Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
469/21.0GACSC.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
RELATÓRIO SOCIAL
FACTOS PROVADOS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 09/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGAMENTO ANULADO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I – O relatório está limitado em tema de objeto de prova à matéria atinente à inserção familiar e socioprofissional do arguido, tendo como finalidade auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade daquele, não podendo ser um veículo de prova que viole as regras dos meios de prova e de obtenção de prova.

II – O relatório tem uma valoração autónoma face à prova testemunhal ou por declarações. O silêncio do arguido em audiência, não impede que o tribunal valore esses instrumentos, no tocante à inserção familiar, socioprofissional e personalidade do arguido, mesmo que levados a cabo com base, também, em declarações do arguido. Imprescindível é a possibilidade de um efetivo contraditório em audiência.

III – Não existindo disposição legal em contrário, não constituindo prova tarifada, a prova veiculada pelo relatório é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção pela entidade competente em regra o juiz ou tribunal.

IV – Os factos provados com origem no Relatório devem ser elencados de modo claro e inequívoco. Mas só os factos relevantes. E os factos relevantes que transitam do relatório para os factos provados não podem ser subtraídos ao contraditório, os sujeitos processuais devem poder, caso pretendam, exercer o contraditório, incumbindo ao tribunal a garantia da sua efetivação.

V – Não devem ser levados aos factos provados trechos do relatório, mas os concretos factos. Consignar nos factos provados que “do relatório social consta”, seguindo-se uma transcrição, ou, como no caso, que o arguido referiu à DGRSP que está no Programa de Metadona, não tem valor probatório como facto provado, apenas se prova que no relatório consta essa afirmação. Sabemos o que disse à DGRSP, não sabemos o que considerou o tribunal provado, pelo que, este elenco não representa a enumeração dos factos provados exigida para a sentença.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 469/21.0GACSC.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. No Juízo Central Criminal ... foi proferida a seguinte decisão (transcrição):

«Condena-se o arguido AA, pela prática, como reincidente, em autoria material, na forma consumada de um crime de violência doméstica, pp. pelo artº.152°., nº.1, als. a) e c) e nº.2, al. a) do Código Penal (na pessoa de BB), na pena de quatro anos e oito meses de prisão, efectiva.

Condena-se o arguido AA, pela prática, como reincidente, de um crime de ameaça agravada, p.p. pelos artºs. 153º e 155º, nº.1, al. a), do Código Penal (na pessoa de CC), na pena de nove meses e dez dias de prisão, efectiva.

Condena-se o arguido AA, pela prática, como reincidente, de um crime de ameaça agravada, p.p. pelos artºs. 153º e 155º.,nº.1, al.a), do Código Penal (na pessoa de DD), na pena de nove meses e dez dias de prisão, efectiva.

Em cúmulo jurídico de tais penas de condena-se o arguido AA na pena única de 05 (cinco) anos e 02 (dois) meses de prisão, efectiva.

Condena-se o arguido AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, pp. pelo art.º 152º, nº.1, als. a) e c) e nº.2, al. a), nºs.4 e 5, do Código Penal, na redacção da Lei 44/2018, de 9 de Agosto, na pena acessória de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período cinco anos, com obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

A pena acessória de proibição de contacto com a vítima incluirá o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento será fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

Não [s]e procede a arbitramento a título de compensação indemnizatória pelos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida, nos termos do artº 82º-A, do CPP, por não se terem provado os respectivos pressupostos legais».

2. Inconformado com o decidido no acórdão da 1.ª instância recorreu o arguido diretamente para este STJ apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

«A. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão de fls. …, proferido em 24/02/2022 nos autos de processo comum com intervenção do tribunal coletivo, que condenou o arguido em:

i. 4 anos e 8 meses de prisão efectiva, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.°, n.º 1, als. a) e c), e n.º 2, al.a) do CP (na pessoa de BB);

ii. 9 meses e 10 dias de prisão efectiva, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, al.a) do CP (na pessoa de CC);

iii. 9 meses e 10 dias de prisão efectiva, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, al.a) do CP (na pessoa de DD);

iv. Em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão, efectiva.

B. No mesmo douto Acórdão, além da condenação em custas, foi também o arguido condenado nas seguintes penas acessórias: (i) proibição de contacto com a vítima, pelo período de 5 anos, (ii) proibição de uso e porte de armas, pelo período 5 anos e (iii) obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

2. FACTOS PROVADOS

C. A audiência de julgamento decorreu com documentação da prova produzida, fundando-se a convicção do Tribunal a quo sobre a matéria de facto provada da conjugação das regras de experiência com os documentos juntos indicados na Acusação e pelo arguido, os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento e, por último, as declarações do arguido.

D. Dos factos provados, resulta designadamente que, além de ter comportamentos aditivos (consumo de cocaína e heroína, com períodos de tratamento com metadona), o arguido sofreu também uma depressão ao tempo da prática dos crimes pelos quais foi condenado nos presentes autos, transtorno mental que o fez sentir “de cabeça perdida”.

E. Além de verbalizar a sua intenção de pôr termo à vida (vg., “EU ACABO COM A TUA

VIDA E A SEGUIR ACABO COM A MINHA” e “VAI ACABAR AQUI PARA TI E PARA MIM”), também ficou provado que o arguido, após os “surtos” de grande irritabilidade e de alguma violência física e psicológica para com a vítima, de imediato “cai em si” e demonstrava arrependimento, o que é revelador da sua fragilidade emocional e psicológica (vg., “o arguido começou a chorar” e “começou a chorar convulsivamente e a pedir perdão”).

F. A DGRSP no “Relatório Social” que elaborou para a determinação da sanção a aplicar ao arguido propugnou expressamente pela necessidade do arguido ter “acompanhamento psicoterapêutico estruturado” e que, ainda em fase anterior à realização da audiência de julgamento (em sede de requerimento para substituição de medida de coação), o próprio arguido requereu a elaboração de perícia sobre a sua personalidade.

G. Este quadro de comportamentos aditivos e de perturbação mental e emocional do arguido deve balizar toda a factualidade que foi dada como provada pelo Tribunal a quo, designadamente para valorar o grau de ilicitude e a intensidade do dolo, o que não aconteceu no douto Acórdão recorrido.

