Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3318/16.7T8LSB-B.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
PRESTAÇÃO
GARANTIA REAL
SOCIEDADE COMERCIAL
TERCEIRO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
OBRIGAÇÃO
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
SOCIEDADES EM RELAÇÃO DE GRUPO
PRESUNÇÃO LEGAL
INCAPACIDADE
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I.  O artigo 6.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais, consagra o princípio da especialidade fortemente atenuada relativamente à capacidade de gozo das sociedades comerciais;

II. A afirmação da capacidade de gozo das sociedades comerciais, em especial quanto aos actos praticados aparentemente fora do âmbito da prossecução dos seus fins lucrativos estabelecidos na lei, depende sempre da avaliação das concretas circunstâncias em que os actos em causa tiveram lugar e da conclusão que se tirar a partir deles sobre se são contrários aos seus fins;

III.Tal regra vale também quanto à prestação de garantias de dívidas de entidades terceiras, uma vez que o artigo 6.º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais prevê a possibilidade de, em determinadas circunstâncias, tal acto se conter dentro dos limites da capacidade de gozo das sociedades comerciais;

IV. No processo de embargos de executado cabe à sociedade comercial executada / embargante demonstrar os fundamentos dos embargos deduzidos, enquanto factos constitutivos do seu direito, pelo que a consequência do não apuramento das circunstâncias de que derivaria a sua alegada incapacidade é a improcedência dos embargos quanto a tal fundamento;

V. Face ao disposto no artigo 409.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, a sociedade comercial só pode opor a terceiros as limitações resultantes do seu pacto social provando que os terceiros sabiam ou não podiam ignorar que os actos praticados pelos seus representantes violavam normas estatutárias que limitavam os poderes de vinculação destes.

Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


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RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1. Por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa que “Interkozha, S.L.” moveu contra “E..., S.A.” e “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.”, estando todas as referidas sociedades devidamente identificadas nos autos, esta última executada deduziu oposição à execução mediante embargos, alegando, em apertada síntese, a falta de poderes de representação da sociedade garante pelos procuradores que em seu nome intervieram na constituição dos títulos dados à execução, bem como a falta de capacidade da sociedade garante para a constituição das garantias prestadas a dívida da primeira executada, nos termos seguintes:

A “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.” apenas teve conhecimento da garantia hipotecária e acordo de pagamento que servem de título executivo na assembleia para aprovação das contas do exercício de 2014, sendo certo que em 14 de fevereiro de 2014 (data do “acordo de pagamento”) a executada “E..., S.A.” não devia à exequente a título de fornecimentos a quantia de € 646.149,26, mas apenas a quantia de € 188.965,26 e que pagou até abril de 2015 a quantia de € 90.655,36, pelo que apenas é devido actualmente à exequente o montante de € 98.299,90;

A restante quantia exequenda não é relativa a fornecimentos da “E..., S.A.” à exequente, e não está abrangida pela garantia prestada, mas está relacionada com a assumpção de dívida da “E..., S.A.” para com a sociedade “U..., Lda.”, cuja insolvência foi requerida, tendo aí a exequente reclamado créditos no montante de € 663.644,75;

A embargante desconhece os exactos contornos dos negócios celebrados entre a executada “E..., S.A.” e a exequente e desconhecia que os seus procuradores tinham realizado a prestação da garantia ora em execução;

A alienação ou oneração de qualquer imóvel propriedade da executada/embargante carece de deliberação tomada em Assembleia Geral, devidamente convocada para o efeito, a qual não teve lugar.

O objecto social da embargante desenvolve-se através de compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, gestão de imóveis próprios e participação em sociedades, tendo os seus gerentes e administradores poderes de representação para a realização dos negócios tendentes à prossecução do objecto social, sendo ineficazes em relação a ela todos os demais negócios por eles realizados que não tenham relação com este objecto;

Os seus procuradores que outorgaram a constituição de hipoteca, a garantia prestada e a garantia de dívida assumida pela executada “E..., S.A.” não detinham os poderes que se dizem verificados e conferidos, aquando da emissão do termo de autenticação que se lavrou, bem sabendo a exequente que assim era.

