Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
270/06. OTCGMR G.1.S.1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: ARRENDAMENTO
FORMA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. Para determinar da aplicação do artigo 62.º, n.º 2 do RAU ou do artigo 221.º, n.º 2 do Código Civil e se aferir da validade do acordo de revogação do contrato de arrendamento do qual constem cláusulas compensatórias, deve ser alegada e provada a data de outorga do contrato.
2. Tal alegação cumpre à parte que pretende ver tal acordo fulminado de nulidade, por força do disposto no artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil.
3. Na dúvida sobre a forma do arrendamento por desconhecimento da data da sua celebração, e atendendo às várias leis que se sucederam no tempo, vale o princípio da consensualidade do artigo 219.º do Código Civil.
4. Ao Supremo Tribunal de Justiça está vedada a extracção de presunções judiciais.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

AA e BB intentaram acção, com processo ordinário, contra a herança aberta por óbito de CC e DD fosse condenada a pagar-lhes a quantia de 32.049,86 euros, sendo 19.951,92 euros a titulo de capital e a diferença, a titulo de juros vencidos desde 1 de Janeiro de 1996 até à data da propositura da acção (20 de Março de 2006).

Alegaram, em síntese, que por acordo entre CC e DD, na qualidade de proprietários e senhorios, e os Autores, como arrendatários, puseram termo ao contrato de arrendamento para habitação do prédio que identificam; que deveriam abandonar o locado recebendo, como contrapartida, 8.000.000$00, tendo recebido metade (4.000.000$00) em Janeiro de 1995, sendo o restante pago até 31 de Dezembro de 1995; que, embora instados, não pagaram aquela quantia tendo, entretanto falecido.

Posteriormente, e rectificando a petição, os Autores passaram a demandar apenas os herdeiros de DD por só este ser proprietário do imóvel.

Na Comarca de Guimarães, os Réus foram condenados a pagarem aos Autores 19.951,92 euros, com juros legais desde 20 de Março de 2006.

Inconformado, recorreu o herdeiro DD.

A Relação de Guimarães confirmou a sentença apelada.