3. DO DIREITO

H. O Tribunal a quo violou o disposto no artigo 71.º do CP, por incorrecta e imprecisa aplicação.

I. De facto, a ausência no douto Acórdão recorrido de quaisquer alusões ou considerações quer aos sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e dos fins ou motivos que os determinaram, quer sobre a conduta anterior e posterior à prática dos factos, quer ainda sobre a personalidade do arguido, deverá assim pender a favor do arguido.

J. Tanto mais que houve por parte do Tribunal a quo uma total desvalorização do quadro de comportamentos aditivos e de perturbação mental e emocional do arguido ao tempo da prática dos crimes pelos quais foi condenado.

K. Não basta referir no douto Acórdão recorrido que o arguido agiu de “forma consciente”, quando há factos provados em sentido contrário, que demonstram que o arguido agiu “de cabeça perdida”, num quadro de perturbação mental e emocional, em que não tinha consciência dos crimes que cometeu ou, pelo menos, não tinha consciência plena de tais crimes.

L. Neste aspecto, o douto Acórdão recorrido está posto em crise, por se entender que não está suficientemente fundamentado e sustentado em factos que permitam, só por si, valorar o grau de ilicitude e a intensidade do dolo ou que compaginem as circunstâncias pessoais do arguido e a sua personalidade no momento do cometimento dos crimes.

M. E, assim, o Recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal a quo porquanto foi aplicada uma pena demasiado severa atenta a factualidade considerada, em particular as respeitantes às circunstâncias pessoais e a personalidade do arguido, e a insuficiente fundamentação da douta decisão.

N. Donde, as penas de prisão parcelares a aplicar deverão ser reduzidas em função da culpa do arguido e do grau de intensidade de vontade criminosa do arguido, maxime porque os crimes foram cometidos num tempo em que a capacidade crítica do arguido se encontrava especialmente diminuída.

O. E a pena única resultante do cúmulo jurídico deverá, consequentemente, ser reformada e substancialmente reduzida.

Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve o merecer provimento o presente Recurso e, em consequência, ser revogado o douto Acórdão recorrido e substituído por outro que se coadune com a pretensão exposta, com todas as consequências legais.

3. O Ministério Público respondeu pronunciando-se pela adequação da pena aplicada e pela improcedência do recurso.

4. Neste Supremo Tribunal de Justiça a Procuradora-Geral Adjunta reiterou a posição do M.º P.º na 1.ª instância.

5. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

A

Factos provados (transcrição):

1. O arguido e EE iniciaram um relacionamento amoroso em Setembro de 2019, sem coabitação.

2. A partir de Maio de 2020, o arguido e a vítima passaram a coabitar, na Rua ..., ..., em ....

3. A vítima tem dois filhos, DD, de dez anos e CC, de dezassete anos, que não coabitam consigo, mas que ficam consigo nas suas folgas.

4. Em data não concretamente apurada de Fevereiro de 2019, o arguido insistiu com a vítima de que pretendia jantar fora.

5. Alegando sentir-se cansada, a vítima rejeitou a ideia, tendo o mesmo ficado bastante alterado, dizendo-lhe, em tom de voz elevado: “AGORA VOCÊ TEM QUE IR…. VAIS VER PARA ONDE EU VOU-TE LEVAR…CARALHO…. PORRA…. VOCÊ VAI VER O QUE EU VOU FAZER CONTIGO”, enquanto conduzia o veículo, sem destino.

6. A vítima, com receio do arguido, disse-lhe então que aceitava ir jantar, mas que necessitava de ir a casa a fim de dar o jantar aos seus filhos.

7. O arguido conduziu a vítima até à sua habitação, mas acompanhou-a até ao seu interior.

8. Antes da mesma entrar na residência, o arguido ordenou que a vítima transmitisse aos seus filhos que teria sido sua a ideia de ir jantar fora, que agisse normalmente e que não se demorasse.

9. A vítima, com receio, remeteu uma mensagem de telemóvel à irmã do arguido dizendo: “FF o seu irmão está muito nervoso ele está querendo me levar em algum lugar tenta ligar para ele conversar porque se alguma coisa me acontecer foi ele…”

10. Após saírem da residência e entrarem no veículo do arguido, este, enquanto conduzia, segurando com a mão esquerda o volante, desferia murros com a mão direita na perna da vítima, enquanto lhe dizia: “AGORA VOCÊ VAI VER PARA ONDE EU VOU-TE LEVAR… VOCÊ PENSA QUE EU SOU PALHAÇO… VOU ACABAR COM A TUA FAMÍLIA”.

11. O arguido conduziu o veículo durante bastante tempo, até anoitecer, até que finalmente parou o mesmo num local ermo, de mato e árvores.

12. Em seguida, o arguido apropriou-se do telemóvel da vítima.

13. O arguido disse então à vítima: “VOLTAS A CONTRARIAR-ME E VOU-TE PICAR COMO UM PORCO E ENTERRO-TE AQUI MESMO…VOU-TE BEBER O SANGUE…. VOU-TE CORTAR AOS PEDAÇOS…OU VOU-TE ENTERRAR VIVA AQUI MESMO E NINGUÉM TE ENCONTRA…”.

14. A vítima começou então a chorar e a implorar para o arguido ter calma e para não a matar.

15. Enquanto isso, o arguido simulava, através de gestos, de que lhe iria bater, aproximando o punho da face daquela.

16. Tal situação prolongou-se durante horas, até o arguido se cansar.

17. Nessa altura, o arguido começou a chorar e disse à vítima: “A CULPA É TUA POR EU TER AGIDO DESTA FORMA… ESTÁS ACABAR COM A MINHA VIDA… TU É QUE FAZES QUE FIQUE ASSIM…. ERA MAIS FÁCIL TERES DITO QUE QUERIAS SAIR COMIGO”.

18. No dia 21 de Junho de 2020, pelas 18 horas, na residência da vítima, esta e o arguido iniciaram uma discussão devido à confecção de uma refeição.