Por essa razão os negócios celebrados entre os seus representantes e a exequente são nulos ou ineficazes em relação à sociedade.

Ainda que assim se não entenda a “E..., S.A.” apenas está em dívida para com a exequente a quantia de € 98.299,90, que é resultante de fornecimentos que lhe foram efectuados pela exequente.

Pede a embargante que sejam declaradas procedentes as invocadas excepções de ineficácia e nulidade dos negócios de constituição da garantia hipotecária ou, se assim se não entender, a redução do valor da quantia exequenda ao montante de € 98.299,90.

2. Liminarmente admitida a oposição à execução por embargos de executado foi a exequente notificada para os contestar, o que ela fez, resumidamente, pela forma seguinte:

São entre si incompatíveis os fundamentos dos embargos consistentes nas excepções de nulidade e de ineficácia dos negócios de constituição de garantia hipotecária, porque assentes em causas de pedir inconciliáveis entre si. Desse facto resulta a ineptidão da petição de embargos.

Não ser admissível a dedução do pedido de redução da quantia exequenda por parte da embargante por ser parte ilegítima, uma vez que o título dado à execução é o documento particular autenticado de confissão de dívida da “Ecoexclusive, S A”, o qual tem força probatória plena, pelo que apenas pode ser posto em causa com base na sua falsidade.

Tendo a entidade documentadora, depois de verificar a qualidade das partes outorgantes e a existência de poderes para o acto, percepcionado directamente as declarações nele contidas o documento faz de tais declarações prova plena, não podendo a sociedade embargante opor as limitações resultantes do seu objecto social, a não ser ao terceiro que as conheça ou não as possa ignorar, sendo certo que a exequente não está obrigada a conhecer, nem conhecia o objeto social nem a forma de obrigar da embargante.

Ademais, para a exequente/embargada eram evidentes, públicas e notórias, as relações entre a embargante e a executada “E..., S.A.”, considerando a ligação profissional e familiar das pessoas físicas que representavam cada uma delas e com quem ela contratava tendo a convicção de que se tratava de empresas do mesmo grupo e com interesses comuns, pelo que se lhe afigurou evidente o seu interesse na prestação da garantia a favor da embargada.

A hipoteca encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial, fazendo prova de que o direito existe na esfera jurídica da exequente.

A embargante tem consciência do exercício abusivo da invocação da excepção da ineficácia e nulidade da constituição de hipoteca nesta fase do processo.

3. Dispensada que foi a audiência prévia e finda a suspensão da instância em virtude da pendência de uma causa prejudicial, teve oportunamente lugar uma audiência final a que se seguiu a prolação da sentença em primeira instância.

Na mencionada sentença foi a oposição à execução deduzida pela embargante julgada improcedente, e, em consequência, ordenado o prosseguimento da execução para pagamento à exequente da quantia de € 566.896,34 (quinhentos e sessenta e seis mil oitocentos e noventa e seis euros e trinta e quatro cêntimos).


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Parte II – A Revista

4. Inconformada com o assim decidido a executada embargante interpôs recurso de revista per saltum (artigo 678.º do Código de Processo Civil) para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo as suas alegações de recurso pela forma seguinte:

“(…)

2. O objeto do recurso é a falta de capacidade, vinculação e representação voluntária da sociedade ora recorrente, na constituição da garantia hipotecária a terceiro, e na emissão da procuração geral utilizada para a outorga deste contrato.

