Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
921/19.7JAPRT.P1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: RECURSO PENAL
INCÊNDIO
HOMICÍDIO
AUTORIA MEDIATA
INSTIGAÇÃO
AUTORIA MORAL
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O acórdão recorrido enquadra a ação dos agentes, conhecido e desconhecidos, referindo o recorrente como “autor moral”.

II. Os indivíduos que vinham acusados da execução dos crimes de incêndio foram absolvidos, em 1.ª instância, com confirmação em recurso.

III. Os crimes de incêndio e homicídio foram praticados sob a forma consumada, nuns casos, e tentada, noutros, ao invés da situação retratada no AFJ n.º 11/2009, de 21 de julho, em que nenhum ato de execução foi praticado.

IV. O propósito, no caso, é o de confirmar se o arguido pode ser autor (mediato ou instigador), categorias herdeiras do autor moral e que esgotam esse espaço.

V. Mostrando-se definidos, na matéria de facto fixada, o domínio pelo autor da decisão dos executores de realizar o facto (por ajuste remunerado aceite e levado a cabo, ou por outra via não apurada) – aquele concreto facto ilícito típico-, o conteúdo da decisão e a prática dos correspondentes atos de execução;

VI. Assente que o facto ou atos de execução do mesmo foram realizados por indivíduos, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar dadas como provadas;

VII. Enquadrada que se mostra a decisão de praticar o crime e o domínio desta pelo instigador (ou autor mediato) numa sequência, em crescendo, de factos ilícitos orientados, todos eles, para o mesmo fim, no exclusivo proveito do autor identificado,

VIII. Impõe-se a conclusão de que a prática dos crimes de incêndio e homicídio é imputável ao arguido recorrente, como faz o acórdão recorrido, sob a forma de autoria.

IX. A não exata identificação dos executores, não obsta à individualização da responsabilidade penal do autor recorrente, em tese e, especialmente, face aos factos provados.

X. É certo que os executores dos factos existiram; que agiram sob o domínio da decisão do autor, gerando os pontos de início do incêndio junto à porta de acesso ao 3.º piso, bloqueando assim o único ponto de fuga possível para os únicos residentes do prédio e realizando, deste modo, o fim que, apenas ao arguido aproveitava;

XI. Numa linha do tempo que se inicia com as visitas e atos de coação sobre os residentes, prossegue com o primeiro incêndio, falhado no propósito final, e termina no 2.º incêndio, a par da formalização do negócio;

XII. Tendo praticado todos os indispensáveis atos de execução dos crimes em causa, determinados, dolosamente, pelo autor identificado.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório


1. Os arguidos, AA e BB, não se conformando com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ..., ... Secção, em 12 de janeiro, de 2022, vieram interpor recurso.


2. Convidados a formularam conclusões, apresentaram peça que, ao arrepio do previsto no art. 412.º do CPP, não resume as razões do pedido, consistindo, no essencial, na reprodução articulada da motivação.

Por se entender que é possível, ao menos parcialmente, deduzir as indicações previstas no n.º 2 do artigo 412º do CPP, conhece-se do recurso.


3. No requerimento de interposição de recurso, vieram os arguidos requerer a realização de audiência, nos termos do artigo 411.º, n.º 5, do CPP “especificando os Recorrentes desde já os pontos da motivação do recurso que pretendem ver debatidos, nos termos do n.º 5 do art.º 411.º, do C.P.Penal:

- Ponto I;”

A motivação vem repartida por vários títulos, o primeiro dos quais (pensamos que o requerente se referirá a este ponto…) se denomina:

“I. – Os factos provados com interesse para a decisão a proferir, são os seguintes”

Este título inclui, exclusivamente, a transcrição de 25 dos factos dados como provados pelo acórdão recorrido.

Não se verificou, sequer, um esforço de indicação de pontos, questões, matérias que caibam no âmbito dos poderes de cognição do tribunal, copiando-se, tão só, excertos da matéria de facto.

Dada a sua natureza excecional em resultado da inversão da anterior regra da oralidade que conduziu à instituição do regime-regra de julgamento em conferência, no sentido de evitar a realização de “atos processuais supérfluos” (cfr. Proposta de Lei 109/X/2, DAR II-A. 23.12.2006), prevê agora o n.º 5 do artigo 411.º que o recorrente requeira a realização da audiência, mas sujeitando-o ao ónus de especificação dos pontos que pretende ver debatidos [Pereira Madeira, comentário ao artigo 411.º, Código de Processo Penal comentado, Henriques Gaspar et alii, 3.ª ed., Almedina, 2021, p. 1306/1307, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2009, p. 1118, acórdãos deste tribunal e secção, de 1.7.2020, proc. 301/19.4T8LSB.L1.S1 (Nuno Gonçalves), e de 15.12.2021, no proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1 (Lopes da Mota) e acórdão do Tribunal Constitucional 63/2011, de 24.3] .

Afirmou-se no ora referido acórdão do TC:

“Com efeito, tal medida tanto permite ao julgador (e aos recorridos, …) preparar(em) as questões a discutir em audiência de julgamento — (…) —, como, simultaneamente, implica um esforço adicional dos recorrentes na compressão e síntese dos pontos da motivação a discutir, oralmente, em audiência.

(…) Nos recursos limitados à contestação da matéria de direito, observando o recorrente os requisitos enunciados – se não cumprir o recurso deve rejeitar-se, ou ser convidado a suprir deficiência das conclusões -, a audiência não pode ter outro alcance que não seja o de permitir repetir, oralmente, perante o tribunal, os argumentos esgrimidos nos respetivos articulados recursórios, já necessariamente resumidos nas conclusões. Ou seja, mais não se lhe permite que reafirmar oralmente as alegações escritas, necessariamente circunscritas a pontos específicos da motivação e correspondente conclusão, sem direito a réplica. Não é admissível o alargamento dos fundamentos do recurso, nem a invocação de novos motivos e diferentes argumentos. Nestas circunstâncias, a palavra “debater” é – não será excessivo dize-lo -, um eufemismo. “Repetir” em alegações orais o argumentário da motivação, sintetizado nas conclusões do recurso, é o verbo que etimologicamente retrata com adequação o que resta para a teleologia dessa diligência, Sobretudo agora que já não se lhe atribui a finalidade de publicar a decisão.”


O recurso foi, bem, interposto “nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 432.º, conjugado com as alíneas f) e e), estas do n.º 1 do art.º 400.º, ambas do C.P.Penal”.

Sendo, assim, o poder de cognição deste tribunal limitado, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), os pontos levados a debate não podem consistir em factos dados como provados pelo acórdão recorrido, porque estes estão subtraídos ao seu poder de reexame e decisão, mostrando-se fixados.

A “especificação” operada é, pela forma e atentos o conteúdo da mesma e o fim do presente recurso, uma espécie de enunciação de questões impossíveis.

Acresce que, sendo o recurso limitado pelas conclusões da motivação, se mostra realizada a faculdade de contraditório, neste STJ, nos termos do artigo 416.º do CPP, tendo o Ministério Público aposto o Visto.

Determinou-se, em exame preliminar, que o recurso prosseguisse para julgamento em conferência, nos termos do disposto no artigo 419.º, n.º 3, al. c), do CPP, por o requerimento de realização da audiência não satisfazer a exigência de especificação imposta pelo n.º 5 do artigo 411.º do CPP, estar realizado o contraditório no recurso e por respeito ao princípio de limitação de atos aos preordenados à realização da finalidade do processo (artigo 130.º do CPC ex vi artigo 4.º do CPP).


Assim, não devendo realizar-se audiência, colhidos os vistos, o recurso seguiu para julgamento em conferência.


4. Os arguidos foram condenados nos seguintes termos:

a) AA,

- pela prática em co-autoria material, de um crime de coação na forma tentada, p.p. pelo art.ºs 22, 23, 154, n.°s 1 e 2, do C.P., na pena de 9 meses de prisão;

- pela prática de um crime de incêndio na forma tentada, p.p. pelo art.º 22, 23, 272, no 1, ala a), na pena de 1 ano de prisão;

- pela prática de um crime de incêndio consumado, p.p. pelo art.ºs 272, n°.º 1, ala a), do C.P. na pena de 7 anos de prisão,

- pela prática de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelo art.º 131, 132, n° 1 e 2, al.s e) e h) do CP, na pena de 20 anos de prisão;

- pela prática de cada um dos três crimes (referentes às pessoas que habitavam o imóvel n° ... da Rua ...) de homicídio qualificado, na forma tentada (a título de dolo necessário), p.p. pelo art.ºs 131, 132, n.ºs 1, e n.ºs 2, ala e) e h), do CP, na pena de (nove) 9(x3) anos de prisão;

- pela prática, de cada um dos dois crimes (referentes às pessoas que habitavam o imóvel n° ... da Rua ...) de homicídio qualificado, na forma tentada (a título de dolo eventual), p.p. pelo art°s 131, 132, n°s 1, e n°s 2, ala e) e h), do CP, na pena de (sete) 7(x2) anos de prisão,

- pela prática, em co-autoria material, de um crime de branqueamento de capitais, p.p. pelo art.º 368-A, n.ºs 1 e 2, do CP, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

Em cúmulo jurídico, na pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.

b) BB, pela prática, em co-autoria material, de um crime de branqueamento de capitais, p.p. pelo art.º 368-A, n.ºs 1e 2, do CP, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, cuja execução foi suspensa pelo mesmo período de tempo.

5. Da motivação de recurso, procede-se à transcrição das conclusões, no que não consista em repetição do texto do acórdão recorrido:

(…)

“I. Os factos provados no Acordão Recorrido com interesse paraa decisão a proferir, são os seguintes: 34; 35; 36; 38; 39; 40; 39 (repetido); 40 (repetido); 46; 70; 73; 74; 75; 76; 77; 78; 79; 81; 82; 83; 83.A; 84; 85; 85-A; 85-B; 86; 86-A; 86-B; 86-C e 262

(…)

22. No entanto, o processo não possui, porque a PJ não o instruiu, de qualquer padrão de utilização do telemóvel do Recorrente AA, para então poder concluir da existência ou verificação de alteração de regime.

23. Ao início da tarde do dia 02 de Março de 2019, depois de ter sido informado que deflagrava um incêndio no prédio, o Recorrente AA deslocou-se ao local, tendo sido solicitada a sua presença no local para as 09h00de segunda-feira, dia 04de Março de 2019, frisando que a PJ também estaria presente.

24. Nesse dia 04 de Março de 2019 o Recorrente AA deslocou-se novamente ao local, e apresentou-se aos dois Inspectores da PJ que ali chegaram, tendo-o então identificado, com recolha do seu número de telemóvel, conforme fls. 148, do 1.º Volume.

25. Da Inspecção Judicial ao local, o Inspector CC registou a seguinte informação:“observaram-semarcas decarbonização nas estruturasdemadeira localizadas no espaço envolvente da porta de acesso ao 3.º andar, observando-se carbonização profunda ao nível da base do pilar do corrimão contíguo à aludida porta. No lambrim da parede confinante com a porta em análise, observaram-se marcas de carbonização consentâneas com vectores de incidência térmica de sentido ascendente. Na parede localizada em frente à porta em análise, verificou-se que o lambrim apresentava menor dano na face exterior, apresentando-se com vestígios de carbonização na face interior, sendo efectuada recolha de fragmento deste lambrim para posterior análise por suspeita de infiltração de produto acelerante, sendo identificado como vestígio 1.”, conforme último parágrafo de fls. 149 e 1.º parágrafo de fls. 150.

26. Especificou ainda aquele Senhor Inspector, no 2.º parágrafo de fls. 150, a seguinte: Nota: As marcas de carbonização observadas e expostas no parágrafo anterior, apresentam-seconsentâneas com autilização deproduto acelerantelíquido aplicado sobre a porta de acesso ao 3.º andar, o qual se infiltrou nos espaços da madeira junto da base da porta em questão, explicando-se a dicotomia do lambrim junto da porta, com carbonização acentuada, e mesmo lambrim localizado em frente a esta, a cerca de 1,5 mts, com menor dano, …”.

27. Seguida da seguinte:Nota: Nos degraus da escadaria que ligam os dois pontos referidos anteriormente foram observadas marcas de carbonização indicadoras de escorrência de produto acelerante líquido.”.

28. O Senhor Inspector CC retirou as seguintes “Conclusões Preliminares: “Atendendo à informação recolhida, aos vestígios observados e aos locais identificados como sendo aqueles em que se verificou o início do fogo, somos levados a afirmar que a fonte térmica que originou a combustão foi transportada deliberadamente para ali, sendo decorrente da utilização de produto acelerante da combustão aplicada ao acesso à habitação que constituiu o 3.º andar.”, conforme fls. 151 do 1.º Volume.

29. As fotografias que, no entender do Senhor Inspector CC, dizem respeito ao 1.º ponto de início do incêndio são as numeradas como: 31; 32; 33; 34; 35; 36; 37; 38; 39; 40; 41; 42; 43; 44; 45; 46; 47; 48; 49; 50 e 51, de fls. 168 a 179, do 1.º Volume.