Pede, agora, revista, assim concluindo a sua alegação:
“- Está provado que entre o senhorio DD e os A,A., ora recorridos, foi acordado verbalmente o distrate do contrato de arrendamento para habitação, e segundo tal acordo os inquilinos deixavam o locado livre e devoluto de pessoas e bens, recebendo como contrapartida a quantia de 8.000.000$00, sendo metade dessa quantia paga quando os arrendatários saíssem do locado e a outra metade quando deixassem o locado livre de bens dos arrendatários;
- Como provado está que quando saíram do locado os autores receberam metade do valor acordado, ou seja, 4.000.000$00 (19.95 1792€);
- O ora recorrente no conseguiu fazer prova do pagamento da outra metade, tendo tal ficado a dever-se exclusivamente ao facto do pagamento ter sido por meio de cheque e a instituição bancária sacada (BES), por terem decorrido já mais de 13 anos, já não ter em arquivo o cheque n.° 0000000000, com data de 24/04/ 1997, sacado sobre a conta de Depósito à Ordem n. 0000/0000/0000;
- Está também provado que o acordo revogatório ou distrate foi celebrado pelo então proprietário e senhorio, DD, e que este adquiriu o locado por escritura pública de 11 de Janeiro de 1990 e que faleceu em 25 de Fevereiro de 1997;
- Donde resulta que o dito distrate foi celebrado necessariamente entre as referidas datas de 11.01.1990 e 25.02.1997;
- E se foi celebrado entre 15 de Novembro de 1990, data em que entrou o vigor o Regime do Arrendamento Urbano, e 25 de Fevereiro de 1997, então ter-se-á de aplicar a tal acordo revogatório o disposto no n.° 2 do artigo 62° do R.A,U., não só porque o acordo não foi imediatamente cumprido ou executado como também por tal acordo ser acompanhado de cláusula compensatória aos inquilinos;
- Sendo, aliás, mais do que provável que tenha sido efectivamente dentro deste espaço de tempo, já que na própria tese dos recorridos estes deixaram o locado em Janeiro de 1995 (cfr, art, 4° da p. i);
- Mas se, pelo contrário, o acordo tivesse sido celebrado entre 11 de Janeiro e 14 de Novembro de 1990 já se aplicaria o n.° 2 do art. 221° do C.C. em vez do citado n 2 do art, 62° do R.A.U.;
- Estatui esta norma legal que, se o contrato a extinguir estiver legalmente sujeito a constituir-se através de documento, o distrate só ficará submetido à mesma forma se lhe forem aplicáveis razões idênticas às que ditaram aquela especial exigência da lei;
- Ora, o arrendamento de prédios urbanos, por mais de seis meses, estava, e está, legalmente sujeito à forma escrita;
- E se as exigências formais para o contrato de arrendamento urbano têm em vista a certeza jurídica e a protecção das partes, especialmente o rendatário, essas mesmas razões mantêm-se no caso de revogação do contrato;
- De facto se se admitisse a revogação do contrato sem obediência ao regime estabelecido para a sua constituição, poder-se-ia frustrar a certeza jurídica e a protecção das partes que se pretendeu garantir com a formalização por escrito do contrato de arrendamento;
- Daí que antes da vigência do R.A.U. já se entendesse que a revogação devia obedecer à mesma forma do contrato a revogar, já que o contrato de revogação visa eliminar os efeitos produzidos e a produzir pelo contrato revogado;
- Pelo que deveria submeter-se à forma deste, constituindo-se assim um prolóquio de velha sabedoria jurídica, segundo o qual os actos se desfazem pela mesma forma por que foram feitos;
- Assim, sendo em qualquer das duas hipóteses obrigatória a forma escrita e não tendo sido observada, a declaração negocial é nula. (art. 2200 do C.C.);
- Ora, se os arrendatários abandonaram o locado sem receber metade da prestação compensatória estipulada no acordo revogatório verbal, não poderão agora exibi-la, por falta de forma;
- E sendo a própria lei a declarar a nulidade do acto revogatório ou distrate, não pode depois atribuir validade ao que ela própria declara ser nulo;
- Por isso mesmo, a invocação da nulidade da revogação, estipulada pela própria lei, não excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico e social do direito;
- Acresce que o facto de os recorridos terem deixado passar tantos anos sem exercer o seu direito, constitui apenas mais um argumento para justificar a invocação de tal nulidade e afastar qualquer abuso do direito em tal arguição de nulidade;
- É que, decorrido tão grande lapso de tempo sobre o acordo revogatório e com o falecimento entrementes da pessoa que nele se obrigou ao pagamento da compensação aos inquilinos, torna-se sobremaneira difícil para os seus herdeiros fazer a prova do pagamento, até porque a instituição bancária já procedeu à destruição do cheque através do qual foi feito o pagamento da compensação acordada;
- Só os A.A. e mais ninguém podem ser responsabilizados pelas consequências da sua inércia no exercício do seu eventual direito, sendo certo que receberam metade da indemnização no montante de 4.000.000$00
- Assim, deve ser declarado nulo, por falta de forma, o supra mencionado acordo revogatório ou distrate do contrato de arrendamento, absolvendo-se os R.R. do pedido formulado na presente acção;
- Pelo que, ao julgar improcedente a apelação, confirmando assim a sentença da 1.ª instância, o Acórdão recorrido violou o disposto no n.º 2 do artigo 62.º do R.A.U e os artigos 221.º, n.º 2 e 220.º do Código Civil.”

Os recorridos ofereceram contra alegações, oportunamente mandadas desentranhar por razões tributárias.