19. Quando a vítima se deslocou até à lavandaria, o arguido seguiu-a e disse-lhe: “PORQUE É QUE VOCÊ ME CONTRARIOU NA FRENTE DOS SEUS FILHOS? ERA SÓ TER FEITO COMO EU HAVIA DITO”.

20. A vítima optou por permanecer em silêncio e virou-se de costas para o arguido, a fim de se afastar do mesmo.

21. Acto contínuo, o arguido deslocou-se para a lateral da vítima e desferiu-lhe um murro de punho cerrado que lhe atingiu o nariz e causou uma hemorragia.

22. O arguido pediu desculpa à vítima e disse-lhe que a culpa era de GG, por ter agido daquela forma.

23. Após, a vítima e o arguido dirigiram-se para a sala, altura em que o arguido resolveu consultar o telemóvel da vítima.

24. Ao verificar a existência de uma mensagem do ex-marido da vítima sobre os filhos de ambos, o arguido ficou muito alterado e disse à vítima: “TU NÃO PODES FAZER NADA… TUDO O QUE ACONTECER TENS DE ME DIZER… O QUE RECEBERES DE MENSAGENS TENS DE ME DIZER. TENHO DE SER O PRIMEIRO A SABER EU É QUE DIGO SIM OU NÃO.. TENHO VONTADE É DE DAR UM TIRO NA CABEÇA DO TEU EX MARIDO… TENHO VONTADE DE ACABAR COM VOCÊS TODOS E COMIGO TAMBÉM. VOU AMARRAR UMAS PEDRAS NOS PÉS DE TODOS VOCÊS E VOU MANDAR NO FUNDO DO OCEANO… VOU ACABAR COM VOCÊS TODOS…”.

25. Tais expressões foram proferidas na presença dos filhos da vítima, que ficaram muito assustados.

26. Após, o arguido puxou a vítima por um braço, tendo a filha da vítima começado a puxar o outro braço da vítima, na direcção oposta, a fim de impedir que aquele a levasse.

27. Quando o arguido puxou a vítima para o quarto, DD enviou uma mensagem de telemóvel à sua madrasta, solicitando auxílio, que chamou a polícia ao local.

28. Entretanto a madrasta compareceu na residência e recolheu os filhos da vítima.

29. O arguido trancou a porta da habitação e ficou na posse da chave, tendo colocado uma cadeira em frente à porta.

30. Após o arguido disse à vítima: “REZA PARA ELES NÃO TEREM DITO NADA. ANTES DE ME ACONTECER ALGUMA COISA EU MATO TODOS… VOU ESTRIPAR-TE IGUAL A UM PORCO VOU BEBER O VOSSO SANGUE E DEPOIS VOU AMARRAR UMAS PEDRAS E JOGAR NO OCEANO ERA ISSO QUE EU JÁ DEVIA TER FEITO…. PERDIDO POR CEM, PERDIDO POR MIL”.

31. Entretanto a GNR chegou ao local e tocou à campainha, tendo o arguido dito à vítima: “VÊ LÁ O QUE VAIS DIZER PARA ELES”

32. Com receio do arguido, a vítima disse aos senhores militares que estava tudo bem e que havia sido uma simples discussão.

33. A vítima veio a remeter-se ao silêncio no inquérito n.º 826/20...., por receio do arguido, que lhe disse: “SE ACONTECER ALGUMA COISA COMIGO ANTES MATO-TE. MATO OS TEUS FILHOS E VOU-TE ESTRIPAR COMO UM PORCO”

34. Em Dezembro de 2020, o arguido passou a manifestar ciúmes pelo facto da vítima ter um colega de trabalho.

35. Assim, o arguido passou a controlar ainda mais a vítima, colocando-se à porta do seu trabalho e telefonando-lhe a fim de apurar o seu paradeiro, caso a mesma não saísse à hora exata.

36. Numa das ocasiões o arguido aguardou a vítima na saída do trabalho, e devido ao facto da mesma se ter atrasado, desferiu-lhe um murro na boca, que lhe causou um corte e sangramento.

37. No dia 1 de Janeiro de 2021, pelas 6h30, quando o arguido estava a conduzir a vítima até ao seu trabalho e devido ao facto desta se recusar a entregar-lhe dinheiro, este disse-lhe: “VOU-TE PARTIR OS DENTES, DESANCO-TE TODA. ESTÁS-ME A ENGANAR EU NÃO SOU NENHUM PARVO”.

38. Após, o arguido apoderou-se do cartão multibanco da vítima e deslocou-se a uma caixa multibanco, não logrando proceder ao levantamento de qualquer quantia monetário por a conta da vítima se encontrar sem dinheiro.

39. Após, o arguido regressou ao veículo e conduziu sem destino, fazendo com que a vítima chegasse atrasada ao trabalho.

40. O arguido é toxicodependente e por via disso, exige, por diversas vezes, quantias monetárias à vítima.

41. Em data não concretamente apurada de Fevereiro de 2021, quando a vítima se encontrava a tomar banho, o arguido consultou o telemóvel desta e deparou-se com uma mensagem.

42. O arguido exigiu então saber quem era o remetente da mensagem, tendo a vítima dito que era um amigo de longa data e que não havia motivos para ter ciúmes.

43. Ainda assim, o arguido agarrou numa faca de cozinha e empunhando na direcção da vítima disse-lhe: “CONTA-ME A VERDADE… ESTÁS-ME A TRAIR EU QUERO SABER TUDO, CONTA-ME A VERDADE”.

44. A vítima tentou, em vão, esclarecer que se tratava de um amigo que reside no ..., o que não satisfez o arguido, que passou a fazer gestos em que simulava espetar a faca na vítima.

45. Após, e ainda munido da faca, o arguido empurrou a vítima para cima da cama, saltou para cima da mesma e apertou-lhe o pescoço até a mesma sentir falta de ar.

46. Ao aperceber-se da aflição da vítima, o arguido saiu de cima da mesma e pousou a faca em cima do móvel.

47. A vítima tentou refugiar-se na casa-de-banho, altura em que o arguido a alcançou, puxando-lhe os cabelos, arrastando-a e arremessando-a para o chão entre a cama e o armário.