30. O exame pericial realizado peloLaboratório de Polícia Científica da PJ aos vestígios recolhidos com vista a “Determinar a presença e eventual identificação de substâncias inflamáveis”, conforme Quesito de fls. 589, obteve como Conclusão: Nas análises efectuada às amostras na alínea 1 a 4 não se detectou a presença de produto inflamáveis.”, conforme fls. 590., do 2.º Volume.

Ou seja, o Exame Pericial não confirmou a conclusões preliminares do Inspector CC.

(…)

32. Não obstante esta afirmação, as Instâncias não podiam dar como assente que o incêndio se deveu à utilização de produto acelerante de combustão, porque da prova científica não se retira esse facto.

33. Da Preservação e Integridade do local do incêndio, pode-se ler no Relatório de 09 de Abril de 2019, elaborado pela Protecção Civil do Porto, conforme fls. 2008, do 7.º Volume, que havia ordenado a limpeza e a remoção de todos os escombros, lixo e entulhos, e as fotografias de fls. 2008 verso, recolhidas no dia 13 de Março de 2019, as escadas de acesso à habitação do 3.º piso já não se encontram no local, e a fls. 2009 verso, em fotografia de dia 18 desse mês, aquela zona está complemente limpa.

34. No ponto 2.12 desse relatório, de fls. 2009, faz-se constar que em visita ao local, a PJ não autorizou o proprietário aceder ao local, e a fls. 506 e 507, do 2.º Volume, encontra-se um e-mail enviado a 10 de Abril de 2010 pelo Inspector-Chefe da PJ, DD, ao Departamento Municipal de Protecção Civil, na pessoa do Senhor EE, aquele informou que:

“… foi este espaço vedado para sujeição a exame Inspecção Judiciária.

Uma vez que ainda se aguardam resultados de perícias forenses solicitadas ao LPC desta Polícia Judiciária, importa que o espaço se mantenha reservado, na eventualidade de se tornar necessário proceder a novos exames.”.

35. No entanto, aquando da entrega das chaves do prédio ao Recorrente AA, no dia 06 de Maio de 2019, as fotografais recolhidas pela PJ nesse dia, e juntas a fls. 620, 621, 622, 623 e 624, revelam, uma vez mais, a adulteração do local onde a própria PJ afirma ter tido início o incendio, pois a escada de acesso à habitação do 3.º andar já desapareceu basta confrontar com a fotografia de fls. 162, 164, 166, 168, 170, 171, 176, 177, 178, 180, 181, 182, 183, 184 e 185.

36. Se a PJ entendia da importância de preservar o local, até porque ainda não tinha o resultado do exame do LPC, e poderia ser necessário lá voltar para proceder a novos exames, como é possível que o “local do crime” tenha sido logo “limpo” entre os dias 04 e 13 de Março de 2019, isto é, cerca de 10 dias após o incêndio?

37. O Acordão recolhido não atentou devidamente à prova dos autos, nomeadamente às fotografias a que supra se fez referência.

38. Das Tentativas de contacto com a inquilina e família, o Recorrente AA, depois do incêndio, desconhecia o paradeiro da Inquilina FF e dos seus filhos, e só depois deste ter recepcionado a carta que aquela lhe remeteu, fls. 426 verso, é que conseguiu contactá-la, enviando-lhe a missiva junta a fls. 426, tendo expressamente lamentando a perda do seu filho, e solidarizando-se com toda a família na dor e no sofrimento, e manifestou inteira disponibilidade para auxiliar naquilo que necessitassem, e que fosse possível concretizar, mas que veio devolvida, conforme fls. 873, do 3.º Volume., tendo então remetido nova carta, fls. 872, do 3.º Volume., não tendo obtido resposta, conforme fls. 875.

39. O Recorrente AA foi constituído arguido pela PJ no 1.º interrogatório não judicial, no dia 11 de Abril de 2019, tendo então respondido a todas as questões, e facultou de imediato o telemóvel para análise de todo o seu conteúdo, conforme “Termo de Consentimento” de fls. 496, do 2.º Volume.

40. Da busca realizada ao domicílio do Recorrente AA no dia 27 de Junho de 2019, A PJ apreendeu ao Recorrente AA 5 telemóveis e 2 computadores, significa isto que ficou na posse de toda a informação que aquele pudesse ter naqueles objectos.

Do Direito:

Da Autoria Moral dos Crimes (Incêndios e Homicídios):

41. O Recorrente AA vinha acusado como autor moral, ou mediato, daqueles crimes, e os arguidos GG e HH vinham acusados como autores materiais, ou imediatos, sendo que a Acusação Pública discriminava o grau de participação de cada um dos arguidos, e as circunstâncias de tempo, modo, e lugar, desde a idealização, passando pela preparação, até à execução do crime, que consistia em atear fogo ao prédio urbano, sito no n.º ..., da Rua ....

42. De acordo com a Acusação Pública, os actos criminosos imputados ao Recorrente AA resultavam de ter sido ele quem previamente idealizou o facto de atear fogo ao prédio urbano objecto dos presentes autos, tendo posteriormente determinado a sua execução, por intermédio dos arguidos GG e HH.

43. No entanto, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento os facto que fundamentavam a existência dum acordo entre o Recorrente AA e os arguidos GG e HH, no sentido de estes terem posteriormente agido segundo as orientações e indicações daquele na resolução criminosa imputada a todos, não foram dados como provados, desfazendo-se assim a imputada ligação entre aquele, como autor moral ou mediato, e estes dois, como autores materiais ou imediatos.

44. Matéria que o Acordão Recorrido manteve inalterada.

45. Também não se provaram outros factos com relevância para a Decisão a proferir pelo Supremo Tribunal de Justiça, conforme enumerados nas Motivações do presente Recurso, e que aqui se consignam os mais relevantes:

- A denúncia de contrato de arrendamento, de acordo com a lei, só poderia ocorrer mediante acordo das partes, consistindo isso num entrave.

Ao abrigo do art.º 4.º, art.º 6.º, art.º 8.º e art.º 25, do Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados - DL n.º 157/2006, 08/08, na redacção da Lei n.º 43/2017, 14/06, alterada pela Lei n.º 13/2019, 12/02 (em vigor desde 12/03/2019), conjugado com o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação - DL n.º 555/99, 16/12, redacção DL. n.º 121/2018: art.º 2.º, c), referentes a obras de reconstrução, e por aplicação do art.º 1101.º, alínea b), do C.Civil.

- A partir de 2018, com o propósito de obrigar a inquilina e os seus filhos a abandonarem o prédio, o Recorrente AA e o arguido II fizeram à inquilina e seus filhos ameaças e pressões constantes.

- O Recorrente AA se encontrou com os arguidos GG e HH no dia 03 de Fevereiro de 2019 no restaurante Cl..., na zona do ..., no ..., para delinearem o plano de desocupação do imóvel.

Ou seja, apenas se provou que se encontraram.

- Nas conversações que, durante este período, mantinham entre si, os arguidos usaram de muitas cautelas, privilegiando os contactos pessoais, mas acima de tudo a troca de informação, com recurso à aplicação “WhatsApp” ou o “Messenger” da rede social “Facebook” (aliás, efetuada uma leitura ao equipamento telefónico, pertencente ao arguido AA, verificou-se que as conversações havidas com recurso à aplicação “WhatsApp”, nomeadamente com o arguido II foram todas apagadas, apenas aparecendo novamente conversas a partir do dia 5 de Março, ou seja, 3 dias após o segundo incêndio).”

- Que o Recorrente AA apagou as conversações que manteve com o arguido II, com recurso à aplicação WhatsApp, durante esse período.

- Que o arguido AA não efetuou ou recebeu qualquer comunicação entreas 18h50 do dia 01/03 até às 08h25 do dia 02/03.

46. Com a absolvição daqueles dois arguidos, GG e JJ, deixou de existir a autoria material do crime.

47. Ora, tendo os autores materiais sido absolvidos do crime de incêndio na forma tentada e consumada, e consequentemente do crime de homicídio qualificado e dos crimes de homicídio qualificados na forma tentada, em que é que as Instâncias – 1.ª e Tribunal da Relação ..., se basearam para fundamentar a imputação daqueles mesmos factos ao aqui Recorrente AA, como autor moral?

48. O Acordão Recorrido não fundamenta, nem dá qualquer explicação, em que termos é que da conduta do Recorrente AA, ou através dela, ele tenha dado causa à prática daqueles ilícitos, por intermédio de quem, ou quem ele tenha determinado à sua prática, não fazendo, por isso, uma correcta subsunção dos factos ao direito, não se debruçando obre a qualificação da autoria moral ou mediata que imputa ao Recorrente, conforme exige o art.º 26.º do C.Penal.

49. O Acordão Recorrido não classifica nenhum dos elementos constitutivos da autoria moral: nem por intermédio nem por instigação, nem o duplo evento essencial à incriminação, determinação de vontade criminosa do autor material e através desta, realizar o atear fogos ao edifício, pelo executor.

Atente-se no seguinte:

50. O Ministério Público da 1.ª Instância, consciente desta incongruência jurídica, aquando do Recurso do Acordão da 1.ª Instância, insurgindo-se pela absolvição dos arguidos GG e HH, como autores materiais ou imediatos do crime de incêndio, na suas Conclusões 70.; 71.; 72.; e 73., sustentou que só estes dois arguidos poderiam ter ateado duas vezes fogo ao prédio urbano.

51. Aos olhos do Ministério Público, como órgão titular do inquérito, e tendo produzido a acusação dos autos, e tendo tido acesso ao conteúdo de todos os telemóveis do Recorrente AA, e aparelhos electrónicos, escutado as conversas, as mensagens, acedido às contas bancárias, e controlando os  seus hábitos mesmo os de diversão nocturna, foi peremptório ao concluir que aquele “não convivia com ninguém com perfil para este efeito”; Quem mais poderia ter ateado fogo e por duas vezes a não ser estes dois operacionais/arguidos, HH e GG! (sublinhado no próprio texto); Torna-se inexplicável nem pode ser entendido porque não  faz sentido, que o mandante arguido AA tivesse mandado praticar factos de tão grande gravidade e funestas consequências a outros indivíduos, que não estes, a quem incumbiu de despejo dos inquilinos pela força.

52. Isto é bem demonstrativo da impossibilidade corporizada da autoria moral na pessoa do Recorrente AA, pois é impossível admitir um facto concreto indeterminado, isto é, de ninguém.

53. Não há autor moral sem autor material.

54. Atente-se que o Acordão Recorrido tem consciência que a Decisão que proferiu retira a imputação dos factos ao seu executante, conforme pág. 392: A maior dúvida, á qual já nos referimos, está nas pessoas não identificadas que agiram sob as suas ordens e orientações Essa sim, é a grande dúvida pelos motivos acima expostos.”.

55. Mais: a pág. 395, o Acordão diz o seguinte: “Efectivamente, não sabemos a quem o arguido AA deu instruções para atear o fogo. Certamente alguém fez este serviço, num quadro de possibilidades vasto que nos suscitam dúvidas.”.

56. Então se o Acordão Recorrido reconhece ter dúvida sobre se o Recorrente terá encomendado o serviço a alguém, pois caso contrário não diria: “Certamente alguém fez esse serviço”.

57. Então se o Tribunal da Relação nem sabe se o serviço de atear o fogo ao prédio foi feito por alguém, admitindo, na sua dúvida, que possa até nem existir aquilo que considerou provado: pessoas não identificadas, a mando do Recorrente AA, atearam, por duas vezes, fogo ao prédio.

58. O raciocínio despendido no Acordão Recorrido não é só o de não saber quem foram os autores materiais do crime, por falta de identificação, mas também se existem os executores desse mesmo crime.

59. Perante esta dúvida, que resulta do próprio texto do Acordão Recorrido, o Tribunal da Relação jamais poderia ter ficado convicto da intervenção do Recorrente AA como autor moral ou mediato do crime de incêndio, em flagrante violação do princípio do In Dubio Pro Reo, sendo que a dúvida sobre a existência de um facto, tem, necessariamente, que reverter a favor do arguido, e aqui Recorrente.

60. O art.º 26.º do C.Penal, define a autoria do crime: “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa á prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.”

61. De acordo com a primeira parte deste art.º 26.º, o agente ou causador do facto, pode dominar o facto na medida em que é ele próprio quem procede à sua realização típica – tem o domínio da acção e que caracteriza a autoria imediata.

62. A segunda parte daquele preceito prevê que o causador do facto possa actuar por intermédio de outrem, ou seja, idealiza o facto ilícito, mas não participa na sua execução, actuando aquele como autor moral ou mediato, e o executante como autor material ou imediato, e quando assim é aquele (autor moral) tem, em regra, o domínio do facto.

63. Mas o autor moral ou mediato, pode instigar outrem à prática do facto, conforme refere a quarta parte desse art.º 26.º, do C.Penal, mas aqui, aquele, em regra, já não detém o domínio do executante, logo, não controla a execução do ilícito.

64. Ora, o Acordão Recorrido, como a 1.ª Instância, não explicam, com recurso aos factos assentes, que tipo de classificação atribuíram à autoria moral do Recorrente AA.