3. A sentença recorrida, estriba o seu juízo decisório no pressuposto de que a prestação da garantia visada, isto é, a hipoteca, se insere no âmago da capacidade de gozo da recorrente, por estar abrangida pelas exceções legalmente previstas, e que as limitações decorrentes dos seus estatutos não são oponíveis perante terceiros, mormente à exequente/recorrida;

4. Fê-lo, porém, na nossa modesta opinião, laborando em erro e ignorando factos latentes no processo, inclusivamente dados como assentes;

5. Na verdade, a garantia prestada extravasa a capacidade jurídica da recorrente, bem assim, em matéria de vinculação, fundamento legal para firmar a sua responsabilidade (artigo 409.º do Código das Sociedades Comerciais);

6. A sentença partiu, de uma errada premissa jurídica, determinante para a apreciação da causa, não dando relevância ao ónus da prova, absteve-se de indagar qual a extensão da capacidade jurídica, e consequentemente, quais os limites legais à vinculação das sociedades comerciais;

7. Atrevemo-nos a dizer, que em matéria de representação e vinculação, não só as regras societárias são passíveis de aplicação ao caso “sub judice”, mas também, os mecanismos e expedientes próprios do direito civil, são suscetíveis de fundar aquela que, no nosso entender, será a solução jurídica a ceder ao factualismo supra descrito.

8. “In casu”, pretende-se aferir da validade e eficácia de uma hipoteca, constituída para garantir uma dívida de uma sociedade terceira;

9. Como ponto de partida, socorremo-nos do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, que estabelece a regra em matéria de capacidade de gozo das sociedades, entendida como “a aptidão para ser titular de um círculo, com mais ou menos restrições, de relações jurídicas”, sendo esta determinada e delimitada pelo fim da sociedade comercial, que é o lucro;

10. Na verdade, inerente à sua própria definição de sociedade comercial, encontra-se a finalidade da obtenção de lucros e distribuição pelos respetivos sócios, pelo que, será válida a constituição de quaisquer relações jurídicas ou celebração de negócios jurídicos, que se demonstrem necessários ou convenientes ao referido fim;

11. Porém, violado que seja o princípio da especialidade, corresponder-lhe-á a sanção de nulidade, por força do artigo 294º do Código Civil;

12. A imperatividade desta norma e a consequente nulidade em caso da sua violação, decorre desde logo, dos interesses que visa proteger, nomeadamente os interesses de terceiros;

13. Estas considerações na sua singeleza, relevarão para aquilo que, a final, viremos a defender, sobre a quem incumbe o ónus da prova em caso de prestação de garantia;

14. Ou seja, averiguar, se uma sociedade atuar fora do círculo permitido pelo fim, tem como consequência jurídica - em princípio - a nulidade do negócio;

15. E este parece ser, com o devido respeito, um pressuposto limiar que falhou no juízo decisório vertido na sentença recorrida, aquando da identificação do objeto do litígio e questões a decidir;

16. Desde logo, pela delimitação do litígio é evidente que o tribunal aferiu da validade do negócio ao indagar se a atuação dos procuradores da recorrente extravasou “os poderes conferidos no âmbito da prossecução do objeto da sociedade” e, consequentemente, se existiu “qualquer vantagem para a mesma proveniente da prática de tal ato”;

17. Ora, numa clara mistura de conceitos, o tribunal alicerçou-se primeiramente nos limites impostos pelo objeto social, para depois aferir se o fim social havia sido respeitado;

18. É certo, que o objeto social poderá ser relevante para efeitos de vinculação, mas não limita a capacidade jurídica das sociedades comerciais, mostrando-se irrelevante para a sua validade ou invalidade;

19. Portanto, saber se o objeto social foi respeitado em nada contende com a questão de saber se o ato em si – hipoteca – visava ou não a obtenção de lucro e, consequentemente, era válido ou inválido;

20. Por outro lado, a nulidade do ato contrário ao fim da sociedade não está dependente da boa ou má-fé de terceiro, ou seja, o conhecimento ou desconhecimento da recorrida poderá relevar para efeitos de vinculação e para a relação entre os atos praticados e o objeto social, mas demonstrar-se-á totalmente indiferente para aferir da validade do negócio;

21. Julgamos que o ponto de partida deve ser o inverso àquele que foi considerado na douta sentença, que seria aferir o respeito pelo fim social e, se o negócio passar o teste da validade, então, aí proceder-se-ia ao da vinculação, mediante a análise do objeto social, de cláusulas estatutárias que limitem os poderes de representação ou ainda - e com relevo ao caso – dos limites legais à própria vinculação perante terceiros;