48. Após, o arguido desferiu-lhe vários murros na cabeça.

49. O arguido apenas cessou a sua conduta, por o telemóvel da vítima ter começado a tocar incessantemente.

50. Nessa altura, o arguido disse à vítima que trocasse de camisa, que se encontrava rasgada, e que devolvesse a videochamada, tendo a vítima obedecido e dito a um amigo, que se encontrava no ..., que estava tudo bem.

51. No dia 20 de Fevereiro de 2021, a vítima informou o arguido que pretendia separar-se do mesmo, tendo este ficado bastante irritado, levando a vítima até ao quarto e obrigando-a a sentar-se na cadeira, retirou-lhe o telemóvel e disse-lhe “QUERES ACABAR… EU ACABO COM A TUA VIDA E A SEGUIR ACABO COM A MINHA. PERDIDO POR CEM, PERDIDO POR MIL”

52. Sempre que a vítima tentava levantar-se, o arguido obrigava-a a permanecer sentada, empurrando-a para baixo, até que a vítima, com receio, disse-lhe que ia ficar e que não iriam terminar a relação.

53. A partir dessa data, o arguido passou a controlar todos os passos da vítima, levando-a e indo buscá-la ao trabalho.

54. A vítima logrou então refugiar-se na casa de uma amiga, sita em ..., a partir de Março de 2021.

55. No dia 12 de Abril de 2021, pelas 6 horas, ao sair da residência, a vítima deparou-se com o arguido que aguardava pela mesma atrás de um muro.

56. A vítima continuou a andar até à paragem de autocarro, tendo sido parada pelo arguido que a agarrou pelo casaco, dizendo-lhe que queria falar.

57. A vítima respondeu então “se queres falar, falamos aqui na rua” .

58. Em resposta, o arguido disse-lhe: “SE NÃO ENTRARES NO CARRO VAI ACABAR AQUI PARA TI E PARA MIM…”, enquanto colocava a mão no bolso, parecendo estar a segurar um objecto, com o objectivo de significar à vítima que seria uma arma ou uma faca.

59. O arguido, continuando com a mão no bolso disse-lhe: “ENTRA NO CARRO QUE SÓ QUERO CONVERSAR”.

60. A vítima, com receio, entrou no veículo do arguido, que começou a chorar convulsivamente e a pedir perdão, dizendo que não queria terminar o relacionamento.

61. A vítima pediu então ao arguido que se acalmasse e a deixasse no trabalho.

62. O arguido perguntou à vítima se poderia esperar por ela no final do seu horário de trabalho, tendo esta recusado, pedindo-lhe que se fosse embora.

63. A vítima telefonou então à sua amiga HH, relatando o ocorrido, tendo esta telefonado para o arguido, alertando-o que chamaria a polícia se o mesmo não se fosse embora.

64. Ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito conseguido e reiterado de humilhar e maltratar física e psiquicamente a vítima EE, molestando o seu corpo, inclusive no domicílio comum e na presença dos filhos da vítima, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua companheira.

65. O arguido actuou da forma descrita com a intenção de humilhar, causar medo e inquietar a ofendida, significando que atentaria contra a sua vida e dos seus filhos, de modo a subjugá-la à sua vontade, bem sabendo que isso afectava a sua saúde e bem-estar, o que quis e conseguiu.

66. Ao agir da forma acima descrita, quis o arguido anunciar que atentaria contra a vida dos filhos da vítima e do pai daqueles, tendo os primeiros ficado disso cientes, causando-lhes receio.

67. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

68. Por factos de 3/4/2011 e 11/4/2011, acórdão de 3/2013, transitado em julgado em 21/10/2013, proferido no processo nº.97/11...., o arguido foi condenado, pela prática de dois crimes de injúria agravada, um crime de ofensa à integridade física qualificada tentada e dois crimes de ameaça agravada, na pena única de dois anos de prisão efectiva.

69. Por factos de 27/1/2012, sentença de 12/2013, transitada em julgado em 31/01/2014, proferida no processo nº.25/12...., o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, pp. no artº.3º, do DL 2/98, na pena de 4 meses de prisão, efectiva; após cúmulo com as penas mencionadas em 68), foi condenado na pena única de 25 meses de prisão, efectiva; após cúmulo das penas mencionadas em 68), 69), 7), 8) e 70), foi condenado na pena única de 7 anos de prisão, efectiva.

70. Por factos de 15/3/2011, por acórdão de 3/2014, transitado em 7/4/2014, no P.79/11...., por 2 crimes de roubo simples e 2 de coacção agravada, pps. nos artºs.210º., nº.1, 154º e 155º., nº.1, a), do CP, na pena única de 5 anos e 3 meses de prisão, efectiva;

71. Por factos de 11/1/2012, sentença de 7/2025, transitada em julgado em 30/09/2015, proferida no processo nº.7/12...., o arguido foi condenado, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificadas na forma tentada e um crime de condução sem habilitação legal, pps. nos artºs.145º., 132º., 22º., 23º e 73º., do CP e 3º, do DL 2/98, na pena única de um ano e seis meses de prisão, efectiva; por acórdão cumulatório de 3/2017, transitado em julgado em 29/05/2017, proferido no processo de cúmulo jurídico 12167/16...., o arguido foi condenado na penas únicas de seis anos de prisão e de 7 meses de prisão, entre si de cumprimento sucessivo [englobando as mencionadas em 68), 69), 7), 8), 70 e 71)].

73. No âmbito de tais processos, o arguido esteve de forma ininterrupta preso até 22/10/2018, data em que foi determinada a sua liberdade condicional, nos dois terços das penas aplicadas, em cúmulo, por decisão no P.2306/13...., proferida pelo Tribunal de Execução de Penas ..., com término a 2/07/2020.

74. Assim, mesmo após ter sido condenado em penas de prisão efectivas superiores a seis meses, pela prática de crimes contra as pessoas, o arguido não se coibiu de praticar os factos acima descritos, parte deles praticados durante o período da liberdade condicional.