As instâncias consideraram assente a seguinte matéria de facto:
1) Por escritura pública de 11.01.1990, junta aos autos a fls. 54 ss. e cujo teor se dá por reproduzido, DD comprou o prédio urbano inscrito na matriz sob o art. 169 da freguesia de Urgeses e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 000/00000 (al A) dos F.A.).
2) No dia 25 de Fevereiro de 1997 faleceu DD (al. B) dos F.A.).
3) No dia 12.01.06 faleceu CC.
4) Da herança aberta por óbito de DD faz parte o prédio indicado no art. 12, sendo interessados nesse inventário os réus nestes autos (al. C) dos F.A.).
5) Das heranças por óbito de CC e DD são os ora réus herdeiros, sendo interessados no inventário que corre termos sob o n.º 470/07 do 2° juízo da comarca de Guimarães (al. D) dos F.A. - em conformidade com o que dele se entendeu, face à redacção e ao art. 89 da p.i.).
6) Por acordo entre DD, como dono e senhorio, e os autores, como arrendatários, pôs-se termo ao contrato de arrendamento para habitação do prédio sito na Av. ............, n.º ../.., freguesia de Urgeses, concelho de Guimarães, o qual se encontra inscrito na verba n° 132 da relação de bens (quesito 12).
7) O acordo consistiu no seguinte: os Autores deixavam o prédio referido em 6), livre e devoluto de pessoas e bens, tendo como contrapartida o recebimento da quantia de Esc. 8.000.000$00 (quesito 22).
8) Quando saíram do locado os Autores receberam metade do valor acordado, ou seja, Esc. 4.000.000$00 (quesito 32).
9) Os restantes 4.000.000$00 (19.951,92 euros) seriam pagos quando o locado ficasse livre de todos os bens dos Autores (quesito 49.º).
10) Os Réus apenas pagaram a quantia referida em 8 (quesito 5.º).
11) Antes da propositura desta acção os Autores instaram os Réus para pagarem a quantia referida em 9), sem contudo a receberem (quesito 8.º).

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,
1- Arrendamento/Forma.
2- Conclusões.
1- Arrendamento/Forma

Delimitado, que é, o objecto do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente, e resultando da matéria de facto – ora definitivamente assente – que o impetrante, na qualidade de herdeiro do anterior proprietário e senhorio, aceita não terem sido pagos os acordados 4.000.000$00 (segunda prestação de um total de 8.000.000$00), tanto mais que o pagamento não se presume, a única e nuclear questão suscitada prende-se com a invalidade do acordo que pôs termo ao arrendamento, fixando o “quantum” em litigio.

Na óptica do recorrente, como o DD adquiriu o locado em 11 de Janeiro de 1990 e faleceu em 25 de Fevereiro de 1997, a extinção do arrendamento teria de ter sido necessariamente feita entre aquelas datas.

Obviamente que a ilacção é formalmente lógica.

Só que, não permite concluir, como conclui, que o acordo ocorreu entre 15 de Novembro de 1990 e a data do falecimento do senhorio, apenas porque os recorridos deixaram o locado em Janeiro de 1995, para daí inferir juridicamente sobre a invalidade do acordo por falta de forma.

Vejamos,

Não resultou provada a data em que foi acordada a cessação do arrendamento nem tal se pode presumir como pretende o recorrente.

Mesmo por apelo às datas que refere (o que, aliás, nunca seria suficiente para extrair uma conclusão segura) o mais que se poderia afirmar era o evento ter ocorrido entre as datas acima referidas não podendo este Supremo Tribunal tentar, sequer, buscar uma presunção judicial, o que lhe estaria vedado por se tratar de matéria de facto da exclusiva competência das instâncias.

Daí que o recorrente não tivesse logrado provar a data da cessação do contrato de arrendamento e nem, sequer, a data da sua outorga (que poderia ter sido com o anterior proprietário do imóvel) o que seria essencial para a determinação da lei aplicável e lhe cumpria para excepcionar a nulidade que arguiu (artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil).