22. Julgamos que, em princípio, a celebração de qualquer negócio de caráter gratuito terá como consequência a respetiva nulidade, incluindo-se a prestação de garantias, reais ou pessoais, a outras entidades que não a própria sociedade (artigo 6.º, n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais);

23. Em face do que ficou provado em tribunal, não temos uma constituição de hipoteca remunerada, nem tão pouco uma relação de grupo ou domínio, causas estas, exclusivas de nulidade;

24. Para que a garantia prestada não seja nula, tem necessariamente de existir uma relação alegada entre a sua constituição e o interesse social da recorrente;

25. Ora, da matéria dada por assente em nada resulta tal conexão entre o seu interesse social e a constituição da hipoteca;

26. Nem tão pouco devemos concluir que esta relação deve ser presumida, até porque, sendo a solução de princípio a nulidade da prestação de garantias gratuitas a favor de outras entidades, a presunção de existência da relação entre o interesse da garante com a garantia prestada, seria subverter por completo aquela primeira regra da nulidade;

27. Não se compreende, com o devido respeito, como é que perante um ato em princípio nulo, porque gratuito e sem fim lucrativo, o decisor dá automaticamente o “salto” para a sua validade porque praticado por uma sociedade, através dos seus órgãos sociais, como se estes não praticassem atos ilícitos, inválidos ou ineficazes;

28. Parece-nos, pois, que a prestação de garantia pela recorrente é nula por violação do artigo 6.º, n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais , na medida em que não caberá nas exceções legalmente previstas, porquanto ficou por demonstrar o fundado interesse próprio da sociedade garante na constituição da hipoteca a favor da recorrida;

29. Por tudo o referido, e ao contrário do entendimento do meritíssimo juiz, o ónus de alegar e provar que aquele interesse justificado existe pertence àquele que tem interesse em afirmar a validade da garantia;

30. Os terceiros, em particular a aqui recorrida, estão obrigados a conhecer a lei e os limites que esta estabelece para a capacidade das sociedades comerciais, não sendo o simples facto de um ato ter sido praticado pelos órgãos sociais ou por procuradores mandatados para o efeito que o torna válido;

31. Além do argumento literal fundado na letra da lei, tal posição decorre também de um próprio argumento teleológico, tendo em conta a função primordial do artigo 6.º, que é a proteção dos interesses de terceiros, mormente credores da sociedade garante e não da sociedade devedora;

32. A tese que ora se pugna encontra igualmente sustento na jurisprudência pátria, nomeadamente, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2017-11-16 (Graça Amaral) e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2003-10-28 (Moreira Alves) e no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2020-09-07, proc. 142/19.9T8FND-B.C1 (Barateiro Martins);

33. Nesta parte, sempre se dirá em jeito de conclusão, que ficou por demonstrar o fundado interesse próprio da sociedade garante na constituição da hipoteca a favor da devedora, o qual deveria ser provado pela parte interessada na validade do negócio, o que de resto, resulta da regra geral em matéria de ónus da prova prevista no artigo 349.º do Código Civil, o que a douta sentença não fez;

Mais,

34. A procuração ao abrigo da qual os representantes da recorrida atuaram é nula, porque se traduz numa procuração generale, violadora de normas imperativas – nomeadamente do esquema organizativo-funcional das sociedades comerciais e em matéria de nomeação de administradores – nulidade que podia e devia ter sido conhecida oficiosamente pelo tribunal, nos termos do artigo 286.º do Código Civil, logo, consequentemente, a garantia prestada sob a sua veste será ineficaz, nos termos do artigo 268.º do Código Civil;

35. Sendo a recorrida uma sociedade anónima, regerá na presente matéria o artigo 391.º, nº 7 e 8 do Código das Sociedades Comerciais, sendo que, quanto à competência de oneração de um bem imóvel no âmbito de atuação dos administradores, encontra-se inserida no artigo 406, al. e) do Código das Sociedades Comerciais;