75. Tais condenações e penas efectivas de prisão não constituíram censura e advertência suficientes em ordem a afastar o arguido da prática de novos crimes contra as pessoas.

Para além das condenações mencionadas em 68 a 72, o arguido foi ainda condenado:

1-Por factos de 6/5/1997, por decisão transitada, no P.220/97 (depois 46/97....), por crime de ofensa à integridade física simples, pp. No artº.143º., do CP, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 150 escudos, perfazendo 60 mil escudos de multa; tal pena foi depois declarada extinta, pelo cumprimento da pena de prisão subsidiária respectiva, com efeitos reportados a 14/8/2010;

2-Por factos de 21/5/1999, por decisão transitada, no P.215/99, por crime de roubo simples, pp. no artº.210º., do CP, na pena de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos;

3-Por factos de 23/11/2000, por decisão transitada, no P.303/00, por crime de condução sem habilitação legal, pp. no artº.3º., nº.2 do DL 2/98, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 500 escudos, perfazendo 30 mil escudos de multa; tal pena foi depois declarada extinta, pelo pagamento;

4-Por factos de 26/9/2000, por decisão transitada, no P.142/00, por crime de roubo simples, pp. no artº.210º., do CP, na pena de 27 meses de prisão, suspensa na sua execução por 4 anos, com a condição de o arguido se submeter a tratamento de toxicodependência; por decisão de 28/5/2003 foi tal suspensão revogada e determinado o cumprimento da mencionada pena de 27 meses de prisão, ora efectiva;

5-Por factos de 23/5/1998, por decisão transitada, no P.222/99, por crime de ofensa à integridade física simples, pp. no artº.143º., do CP, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 700 escudos, perfazendo 56 mil escudos de multa; tal pena foi depois declarada extinta, por decisão de 20/1/2003;

6-Por factos de 14/12/1999 e 18/2/2002, por decisão transitada, no P.274/99, por crime de roubo qualificado e de resistência e coacção sobre funcionário, pps. nos artºs.210º., nº.2, b), 204º., nº.1, f) e 347º., do CP, nas penas respectivas de 3 anos e 6 meses e de 2 anos de prisão, sendo condenado na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão; após cúmulo com as penas mencionadas em 2) e 4) foi condenado na pena única de 5 anos de prisão, efectiva; esta pena foi declarada extinta pelo cumprimento, nos termos do artº.475º., do CPP, por decisão de 17/9/2008;

7-Por factos de 3/8/2012, por decisão de 8/2012, transitada em 20/9/2012, no P.136/12, por crime de condução sem habilitação legal, pp. no artº.3º., do DL 2/98, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 horas de prestação da trabalho em favor da comunidade;

8-Por factos de 9/6/2011, por decisão de 12/2013, transitada em 31/1/2014, no P.291/11, por crime de detenção de arma proibida e de consumo de estupefacientes, pps. nos artºs.86º., do RJAM e 40º., nº.2, do DL 15/93, na pena única de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano com a condição de sujeição a tratamento da toxicodependência;

9-Por factos de 18/4/2013, por decisão de 2/2014, transitada em 17/3/2014, no P.142/13, por crime de condução sem habilitação legal, pp. no artº.3º., do DL 2/98, na pena de 4 meses de prisão, efectiva; e

10-Por factos de 12/9/2013, por decisão de 3/2014, transitada em 7/4/2014, no P.354/13, por crime de condução sem habilitação legal, pp. no artº.3º., do DL 2/98, na pena de 6 meses de prisão, efectiva.

Mais se provou que:

O processo de desenvolvimento e sociabilização de AA para a DGRSP terá decorrido no ... junto e origem, composto pelos progenitores e uma irmã mais nova, num contexto familiar com uma vivência normal, em ambiente harmonioso.

Aos 18 anos de idade foi viver sozinho numa casa que lhe foi dada pelos pais, situada junto à dos mesmos.

No domínio escolar, o arguido tem o 9º ano de escolaridade, com formação eletrotécnica que lhe permitiu conseguir um trabalho na ... onde esteve efectivo.

No plano afectivo, viveu durante 10 anos com a mãe da sua filha que actualmente tem 15 anos de idade, tendo contribuído sempre para o sustento da mesma. O casal viria a separar-se e em 2019 o arguido conheceu a ofendida, de nacionalidade ..., tendo iniciado uma relação com esta.

Deixou o trabalho que tinha na ... e foram viver juntos para ..., onde o arguido arranjou trabalho na área da jardinagem. Estiveram juntos quase dois anos e para a DGRSP sempre se deram bem, até ao pico da pandemia, altura em que a ofendida ficou desempregada e passou a ser o arguido a suportar todas as despesas.

A ofendida trabalhava na charcutaria do ... no ... e segundo o arguido, a dada altura teve conhecimento que a mesma furtava produtos no seu local de trabalho e começou a confrontá-la com tal situação, o que originou várias discussões entre o casal, que para a DGRSP nunca foram além das agressões verbais, tendo a ofendida abandonado a casa e levado o dinheiro do arguido.

Que ao ver-se sozinho voltou para o ... onde estava a viver quando veio a ser detido.

A filha do arguido reside com a progenitora na casa que é pertença do arguido.

Este refere à DGRSP não ter quaisquer problemas de saúde.

À data da sua prisão o arguido estava a viver no ....

Relativamente a comportamentos adictivos, o arguido referiu à DGRSP que está no Programa de Metadona há 12 anos derivado ao seu passado de consumos de cocaína e heroína.

Em termos individuais, da avaliação da DGRSP, o arguido não assume os seus comportamentos, desvalorizando qualquer atitude mais agressiva da sua parte, o que para a DGRSP demonstra ausência de consciência crítica.

No decurso da entrevista com a DGRSP, AA referiu que nunca agrediu a ofendida, mostrando-se revoltado com o facto se ser arguido nos presentes autos, negando ter agredido fisicamente a ofendida, mas assumindo algumas agressões verbais, e ter-lhe enviado mensagens de cariz ameaçador, por se sentir, nas suas palavras, “de cabeça perdida”.

Relativamente aos crimes de ameaça agravada, na pessoa dos filhos da ofendida, e dos quais também se encontra acusado, nega à DGRSP os mesmos, referindo que os filhos da ofendida nem sequer viviam com a progenitora.