Bem se disse no Acórdão recorrido:
“Não restam dúvidas de que o acordo em causa, celebrado entre os Autores e o falecido proprietário do arrendado, cabe na previsão do n° 2 do art° 62° do RAU.
A questão que se coloca é a de saber se tal norma é aplicável ao caso dos autos.
Temos por certo que, tal como se decidiu na sentença apelada, esta disposição legal não tem aplicação retroactiva. É o que resulta do disposto no n° 2 do art° 12° do Código Civil, uma vez que está em causa lei nova que dispõe sobre as condições de validade formal de um determinado facto, sem que se verifique a situação prevista na segunda parte desta norma. É o que resulta também do disposto no art° 2 n° 1 do DL 321-B/90 de 15/10.
Como se referiu na sentença recorrida, da factualidade provada apenas podemos ter como certo que, pelo menos em data posterior a 11/10/1990 (data da celebração da escritura de compra e venda do arrendado pelo falecido DD) e anterior a 25/02/1997 (data do falecimento do mesmo CC) os Autores se assumiam como arrendatários e o falecido como Senhorio do prédio em causa.
Não foi alegado nem se provou, a data da celebração do contrato de arrendamento, (que poderia existir mesmo antes da aquisição do arrendado pelo falecido CC) e a data do acordo revogatório deste contrato. Também não alegaram as partes qual a concreta natureza do contrato de arrendamento para habitação celebrado.
A exigência da forma escrita no que concerne a tal acordo apenas foi consagrada expressamente no RAU.
Antes da vigência de tal regime, a lei não exigia a observância de qualquer forma especial no que concerne ao acordo revogatório do contrato de arrendamento (cfr. art°s 219° do CC).
Mesmo quando o contrato que é extinto estava legalmente sujeito a documento, a posterior estipulação revogatória só está sujeita a essa forma se as razões daquela exigência lhe foram aplicáveis; se o contrato que é extinto não estava legalmente sujeito a documento, mas esta forma tiver sido adoptada pelas partes, a estipulação revogatória é válida, excepto se, para o efeito, a lei exigir forma escrita (cfr. art°s 221°, n° 2, 222°, n.° 2, do CCIV, e ainda Vaz Serra, in Rev. de Leg. e de Jur., ano 112, pág.32).
Ou seja, antes de 16 de Novembro de 1990, data da entrada em vigor do RAU, a questão da forma do acordo revogatório ou distrate só poderia colocar-se, quando a lei exigisse determinada forma para a celebração do contrato revogado ou distratado.
A mesma sentença descreve a evolução legislativa no que concerne a tal questão no que respeita aos arrendamentos habitacionais, desde a redacção original do art° 1029° do CC, que não exigia forma escrita para o arrendamento habitacional, passando pelo regime do DL 445/74 de 12/09, que consagrou a exigência de contrato escrito, até ao DL 188/76 de 12 de Março, e ao DL 13/86 de 23/01 que permitiram ao locatário a prova do contrato por qualquer meio, com aplicação aos arrendamentos existentes.
Concluiu-se na mesma decisão que, desconhecendo-se as datas do arrendamento e da revogação, desconhece-se também se o contrato e a revogação estavam sujeitos a forma escrita.
A excepção em causa é um facto impeditivo do direito que os Autores se arrogaram. Competia ao Réu a alegação e prova da concreta natureza do contrato, da data da sua celebração e, bem assim da data do acordo revogatório, a fim de demonstrar a existência da nulidade que invocou, tal como resulta do disposto no art° 342° n 2 do CC.
Não o tendo feito, não pode proceder tal excepção, como se decidiu na sentença recorrida.”

Trata-se de argumentação a que se adere sem reservas e que é fastidioso mais aprofundar, sendo que o recorrente não aduziu novos argumentos susceptíveis de abalar a pertinência dos já alinhados.

De todo o modo, e “in dubio”, sempre valeria o princípio da consensualidade negocial do artigo 219.º do Código Civil.

É nítidamente um caso de uso da faculdade remissiva do n.º 5 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do artigo 726.º do mesmo diploma.

2- Conclusões

Pode concluir-se que:
a) Para determinar da aplicação do artigo 62.º, n.º 2 do RAU ou do artigo 221.º, n.º 2 do Código Civil e se aferir da validade do acordo de revogação do contrato de arrendamento do qual constem cláusulas compensatórias, deve ser alegada e provada a data de outorga do contrato.
b) Tal alegação cumpre à parte que pretende ver tal acordo fulminado de nulidade, por força do disposto no artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil.
c) Na dúvida sobre a forma do arrendamento por desconhecimento da data da sua celebração, e atendendo às várias leis que se sucederam no tempo, vale o princípio da consensualidade do artigo 219.º do Código Civil.
d) Ao Supremo Tribunal de Justiça está vedada a extracção de presunções judiciais.

Nos termos expostos, acordam negar a revista.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa. 22 de Junho de 2010

Sebastião Póvoas (Relator)

Moreira Alves

Alves Velho