36. Outro tanto, a nomeação de procuradores apenas pode ser efetuada para a prática de determinados atos ou categorias de atos. Impedindo-se assim, que um terceiro adquira a mesma extensão de poderes de representação de uma sociedade que os seus administradores, distorcendo o regime legal orgânico-funcional (artigo 391.º, nº 8 do Código das Sociedades Comerciais);

37. À luz do ordenamento jurídico-societário português, a procuração geral que serviu de instrumento de representação nos autos, para a constituição da hipoteca é inadmissível, por violador a limitação legal contida na norma atrás referida;

38. Pelo que, independentemente de cláusula estatutária ou deliberação social, não será válida uma procuração geral, na qual um terceiro fique incumbido da representação, senão total, quase total da sociedade representada, equivalendo materialmente tal negócio jurídico à subtração dos poderes do órgão administrativo-representativo legalmente incumbido para o exercício de tais competências;

39. Conforme se retira do teor da procuração junta ao processo, reconduz-se, na verdade, à modalidade da procuração geral, isto porque, ainda que haja especificação dos poderes conferidos, se estes se reconduzirem à totalidade ou quase totalidade do núcleo de competências próprias do órgão administrativo-representativo, então, estaremos perante uma procuração geral, porquanto anuladora da competência do órgão legal e imperativamente incumbido das competências delegadas;

40. Atenta, pois, a generalidade dos poderes conferidos demonstra-se que o documento que habilitou os procuradores a prestar a garantia a favor da sociedade devedora é nulo;

41. Com efeito, o tribunal a fim de analisar a validade do negócio e vinculação da sociedade, partiu do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais   – conferindo a validade do negócio com recurso às limitações impostas pelo objeto social, o que já vimos, erradamente – e, logo de seguida, chamou à colação o artigo 409.º do Código das Sociedades Comerciais , a fim de, também com base no objeto social, afirmar a vinculação da recorrida;

42. A consequência da nulidade da procuração traduzir-se-á, como tal, numa representação sem poderes, em que os atos praticados “por um representante sem poderes ou «falsus procurator» (com falta de poderes representativos ou com excedência dos poderes que lhe foram atribuídos) são ineficazes em relação à pessoa em nome da qual se celebrou o negócio, salvo se tiver lugar a ratificação (artigo 268.º, n.º 1 do Código Civil, a qual não ocorreu no presente caso.

43. Deste modo, não tendo ocorrido ratificação da prestação de garantia no caso em concreto, os representantes sem poderes responderão perante a contraparte (sociedade credora), com fundamento em responsabilidade pré-negocial (artigo 227.º Código Civil), pelo interesse contratual negativo, se desconheciam, com culpa, a falta de poderes;

44. Já por seu turno, se os representantes sem poderes conheciam a falta de legitimidade representativa, a contraparte poderá optar pela indemnização pelo não cumprimento, sendo que, na ausência de culpa, os representantes sem poderes não responderão perante a contraparte;

45. De tudo o que ficou exposto, há que concluir pela nulidade da procuração outorgada a favor dos representantes que intervieram na prestação da garantia a favor da recorrida, em face do ser carácter geral, e consequentemente, dada a ausência de ratificação do negócio, a ineficácia do mesmo, face à recorrente;

46. De facto, a atuação dos representantes da garante, situa-se fora do círculo de poderes que a lei lhes confere, porque fora da capacidade jurídica das sociedades comerciais, logo será ineficaz por força do artigo 409.º, n.º 1, primeira parte, o que se coaduna identicamente com a solução perfilhada pela Primeira Diretiva sobre Direito das Sociedades;

47. Finalmente, cumprir-nos-á debruçar sobre aquela que foi a última consideração do tribunal em sede de sentença emanada, quanto à vinculação da recorrida nos termos do artigo 409.º do Código das Sociedades Comerciais;

48. O que parece ter fugido ao juízo decisório empreendido pelo tribunal, com o devido respeito, é o contido na primeira parte do n.º 1 do artigo 409.º do Código das Sociedades Comerciais: “Os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere (…)”;