Refere que não tem outros processos pendentes.

Justifica a acusação contra si com o facto da sua família nunca ter aceite o seu relacionamento com a ofendida, e desta ter sido uma forma de vingança da mesma contra si. Em termos futuros, referiu à DGRSP ter o apoio dos seus pais que embora reformados têm um lar de idosos, onde tem possibilidade de trabalho e onde trabalha a mãe da sua filha, sendo sua intenção retomar o relacionamento com a mesma, contudo não foi possível à DGRSP aferir tais informações.

AA, encontra-se preso preventivo no Estabelecimento Prisional ... à ordem dos presentes autos, beneficiando da visita da sua irmã e da sua mãe.

Em meio prisional tem apresentado um comportamento adequado e uma postura adaptada ao meio institucional em causa, não registando sanções disciplinares.

A nível laboral encontra-se a trabalhar há 7 meses na rouparia e ocupa os seus tempos livres a ler e a jogar futebol.

Quanto à sua conduta jurídica-penal o arguido evidencia para a DGRSP preocupação sobre as consequências que possam advir do presente processo.

Esta não é a primeira vez que o arguido se encontra privado da sua liberdade, tendo já sido condenado em pena de 6 anos e 4 meses de prisão, quando tinha 22 anos de idade, por crimes contra as pessoas, que cumpriu, tendo saído em liberdade aos 2/3 da pena.

O processo de desenvolvimento e socialização de AA para a DGRSP terá decorrido no ... junto do seu agregado de origem, composto pelos progenitores e uma irmã mais nova, num contexto familiar com uma vivência normal, em ambiente harmonioso.

Aos 18 anos de idade já vivia sozinho e assegurava a sua subsistência através do trabalho na ..., onde esteve efectivo. Actualmente tinha voltado ao ..., após a ofendida ter abandonado a casa em ... onde viviam e terminado o relacionamento entre ambos.

O arguido tem uma filha de 15 anos de idade, da sua primeira relação, que vive com a respetiva progenitora, sendo sua intenção reatar o relacionamento com a mesma.

Já esteve preso por crimes contra as pessoas. Apresenta para a DGRSP alguns factores de proteção nomeadamente apoio familiar e experiência profissional, mas, em termos individuais, e da avaliação da DGRSP, denota ser um indivíduo sem capacidades para formular um juízo de censura, ou capacidade de descentração, não admitindo a prática dos crimes e manifestando um discurso essencialmente autocentrado, de vitimização e minimização dos efeitos/consequências no “outro” /alegada vítima, circunstâncias que para a DGRSP se poderão constituir como risco de reincidência de violência física para com a(s) vítima(s) deste processo ou outra(s).

Face ao exposto e em caso de condenação, a DGRSP considera que o arguido beneficiaria com a sua sujeição a um acompanhamento psicoterapêutico estruturado, que lhe permita aceder a novas capacidades de interiorização da realidade e contribua para o seu equilíbrio psicoafectivo, afigurando-se igualmente fundamental a sujeição do mesmo a programas específicos para ofensores de violência doméstica.

Provou-se ainda que:

O arguido é solteiro, técnico de manutenção de empilhadores, nascido em .../.../1980, natural de ..., ....

Foi detido para 1º interrogatório em 5/5/2021 e está em prisão preventiva desde 6/5/2021 à ordem destes autos, actualmente no EP ....

Tal prisão preventiva foi revista nomeadamente em 06/10/2021 e 29/12/2021.

O arguido prestou declarações em 1ºinterrogatório judicial, onde admitiu parte da factualidade imputada mas negou a generalidade da factualidade imputada.

O arguido em audiência usou inicialmente do seu direito ao silêncio. Depois, em audiência, antes de alegações, admitiu parte da factualidade imputada mas negou a generalidade da factualidade imputada.

Mais prestou declarações quanto às suas condições pessoais.

Beneficiou de Liberdade Condicional desde 22/10/2018 até 2/7/2020.

Praticou parte dos factos ora apurados nesse período de liberdade condicional.

Teve quadro depressivo e beneficiou tratamento com metadona.

O arguido é reputado pela testemunha II, seu amigo, de pessoa cinco estrelas consigo e os demais, respeitador e trabalhador, boa pessoa.

FACTOS NÃO PROVADOS:

Não se provou qualquer outro facto relevante para a decisão da causa, para além ou em contrário dos supra vertidos, nomeadamente os demais imputados ou aventados em audiência, como que no processo nº.25/12...., o arguido tenha sido condenado pela prática de dois crimes de injúrias agravada, um crime de ofensa à integridade física qualificada tentada e dois crimes de ameaças agravadas, na pena de prisão de dois anos;

72-Que por sentença transitada em julgado em 29/05/2017, proferida no processo n.º 12167/16...., o arguido tenha sido condenado, pela prática de dois crimes de ofensas à integridade física qualificada, na forma tentada, um crime de condução sem habilitação legal, na pena de seis anos de prisão; que o arguido não tenha praticado os factos imputados; e as demais condições pessoais do arguido.

*

B

O Direito

§ 1. Entende o recorrente que foi violado o disposto no artigo 71.º do CP, por incorreta e imprecisa aplicação, porquanto o acórdão não alude quer aos sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e dos fins ou motivos que os determinaram, quer sobre a conduta anterior e posterior à prática dos factos, quer ainda sobre a personalidade do arguido…; que desvalorizou os comportamentos aditivos e de perturbação mental e emocional do arguido ao tempo da prática dos crimes pelos quais foi condenado, que o arguido agiu “de cabeça perdida”, num quadro de perturbação mental e emocional, em que não tinha consciência dos crimes que cometeu ou, pelo menos, não tinha consciência plena de tais crimes.