E não o fazem, porque não há a identificação do autor material ou imediato.

65. Quanto à imputação da autoria material ou imediata aos arguido GG e HH, o Acordão Recorrido, decidiu, a pág. 328, da seguinte forma: “Não temos prova consistente que nos autos permita afirmar quem são os autores materiais deste primeiro incêndio. Não podemos aderir a qualquer processo de intenções e saltos no escuro podem terminar no abismo.”.

66. Mas surpreendentemente, ainda nessa mesma pág., o Acordão Recorrido consignou o seguinte: “A autoria moral dos incêndios nunca esteve em causa e iremos justifica-la oportunamente”.

67. Que dizer? Relativamente à dúvida sobre a autoria material ou imediata o Acordão Recorrido recusa aderir a “qualquer processo de intenções e saltos no escuro”, mas sobre a autoria moral ou mediata, já admite a adesão a um processo de intenções e saltos no escuro que podem terminar no abismo. Para além de ilegal, esta apreciação dos factos é extremamente perigosa.

68.Dos factos assentes não resulta nenhuma imputação objectiva do Recorrente AA ter ordenado a prática dos factos conducentes ao incêndio do prédio.

70. Os fundamentos do texto da Decisão Recorrida para poder aferir da prova considerada assente pelo Tribunal ..., e assim imputar a autoria moral ou mediata ao Recorrente AA estão de pág. 385 a 407.

Pág. 388, na explicação dos factos indicados em 37,

71. O único facto que o Tribunal da Relação ... alterou, passando a dar como Não Provado, entendeu que “de relevância praticamente nula”.

O Recorrente AA entregou voluntariamente o seu telemóvel à PJ aquando do seu 1.º interrogatório não judicial, realizado a 11 de Abril de 2019, e que da análise do seu conteúdo, e bem assim dos outros telemóveis (4) e dos 2 computadores que lhe foram apreendidos na busca domiciliária a 27 de junho de 2019, não se tenha obtido nada com relevância para os presentes autos, nem sequer mensagens ou conversações apagadas.

72. Se as mensagens trocadas entre o II e o Recorrente AA foram por aquele apagada no eu telemóvel, essas mesmas mensagens mantiveram-se intactas no telemóvel do Recorrente. E depois de analisadas nada de relevante foi encontrado com interesse para os autos.

Pág. 389, na explicação dos factos indicados em 38,

73. O Acordão Recorrido concluir que da permanência do Recorrente: “A permanência do arguido no Ta... até às 5/5,30 h é pouco significativa. Apenas procuramos descortinar a marcha dos arguidos nesta data. AA não é um autor material mas precisava de controlar os acontecimentos.”, não faz sentido nem tem o mais pequeno apoio na prova produzida em Tribunal, nem conta da matéria dada como assente, pois não o mais pequeno registo de o Recorrente ter controlado nada.

Pág. 390 a 392, na explicação dos factos indicados em 34, 35 e 40.

74. O Acordão Recorrido reconhece: “sabemos bem que não foi o autor material”. E a justificação é a seguinte: “Obviamente o arguido AA não deixaria pistas claras sobre o seu envolvimento directo”.

75. Então mas se não há pistas, como é que o Acordão Recorrido entende haver evidência de factos que consignem o Recorrente como autor moral ou mediato dos crime?

É pura especulação. A PJ rastreou toda a vida do Recorrente e não recolheu nada.

76. O Acordão Recorrido faz extrapolações acerca dos interesses do Recorrente na desocupação do prédio, mas o interesse na desocupação, por si só, não é motivo.

77. O promitente-comprador – KK, ouvido na Sessão de 30/10/2020, equacionou não comprar o prédio pelo facto de o mesmo ter sido alvo de um incêndio, e só depois de se certificar junto do seu empreiteiro e do Arquitecto, mediante conselho técnico, que a estrutura do prédio não estava danificada, aceitou prosseguir com o negócio.

78. E em audiência aquele KK reconheceu que solicitou ao Recorrente dois adiamentos para a celebração da escritura, tendo o segundo estabelecido que aquela se efectuava até ao dia 29 de Agosto de 2019, e para o caso de não ser realizado as partes desistiam do negócio com entrega do sinal recebido pelo Recorrente, no valor de € 160.000,00 em singelo.

79. O KK afirmou em Tribunal que tentou empurrar com a barriga para a frente a celebração da escritura, negando ter sido alguma vez pressionado pelo Recorrente para a realização daquele acto.

80. É evidente que o incêndio desvalorizou o prédio, e podia ter colocado em risco a celebração da própria compra e venda, pois caso este ruísse, deixava de haver objecto do negócio, não se diga porquanto, como refere o Acordão Recorrido.

Com a acção do incêndio o prédio correu risco sério de colapsar, e desmoronar-se todo, tendo a própria Protecção Civil alertado para a existência dessa perigo para o prédio propriedade da “Gavieiras, S.A.”

81. Então o Recorrente ia correr o risco de, com a desocupação do locado pelo atear de um incêndio desmoronar o prédio?, o que acarretaria um prejuízo muito maior do que ter de devolver o sinal em dobro, veja-se que a Assistente “Gavieiras, S.A.” viu ser-lhe atribuído uma indemnização de € 700.000,00 para reconstruir o seu prédio, e no mais que for necessário a essa reconstrução.

82. O Acordão Recorrido não percebeu a segurança para o proprietário de um prédio urbano possuir um seguro contra incêndios, porque caso estes se verifiquem a devastação por ser de tal ordem que os prejuízos daí de correntes podem ser elevadíssimos, colocando em causa a manutenção da própria propriedade, porquanto o proprietário pode não possuir bens para fazer face aos prejuízos causados, podendo passar a ter dois prejuízos: o prédio, e a satisfação dos prejuízos sofridos por terceiros.

83. E a dualidade de critérios subjectivos no Acordão Recorrido prossegue com o facto de ter estranhado o Recorrente não ter feito chamadas telefónicas no dia 02 de Março de 2019, mas já não achou estranho que no dia 24 de Fevereiro e nesse mesmo dia 02 de Março o arguido GG também não tivesse feito chamadas com o seu telemóvel.

84. Por diversas vezes o Acordão Recorrido apelida o Recorrente AA de “arguido ...”.

85. Perante a falta de fundamento e de fundamentação do Acordão e da má aplicação do direito aos factos, importante é: Saber se é dogmaticamente possível uma punição a título de autoria moral sem se determinar concretamente qual o autor ou autores materiais da infracção.

86. Como ensina, o Professor Eduardo Correia, in “Direito Criminal”, Almedina, reimpressão de 1993, Título I – A Acção, pag. 231: “Em todo e qualquer delito a punição tem de arrancar de uma acção externa, de um comportamento que se exteriorizou. Por isso também o ponto departida detoda a elaboração do direito criminal éa conduta, o comportamento humano, a acção em sentido lato, como juízo teleológico, como negação de valores ou interesses do homem.”.

87. Para este Professor, A autoria mediata ou moral se estrutura nos seguintes elementos: indiferença do meio utilizado; causalidade; dolo; necessidade de determinação do agente imediato e acessoriedade.

88. A causalidade é o ponto essencial para se fazer uma imputação a título de autoria moral. O que vale dizer: “é sempre necessário que o agente mediato tenha causado, pela sua intervenção junto do autor imediato, a realização do facto: e o executor está resolvido antes daquela intervenção a praticar um certo crime (omnímodo facturus), não se pode falar, relativamente a ele, em autoria mediata”, Eduardo Correia, in Direito Criminal, Coleção Studium, pag. 132.

89. A noção de causalidade, ainda que adequada, baseia-se, em toda a linha, num juízo de objectividade que passa necessariamente pela definição precisa, quer da causa, quer do meio, quer do efeito. Por isso, é de todo o modo, incongruente afirmar-se que o agente deu causa ao crime através de pessoas indeterminadas (com que meio?) em tempo incerto

90. Por outro lado, se para a autoria mediata é indiferente a imputabilidade do agente imediato ou é irrelevante a circunstância deste reunir as qualidades pessoais ou a intenção exigidas pela lei para o preenchimento do tipo legal, o que é indiscutível, também, é a necessidade de determinação do agente imediato. Nem de outra forma se poderia pensar já que ao fazê-lo estaríamos, ainda que indirectamente, a admitir uma imputação penal não baseada no princípio da individualidade, e seria destruir em elemento essencial da imputação penal, mormente a imputação a título de autoria moral.

91. Se admitimos a autoria moral relativamente a factos eventual e imediatamente praticados por pessoas indeterminadas, repare-se, então, que, ao fim e ao cabo, são estas que vão permitir a imputação e a consequente punição. O que implica que através de uma total indeterminação alguém possa ser punido, perdendo-se, deste modo, o sentido de responsabilidade individual.

92. Relativamente ao princípio da acessoriedade, a característica fundamental que o norteia podemos convictamente afirmar que “a autoria mediata postula que outrem realize uma actividade executiva. Sem esta, a conduta so autor mediato permanecerá no domínio dos actos preparatórios e como tal não é punível. Só, efectivamenbte, quando alcance eficácia causal, ou seja, quando provoque a prática do facto principal, pelo menos da forma de tentativa, é que ao actos do autor mediato passam a ter relevância causal.”, in Direito Criminal, de Eduardo Correia, Colecção Studio, pag. 135.

93. Ora, do que se expos resultam duas consequências: por um lado, a estreita conexão entre a causalidade e a acessoriedade, como é facilmente compreensível, e, por outro, a necessidade que outrem pratique os actos executivos. Formulação, aliás que teve consagração legal no art.º 26.º, do C.Penal (… ou por intermédio de outrem). O que tudo quer dizer: basta uma correcta interpretação da norma para, imediatamente, se perceber que aquele “outrem” não pode ser pessoa incerta e indeterminada, tem que haver uma concretização relativamente à pessoa ou pessoas que praticaram os actos de execução.

94. Não quer isto significar, como uma leitura mais desatenta poderia sugerir, que não é fundamental a determinação do agente que praticou o facto típico. Pensar desse jeito seria profundamente errado. Não é só os vários níveis de acessoriedade, como também a própria noção de facto típico, implicam necessariamente, a determinação rigorosa do agente imediato. Porwque, de resto, como seria possível conceber, aceitando, por exemplo, a acessoriedade rigorosa, um facto típico, ilícito punível sem um agente da infracção? Seria, por certo, qualquer coisa de juridicamente inconcebível.

95. “Antes de um facto ser típico e ilícito, e para que o possa ser, tem ele de configurar uma acção: pressuposto de todo o crime é a existência de uma acção; faltando esta ficará, de antemão, prejudicada a averiguação da existência de qualquer outro elemento constitutivo do crime”, Eduardo Correia, in Direito criminal I, Livraria Almedina, 1968, pag. 233.

96. Nesta prespectiva, e só esta é pertinente e tem relevância jurídico-penal, todo mo facto típico, toda a acção típica, só o é na justa medida em que for praticado por uma pessoa humana. E para se conhecer se um facto foi ou não realizado por uma pessoa, que se saiba, o único meio para o circunscrever aquela realidade é o de determinar concretamente, no tempo e no espaço, quem foi que o praticou. Antes disso acontecer a materialidade detectada ainda não consubstancia a categoria jurídico-penal de facto típico. Logo, também não se pode falar de autoria mediata.

97. O preenchimento do facto típico por outrem, com o sentido de pessoa certa e determinada, é condiição suficiente, mas também necessária para que a autoria mediata ganhe validade jurídico-penal, quer dizer, para que possa ser punida.

98. Porém, retornemos às perguntas simples mas essenciais: quem realizou o facto típico? Não se sabe, ou melhor, dá-se como provado que foram pessoas não identificadas. Que é coisa igual a dizer-se que não se sabe.

De sorte que também pela violação do princípio da acessoriedade pode-se firmemente asseverar que o Recorrente AA não pode ser punido a título de autoria moral pela prática de factos (materiais) que se desconhece quem realizou.

99. Acresce dizer ainda que o inquérito judicial compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e averiguar as suas responsabilidades, conforme e nos termos do n.º 1 do art.º 262.º, do C.P.Penal, sendo o objecto do processo crime definido pelos requisitos essenciais indicados na acusação, conforme n.º 1 do art.º 283.º, do C.P.Penal: “Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime, e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.”,e a alínea a)do n.º 3 desse preceito adjectivo impõe: As indicações tendentes à identificação do arguido”;

.... O processo destina-se precisamente a fixar a realidade do facto e a identificar o seu agente, que realize, que preencha o tipo legal. Esta correspondência constituiu a qualificação jurídico-criminal do facto, mas é este que forma o objecto do processo.

101. A incriminação, como conceito legal, preexiste ao facto e não é objecto de averiguação e prova, mas tão-somente de interpretação, para eventual qualificação jurídica do facto.

Admitindo, preconcebidamente, a substituição do facto e sua imputação ao agente pela incriminação, pune-se, não pelo facto incriminável mas pela incriminação, sem existência real do facto que àquela deveria corresponder.

102. A qualificação jurídica do facto só sobrevém depois de conhecido e provado o facto e seu agente; s enão for assim substituiu-se o facto punível por um conceito legal ou, o que é o mesmo, a realidade por uma fantasmagoria, criação ilusória da imaginação.