49. Se por um lado, os atos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros (artigo 409.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais), por outro, existirá atuação dos administradores fora dos poderes conferidos pela lei, quando estes o fizerem “fora do círculo da capacidade jurídica da sociedade”;

50. Aliás, a Primeira Diretiva sobre Direito das Sociedades – Diretiva 68/151/CEE do Conselho de 9 de março de 1968, alterada pela Diretiva 2009/101/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009 - admitia que a sociedade poderia não ficar vinculada se os atos dos órgãos da sociedade excedessem os “poderes que a lei atribui ou permite atribuir a esses órgãos”;

51. Assim, se a capacidade é limitada pelo fim social, não se poderá reconhecer que a lei atribui poderes aos órgãos societários para a prática de atos que não respeitem esse fim social;

52. Ora, se os terceiros estão obrigados a saber quais os limites que a lei estabelece à atuação dos órgãos sociais, por maioria de razão, estarão obrigados a conhecer os limites que a lei estabelece para a própria capacidade da sociedade;

53. Ante o exposto, fica claro que o juízo empreendido pelo tribunal, fundado na parte final do artigo 409.º, n.º 1 e no n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, havia, isso sim, de se ter socorrido da primeira parte do artigo 409.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais, pois de nada relevam as limitações decorrentes dos estatutos ou do objeto social, se, à partida, os representantes atuaram fora dos poderes que a lei atribui aos administradores;

54. Consideramos ter havido ainda, por parte da douta sentença, um “alhear-se” da análise de um conjunto de factos, que nos parecem ser da maior importância, que a não acontecer, permitiriam esclarecer a situação jurídico-funcional da recorrente;

55. Com efeito, os representantes da sociedade garante, tinham interesse direto na prestação da garantia visada, na medida em que são acionistas da sociedade devedora;

56. Contudo, um interesse pessoal ou interesse enquanto sócios da sociedade devedora e não qualquer interesse da sociedade garante, aqui recorrente, o que nos reconduz à questão de se saber se estamos perante um abuso de representação;

57. Ora, diante o presente factualismo, ainda que não se demonstre o conluio – que sempre conduziria à nulidade do negócio – a verdade é que a sociedade credora e exequente não podia ignorar que prestação de uma garantia gratuita por representantes voluntários da sociedade garante que são simultaneamente acionistas da sociedade devedora era contrária aos fins da representação, desde logo, porque contrário ao fim social, cujo escopo é o lucro;

58. O que é reforçado quando atentamos, quer na posterior declaração de insolvência da sociedade devedora, quer no facto de a hipoteca constituída o ter sido para garantir uma dívida, que a sociedade credora bem sabia que não era da sociedade garante;

59. Na verdade, a recorrida não podia ignorar que os representantes da recorrente e garante eram acionistas da sociedade devedora, e que a prestação da garantia em nada serviria o interesse da primeira;

60. Ao concluir pela validade da procuração outorgada, estaremos, pois, perante uma situação de Abuso de Representação, que determinará a nulidade do negócio (havendo conluio), nos termos do artigo 281.º do Código Civil ou a sua ineficácia, nos termos do artigo 269.º do Código Civil.

61. Finalmente, não podemos deixar de observar, que o processo executivo, ao ser cindido em dois, do qual este apenso faz parte, levou à prolação de duas sentenças distintas, com as correspondentes condenações, sobre o “mesmo caso da vida”;

62. Pelo exposto, julgamos, modestamente, que o meritíssimo juiz da 1ª instância, fez uma desadequada interpretação e aplicação das normas legais adequadas à situação concreta, designadamente o disposto nos artigos 6º, nº 3, 391º, nºs 7 e 8 e 409º do Código das Sociedades Comerciais e 227º, 266º, 268º, 288º, 294º e 349º do Código Civil.”

Com as suas alegações, e em apoio das posições que defende, a recorrente juntou um parecer elaborado por uma Senhora Docente Universitária.