§ 2. Tendo o recorrente optado por recorrer diretamente para o STJ, infere-se dessa opção que não pretende questionar o julgamento da matéria de facto, visando o presente recurso exclusivamente o reexame de matéria de direito (art. 432.º/1/c, CPP). Tal não obsta, como é jurisprudência indiscutida deste tribunal, a que se conheçam oficiosamente vícios da decisão recorrida em matéria de facto (art. 434.º e 432.º/1/a, CPP). Ora ao percorrer a matéria de facto em ordem a apreciar a questão posta pelo recorrente, salta à vista o seguinte:

Consta dos factos provados:

«O arguido em audiência usou inicialmente do seu direito ao silêncio. Depois, em audiência, antes de alegações, admitiu parte da factualidade imputada, mas negou a generalidade da factualidade imputada».

Consta da fundamentação:
«… atendendo à sua não confissão, atendendo ainda ao facto de em audiência não ter demonstrado arrependimento pela prática dos factos, e às suas demais apuradas…».

§ 3. Numa primeira análise é contraditório dar como provado que o arguido admitiu parte da factualidade imputada e na fundamentação considerar a sua não confissão. Importa, ao menos, saber se a confissão parcial foi relevante ou não. Acresce que, consoante resulta da fundamentação na parte relativa à medida da pena, a decisão recorrida atendeu, entre o mais, «à sua não confissão, atendendo ainda ao facto de em audiência não ter demonstrado arrependimento pela prática dos factos, e às suas demais apuradas condições pessoais, acima vertidas e que aqui se dão por reproduzidas».

§4 A remissão para as suas demais apuradas condições pessoais, acima vertidas e que aqui se dão por reproduzidas, parece-nos não ser um bom exemplo de fundamentação de medida da pena, mas o que realmente importa e constitui erro de determinação da pena é a consideração como agravante a sua não confissão, atendendo ainda ao facto de em audiência não ter demonstrado arrependimento pela prática dos factos. Sendo o arguido senhor do direito ao silêncio (art. 343.º/1, CPP) a confissão e o arrependimento são circunstâncias, quando se verificam, favoráveis ao arguido; não confessando o arguido, nem demostrando arrependimento, deixa de poder contar com essas circunstâncias favoráveis, mas isso não equivale a que se contabilize como agravantes a não confissão e não ter demonstrado arrependimento pela prática dos factos. Temos assim, em conclusão, uma contradição entre os factos provados e parte da fundamentação, contradição que este tribunal não pode colmatar por sua iniciativa. Acresce um erro na determinação da medida da pena ao serem consideradas contra o arguido circunstâncias derivadas do exercício de um direito, que do mesmo passo importa corrigir, retirando daí, se for o caso, as devidas consequências.

§ 5. Consta ainda dos factos provados o seguinte:

Mais se provou que:

(…)

«Relativamente a comportamentos adictivos, o arguido referiu à DGRSP que está no Programa de Metadona há 12 anos derivado ao seu passado de consumos de cocaína e heroína.

Em termos individuais, da avaliação da DGRSP, o arguido não assume os seus comportamentos, desvalorizando qualquer atitude mais agressiva da sua parte, o que para a DGRSP demonstra ausência de consciência crítica.

No decurso da entrevista com a DGRSP, AA referiu que nunca agrediu a ofendida, mostrando-se revoltado com o facto se ser arguido nos presentes autos, negando ter agredido fisicamente a ofendida, mas assumindo algumas agressões verbais, e ter-lhe enviado mensagens de cariz ameaçador, por se sentir, nas suas palavras, “de cabeça perdida”.

Relativamente aos crimes de ameaça agravada, na pessoa dos filhos da ofendida, e dos quais também se encontra acusado, nega à DGRSP os mesmos, referindo que os filhos da ofendida nem sequer viviam com a progenitora.

Refere que não tem outros processos pendentes.

Justifica a acusação contra si com o facto da sua família nunca ter aceite o seu relacionamento com a ofendida, e desta ter sido uma forma de vingança da mesma contra si. Em termos futuros, referiu à DGRSP ter o apoio dos seus pais que embora reformados têm um lar de idosos, onde tem possibilidade de trabalho e onde trabalha a mãe da sua filha, sendo sua intenção retomar o relacionamento com a mesma, contudo não foi possível à DGRSP aferir tais informações. (…)

O processo de desenvolvimento e socialização de AA para a DGRSP terá decorrido no ... junto do seu agregado de origem, composto pelos progenitores e uma irmã mais nova, num contexto familiar com uma vivência normal, em ambiente harmonioso.

Apresenta para a DGRSP alguns factores de proteção nomeadamente apoio familiar e experiência profissional, mas, em termos individuais, e da avaliação da DGRSP, denota ser um indivíduo sem capacidades para formular um juízo de censura, ou capacidade de descentração, não admitindo a prática dos crimes e manifestando um discurso essencialmente autocentrado, de vitimização e minimização dos efeitos/consequências no “outro” /alegada vítima, circunstâncias que para a DGRSP se poderão constituir como risco de reincidência de violência física para com a(s) vítima(s) deste processo ou outra(s).

Face ao exposto e em caso de condenação, a DGRSP considera que o arguido beneficiaria com a sua sujeição a um acompanhamento psicoterapêutico estruturado, que lhe permita aceder a novas capacidades de interiorização da realidade e contribua para o seu equilíbrio psicoafectivo, afigurando-se igualmente fundamental a sujeição do mesmo a programas específicos para ofensores de violência doméstica».

§ 6. Adiantando a conclusão, apesar de constarem do elenco dos factos provados, os factos que antecedem e outros idênticos, não podem ser considerados como factos provados, mas como relatos, considerações e avaliações constantes do Relatório Social elaborado pela DGRSP. Se o tribunal os considera provados, não deve dizer, v.g., «o arguido referiu à DGRSP que está no Programa de Metadona há 12 anos derivado ao seu passado de consumos de cocaína e heroína», mas simplesmente fazer constar dos factos provados «o arguido está no Programa de Metadona há 12 anos derivado ao seu passado de consumos de cocaína e heroína», acrescentando no lugar próprio a pertinente fundamentação…