103. Não basta, contudo, formular uma conclusão intuitiva, porque evidente, importa de seguida, indicar em que consiste o facto constitutivo do atear o fogo ao prédio, e em que consiste a autoria moral desse crime quando cometido por intermédio de outrem.

104. No caso presente, com a absolvição dos dois arguidos GG e HH, deixou de existir a autoria material ou imediata do crime.

105. No entanto, o Acordão Recorrido manteve a imputação dos crimes de incêndio ao Recorrente AA conferindo a responsabilização dos actos como autor moral, no entanto, o Acordão Recorrido não qualificou os termos da autora moral, se por instigação dos factos ou como autor mediato, tal como se exige nos termos do art.º 26.º, do C.Penal.

106. Não faz o mais pequeno sentido que o Recorrente AA seja condenado como autor moral dum crime de incêndio na forma tentada, de um crime de incêndio consumado, de um crime de homicídio qualificado e de cinco crime de homicídio na forma tentada, sem que o Acordão Recorrido fundamente a sua conduta, e que através dela ele tenha dado causa à prática daqueles ilícitos, por intermédio de quem ou quem ele tenha determinado à sua prática.

107. Não existe, nem o Acordão Recorrido classifica, nenhum dos elementos constitutivos da autoria moral: nem por intermédio nem por instigação, nem o duplo evento essencial à incriminação, determinação de vontade criminosa do autor material e através desta, realizar o atear fogos ao edifício, pelo executor.

108. Não há autor moral, sem autor material; nos presentes autos não existe autor material, e é impossível admitir um facto concreto de pessoa indeterminada, isto é, de ninguém.

109. Mas a quem é que efectivamente o Recorrente AA deu instruções para, agindo sob as suas ordens e orientações, por em prática a decisão que ele havia tomado de atear fogo ao edifício sito no n.º ... na Rua ..., no ..., utilizando a chave que ele lhes tinha entregue, a fim de o desocupar o locado, destruindo-o?

Não se sabe, tendo até o Acordão Recorrido que haja dúvidas se houve autores materiais, conforme infra.

.... Por isso não tem sentido, por inexistência de nexo causal e de tipicidade, afirmar que as pessoas não identificadas que atearam fogo ao prédio actuaram e agiram sob as ordens e orientações e de acordo com as instruções dadas pelo Recorrente AA.

Mas se não se conhecem as pessoas que atearam duas vezes fogo ao prédio como dizer que actuaram sob as ordens e orientações e de acordo com as instruções do Recorrente AA.

111. O Tribunal da Relação ... não deu como provado factos como integradores da autoria moral, porquanto não há qualquer facto que prove que, de acordo com a Teoria do Domínio do Facto, que o Recorrente produziu ou criou directamente de forma cabal no executor (autor material) a decisão de praticar o concreto facto ilícito típico, conforme ensina o Professor Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Ed. 2019.

112. O Acordão Recorrido também não se debruça sobre os requisitos da autoria moral: o plano, o plano subjectivo; o plano objectivo, e condena o Recorrente AA por um crime fantasma.

113. Dizer que o Recorrente deu instruções isso é genérico, o que é preciso saber que instruções foram essas, e se orientou o plano de execução, e de que forma.

O Acordão Recorrido nem tão pouco apurou, nem sequer procurou apurar, da causalidade do acção do autor material, nem do dolo, nem sobre o conhecimento das vontades das acções concretas.

114. Ao se admitir a autoria moral a factos praticados por pessoas indeterminadas, note-se que, são estas que vão permitir a imputação e a consequente punição, o que implica que através de uma total indeterminação alguém possa ser punido, perdendo-se deste modo o sentido da responsabilidade individual.

115. A existência do autor material é condição sine quanon da existência do autor moral, pelo que não existe nenhum dos elementos constitutivos da autora moral.

Toda a acção típica só o é se for praticada por pessoa humana.

116. Aconduta do instigador é condição sine qua non para a tomada de decisão do instigado. Portanto, terá que existir o dolo, incluindo o eventual, de criar a vontade ao instigado, cujo grau de concretização deve ser suficientemente revelador do domínio do facto pelo instigador, e o dolo do instigador em que o facto se venha a praticar pelo executor, ou seja, que ele represente e queira o facto concreto.

Ou seja, tem que se verificar um duplo dolo no instigador.

117. Neste sentido, o art.º 29.º, do C.Penal, estabelece que cada comparticipante é punido segundo a sua culpa independentemente dapunição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes

118. Cogitationis poenam nemo patitur – significa que somente a conduta e não um simples pensamento pode constituir crime.

Ninguém pode ser punido pelos seus pensamentos.

O Recorrente AA foi condenado com base em cogitações.

119. O Acordão Recorrido fez uma má aplicação do direito, interpretando erradamente o art.º 26.º, do C.Penal, ao subsumir no direito a ausência de factos.

120. No sentido que se acaba de expor sobre a questão jurídica da autora, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em Acordão de 28 de Julho de 1987, Proc. n.º 38850, da 3.ª Secção, Relator: Juiz Conselheiro Almeida Simões:

“Não é possível a punição a título de autoria moral sem que esteja identificado o autor material, ainda que se trate de uma precária individualização desde que suficiente para se concluir que o autor mediato dolosamente determinou o outro à prática do facto.

121. Para o Professor Cavaleiro Ferreira, in Parecer junto ao Proc. n.º 108/85, da 2.ª Secção do então Tribunal Judicial da Póvoa do Varzim, e donde resultou o Acordão do Supremo Tribunal de Justiça a que se fez agora referência:

“A qualificação jurídica do facto sobrevem depois de conhecido e provado o facto e seu agente; se não for assim substitui-se o facto punível por um conceito legal ou, o que é o mesmo, a realidade por uma fantasmagoria, criação ilusória da imaginação.

O art.º 26.º, do C.Penal, define o instigador como aquele que determina outrem à prática, ou execução, do facto.

No caso dos autos, de acordo com os factos dados como assentes pelas Instâncias, não autor material e não execução.

Não acção sem agente. A acção de alguém “indeterminado”, ou “não identificada”, é acção de ninguém, e acção de ninguém é puro sofisma.

Não existe no processo qualquer facto de um autor material ou executor. E também não consta do processo qualquer facto de autoria moral.

A autoria moral, na forma de instigação, como definido no art.º 26.º, do C.Penal, consiste na sua objectividade, no conselho ou instigação, dirigida ao autor material, que tenha sido causa da resolução criminosa.

O facto do autor moral, como instigador, compreende a acção de aconselhar, provocar, instigar, incitar, à qual se reconduz, como seu efeito, um duplo evento: a resolução e vontade criminosa do autor material.

A instigação tem que ser directa, dirigir-se a pessoa ou pessoas determinadas.”.

122. Não facto separável do seu agente; e não execução sem executor.

Do crime de branqueamento:

123. O produto da venda do prédio urbano sito no n.º ... da Rua ..., no ..., no valor de € 1.040.000,00 pela celebração da escritura pública de compra e venda desse mesmo prédio, foi depositado na conta bancária titulada pela “A... Unipessoal, Lda.”, através de cheque bancário, conforme reconheceu a Gerente do balcão B... – LL, tendo, para esse efeito e a solicitação desta testemunha, a Recorrente BB exibido o original da escritura pública de compra e venda, como aliás decorre da lei.

124. Este facto revela que com a venda do prédionão houve qualquer intenção ou finalidade de dissimular a origem da obtenção da alegada vantagem económica, tendo a Recorrente BB feito prova cabal da proveniência do dinheiro, não estão satisfeito os requisitos do art.º 368.º-A, do C.Penal, nomeadamente o seu n.º 2, parte final: “Quem, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, …”, e o seu n.º 3: “Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, titularidadedas vantagens, ou os direitos a ela relativos.”.

125. Ao entregar a cópia da escritura pública de compra e venda, com exibição do original, no acto de depósito do cheque no valor de € 1.040.000,00, comprovando a origem da quantia pecuniária perante o banco, a Recorrente BB não dissimulou, de forma alguma, de onde é que o dinheiro provinha.

126. O mesmo se diga em relação às treze ordens de transferência realizadas pela Recorrente BB, no valorde € 50.000,00 (cinquentamil euros) cada, para que o dinheiro da conta titulada em nome da sociedade “A...,Unipessoal, Ld.ª.” passasse para a conta pessoal do Recorrente AA, efectuadas entre 06 de Setembro de 2019 e 01 de Outubro de 2019, constante do Anexo A, compreende os extractos bancários da conta pessoal do Recorrente, com o n.º ...46, e da conta titulada em nome da sociedade, esta com o n.º ...48.

127. Não há dúvida, pelos movimentos entre as contas bancária supra identificada do Recorrente AA e a sociedade comercial, restam que este concedeu a favor da sociedade, da qual era único sócio e gerente, um mútuo no valor de € 640.000,00 (seiscentos e quarenta mil euros)., para que pudesse pagar a compra do prédio n.º ... na Rua ....

128. Esse dinheiro havia-lhe sido igualmente emprestado pela sua Mãe e pelo seu Pai do Recorrente e proveniente da venda de uma propriedade localizada em ..., no ..., atente-se aos Extractos Combinados n.º 2016/010 e n.º 2016/011 da conta titulada pelo Arguido AA, mais precisamente aos créditos no montante de € 26.573,40, no dia 10/10; de € 44.255,70, no dia 12/10; de € 271.745,59, no dia 31/10; de € 67.659,00, no dia 09/11; de € 162.600,00, no dia 15/11; e de € 90.000,00, no dia 22/11, totalizando a quantia global de € 662.833,69.

129. E outro empréstimo concedido pela Mãe, MM, do Recorrente, no valor de € 271.745,59, creditado na sua conta, e proveniente de uma conta de que a mesma era titular no Banco denominado “...”, no ..., com o n.º ...48, correspondente a um movimento de $ 400.080,00 (...), efectuado no ... a 27/10/2016, conforme extracto de conta junto no decurso na Sessão de julgamento do dia 11/02/2021, e junto aos autos com a Ref.: ...65., e ainda um outro registado no Extracto Combinado n.º 2017/002, a 13/02, proveniente do mesmo banco, mas em nome do próprio, surge o ingresso de € 141.644,63.

130. Há ainda o produto da venda da casa, no valor de € 639.988,00, da residência da família no ..., sita em ... ..., ..., B..., ..., conforme escritura pública de compra e venda celebrada a 25/09/2018, e junta no decurso daquela mesma Sessão de julgamento de dia 11/02/2021,e junta sob a Ref. ...65, com indicação no Cartório Notarial ..., em ..., B..., ...,e pelo preço de $ 2.030.135,40 ..., liquidados em duas prestações de $ 1.044.000,00, e transferido mais tarde o remanescente, no valor de $ 983.664,11 ..., e que ingressaram na conta do Arguido AA a 04/03/2019, conforme Extracto Combinado n.º 2019/004, a que corresponde o valor de € 646.526,00.

131. Por seu turno, o Pai do Arguido AA, ouvido na Sessão de 06/01/2021,relatou que abriu uma conta para o filho em ..., tendo depositado nessa conta a quantia de 5.000.000 de ..., moeda ..., com vista ao negócio de compra do prédio na Rua ...

132. Mais relatou que depois de a sua nora, a aqui Arguida BB lhe ter dito que o filho tinha revendido esse mesmo prédio, perguntou-lhe se poderia falar com o filho e ver com ele se este lhe poderia devolver o dinheiro que os Pais lhe haviam emprestado.

133. A devolução do dinheiro pela Recorrente BB seria no montante de € 600.000,00, em duas transferências. Uma para a conta da sua esposa, e Mãe do Arguido AA, e outra de igual valor para a conta da Mãe da BB, porque assim o quis, e depois na ... aquela entregava-lhe o dinheiro, conforme fls. 6 e fls. 7 deste Apenso D encontram-se as Declarações emitidas pela Arguida BB, relativamente ao motivo das transferências, e que respeitavam: “Á liquidação de empréstimos provenientes da ..., através de contas de familiares, para fazer face ao investimento de aquisição do prédio urbano no ..., no âmbito da actividade comercial desenvolvida.”

134. O remanescente do dinheiro na conta titulada pela “A...,Unipessoal, Ld.ª.” destinava-se a ser reinvestido na aquisição de duas lojas em ..., para a actividade de retalho de um supermercado, corroborado nos documentos juntos aos autos na Sessão de 25 de Fevereiro de 2021, com as propostas de compra formalizadas junto da imobiliária da C..., proprietária de ambas as lojas.

135. Por último diga-se o seguinte, tendo em conta o bem jurídico tutelado, da perturbação do bom funcionamento da justiça, os presentes autos apenas revelam depósitos bancários, não se encontram satisfeitos os requisitos do crime de branqueamento, previstos no art.º 368.º-A, do C.Penal.

O Acordão Recorrido violou o disposto no art.º 10.º e art.º 26.º, e o art.º 368.º-A, do C.Penal, e bem assim o art.º 127.º, do C.Penal, como também violou o princípio do in dúbio pro reo.

É melhor correr o risco de salvar um homem culpado, do que condenar um inocente.

E pelo Douto suprimento, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a Decisão Recorrida e, consequentemente absolvidos os Recorrentes AA e BB”


6. Respondeu o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na 2.ª Instância, concluindo, em suma: (transcrição)

1 - O artigo 420º do CPP, estipula que; “1 – O recurso é rejeitado sempre que: (…);

b) Se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do nº 2 do artigo 414º; ou

c) O recorrente não apresente, complete ou esclareça as conclusões formuladas e esse vício afectar a totalidade do recurso, nos termos do nº 3 do artigo 417º.

2 - Ora nos termos do artigo 417º n.º 3 do CPP «se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nº 2 a 5 do artigo 412º o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não conhecido na parte afectada».

3 - Devem os recorrentes, nos termos das supra citadas normas legais, ser convidados a deduzirem as conclusões sob pena de rejeição dos recursos.

4 - O mero desconhecimento da identidade dos agentes detentores do domínio da ação da realização típica não é obstáculo à afirmação da autoria mediata, no sentido de que domina a vontade do executante.

5 - A existência de acordo tácito entre o autor mediato e desconhecidos na execução do facto, pode decorrer do conjunto das regras da experiência comum, como reconheceu o citado Ac. da RP de 08-07-2015 (proc. nº 15/14.1PEPRTP1, atento o princípio da livre apreciação da prova, sendo esta valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador – art. 127º do C.P.P. – tendo como pressupostos valorativos os critérios da experiência comum e da lógica do homem médio, supostos pela ordem jurídica – Maia Gonçalves, C.P.P., ant. 10ª ed., pág. 322.

6 - No que atina ao crime p. p. pelo art. 368º-A, nºs 1 e 2, do C. Penal, pelo qual foi condenada a recorrente BB, o douto Acórdão recorrido demonstra, como se compulsa de fls. 352/366, cujo teor aqui nos abstemos de transcrever, a inequívoca perfeição da mencionada realização típica, quer na vertente objetiva quer ao nível do elemento do tipo subjetivo de ilícito.

7 - Foram respeitadas as normas dos art. 10º, 26º, e 368º-A, todos do C. penal e art. 127º, do CPP.

8 - Os recursos, caso não sejam rejeitados nos termos das conclusões 1 a 3, devem ser julgados improcedentes e confirmado o douto acórdão recorrido.


7. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal apôs o Visto.

O arguido juntou acórdão deste tribunal e parecer nele emitido pelo Ministério Público, bem como pareceres subscritos por jurisconsultos, um dos quais com relação direta com o objeto do recurso.

Foi cumprido o disposto no art.º 417º n. 2 do CPP.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), visando, no caso, o reexame de matéria de direito.

Este Tribunal é, assim, chamado a apreciar e decidir as questões de saber:

- Quanto ao arguido recorrente, “a Autoria Moral dos Crimes (Incêndios e Homicídios)#, mormente, se é “possível a punição a título de autoria moral sem que esteja identificado o autor material”;

- Quanto a ambos os arguidos, se se mostram “satisfeitos os requisitos do crime de branqueamento, previstos no art.º 368.º-A, do C.Penal”;

- Se foi violado o princípio in dúbio pro reo.

Cumpre decidir.

I. Fundamentação

1. os factos:

O Acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos: (transcrição do conjunto de factos dados como provados no acórdão condenatório, com a excisão do facto dado como não provado e a adição de factos novos)

“1. Na Rua ..., na cidade ..., até 2 de Março de 2019, existiu um imóvel composto por cave, r/c, 1.º andar, 2.º andar, 3.º andar e águas furtadas.

2. Tal imóvel foi projetado no ano de 1920, localizava-se na zona histórica e de comércio do ....

3. Em 9 de Fevereiro de 2019, os pisos constituídos pelo 1.º e 2.º andares, encontravam-se devolutos há cerca de 20 anos e o r/c esteve arrendado para um estabelecimento comercial de ..., até ao início de 2017.

4. O acesso aos 1.º a 3.º andares fazia-se através de escadas de madeira, inerentes à construção secular dos prédios naquela zona da cidade.

5. Apenas o 3.º andar e as águas furtadas do prédio eram habitados há 50 anos, por FF, nascida em .../.../1931, viúva, e os seus três filhos: NN, OO e NN, por via de contrato de arrendamento de duração indeterminada, titulado pela FF como inquilina. O valor da renda mensal era de 53,28€, que era depositado mensalmente pela FF, em conta bancária existente no B....

6. Os quartos de dormir dos ofendidos NN e PP situavam-se nas águas furtadas do referido prédio.

7. A especulação imobiliária, na cidade ..., com especial relevo nos últimos anos, tem levado à procura de edifícios e habitações, fazendo com que os arrendatários sejam aliciados a abandonar as casas onde viviam há décadas para que as mesmas sejam remodeladas e reutilizadas, permitindo aos proprietários a obtenção de lucro.

8. No dia 12 de Dezembro de 2016, a arguida “A... Unipessoal, Lda.”, da qual é único sócio e gerente o arguido AA, também conhecido como “QQ”, de nacionalidade ..., adquiriu o referido prédio – sito no n.º ... da Rua ... - pelo preço de 645.000€ (seiscentos e quarenta e cinco mil euros), tendo em vista esse mesmo propósito de obtenção do maior lucro possível, com a sua desocupação e remodelação.

09. Para permitir o pagamento do preço do referido imóvel, a conta pessoal do arguido AA, com o n.º ...46, do B..., foi provisionada, em Outubro e Novembro de 2016, com quantias provenientes de contas domiciliadas no ..., por familiares do arguido, e de contas domiciliadas em ..., em nome deste.

10. Por isso, em 30 de Outubro de 2017, o arguido AA, enquanto gerente da empresa “A... Unipessoal, Lda.”, apresentou na Câmara Municipal ..., um pedido de licenciamento de Obra de Edificação “Obras de Alteração-Conservação e Reabilitação”, para o edifício em causa, com a apresentação dos projetos de arquitetura e engenharia. Com tal obra, pretendia o arguido alterar o funcionamento espacial interior do prédio, demolindo e executando novos acessos verticais, mantendo apenas as fachadas e as cotas altimétricas dos pés direitos originais com a exceção do piso das águas furtadas, com vista à alteração do seu fim, pretendendo obter concretamente, três espaços funcionais destinados a serviços e a área restante, destinada a habitação multifamiliar, num total de cinco apartamentos, distribuídos da seguinte forma: 2 apartamentos no 1º piso, 2 apartamentos no 2º piso e 1 apartamento ocupando o 3º piso e andar recuado.

11. Tais obras iriam implicar a demolição geral da cobertura de estrutura de madeiramento, a demolição geral das divisórias interiores em tabique, dos compartimentos, a demolição geral dos tetos interiores em gesso estucado, o desmonte geral dos pavimentos e revestimentos interiores, a demolição de elementos construídos, da varanda do 3º piso, divisórias interiores, com escavação/rebaixamento de cotas dos pavimentos, e outras.

12. Após a entrega de diversa documentação, correção de dados técnicos, entrega de projetos e outros requerimentos, em 8 de Novembro de 2018, o projeto de arquitetura foi aprovado, passando a existir um prazo de, pelo menos, seis meses, para a apresentação dos projetos de especialidade.

13. A partir de 12 de Dezembro de 2016, o arguido AA ficou na posse da chave da porta de acesso ao interior do edifício sito na Rua ....

14. A determinada altura, arguido AA decidiu vender o prédio sito na Rua ..., livre de pessoas e bens.

15. A concretização de tal desiderato, impunha o termo do contrato de arrendamento de duração ilimitada celebrado pelo anterior proprietário há cerca de 50 anos, com a inquilina FF e a ocupação por esta e pelos seus três filhos, do 3º andar do prédio.

16. Por isso, logo a partir do início do ano de 2018, com o propósito de pôr termos ao contrato o arguido AA, fez diversas propostas à inquilina e aos filhos desta.

17. O arguido AA, que por não dominar a língua portuguesa comunicava em inglês, fazia-se sempre acompanhar do arguido II, seu amigo, que lhe servia de tradutor.

18. No inicio de 2018, abordou a inquilina FF, e os filhos desta, no sentido de chegarem a um entendimento tendente ao termo do contrato o arguido AA ofereceu quantia de valor não concretamente apurada, que não foi aceite por estes.

19. Estas negociações, ocorreram ora por telefone, ora no 3º andar locado, ora em cafés situados nas imediações do prédio, entre estes arguidos e os filhos da inquilina PP, com ela residente, e RR.

20. Após a aprovação do projeto de arquitetura pela Câmara - em 8 de Novembro de 2018 -, o arguido AA disponibilizou a quantia de, pelo menos, € 40.000, 00, para que a inquilina e a sua família abandonassem o locado.

21. Em 28 de Novembro de 2018, o arguido AA, em representação da sociedade “A...”, celebrou um contrato de promessa de compra e venda do imóvel sito no n.º ... da Rua ..., pelo valor de 1.200.000€ (um milhão e duzentos mil euros), comprometendo-se a entregar em 31 de Maio de 2019, o referido prédio livre de pessoa e bens, bem como de quaisquer ónus e encargos, a KK.

22. Na sequência da celebração do referido contrato promessa, o arguido AA, recebeu, a título de sinal, faseadamente, a quantia total de 160.000 00 € (cento e sessenta mil euros).

23. O não cumprimento deste contrato promessa e a sua não entrega livre de pessoas e bens implicaria para o arguido AA e para a sociedade que representava um prejuízo de 320, 000 €, tendo em conta o valor do sinal.

24. O arguido AA era frequentador da noite do ... e em dia não apurado da segunda quinzena de Dezembro de 2018, deslocou-se ao estabelecimento de diversão noturna denominado “T...”, onde trabalhava o arguido GG, e aí travou conhecimento com este e com o arguido HH.

25. A partir de meados de Janeiro de 2019, o arguido AA, passou a frequentar assiduamente o estabelecimento noturno “T..., de todas as vezes que ali comparecia, fazia despesas de valores elevados, ascendendo muitas vezes a mais de 1.000€ por noite.

26. Os arguidos AA, GG e HH encontraram-se no dia 3 de Fevereiro de 2019, pelas 17h00, na zona do ..., sita no ..., mais concretamente no ... (estabelecimento de restauração).

27. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 9 de Fevereiro de 2019 e uma vez que os ofendidos (a inquilina FF e os seus filhos) recusavam sair da habitação, o arguido AA acordou com os arguidos GG, HH e II que estes se deslocariam à residência da inquilina e sua família e ali, através de intimidação e ameaça, os levariam a assinar o contrato cuja execução os obrigasse a abandonar o prédio.

28. Com o referido propósito, no dia 9 de Fevereiro de 2019, pelas 12h00, os arguidos AA, GG, HH e II encontraram-se no ...”, na zona ..., no ..., tendo antes mantido contactos telefónicos entre si.

29. Na execução do planeado, nesse mesmo dia 9 de Fevereiro de 2019, após o encontro ..., ao início da tarde, os arguidos GG, HH e II, dirigiram-se ao 3.º andar do imóvel sito no n.º ... da Rua ... – ao qual acederam com o uso da chave da porta exterior do prédio que lhes foi facultada pelo arguido AA - e ali, munidos de uns documentos e de dois cheques visados, no valor global de € 10.000, 00, solicitaram aos filhos da inquilina FF, PP e RR, que aquela subscrevesse o acordo de cessação do contrato de arrendamento.

30. Como os filhos da inquilina recusaram o recebimento dos referidos cheques e que a FF assinasse os documentos, o tom dos arguidos passou a ser agressivo e intimidatório, tendo o arguido GG verbalizado, dirigindo-se nomeadamente ao PP: “vocês ou saem daqui a bem ou saem a mal! Arranjamos umas carrinhas e carregamos tudo”,

31. Perante a conduta agressiva dos arguidos e temendo o comportamento destes, RR, chamou a entidade policial ao local. Enquanto aguardavam pela PSP, os filhos da inquilina mantiveram a conversa com os arguidos no r/c do prédio, local para onde todos desceram, entretanto.

32. Já no exterior do edifício, o arguido GG dirigiu ao assistente PP as seguintes expressões: “tás fodidinho, não sabes com quem te meteste, não sabes o que te vai acontecer.”

33. Quando se encontravam no local, às 14h11m o arguido AA contactou telefonicamente com o arguido HH e, às 14h50, contactou com o arguido II, em ambas as situações querendo saber se tinham logrado o seu propósito de obter a assinatura do acordo de cessação do contrato de arrendamento encontrando-se o arguido AA, durante esse período, nas imediações do local, mais concretamente na Rua ....

34. Em virtude da ação dos arguidos GG, SS e II não ter logrado o efeito pretendido – a assinatura do contrato com vista à desocupação a desocupação do imóvel pela inquilina e sua família –, o arguido AA decidiu então atear fogo ao edifício, a fim de desocupar o locado, destruindo-o.

35. O arguido AA, decidiu levar a cabo tal ação durante a madrugada, de modo a evitar que a deflagração do incêndio fosse detetada.

36. O arguido AA sabia que o prédio em questão se inseria numa linha contígua de prédios antigos, construídos com materiais inflamáveis (v. g. madeira), e sabia ainda que, à data dos factos, o acesso à Rua ... estava vedado à circulação de viaturas, encontrando-se bloqueado por taipais (na verdade, tal acesso, pelo menos por veículos, só poderia ser efetuado através da Rua ...), dificultando qualquer auxílio a prestar.

38. No dia 23 de Fevereiro de 2019, pelas 23h29, o arguido HH deslocou-se ao Hotel ..., onde se reuniu com o arguido AA.

39. Dali, seguiram para o estabelecimento de diversão nocturna denominado “Ta...”, onde permaneceram algumas horas.

40. Assim, de acordo com as instruções dadas pelo arguido AA, no dia 24 de Fevereiro de 2019, entre as 02h00 e as 03h00, pessoas não identificadas, agindo sob as ordens e orientações do arguido AA, utilizando a chave que por este lhes foi entregue, e sabendo que os residentes ali se encontravam, entraram no imóvel sito na Rua ..., e ao nível do 1º piso, usando um produto acelerante da combustão de características não concretamente apuradas, derramaram-no sobre o lambrim de madeira com cerca de 30 cm de altura, junto de uma caixa elétrica aí existente mas desativada e atearam fogo no imóvel, o qual, por motivos alheios à sua vontade, apenas não provocou mais danos, por ter tido uma fraca evolução e devido à intervenção dos bombeiros, que foram chamados por terceiros.

39. Em virtude da sua ação não ter, de novo, logrado o efeito pretendido, o arguido AA decidiu atear outro fogo ao edifício, com vista à destruição do locado.

40. Assim, e de acordo com as instruções dadas pelo arguido AA, no dia 2 de Março de 2019, entre as 03h00 e as 04h30, utilizando a chave que o arguido AA lhes havia entregue, e sabendo que os residentes ali se encontravam, indivíduos não identificados, actuando sob as ordens e orientações daquele, entraram no imóvel sito na Rua ..., e ali provocaram incêndio em três pontos distintos da escadaria do prédio de acesso ao 3º andar, em estruturas de madeira (escadaria e painéis de apoio), com recurso a rega com produto acelerante da combustão de características não concretamente apuradas e adição de chama, cuja evolução foi inicialmente insidiosa pela hora a que ocorreu e posteriormente descontrolada.

41. Os pontos de início do incêndio localizaram-se junto à porta de acesso ao 3.º piso, bloqueando assim o único ponto de fuga possível para os assistentes ali residentes, ficando estes, assim, encurralados no interior da habitação.

42. O alerta do incêndio junto dos bombeiros verificou-se às 04h35, tendo o seu acesso ao local sido dificultado pela existência de taipais decorrentes das obras que decorriam na Rua ....

43. TT e PP lograram refugiar-se na varanda do 3.º piso, e OO conseguiu alcançar o telhado, tendo sido os três resgatados, com recurso a meios mecânicos elevatórios dos Bombeiros, uma vez que não tinham outro meio de sair da habitação.

44. Após o resgate destes três ofendidos, na sequência do incêndio que deflagrava ocorreu uma explosão que fez com que parte do interior do edifício derrocasse.

45. No decurso do incêndio, NN deslocou-se para a janela das águas-furtadas a pedir auxílio, não tendo sido possível o seu resgate. Não obstante a intervenção dos bombeiros, apenas se logrou encontrar o corpo carbonizado de NN no dia seguinte, pelas 17h00, momento em que, após a extinção do incêndio, foi possível aceder às águas furtadas do edifício, onde se encontrava.

46. O incêndio ateado ao edifício sito no n.º ... da Rua ..., conforme planeado pelo arguido AA, tomou grandes proporções, propagando-se através da área do telhado ao edifício contíguo, sito no n.º ... da mesma artéria, atingindo o 3.º piso deste edifício, onde residiam UU e VV, que se encontrava grávida.

47. O incêndio apenas não se propagou a outros edifícios contíguos face à intervenção dos bombeiros.

48. O incêndio provocou, de forma direta e necessária:

- no prédio sito com o n.º ..., o abatimento de parte do 3.º piso e das águas furtadas, a total destruição do ... piso e vários danos no ... piso;

- no prédio sito no n.º ... a destruição da cobertura, com a consequente derrocada sobre o 3.º piso, queda parcial do revestimento dos tectos em estuque ao nível do 1º e 2º, piso, infiltrações de água ao nível dos pavimentos, teto falso em gesso cartonado do r/cem risco de queda devido a ocorrência de infiltrações; os elementos da fachada ficaram em risco de queda para a via pública.

49. O incêndio foi ainda causa direta e necessária:

- para o ofendido NN, das lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 1213-21, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, nomeadamente:

(…)

58. No dia 27 de Março de 2019, à noite, no interior do estabelecimento “T...”, o arguido AA, entregou 2.000€ no interior de um envelope, ao arguido GG.

59. No dia 28 de Março de 2019, pelas 15h00, o arguido AA entregou quantia monetária de valor não apurado ao arguido HH, tendo esta entrega ocorrido no “C...”, em ....

60. No dia 10 de Junho de 2019, a arguida BB, mulher do arguido AA, e o arguido II trocaram mensagens através da aplicação “iMessage”, tendo aquela referido que o arguido AA “não era uma boa pessoa e que tinha magoado muitas pessoas, porque fez uma coisa muito má”.

61. No dia 27 de Junho de 2019, pelas 08h45, na residência do arguido AA, sita na Avenida ..., em ..., foi encontrado:

- no hall de entrada, em cima de um móvel:

. um telemóvel, marca “Iphone”, modelo XS, de cor rosa a que correspondem os IMEI’s ...76 e ...09;

. um telemóvel da marca Iphone, modelo S6 plus, de cor rosa, com o IMEI...53;

- no escritório:

um telemóvel da marca Iphone, modelo X de cor cinzenta, com o IMEI ...31;

- na sala:

- um computador portátil, marca ACER, modelo aspire VN7-592 series, de cor preta e com o nº de série ...600;

- no quarto do arguido:

. um computador portátil MacBook Air – Apple, de cor cinzenta e modelo A1466 com o nº de série ...V7;

. um telemóvel da marca Iphone, modelo X de cor branca, com o IMEI nº...55, sem qualquer cartão no seu interior;

. um telemóvel da marca Samsung, modelo GT-I9100M, de cor branca, com o IMEI nº .../7, sem qualquer cartão no seu interior.

62. Na mesma altura, na viatura de marca ..., de matrícula ..-QX-.., pertencente ao arguido AA, que se encontrava estacionada na Avenida ..., foi encontrado:

- no porta luvas, uma minuta de aditamento a contrato de promessa de compra e venda relativo ao imóvel, sito na Rua ..., n.º ..., no ....

63. Também na mesma altura, na viatura de marca ..., de matrícula ..-IJ- .., pertencente ao arguido AA, e que se encontrava estacionada na Avenida ..., foi encontrado:

- no interior de uma mica plástica transparente, duas fotocópias de um cartão de cidadão e de um cartão de livre–trânsito de agente da PSP, identificado como tratando-se de WW, portador do CC nº ...80...y8 e livre-trânsito/PSP nº ...24.

64. No dia 27 de Junho de 2019, pelas 08h30, na posse do arguido HH, foi encontrado um telemóvel, marca “Iphone”, modelo 6s, com o IMEI ...41.

65. Também no dia 27 de Junho de 2019, pelas 08h30, na residência do arguido GG, sita na Rua ..., ..., foi encontrado um telemóvel, marca “Iphone”, modelo SE, com o IMEI ...91.

66. Ainda no dia 27 de Junho de 2019, na sede da sociedade comercial, “A... Unipessoal, Lda”, sita na Rua ..., ..., ... ... - ..., que corresponde à residência de XX, este entregou uma cópia de um contrato-promessa de compra e venda, referente à habitação onde ocorreram os factos.

67. Neste dia 27 de Junho de 2019, pelas 08h40, na residência do arguido II, sita na Rua ..., ..., ..., foi encontrado:

- no quarto do arguido:

. um computador marca “Asus”, modelo UX43OU Notebook PC, com o respetivo carregador e estojo preto em tecido;

. um telemóvel marca “Iphone”, com o IMEI ...66, com cartão Sim da Operadora NOS n.º ...37, sem carregador.

68. A 26 de Agosto de 2019, a arguida BB, como legal representante dos arguidos AA e “A... Unipessoal, Lda.”, celebrou com YY, na qualidade de representante da sociedade “R..., Lda.”, a escritura de venda do imóvel sito na Rua ..., no ..., pelo preço prometido de 1.200.000€ (um milhão e duzentos mil euros), isto é com uma valorização sobre o preço de aquisição de cerca de 100%.

69. A sociedade “R..., Lda.” é detida em partes iguais por KK e YY.

70. A sociedade “A... Unipessoal, Lda.” é titular da conta n.º ...48 do B..., aberta em 10 de Outubro de 2016, na qual foram recebidos os pagamentos relativos à venda do imóvel em causa, a saber:

- em 29 de Novembro de 2018, a quantia de 60.000€, por depósito de cheque;

- em 21 de Dezembro de 2018, a quantia de 40.000€, por transferência recebida de KK;

- em 1 de Abril de 2019, a quantia de 60.000€, por transferência com origem em conta de KK junto da C...;

- em 29 de Agosto de 2019, a quantia de 1.040.000€, pelo depósito de um cheque bancário emitido pelo B..., pago por débito de uma conta de KK junto do mesmo banco, para onde tinham sido transferidos fundos, designadamente com origem em ....

71. Após o recebimento desta parte final do pagamento do preço, isto é, do montante de 1.040.000€, a conta da “A... Unipessoal, Lda.” junto do B... passou a registar um saldo de 1.078.884,21€.

72. Posteriormente, o arguido AA, por si e na qualidade de legal representante da “A... Unipessoal, Lda.”, decidiu movimentar os fundos da conta da referida sociedade para a conta pessoal do arguido, também do B..., com o n.º ...46 e, posteriormente, para a ....

73. A arguida BB é procuradora do arguido junto do B....

74. Deste modo, entre o dia 6 de Setembro de 2019 e 1 de Outubro de 2019, a arguida realizou treze transferências de 50.000€ cada – no valor global de 650.000€ -, entre a conta n.º ...48 da “A... Unipessoal, Lda.” e a conta pessoal do arguido AA com o n.º ...46, ambas do B..., justificando a operação bancária como pagamentos de dívidas que a arguida “A... Unipessoal, Lda.” tinha para com este arguido.

75. Em 28 de Novembro de 2016, o arguido AA transferiu da sua conta pessoal para a conta da sociedade A... Unipessoal, Lda a quantia de € 640.000, 00.

76. A 28 de Novembro de 2016, sociedade A...,Unipessoal, Ld.ª, por seu turno, emitiu o cheque bancário n.º ...25, no valor de € 645.000, 00.

77. Em 10 de Outubro de 2019, conforme acordado com o arguido AA, a arguida BB deu instruções ao B... relativas à conta pessoal daquele arguido de transferência de fundos, cada uma no valor de 300.000€, no montante total de 600.000€, com destino à ..., e que o B... se absteve de executar, tendo dado origem à suspensão de operações bancárias judicialmente determinada.

78. A conta n.º ...46 titulada pelo arguido AA apresentava, em 16.10.19, um saldo de 594.840,67€, que lhe permitia satisfazer a primeira das transferências a débito para a ..., no montante de 300.000€.

79.Na mesma data, a conta n.º ...48 titulada pela arguida “A... Unipessoal, Lda.” apresentava um saldo de 340.085,45€,

80. Os arguidos AA, HH, GG e II agiram de forma livre e consciente, em conjugação de esforços e de comum acordo, com o propósito de obrigarem a ofendida RR e o assistente PP a convencer a mãe de ambos, TT, a subscrever o acordo de desocupação do imóvel, proferindo, para o efeito, expressões intimidatórias, bem sabendo que os seus comportamentos eram adequados a provocar medo e receio a RR e PP, e, por força forçarem a progenitora a assinar o acordo, o que não ocorreu, apenas por motivos alheios às suas vontades não ocorreu.

81. O arguido AA, agiu ainda de forma livre e consciente, querendo provocar o incêndio do imóvel acima identificado, a fim de destruir o locado, bem sabendo que o incêndio assim ateado causaria necessariamente a morte das pessoas que se encontrassem no seu interior, o que na primeira data – em 24.02.19 -, o arguido apenas não logrou por motivos alheios à sua vontade.

82. Já em 02.03.19, o arguido AA, fez deflagrar incêndio sobre o referido edifício, com o propósito de destruir o locado, sabendo que com isso causaria necessariamente a morte dos seus habitantes – a saber TT, PP, OO e NN -, o que veio a acontecer quanto a NN, por forma a desocupar o prédio sua pertença bem sabendo que tal conduta era idónea para aquele efeito, quer por via de asfixia ou de queimaduras graves, resultado que aceitou como necessário.

83. O arguido só não provocou a morte de TT, PP e OO, por circunstâncias alheias à sua vontade.

83-A. O arguido AA sabia - não podia ignorar - que o incêndio ateado alastraria aos prédios contíguos. O arguido AA não podia deixar de admitir como possível que o edifício n° ... da Rua ... era habitado por alguém, admitindo como cenário (possibilidade) a morte dos ocupantes (VV e UU), conformando-se com esse facto -facto novo

83-A. O arguido só não provocou a morte dos residentes do 3.º andar do prédio contíguo, com o n° ... da Rua ..., de nome ZZ e VV, que se encontrava grávida, por circunstâncias alheias à sua vontade - facto novo. (homicídio tentado dos dois ocupantes do 3o andar do prédio n°...)

84. O arguido agiu da forma descrita, sabendo que que a sua conduta revelava especial perversidade e censurabilidade e que a morte nestas circunstâncias, seria forçosamente precedida de grande desespero, sofrimento e agonia provocados pelas queimaduras e pela inalação de gases tóxicos.

85. O arguido AA determinado que estava em desocupar o imóvel pelo fogo, aceitando como necessária a morte dos seus habitantes agiu com desprezo pela vida e sofrimento alheios, que não hesitou sacrificar para a realização daquele objetivo.

86. O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

85-B. O arguido não desconhecia que o acesso ao local (Rua ...) estava dificultado pela existência de taipais decorrentes das obras no ... e que o fogo, depois de ateado, podia propagar-se através da área do telhado ao edifício contíguo, sito no n° ... da mesma artéria, atingindo o 3o piso deste edifício, onde residiam aqueles identificados inquilinos, aliás o incêndio apenas não se propagou a outros edifícios contíguos, face à intervenção dos bombeiros - facto novo.

86-A. Os arguidos AA e BB actuaram de forma livre, em conjugação de esforços e na execução de um plano previamente elaborado, exprimindo e vinculando a vontade da arguida "A... Unipessoal, Lda.", e procurando a satisfação dos interesses desta, ao movimentar os fundos da conta desta sociedade para a conta pessoal do arguido AA e, posteriormente, para a ..., sabendo que os mesmos eram uma vantagem indireta do cometimento de atos ilícitos típicos, tinham o intuito de mascarar a origem ilícita do dinheiro, e visavam dispersar os ganhos alcançados com o negócio imobiliário possibilitado pela prática de crimes, colocando-os num sistema financeiro onde os mesmos se tornam impossíveis de rastrear, (branqueamento de capitais) - facto novo

86-B- Os arguidos AA e BB pretendiam transferir para a conta pessoal do arguido AA, a quantia de € 340.085,45, existente na conta da sociedade A...,Unipessoal, Ld.ª, de forma a terem saldo para uma segunda transferência de 300.000€ para a ..., que pretendiam executar

86-C. Sabiam estes arguidos que as quantias monetárias movimentadas tinham origem na vantagem resultante do incêndio do prédio, querendo com este comportamento escamotear a sua verdadeira origem, sabendo que esta conduta era proibida e punida por lei - facto novo.

87. Do CRC dos arguidos BB, II nada consta.

87 C. Por via da prática dos crimes - entrega do imóvel livre de pessoas e encargos - o arguido teve uma vantagem patrimonial no valor de 555.000,00 € - facto novo.


2.

A 1. Instância condenou:

a) AA - pela prática em co-autoria material, de um crime de coação na forma tentada, p.p. pelo art°s 22, 23, 154, n°s 1 e 2, do CP., na pena de 9 meses de prisão;

- pela prática de um crime de incêndio na forma tentada, p.p. pelo art° 22, 23, 272, n° 1, ala a), na pena de 1 ano de prisão;

- pela prática de um crime de incêndio, p.p. pelo art°s 272, n°s 1, ala a), do CP. na pena de 7 anos de prisão,

-pela prática de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelo art° 131, 132, n° 1 e 2, ai. h) do CP. na pena de 20 anos de prisão;

- pela prática de cada um dos três crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelo art°s 131, 132, n°s 1, e n°s 2, ala h), do CP. na pena de 9 anos de prisão;

Em cúmulo jurídico, o arguido AA na pena única de 25 anos de prisão.

Absolveu os arguidos AA e BB, da prática, em coautoria material, de um crime de branqueamento, p.p. pelo art° 368-A, n°s 1 e 2, do CP.


O Tribunal da Relação, manteve, quanto a AA a condenação pelos crimes e nas penas parcelares e aditou a condenação pela prática, de cada um dos dois crimes (referentes às pessoas que habitavam o imóvel n° ... da Rua ...) de homicídio qualificado, na forma tentada (a título de dolo eventual), p.p. pelo art°s 131, 132, n°s 1, e n°s 2, ala e) e h), do CP, na pena de (sete) 7(x2) anos de prisão e pela prática, em co-autoria material, de um crime de branqueamento de capitais, p.p. pelo art° 368-A, n°s 1 e 2, do CP, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

Manteve, igualmente, a pena única.

E condenou a arguida BB pela prática, em co-autoria material, de um crime de branqueamento, p.p. pelo art° 368-A, n°s 1 e 2, do CP, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na execução pelo mesmo período de tempo.


O Tribunal da Relação aditou aos factos provados, os seguintes:

83-A. O arguido AA sabia - não podia ignorar - que o incêndio ateado alastraria aos prédios contíguos. O arguido AA não podia deixar de admitir como possível que o edifício n° ... da Rua ... era habitado por alguém, admitindo como cenário (possibilidade) a morte dos ocupantes (VV e UU), conformando-se com esse facto -facto novo

83-A. O arguido só não provocou a morte dos residentes do 3.º andar do prédio contíguo, com o n° ... da Rua ..., de nome ZZ e VV, que se encontrava grávida, por circunstâncias alheias à sua vontade - facto novo. (homicídio tentado dos dois ocupantes do 3o andar do prédio n°...)

85-B. O arguido não desconhecia que o acesso ao local (Rua ...) estava dificultado pela existência de taipais decorrentes das obras no ... e que o fogo, depois de ateado, podia propagar-se através da área do telhado ao edifício contíguo, sito no n° ... da mesma artéria, atingindo o 3o piso deste edifício, onde residiam aqueles identificados inquilinos, aliás o incêndio apenas não se propagou a outros edifícios contíguos, face à intervenção dos bombeiros - facto novo.

86-A. Os arguidos AA e BB actuaram de forma livre, em conjugação de esforços e na execução de um plano previamente elaborado, exprimindo e vinculando a vontade da arguida "A... Unipessoal, Lda.", e procurando a satisfação dos interesses desta, ao movimentar os fundos da conta desta sociedade para a conta pessoal do arguido AA e, posteriormente, para a ..., sabendo que os mesmos eram uma vantagem indireta do cometimento de atos ilícitos típicos, tinham o intuito de mascarar a origem ilícita do dinheiro, e visavam dispersar os ganhos alcançados com o negócio imobiliário possibilitado pela prática de crimes, colocando-os num sistema financeiro onde os mesmos se tornam impossíveis de rastrear, (branqueamento de capitais) - facto novo

86-B- Os arguidos AA e BB pretendiam transferir para a conta pessoal do arguido AA, a quantia de € 340.085,45, existente na conta da sociedade A...,Unipessoal, Ld.ª, de forma a terem saldo para uma segunda transferência de 300.000€ para a ..., que pretendiam executar

86-C. Sabiam estes arguidos que as quantias monetárias movimentadas tinham origem na vantagem resultante do incêndio do prédio, querendo com este comportamento escamotear a sua verdadeira origem, sabendo que esta conduta era proibida e punida por lei - facto novo.

87 C. Por via da prática dos crimes - entrega do imóvel livre de pessoas e encargos - o arguido teve uma vantagem patrimonial no valor de 555.000,00 € - facto novo.


Daí extraindo as consequências jurídico-penais, de condenação de ambos os arguidos, em coautoria, por 1 crime de branqueamento de capitais e do arguido AA, por outros 2 crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, estes com dolo eventual.

Quanto à autoria do crime de incêndio e dos restantes crimes de homicídio, consumado e sob a forma tentada, o Tribunal da Relação confirmou a matéria dada como provada na 1.ª Instância, bem como a qualificação jurídica, as penas parcelares e a pena única.


3. a autoria do crime de incêndio

O arguido AA foi condenado pela prática dos 2 crimes de incêndio, na forma tentada, o 1.º, e na forma consumada, o 2.º, bem como pela prática dos crimes de homicídio, 1 consumado e os restantes, na forma tentada.

Particularmente relevante, no caso, é o 2.º crime de incêndio, na medida em que é da sua imputação que decorre a condenação relativa aos homicídios, embora a questão da autoria se coloque, de igual forma, quanto ao primeiro incêndio.

Os indivíduos que vinham acusados da execução dos crimes de incêndio foram absolvidos, em 1.ª instância, com confirmação em recurso.

O acórdão recorrido enquadra a ação dos agentes, conhecido e desconhecidos, referindo o recorrente como “autor moral”.

O artigo 26.º do Código Penal define as distintas formas de autoria:

“É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.

Ou seja:

- a autoria singular (quem executar o facto, por si mesmo);

- a autoria mediata (quem executar o facto por intermédio de outrem);

- a coautoria (quem tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros);

- a instigação (quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução).

Para a teoria do domínio do facto, é autor quem "segundo a importância da sua contribuição efectiva, comparte o domínio do decurso do facto [1].

Assumindo-se que a teoria do domínio do facto continua a ser a que melhor se harmoniza com os critérios conformadores da autoria nos crimes dolosos de ação, partimos de um conceito de autor correspondente a quem domina o facto, dele dependendo o se e o como da realização típica.

O autor pode ter a capacidade de fazer prosseguir o facto até à consumação e a capacidade de a impedir.

Autor é, pois, quem, de acordo com o significado da sua contribuição objetiva, dirige o curso do facto.

Como se faz notar no acórdão deste tribunal e secção, relatado por Henriques Gaspar[2]:

“Embora o conceito do domínio do facto esteja longe de ser unívoco, deve entender-se como um conceito aberto, na expressão de Roxin, referido por Figueiredo Dias, isto é «cujo conteúdo é susceptível de adaptar-se às variadíssimas situações concretas da vida e que só na aplicação alcança a sua medida máxima de concretização». Por isso, o conceito básico do domínio do facto pode e deve ser afeiçoado e precisado segundo as circunstâncias do caso, e nomeadamente à luz das diversas espécies (também legais) de autoria e mesmo dos resultados que devem ser alcançados em tema de doutrina da participação.”

Recorde-se que o domínio do facto, para ROXIN, podia manifestar-se em três vertentes: o domínio da ação, em que o agente por suas mãos executa o facto, caso do autor imediato; o domínio da vontade própria da autoria mediata, em que o homem de trás (o que formula o propósito criminoso e decide a sua efetivação) domina a vontade do homem da frente (o instrumento, ou executor que executa o facto), por coação, indução em erro ou âmbito de um aparelho organizado de poder, e, o domínio funcional do facto, característico da coautoria face ao significado funcional da contribuição de cada coautor, na divisão de trabalho ou repartição de tarefas na concretização da decisão conjunta.”

Em suma,

- domínio da ação: autoria imediata O domínio sobre realização do tipo pode manifestar-se, primeiramente, como um domínio sobre a própria ação (Handlungsherrschaft), que é o domínio de quem realiza, em sua própria pessoa, todos os elementos de um tipo, isto é, do autor imediato.(…)

- domínio da vontade (Willensherrschaft) de um terceiro que, por alguma razão, é reduzido a mero instrumento (coação, erro ou domínio por meio de um aparelho organizado de poder);

- domínio funcional do fato: coautoria A terceira maneira de dominar um fato está numa atuação coordenada, em divisão de tarefas, com pelo menos mais uma pessoa.

No caso, aqui em apreço, dos crimes de incêndio e dos consequentes homicídios, não podem configurar-se hipóteses de autoria singular ou de coautoria.

A coautoria pressupõe um acordo, inicial ou sucessivo, e a repartição de tarefas que constituam atos de execução.[3]

O arguido, considerando os factos provados, tomou a decisão, determinou dolosamente outros à prática daqueles crimes, nas circunstâncias em que foram perpetrados, entregou o meio de entrada no edifício – não se pode, como bem fez o acórdão recorrido, qualificar qualquer dos atos como executório da conduta típica.

Está, assim, em causa dilucidar a forma de comparticipação, o modelo de autoria em que, na definição do art. 26.º do Código Penal, se integra a ação do arguido – a autoria mediata ou a instigação.

Tratando-se, na verdade, de um exercício de reduzida utilidade prática no resultado processual, considerando que o arguido, em qualquer das categorias, sempre será autor e que os crimes ou foram consumados (o 2.º incêndio e um dos homicídios) ou de tentativa perfeita.

Note-se que, ao invés da situação retratada no AFJ n.º 11/2009, de 21 de julho, em que nenhum ato de execução foi praticado.

A questão deve ser colocada com o propósito de confirmar se pode ser autor mediato ou instigador, categorias herdeiras do autor moral e que esgotam esse espaço.

A autoria mediata tem sido entendida como uma forma de autoria em que “o “homem da retaguarda” e um “homem da frente”, o executor, o intermediário, o instrumento que pode ser jurídico penalmente irresponsável ou parcialmente responsável. O princípio do domínio do facto quando aplicado à autoria mediata exige que todo o acontecimento (o facto, nos termos do artigo 26º) seja obra do “homem de trás”, em especial, da sua vontade responsável, só nesta aceção se podendo qualificar o “homem da frente” como instrumento. O que vale por dizer que todos os pressupostos de punibilidade têm de concorrer na pessoa do homem de trás e hão-de colocar-se, para efeito da sua caracterização dogmática, unicamente face a ele.”[4]

Esta interpretação, largamente dominante na doutrina nacional e estrangeira[5], foi revisitada, como é sabido, por Conceição Valdágua, defendendo uma amplitude da figura do autor mediato que abrangesse uma relação de domínio, através do estabelecimento de ajuste, em que o “homem da frente” não é apenas instrumento, não punível.

Defende a Autora: "É que o aliciado, ao concordar, designadamente, com o estabelecimento de uma relação sinalagmática entre a realização da prestação, que o agente mediato se propõe proporcionar-lhe, e a prática do facto tipicamente ilícito, que é condição dessa prestação, põe nas mãos do agente mediato a decisão final, derradeira, sobre o cometimento do facto para que foi aliciado. Na verdade, daquela relação sinalagmática, aceite pelo aliciado, decorre que, se o "homem de trás" mudar de ideias e comunicar ao aliciado que não pagará a prestação inicialmente proposta, ou que, afinal, já não pretende a execução do facto, o aliciado não cometerá o facto punível. Ora, quem tem nas mãos a última decisão sobre a execução do facto possui, do mesmo passo, aquele poder de supra-determinação do processo causal, conducente à realização do tipo legal de crime, que é a essência do domínio do facto." [6].

O Acórdão de fixação de Jurisprudência n.º 11/2009, de 21 de julho, [7] adotou, num quadro concreto em que não havia sido praticado qualquer ato de execução, a doutrina de Conceição Valdágua, numa atualização extensiva do conceito de autor mediato, segundo a qual o "homem de trás" tem o domínio do facto (sob a forma de domínio da vontade) e é, portanto, autor mediato".

Discorreu o AFJ, na mesma linha interpretativa:

“Este alargamento conceitual de autoria, como tal há muito recepcionado no nosso CP tem a sua explicação no desenvolvimento contemporâneo da sociedade humana, sendo que as inerentes actividades multifacetadas que se desenvolveram no seu seio vieram determinar um olhar mais consentâneo com os problemas gerados. Neste contexto, é conhecida a trama em que se desdobrou a criminalidade, nomeadamente a organizada e a transnacional. Neste mesmo contexto e resultante da especificidade da vivência humana se impuseram de uma forma algo estruturada formas de actuações anti-sociais que até há poucos anos não passavam de ocorrências esporádicas. Estamos a pensar, na actualidade, do incremento do que constitui a actuação delituosa de 'crime por encomenda' onde o homicídio ocupa já um receoso grau de incidência. Se este entendimento envolve, no quadro de política criminal, uma valoração de prevenção geral, a verdade é que o caso dos autos determina que nos lancemos decididamente, abandonando, ao menos como posição de princípio, uma leitura complacente na apreciação do fenómeno, sobretudo quando o valor em causa é o bem supremo da vida humana.”(destacado nosso)

E, mais adiante, “Assim, a encomenda do crime; a idoneidade e a confiança nos meios e nos contactos estabelecidos, o planeamento do modus operandi, as precisões de tempo, modo e lugar transmitidas para a prática do delito na pessoa da vítima, cujas características teve o cuidado de pormenorizar, e o ajuste e combinação de dinheiro disponibilizado, são de molde a integrar a previsão do artigo 26.º do CP na modalidade de autoria mediata na vertente tentada prevista no artigo 22.º, n.º 2, alínea c), do mesmo diploma.


Por sua vez, a forma de comparticipação que se designa por “instigação” está definida (art. 26.º, 4.ª categoria, do CP) como a ação de quem dolosamente determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.

Instigador é, pois, aquele que «dolosamente determinar outra pessoa à prática de um facto ilícito típico (doloso)», «quem produz ou cria de forma cabal […] no executor a decisão de atentar contra certo bem jurídico-penal através da comissão de um concreto ilícito-típico»; «o instigador possui o domínio do facto sob a forma de domínio da decisão». O instigador é o «verdadeiro senhor, dono ou dominador da decisão do instigado de cometer o facto» – instigação-determinação que, nos termos do art. 26.º, 4.ª do CP, constitui autoria[8].

Segundo Figueiredo Dias, instigador não é “aquele que incentiva, aconselha, meramente sugere ou reforça propósito de outrem de cometer um ilícito típico; tão pouco aquele que simplesmente o induz àquele cometimento, ajudando a vencer as resistências físicas, intelectuais ou morais, ou mesmo afastando os últimos obstáculos que o separam do crime; em suma, todo aquele que com sua conduta influencia a motivação do executor na direção da realização típica. (…) Instigador, no sentido do artigo 26.º é unicamente quem produz ou cria de forma cabal -  podia talvez dizer-se pedindo ajuda a língua francesa: quem fabrica “de toutes pièces” no executor a decisão de atentar contra um certo bem jurídico penal através da comissão de um concreto ilícito típico. (…) O instigador possui, deste modo – tanto ou mais que, em alguns casos, o autor mediato ou o coautor– o domínio do facto, agora e aqui sob a forma de domínio da decisão. (…) determinação que desta maneira integra, por antecipação, a totalidade dos elementos constitutivos do ilícito típico e, por isso também, do conteúdo material do ilícito.

Como é sabido, a solução do nosso direito (art. 26.º do CP) afasta-se da opção jurídico-penal positiva alemã e de Roxin que, ao distinguirem autor e participante, incluem o instigador nesta última categoria, embora com a mesma pena prevista para o autor.

Como se disse no acórdão deste tribunal, de 27.05.2009, suprarreferido “A integração diferencial entre as categorias da autoria (ou como simples participação), mais do que (ou antes) de excursões dogmáticas, há-de resultar dos factos provados e da específica singularidade com que se apresentem em cada situação, no entrelaçar de feixes concretos de relações entre agentes de um determinado facto ilícito-típico.

As construções dogmáticas não valem, porém, por si como referências desligadas da realidade, mas estão intimamente ligadas, na dimensão concretizada, a cada situação caracterizada por uma conjugação factual específica.”

Mostrando-se definidos na decisão, na matéria de facto dada como provada, o domínio pelo autor da decisão dos executores de realizar o facto (por ajuste remunerado aceite e levado a cabo, ou por outra via não apurada)– aquele concreto facto ilícito típico-, o conteúdo da decisão e a prática dos correspondentes atos de execução;

Sabido e provado que o facto ou atos de execução do mesmo foram realizados por indivíduos, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar dadas como provadas;

Enquadrada que se mostra a decisão de praticar o crime e o domínio desta pelo instigador (ou autor mediato, na tese do AFJ em referência) numa sequência, em crescendo, de factos ilícitos orientados, todos eles, para o mesmo fim, no exclusivo proveito do autor identificado,

Impõe-se a conclusão de que a prática dos crimes de incêndio e homicídio é imputável ao arguido recorrente, como faz o acórdão recorrido, sob a forma de autoria.

O arguido é autor não material, aproximando-se, com maior consistência, da figura do instigador que determinou, de modo total, configurando a totalidade dos elementos constitutivos do ilícito típico e, por isso também, do conteúdo material do ilícito, a decisão de outros a praticar, com responsabilidade, aqueles concretos crimes que foram, efetivamente cometidos.

Sendo esta a forma de autoria, das definidas no art. 26.º do Código Penal, que mais adequadamente parece desvelar a natureza da intervenção do arguido e integra os factos quanto a ela provados.

Todavia, o outro entendimento possível, na interpretação mais ampla da autoria mediata, segundo a qual o homem da frente pode não ser um mero instrumento, tem, na aplicação ao caso, a mesma exata consequência de definir a intervenção do arguido como autoria.

A não exata identificação dos executores, não obsta à individualização da responsabilidade penal do autor recorrente, em tese e, especialmente, face aos factos provados.

É certo que os executores dos factos existiram e tinham forma humana visível, embora indistinta.

É certo que agiram sob o domínio da decisão do autor, ora recorrente, gerando os pontos de início do incêndio junto à porta de acesso ao 3.º piso, bloqueando assim o único ponto de fuga possível para os únicos residentes do prédio e realizando, deste modo, o fim que, apenas ao arguido aproveitava;

Numa linha do tempo que se inicia com as visitas e atos de coação sobre os residentes, prossegue com o primeiro incêndio, falhado no propósito final e termina no 2.º incêndio, a par da formalização do negócio;

E agiram deste modo preciso, face à interrupção, por ação alheia, do incêndio que, dias antes haviam feito deflagrar;

Tendo praticado todos os indispensáveis atos de execução dos crimes em causa, determinados, dolosamente, pelo autor identificado.

Refira-se, em passagem, que no acórdão deste tribunal citado em motivação pelos arguidos, de 28 de Julho de 1987, no Processo n.º 38850, não existia qualquer elemento sobre a real existência de executores, não se tratando, apenas, de um problema de identificação.

A não identificação precisa dos executores não impede a imputação dos crimes, como autor, àquele que da decisão dos restantes foi dominus e beneficiário.


4. O crime de branqueamento

Os arguidos defendem, sem qualquer fundamentação jurídica, que “não se encontram satisfeitos os requisitos do crime de branqueamento, previstos no art.º 368.º-A, do C.Penal”.

No que respeita aos dois recorrentes, há uma decisão nova (e de sentido oposto à 1.ª Instância) quanto à matéria de facto e à subsunção jurídico-penal, e é relativamente a esta que se justificaria ponderar a admissibilidade da apreciação da verificação de algum dos vícios indicados no n.º 2 do art. 410.º do CPP.

Como este Tribunal vem afirmando em jurisprudência constante[9], a limitação do recurso ao reexame da matéria de direito não impede este Tribunal de conhecer oficiosamente dos vícios da decisão recorrida a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova –, se eles resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, e se a sua sanação se revelar necessária à boa aplicação do direito.

No entanto, os arguidos colocam a razão do não preenchimento do tipo, como resulta do texto imediatamente anterior das “conclusões”, apenas na justificação factual da conduta, na enumeração de factos, na consideração dos que julgam determinantes para a licitude, ou seja, no processo de avaliação e ponderação das provas produzidas.

O recurso dos arguidos resulta, afinal, numa impugnação da matéria de facto, que manifestamente escapa à competência deste tribunal.

De todo o modo, sempre se dirá que a atividade dissimulatória descrita na matéria provada integra a previsão do art.º 368.º-A, do Código Penal e que se não desvela, no texto da decisão recorrida, qualquer dos vícios de que o tribunal devesse conhecer.


5. O princípio in dúbio pro reo

A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido. [10]

“Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio.”

Podendo as instâncias tirar conclusões ou ilações da matéria de facto diretamente provada que constituem, em si mesmas, matéria de facto que escapa à censura deste tribunal, enquanto tribunal de revista, não é possível alcançar, face ao texto da decisão, qualquer estado de dúvida do julgador, nem vício de que o tribunal devesse conhecer oficiosamente, nos termos referidos em 4..

IV. DECISÃO:

Em conformidade com o exposto e não se mostrando violadas as normas identificadas, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, decide julgar improcedente o recurso dos arguidos, confirmando-se, a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes – art. 513º n.º 1 do CPP - fixando-se a taxa de justiça em 7 UCs – art. 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Teresa de Almeida (Relatora)

Lopes da Mota (Adjunto)

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1] Entre outros, acórdãos deste tribunal, no proc. 07P3867, de 16.10.2008, e AFJ de 18.06.2009.
[2]De 27.05.2009, no proc. 58/07.1PRLSB.S1.
[3] Além de outros, acórdão deste tribunal, de 14.12.2017, no proc. 470/16.5JACBR.S1.
[4] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3.ª edição, Gestlegal, pag. 906 e segs.
[5] Figueiredo Dias, loc. cit., Nuno Brandão, Pacto para matar: autoria e início de execução, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 4/2008, p. 531-605, GÜNTHER JAKOBS, Derecho Penal. Parte General, 2.ª ed., Marcial Pons, 1997, 21/63, Alicia Gil Gil, La autoría mediata por aparatos jerarquizados de poder en la jurisprudencia española, in Anuario de derecho penal y ciencias penales Tomo 61, Fasc/Mes 1, 2008, págs. 53-88, com extensa referência a doutrina e jurisprudência espanhola.
[6] "Figura Central, Aliciamento e Autoria Mediata", "Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues", tomo I, pág. 937.
[7] Publicado no DR n.º 139/2009, Série I.
[8] cf. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 930-938
[9] Acórdãos de 07.04.22, no Proc. 89/20.6PCCSC.L1.S1 (Cid Geraldo) e de 15,12,2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1 (Raul Borges).
[10] Acórdão deste tribunal, de 5.7.2007, no proc. 07P2279.