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5. Por sua vez, a exequente / embargada apresentou articulado de resposta às alegações do recurso de revista, o qual termina com as seguintes CONCLUSÕES: [1]

“1. A Recorrente (LICRA) e as pessoas que a representaram, nos actos em causa (hipoteca e aditamentos), são especialmente conexionadas com as da devedora principal (Ecoexclusive), quer por via, das participações sociais detidas, quer pela via do exercício em ambas, e de modo cruzado, de cargos de administração/gerência, quer por estreitas relações familiares, que devem ser tidos em consideração, nomeadamente para efeitos de concluir que estamos perante actos onerosos, não podendo concluir-se o inverso;

2. E as ligações públicas, pacificas e notórias, referidas no ponto anterior, também eram percecionadas pela circunstância de a devedora principal, Ecoexclusive, aquando da outorga dos instrumentos contratuais em causa (hipoteca e aditamentos), exercer a sua atividade nas instalações correspondentes ao imóvel objeto da hipoteca, e até existir um contrato de arrendamento entre a LICRA e a primeira (vide certidão de registo predial do prédio);

32. O aludido contrato de hipoteca e aditamentos foi outorgado por AA e BB, que se arrogaram na qualidade de procuradores da Recorrente, “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.”, E que fizeram uso de procuração a favor dos mesmos;

33. A procuração, outorgada em 8/5/2013, em que foram atestados os poderes de AA e BB, foi outorgada por CC e DD na qualidade de administradores da sociedade da LICRA – COMÉRCIO IMOBILIÁRIO, S.A.

34. A Recorrente tinha como objeto social a compra e venda de imóveis para revenda, gestão de imóveis e participação em sociedades de qualquer objeto e obrigava-se com duas assinaturas, do Presidente e do Vice-Presidente do Conselho de Administração.

35. Ora, era Presidente do Conselho de Administração da LICRA, CC (que era, em simultâneo, administrador único da E...) e Vice-Presidente DD, o primeiro em virtude de deliberação datada de 25-06-2012 e a segunda de deliberação datada de 16-01-2013;

36. A devedora principal, a sociedade “E..., Lda.”, foi constituída por deliberação de 30-12-2009, tendo como sócios EE e BB, sendo gerente este último.

37. Por deliberação de 25-05-2012, foi a mesma transformada em sociedade anónima, assumindo a firma “E..., S.A.” e tendo como acionistas EE (pai da procuradora da LICRA, DD), BB (procurador da LICRA na constituição da hipoteca e aditamentos), AA (procuradora da LICRA na constituição da hipoteca e aditamentos), CC e FF.

38. Por deliberação datada de 23-07-2012 foi nomeado como administrador único da Ecoexclusive, para o triénio 2012/2014, CC, que viria a renunciar em 23-10-2017.

39. CC e GG estão registados como filhos de EE (fundador da Ecoexclusive)

40. BB está registado como filho de BB (procurador da LICRA na constituição da hipoteca e aditamentos) e de HH.

41. Aquando da outorga da hipoteca e dos aditamentos, a “E..., S.A.” exercia a sua atividade nas instalações correspondentes ao imóvel objeto da hipoteca por parte da LICRA;

42. Em face do exposto, torna-se evidente a conexão familiar e societária entre a LICRA, Recorrente, e a devedora principal, Ecoexclusive;

43. A referida conexão familiar e societária induz a perceção, perante terceiros, in casu, a Recorrida, de estarmos perante um grupo de facto de empresas, com interesses comuns, sendo de concluir o percetível e natural interesse próprio da LICRA na constituição da hipoteca e respetivos aditamentos que não se provou que não existisse;

44. Consta da fundamentação de facto da sentença, “a comprovada circunstância de CC, na qualidade de administrador único da sociedade “E..., S.A.”, ter intervindo na denominada «confissão de dívida, acordo de pagamento» outorgada em 14-02-2014 e à qual se reportam os factos provados em 10 a 12, instrumento em cujo considerando D) expressamente se refere que «[a] Primeira Outorgante», leia-se a aqui executada/embargante, «constituiu hipoteca voluntária sobre um prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...49 da Freguesia ..., Concelho ..., a favor da Primeira Outorgante para garantir o pagamento do fornecimento dos bens referidos em A) e por isso tem interesse direto na celebração de um acordo de pagamento do montante em dívida». Ora, nessa mesma data (14-02-2014), o identificado CC era, nem mais nem menos, também Presidente do Conselho de Administração da executada/embargante”