§ 7. Vejamos: O relatório social veicula informação sobre a inserção familiar e sócio profissional do arguido e, eventualmente, da vítima, elaborada por serviços de reinserção social, com o objetivo de auxiliar o tribunal ou o juiz, no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos na lei. Estes factos constam de Relatório Social junto aos autos em 06.12.2021. O Relatório Social não consta no Código de Processo Penal no elenco dos meios de prova, nem dos meios de obtenção de prova o que não significa que a prova que veicula não possa ser atendida, pois não é, à partida, prova proibida. Este instrumento possibilita o apuramento de factos juridicamente relevantes (art. 124.º/1) relativos à personalidade do arguido, à inserção socioeconómica, laboral, educativa e familiar. Apesar de não autonomizado como meio de obtenção da prova no CPP, ao contrário do que ocorre no processo tutelar, (art. 71.º/1, da LTE e Anabela Rodrigues, Duarte Fonseca, Comentário da Lei Tutelar Educativa, 2003, p. 171 e art. 108.º/1 L 147/99, de 1 de setembro, Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo), que o classifica expressamente como meio de obtenção da prova, o Relatório Social é utilizado diariamente no âmbito do processo penal nos nossos tribunais e denominado como prova (ac. RE, 18.6.2013), ou como meio de prova (ac. RC, 17.10.2012, ac. RP, 22.1.2014), todos disponíveis em www.dgsi.pt, em matéria atinente à inserção e situação pessoal, familiar, escolar, laboral ou social do arguido, tendo como finalidade auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade do arguido.

§ 8. O relatório está limitado em tema de objeto de prova pois está restringido, como acabámos de ver, à matéria atinente à inserção familiar e socioprofissional do arguido, tendo como finalidade auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade daquele, não podendo ser um veículo de prova que viole as regras dos meios de prova e de obtenção de prova. Temos em vista para o que releva no caso a referência aos processos pendentes contra o arguido, quando como ressalta da história legislativa do art. 342.º CPP, essa matéria é relativamente proibida: o DL 317/95, suprimiu o primitivo n.º 2, que dispunha «em seguida, o presidente pergunta ao arguido pelos seus antecedentes criminais e por qualquer outro processo penal que contra ele nesse momento corra, lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido, se necessário, o certificado do registo criminal», passando o primitivo n.º 3 a n.º 2. A L 59/98 acrescentou às perguntas constantes do n.º 1 o «local de trabalho». A L 48/2007 repôs no n.º 1 a pergunta sobre «sobre a existência de processos pendentes», acrescento que foi retirado pela L 20/2013 (CJCPP, Tomo IV, p. 435). Note-se, porém, que atentas as suas especificidades essas regras devem ser lidas neste contexto com as devidas adaptações. Assim, a informação dada por um terceiro ao técnico de reinserção social não é, à partida, um depoimento indireto: o relatório não é um ato processual e a pessoa que transmite a informação não é uma testemunha. As conclusões/juízos de valor do relatório/informação, são livremente apreciadas pela entidade competente (art. 127.º), em regra o juiz ou tribunal, assentam em diversas fontes: declarações do arguido, informações colhidas no meio social, familiar e laboral, consulta de documentos, passagem de escalas de avaliação de risco de reincidência, etc. O relatório tem uma valoração autónoma face à prova testemunhal ou por declarações. O silêncio do arguido em audiência, não impede que o tribunal valore esses instrumentos, no tocante à inserção familiar, socioprofissional e personalidade do arguido, mesmo que levados a cabo com base, também, em declarações do arguido (ac. RL,12.07.2012, ac. RE, 2.2.2016). Imprescindível é a possibilidade de um efetivo contraditório pois só podem ser consideradas as provas veiculadas que puderem ter sido contraditas em audiência. Não existindo disposição legal em contrário, não constituindo prova tarifada (ac. STJ, 5.06.1997) a prova veiculada pelo relatório é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção pela entidade competente (art. 127.º, CJCPP, Tomo I, p. 56 e ss), em regra o juiz ou tribunal.

§ 9. Os factos provados com origem no Relatório devem ser elencados de modo claro e inequívoco. Mas só os factos relevantes. E os factos relevantes que transitam do relatório para os factos provados não podem ser subtraídos ao contraditório, os sujeitos processuais devem poder, caso pretendam, exercer o contraditório, incumbindo ao tribunal a garantia da sua efetivação, (art. 323.º/f e 327.º/2). Não devem ser levados aos factos provados trechos do relatório, mas os concretos factos (ac. RC 5.2.2016). Consignar nos factos provados que “do relatório social consta”, seguindo-se uma transcrição, ou, como no caso, que o arguido referiu à DGRSP que está no Programa de Metadona; da avaliação da DGRSP…; o arguido não assume os seus comportamentos…; no decurso da entrevista com a DGRSP, AA referiu que nunca agrediu a ofendida….; nega à DGRSP…; em termos futuros, referiu à DGRSP….; apresenta para a DGRSP alguns factores de proteção ; da avaliação da DGRSP, denota ser um indivíduo sem capacidades para formular um juízo de censura; e finalmente em caso de condenação, a DGRSP considera que o arguido beneficiaria com a sua sujeição a um acompanhamento psicoterapêutico estruturado, etc., não tem valor probatório como facto provado, apenas se prova que no relatório consta essa afirmação…. Sabemos o que disse à DGRSP, não sabemos o que considerou o tribunal provado, pelo que, este elenco não representa a enumeração dos factos provados exigida para a sentença (art. 374.º/2).

§ 10. Essa desconformidade nem sempre representará nulidade (arts. 374.º/2 e 379.º/1/a), nomeadamente quando da motivação se apreende que o tribunal considerou como provados todos os factos constantes do relatório social que transcreveu (ac. RE,18.06.2013 e desenvolvidamente, CJCPP, Tomo I, p. 65). Não é o caso dos autos, o que temos é uma reprodução de partes do relatório social, que o tribunal reputa relevantes, sem que se descortine qual a posição que sobre os mesmos o tribunal tomou, em concreto, se os considera ou não provados (ac. RE, 2.11.2018), pelo importa que o tribunal sane o vício.

Decisão:

Anula-se o acórdão recorrido devendo ser proferida nova decisão que sane os vícios elencados.

Supremo Tribunal de Justiça, 8.09.2022.

António Gama (Relator)

João Guerra.

Orlando Gonçalves