01, foram substituídas diversas obrigações anteriores, designadamente a subjacente à livrança dada à execução.
A escritura pública de 02.07.01 é uma escritura de constituição de hipoteca, e do seu teor apenas consta essa mesma constituição de hipoteca sobre dois imóveis da primeira embargante destinada a garantir responsabilidades daquela para com a embargada, além de outro, até ao montante de 42000000$00, no qual se incluíram 11 000 000$00 para garantia do mútuo celebrado em 07.02.01.
Tal como a instâncias concluíram em sede factual, o que as partes quiseram, ao outorgar aquela escritura, e na parte respeitante ao mútuo de 07.02.01, foi apenas e tão somente constituir mais uma garantia sobre o mesmo mútuo.
Daí não se pode pois inferir uma qualquer substituição das garantias anteriores, designadamente o aval da livrança exequenda.
Ademais, a constituição da hipoteca que consta da escritura de 02.07.01 parece gozar de inteira autonomia em relação à garantia do aval que ficou estabelecida no contrato de crédito junto ao requerimento executivo.
12. Falta de interpelação
Alegam os embargantes que não foram interpelados para proceder ao pagamento da livrança.
Mas em boa verdade não tinham que o ser, uma vez que a livrança deve sempre, e em princípio, ser paga na data do seu vencimento (art°s 28° e 78° da L.U.L.L.) e, como já se deixou dito, a data de vencimento foi nela aposta com o consentimento expresso dos embargantes.
13. Falta de protesto
Também já acima se referiu que a primeira embargante subscreveu a livrança dada à execução e os restantes embargantes lhe deram o seu aval nos termos do art° 31° da L.U.L.L..
São aplicáveis às livranças as disposições respeitantes ao aval relativas às letras (art° 77° da L.U.l.L.). Os avalistas da livrança são responsáveis pelo pagamento daquela da mesma forma que a subscritora da mesma (art° 32° do mesmo diploma).
E o subscritor de uma livrança é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (artº 78° da L.U.LL.), ou seja, está obrigada a pagá-Ia na data do seu vencimento (artº 28° do mesmo diploma).
Alegam os embargantes que a exequente/embargada não comprovou a falta de pagamento das livranças através do acto formal de protesto previsto no artº 44° da L.U.L.L. (protesto), insistindo na necessidade de protesto prévio da livrança para que eles recorrentes, na qualidade de avalistas, pudessem ser accionados.
Ora, o avalista é responsável da mesma forma que o subscritor da livrança e que este último é, por sua vez, responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra.
E aqui reside a "ratio essendi" do entendimento pacífico e corrente da doutrina e da jurisprudência no sentido de que para accionar o avalista do aceitante (ou, no caso da livrança, o avalista do subscritor), também não é necessário proceder ao protesto, uma vez que o avalista, embora subsidiariamente, se vincula da mesma forma que o aceitante.
E isto porque a recusa do aceite ou de pagamento do título deve ser sempre comprovada por um acto formal (o protesto) (artº 44º da LULL), pelo que, depois de expirado o prazo para se fazer o protesto, o portador perde os direitos de acção contra os outros co-obrigados, incluindo o avalista, à excepção do aceitante.
É verdade que o dever legal de apresentação da livrança a pagamento na data do vencimento e de comprovação da falta desse pagamento através de protesto se baseia em razões de segurança jurídica e de confiança necessárias à circulação daqueles títulos.
Mas a omissão de protesto por falta de pagamento não tira ao portador de uma livrança a possibilidade de proceder contra o avalista do respectivo aceitante ou subscritor por meio de acção cambiária directa como aquela que sem dúvida lhe assiste contra o próprio avalizado.
Porque o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele "afiançada", nos termos do artigo 32° 1º § da LULL, não se torna necessário o protesto por falta de pagamento para responsabilizar o avalista do aceitante ou subscritor da livrança, pela singela razão de que tal protesto é também dispensável para responsabilizar o próprio aceitante ou subscritor.
Conf., neste sentido, a doutrina citada nas decisões das instâncias, e ainda a jurisprudência deste Supremo Tribunal - conf. Acs de 17-3-88, in BMJ 375/399, 7-1-93, in BMJ nº 423/454, 29-9-93, in CJSTJ, 1993 -Tomo III, pág 50, 14-5-96, in BMJ 457/387, e 4-12-96 - in CJSTJ, 1996 - Tomo III, pág. 126, e ainda os Acs deste Supremo de 3-12-98, in Proc 904/98 - 2ª Sec e de 13-3-03, in Proc 458/03 este com o mesmo Relator do dos presentes autos.
Ao não proceder ao protesto da livrança, não perdeu a ora recorrida os seus direitos de acção contra os ora recorrentes, pelo que o acórdão «sub-judice» não infringiu os artºs 32º, 44° e 53° da LULL;
Bem julgada foi, pois, improcedente tal excepção peremptória.

14. Assim havendo as instâncias decidido neste pendor, não merece o acórdão recorrido qualquer censura.

15. Decisão.
Em face do exposto, decidem.
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 11 de Novembro de 2004
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares