Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
963/10.8TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SALRETA PEREIRA
Descritores: PACTO SOCIAL
GERÊNCIA PLURAL
GERENTE
FALTA DE ASSINATURA
SOCIEDADE POR QUOTAS
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
FIM SOCIAL
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 09/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES - SOCIEDADES COMERCIAIS / SOCIEDADES POR QUOTAS / GERÊNCIA / ACTOS PRATICADOS EM NOME DA SOCIEDADE / VINCULAÇÃO DA SOCIEDADE.
Doutrina:
- Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, Coimbra, 1983, p. 55.
- Menezes Cordeiro, A Boa Fé no Direito Civil, vol. I, Coimbra, 1985, p. 649.
- Paulo de Tarso Domingues, A Vinculação das Sociedades por Quotas no Código das Sociedades Comerciais, p. 289 e ss..
- Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, III, p. 173.
- Soveral Martins, Capacidade e Representação das Sociedades Comerciais, pp. 490, 493.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC):- ARTIGO 334.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 260.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 24.04.2002, PROCESSO N.º 3216/01.
Sumário :
I - O facto de o pacto social prever a assinatura dos dois gerentes para vincular uma sociedade por quotas não é oponível a terceiros que com ela contratem (n.º 1 do art. 260.º do CSC), sendo certo que, ainda que inexistisse uma estipulação que o previsse, sempre haveria de se considerar que a invocação dessa limitação constituiria um abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium por se consubstanciar na não realização dos interesses pessoais de que tal direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.

II - Deve-se considerar que um acto jurídico excede o objecto social (ou seja é ultra vires) quando não tenha qualquer relação de instrumentalidade, ainda que meramente potencial, com aquele, cabendo à sociedade interessada na sua desvinculação a esse acto o ónus da prova de que o terceiro tinha conhecimento ou não podia ignorar a inexistência daquela relação.
Decisão Texto Integral:
 
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Recorrente: AA – …, Lda.
Recorrida: BB. e outra.

AA – …, Lda. instaurou acção com processo comum, sob a forma ordinária, contra BB SA, pedindo a condenação da ré no pagamento de € 140.536,71, a título de capital, acrescida de juros de mora já vencidos até 11 de Novembro de 2010 (no montante de € 52.595,75) e, ainda, os demais juros vincendos até efectivo e integral pagamento.
 Invocou, para tanto e em síntese:
Que forneceu à "CC SA" os produtos discriminados nas facturas referidas no art.º 10, da petição inicial, no total de € 140.537,71, tendo tais produtos sido recebidos sem reclamações e, não obstante a ré ter sido interpelada para efectuar o pagamento da citada quantia, tal não veio ainda a suceder.
     Mais invocou a autora que a responsabilidade da ré "BB SA" pela citada dívida decorre da circunstância de ter a ré incorporado, por fusão, a referida " CC SA", assim assumindo todos os direitos e obrigações que decorriam para a originária devedora, ou seja a ora extinta “CC SA”.
A ré contestou e confirmou a aquisição das acções representativas de 100% do capital da aludida “CC SA”, o que sucedeu a 25 de Fevereiro de 2008.
Mais invocou que no âmbito deste negócio de aquisição da referida “CC SA” ficou acordado entre os compradores BB SA e os vendedores (entre os quais a sociedade “DD. SA”) que estes últimos deixariam de ser devedores da Sociedade vendida “CC SA”, devendo estes débitos serem liquidados até à data da venda definitiva das acções, ou seja 25 de Fevereiro de 2008.
Entre estas sociedades figuravam a “EE, Lda.”, que devia à “CC SA” a quantia de 198.822,29 € + 8.230,81 € a “DD. SA” que devia à mesma “CC SA” a quantia de 11.804,15 €.
Na data da transmissão definitiva das acções da “CC SA” para a ré BB SA, em 25 de Fevereiro de 2008 foi elaborado um acordo em que intervieram a então “CC SA”, a autora “AA Lda” e já referida “EE Lda”, mediante o qual a dita “CC SA” se confessa devedora à autora “AA Lda” da quantia peticionada neste autos e transmite este seu débito para “EE Lda”, que o aceitou por igual valor do mesmo modo que a autora “AA Lda” ratificou essa transmissão da divida e expressamente exonerou a “CC SA” quanto a este débito.
E assim com a transmissão desta dívida e exoneração da “CC SA” relativamente ao seu débito perante a autora, a ré não responde pela dívida ora reclamada, mas antes a referida “EE Lda”, a quem a mesma foi transmitida com a expressa aceitação da nova devedora e da credora, ou seja a aqui autora.
Em sede de impugnação a ré impugnou o alegado vencimento das facturas reclamadas, sustentando que os pagamentos efectuados pela “CC SA” à autora nunca obedeceram a qualquer prazo, antes eram efectuados pela “CC SA” à medida que a tesouraria o permitia, à medida que a autora o exigisse ou a Engenheira FF (que era administradora da “CC SA” e gerente da autora, ou seja da devedora e credora) o tivesse por conveniente.
Assim, admitindo a obrigação de juros, sempre estes só poderiam ser contabilizados a partir da citação.
Por último, concluiu a ré pela improcedência da causa e pela condenação da autora como litigante de má-fé em multa e indemnização pelos prejuízos causados, a liquidar em momento posterior.
A autora respondeu e, no essencial, impugnou a validade ou eficácia do acordo de transmissão e exoneração de dívida invocado pela ré, uma vez que foi subscrito apenas por um dos seus gerentes (a referida Engenheira FF), quando seriam necessárias duas assinaturas dos seus gerentes, facto este que era do conhecimento da ré e que, não obstante o conhecer, não a eximiu de o celebrar.
Acrescenta que nunca a autora ratificou a dita transmissão de dívida ou assentiu na exoneração da ré pelo seu pagamento, sob pena de estar a praticar actos lesivos dos seus interesses enquanto Sociedade Comercial.
Concluiu a autora pela improcedência das excepções deduzidas pela ré e peticionou também a condenação da ré, enquanto litigante de má-fé, em multa e indemnização, esta última a liquidar em execução de sentença.
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.
Inconformada, a autora recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que proferiu acórdão a julgar improcedente a apelação e a confirmar a sentença.
Mais uma vez inconformada, a autora veio interpor revista excepcional para este Supremo Tribunal de Justiça, que foi admitida, alegando com as seguintes conclusões:
1ª. A autora, de acordo com o respectivo pacto social, só se vincula com a assinatura de dois gerentes.
2ª. O negócio jurídico de fls. 42-43 apenas foi assinado pela gerente pela gerente Engenheira FF.
3ª. A autora, posteriormente, não ratificou este negócio.
4ª. O objecto social da recorrente consiste no comércio de madeiras e derivados.
5ª. O negócio de fls. 42-43 consistiu numa cessão de créditos, que não está incluído no objecto social da recorrente.
6ª. A recorrente não ficou vinculada pelo negócio em questão.
7ª. Os terceiros intervenientes no negócio tinham obrigação de se informar qual o número de assinaturas necessárias à vinculação da recorrente, tendo agido com negligência ao não o fazer.
8ª. A cláusula do pacto social que exige um certo número de gerentes para vincular a sociedade é oponível a terceiros.
9ª. O acordo de fls. 42-43 é inválido, ineficaz e inoponível à recorrente.
10ª. O acórdão recorrido viola o disposto nos artºs. 168º, 252º nº1, 259º, 260º e 261º, do Código das Sociedades Comerciais.
A Recorrida juntou aos autos contra alegações, pugnando pela negação da revista e confirmação do acórdão.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
O Tribunal da Relação do Porto julgou provados os seguintes factos:

1º. Na sequência de uma fusão de sociedades, ocorreu a transferência global do património da sociedade “CC, S.A.”, para a sociedade “BB, S.A.”, assumindo esta última todos os direitos e obrigações que impendiam sobre a sociedade incorporada, à data da referida fusão, tudo conforme cópia da certidão permanente da sociedade incorporada constante de fls. 10-16 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. (alínea A)
2º. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio de madeiras e derivados. (alínea B)
3º. A Ré é uma sociedade comercial do mesmo ramo de produtos, dedicando-se à importação e comércio de madeiras exóticas e continentais e seus derivados. (alínea C)
4º. No âmbito de transacções entre ambas efectuadas, a aludida “CC, S.A.” adquiriu à Autora material no valor de € 140.536,71, conforme as facturas, notas de débito e de crédito abaixo indicadas:
5º. Factura n.º 106, no valor de €s 12.161,08, datada de 2005.11.21 e com data de vencimento em 2006.02.19, encontrando-se ainda por pagar o montante de € 9.692,23;
6º. Factura n.º 109, no valor de € 5.071,42, datada de 2005.11.28 e com data de vencimento em 2006.02.26;
7º. Factura n.º 151, no valor de € 5.067,12, datada de 2006.02.01 e com data de vencimento em 2006.05.02;
8º. Factura n.º 156, no valor de € 543,87, datada de 2006.02.10 e com data de vencimento em 2006.05.11;
9º. Factura n.º 168, no valor de € 8.174,95, datada de 2006.02.24 e com data de vencimento em 2006.05.25;
10º. Nota de crédito n.º 10, no valor de € 304,02, datada de 2006.03.02 e com data de vencimento em 2006.05.31;
11º. Factura n.º 191, no valor de € 9.720,24, datada de 2006.03.16 e com data de vencimento em 2006.06.14;
12º. Factura n.º 209, no valor de € 9.728,86, datada de 2006.04.05 e com data de vencimento em 2006.07.04;
13º. Factura n.º 233, no valor de € 499,05, datada de 2006.05.17 e com data de vencimento em 2006.08.15;
14º. Factura n.º 236, no valor de € 3.919,65 , datada de 2006.05.22 e com data de vencimento em 2006.08.20;
15º. Factura n.º 237, no valor de € 8.786,38, datada de 2006.05.22 e com data de vencimento em 2006.08.20;
16º. Factura n.º 267, no valor de € 14.244,64, datada de 2006.07.27 e com data de vencimento em 2006.10.25;
17º. Nota de débito n.º 1, no valor de € 330,08, datada de 2006.08.08 e com data de vencimento em 2006.11.06;
18º. Factura n.º 278, no valor de € 202,69, datada de 2006.08.30 e com data de vencimento em 2006.11.28;
19º. Nota de débito n.º 8, no valor de € 335,86, datada de 2006.09.07 e com data de vencimento em 2006.12.06;
20º. Factura n.º 301, no valor de € 776,95, datada de 2006.09.29 e com data de vencimento em 2006.12.28;
21º. Factura n.º 313, no valor de € 2.128,81, datada de 2006.10.31 e com data de vencimento em 2007.01.29;
22º. Factura n.º 319, no valor de € 121,65, datada de 2006.11.13 e com data de vencimento em 2007.02.11;
23º. Factura n.º 349, no valor de € 432,39, datada de 2006.12.22 e com data de vencimento em 2007.03.22;
24º. Factura n.º 351, no valor de € 8.107,39, datada de 2006.12.27 e com data de vencimento em 2007.03.27;
25º. Factura n.º 369, no valor de € 2.837,58, datada de 2007.01.31 e com data de vencimento em 2007.05.01;
26º. Factura n.º 386, no valor de € 1.899,17, datada de 2007.03.07 e com data de vencimento em 2007.06.05;
27º. Factura n.º 399, no valor de € 3.405,33, datada de 2007.03.30 e com data de vencimento em 2007.06.28;
28º. Factura n.º 414, no valor de € 8.070,41, datada de 2007.04.30 e com data de vencimento em 2007.07.29;
29º. Factura n.º 418, no valor de € 10.821,36, datada de 2007.05.17 e com data de vencimento em 2007.08.15;
30º. Factura n.º 434, no valor de € 6.363,73, datada de 2007.05.31 e com data de vencimento em 2007.08.29;
31º. Factura n.º 448, no valor de € 4.185,74, datada de 2007.06.29 e com data de vencimento em 2007.09.27;
32º. Nota de crédito n.º 33, no valor de € 18,89, datada de 2007.06.29 e com data de vencimento em 2007.09.27;
33º. Factura n.º 487, no valor de € 3.094,41, datada de 2007.07.29 e com data de vencimento em 2007.12.28;
34º. Factura n.º 492, no valor de € 2.618,02, datada de 2007.10.31 e com data de vencimento em 2008.01.29;
35º. Factura n.º 510, no valor de € 2.687,03, datada de 2007.11.30 e com data de vencimento em 2007.02.28;
36º. Factura n.º 521, no valor de € 1.053,96, datada de 2007.12.19 e com data de vencimento em 2008.03.18;
37º. Factura n.º 532, no valor de € 4.651,60, datada de 2008.01.16 e com data de vencimento em 2008.04.15;
38º. Factura n.º 534, no valor de € 152,01, datada de 2007.01.22 e com data de vencimento em 2008.04.21;
39º. Factura n.º 540, no valor de € 1.135,03, datada de 2008.01.29 e com data de vencimento em 2004.04.28. (alínea D)
40º. A dita “CC, SA“ recebeu as mercadorias discriminadas nas facturas e nas notas de débito, referidas supra, tendo-as conferido e achado conformes ao encomendado à Autora, quanto a quantidade, qualidade e preço. (alínea E)
41º. Apesar de interpelada pela Autora, a Ré não pagou os aludidos valores. (alínea F)
42º. No dia 25.02.2008, a Ré “BB, SA“ adquiriu, por via directa e indirecta, as acções representativas de 100% do capital social da “CC, SA.“ (alínea G)
43º. A sociedade “DD, SA.“ participa no capital social da aqui Autora, conforme consta da certidão do registo comercial a fls. 36-37 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido. (alínea H)
44º. De igual forma, aquela sociedade de gestão de participações sociais participa no capital social de “GG, LDA.“, conforme resulta da certidão do registo comercial a fls. 38-41 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido. (alínea I)
45º. Com data de 25.02.2008, entre “GG, …, SA.”, representada pelo seu administrador Dr. HH, “ AA, LDA.”, representada pela sua gerente Engª. FF, e “ GG…, LDA.”, representada pela mesma gerente Engª FF, foi celebrado o negócio de fls. 42-43 dos autos, denominado de «CONTRATO», pelo qual “GG …, SA.” se confessa devedora da Autora da quantia de € 140.536,70 (clausula 1ª) e declara, ainda, transmitir esta dívida para a “GG,LDA.”, por igual valor, o que esta declarou aceitar (clausula 2ª, 1. e 2. do dito negócio, a fls. 42-43). (alínea J)
46º. Ainda no dito «contrato» de fls. 42-43 dos autos, a aqui Autora, através da sua representante no acto, declarou ratificar a transmissão da dívida e declarou expressamente exonerar a “CC, SA.”, quanto a essa parte (clausula 2ª, 3.) (alínea K)
47º. Ainda nesse «contrato» de fls. 42-43, a “CC, SA.”, por meio da sua representante no acto, declarou operar a compensação para pagamento do preço da transmissão por igual montante de débitos de fornecimentos que tem sobre a “GG, LDA.”, declarando esta última, por meio da sua representante, por sua vez, ter tomado conhecimento da dita compensação e que a considera válida e eficaz a partir da data da assinatura do presente acordo (clausula 4ª, 1. e 2.). (alínea L)
48º. A Autora “AA, LDA.”, de acordo com o que consta da certidão do registo comercial a fls. 36-37, obriga-se pela assinatura de dois gerentes. (alínea M)
49º. A sociedade “DD., SA“, a sociedade “GG, LDA.“ e a Autora “AA, LDA.“ tinham e têm como gerente ou administradora a Srª Engª FF. (alínea N)
50º. A Srª Engª FF foi, até ao dia 25.02.2008, administradora da sociedade “GG – …., SA.“. (art. 2º BI)
51º. Quando se procedeu à venda da totalidade do capital social da “CC, SA.” para a Ré “BB, SA.”, foi acordado entre compradores e vendedores (entre os quais a “Q. GEST, SGPS, SA.”) que estes deixariam de ser devedores da sociedade vendida, devendo os débitos serem liquidados até à data definitiva de venda das acções, ou seja até 25.02.2010. (art. 3º BI)
52º. E entre estas sociedades, figuravam a “GG, LDA.” que devia à “GG, SA.” € 198.822,29+8.230,80, e a “DD, SA.” que devia à mesma “GG, SA.” € 11.804,15. (art. 4º BI)
53º. E no sentido de proceder à liquidação destes débitos, a Srª Engª FF, na sua qualidade de gerente e administradora, respectivamente, da “GG, LDA.”, da Autora e da “DD, SA.” propôs à Ré que a liquidação do seu (da Autora) crédito de € 140. 536,70 passasse por um «encontro de contas». (art. 5º BI)
54º. O que a Ré aceitou. (art. 6º BI)
55º. Tendo, nesse sentido, sido elaborado e assinado o acordo constante de fls. 42-43 dos autos (e referido em J, K e L dos factos assentes). (art. 7º BI)
56º. Pese embora as facturas emitidas pela Autora possuírem a condição de pagamento a 90 dias, os pagamentos eram realizados à medida que a tesouraria o permitisse, a Autora o exigisse ou a Srª Engª FF (administradora da “CC, SA “ e gerente da Autora) tivesse por conveniente. (art. 8º BI)
57º. O Banco II solicitou à Ré “BB, SA“ esclarecimentos e informações sobre a presente acção que lhe é movida pela Autora. (art. 9º BI)
58º. No âmbito de um contrato de financiamento celebrado entre a Ré e o Banco II, este último reduziu o montante financiado de 3.000.000,00 € para 2.500.000,00 €. (art. 11º BI)
59º. À data do acordo de fls. 42-43 dos autos (25.02.2008), a Autora  “AA, Lda.“ obrigava-se pela assinatura de dois dos seus gerentes. (art. 13º BI)
60º. A Autora não ratificou, nem reconheceu a “transmissão de dívida” referida no acordo/contrato de fls. 42-43, nem exonerou a Ré do valor em dívida de € 140. 536, 70. (art. 14º BI)

FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

O presente recurso suscita duas questões:
1ª. A cláusula do contrato social que exige a assinatura de dois gerentes para vincular a sociedade por quotas é ou não oponível a terceiros;
2ª. O acto jurídico praticado pela gerente da autora, Eng.ª FF, excede o objecto social da autora, facto que, sendo do conhecimento da ré, é oponível a esta.
O artº. 260º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais, que transpôs para o direito interno o nº 2 do artº. 9º da Primeira Directiva, é bastante claro ao afirmar que os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes da deliberação dos sócios.
O facto de o pacto social exigir a assinatura de dois gerentes para vincular a sociedade por quotas não é oponível a terceiros que com ela contratem.
Assim, o contrato de fls. 42-43 vincula a autora, apesar de assinado apenas pela gerente Engª. FF.
O acórdão deste STJ, de 24.04.2002, proferido na Revista nº 3216/01, relatado pelo Exmo. Conselheiro Fernando Araújo de Barros, é bastante elucidativo sobre esta primeira questão.
Conclui, ainda, que, caso não existisse norma a julgar tal limitação inoponível a terceiros que com a sociedade por quotas contratassem, o exercício do direito de invocar a ineficácia do contrato por parte da sociedade constituía um abuso de direito (artº. 334º do CC).
Tal exercício traduzir-se-ia na não realização dos interesses pessoais de que tal direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem, num verdadeiro “venire contra factum proprium” (Coutinho de Abreu – Do Abuso de Direito, Coimbra, 1983, p. 55; Menezes Cordeiro – A Boa Fé no Direito Civil, vol. I, Coimbra, 1985, p. 649).
Raúl Ventura – Sociedades por Quotas, III, p. 173, Paulo de Tarso Domingues – A Vinculação das Sociedades por Quotas no Código das Sociedades Comerciais, p. 289 e seg., Soveral Martins – Capacidade e Representação das Sociedades Comerciais, p. 493, também entendem que a limitação convencional aos poderes do gerente não é oponível a terceiros que com a sociedade contratem.
Vejamos, agora, a questão de saber se o acto praticado pela gerente da autora, Engª. FF, excede o objecto social.
Um acto jurídico excede o objecto social quando não tenha qualquer relação de instrumentalidade, ainda que potencial, com o objecto da sociedade.
É evidente que o consentimento dado pela autora, na posição de credora, para que a sua devedora cedesse a respectiva dívida a um terceiro, é um acto instrumental do respectivo objecto social.
É tão instrumental quanto um empréstimo pedido ao Banco para dinamização da actividade produtiva, quanto uma operação de desconto de letras ou livranças ou uma operação de crédito à exportação.
Por outro lado, para que a sociedade não fique vinculada por acto “ultra vires”, que como acima constatámos não é o caso, é necessário que prove (cabe à sociedade o ónus da prova) que, atentas as circunstâncias, o terceiro soubesse ou não pudesse ignorar que aquele acto não poderia considerar-se como potencialmente instrumental em relação ao objecto da sociedade (Soveral Martins – Capacidade e Representação das Sociedades Comerciais, p. 490).
Improcedem, assim, as conclusões da recorrente.
Nestes termos, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 8 de Setembro de 2015

Salreta Pereira (Relator)
João Camilo
Fonseca Ramos