45.Assim, haverá que concluir que a invocação da falta de poderes é ilegítima e abusiva, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelo fim social e económico desse direito, podendo concluir-se atenta a posição assumida pela Recorrente, que estamos perante uma clara situação de ABUSO DE DIREITO.

46.Com efeito, pode e deve entender-se que a atuação da Recorrente, se traduz em autêntico venire contra factum proprium, considerando, nomeadamente e além do mais, que não foi invocado, nem resultou provado, qualquer ação da LICRA contra os procuradores da mesma, que a procuração outorgada tenha sido revogada, que os actos em causa tenham sido objeto de ação visando a declaração da sua nulidade, o que reflete, necessariamente, implícito consentimento e aceitação da atuação daqueles, não sendo legítimo que, com base numa invocada violação formal do contrato de sociedade, a LICRA, Recorrente, pretenda desvincular-se das obrigações que em seu nome foram assumidas;

47.Assim, ao contrário do que alega a Recorrente, não terá existido abuso de representação por parte dos procuradores que a representaram na hipoteca e aditamentos.

48.Importa referir que se o contrato de hipoteca é adequado e se enquadra na atividade da sociedade garante e seria esta que tinha que provar o contrário.

49. Mais, se há ou não, relação de grupo entre a devedora principal e a sociedade garante, a sua “existência” ou “inexistência”, deve ser demonstrada pela entidade que pratica o acto e não pelo terceiro.

50. Com efeito, não é sempre necessário a entidade garante, in casu a Recorrente, alegar o interesse e muito menos o que procura concretizar.

51. É à sociedade garante, Recorrente, que cumpre atuar no giro comercial e dentro da capacidade que a Lei lhe confere.

52. Por isso não tendo a LICRA, recorrente, provado que não tinha interesse próprio no ato de hipoteca e aditamentos, não há razão para concluir que esse interesse não existisse

53. Estando em causa a violação do princípio da especialidade (nº 3 do artigo 6º), dos factos provados, não resulta a inexistência de interesse próprio da Recorrente ou a inexistência da relação de grupo.

54. Todo o circunstancialismo e ligações explicitas entre a Recorrente e a Recorrida, de cariz pessoal, societário e material (o local onde funcionava a sociedade devedora é o que constitui objeto da garantia), dão a entender que estamos perante um grupo de facto de empresas com interesses comuns.

55. Também das regras da experiência comum, atenta a mais do que aparente existência de um grupo de facto de empresas, haverá que concluir que tendo a sociedade garante, LICRA, um fim lucrativo, fazendo parte da sua atuação no giro comercial, a simples prestação de uma garantia, faz presumir que algum interesse teve ao prestá-la, não tendo provado que o mesmo não existisse.

56. Em conclusão, seria ónus da sociedade Recorrente ilidir tal presunção, provando a inexistência de qualquer interesse próprio ou de relação de domínio ou de grupo.

57. Quanto à vinculação da sociedade, a Recorrente não provou que a Recorrida tivesse consciência e conhecimento de que nunca a Recorrente consentiria naquela outorga e, principalmente, não se provou que a Recorrida sabia que os procuradores não detinham poderes de representação da Recorrente para celebrar os negócios em causa;

58. Isto tendo ainda em conta que, de harmonia com o que decorre do facto provado em 13, AA e BB agiram com base numa procuração que, entre outros, lhes conferia poderes para, «[p]elo preço e condições que considerarem convenientes, (..) hipotecar (..) quaisquer bens imóveis ou móveis, (..), seja para que fim for, podendo outorgar escrituras e assinar contratos nos termos e com as cláusulas que bem entender», «rectificar ou alterar qualquer contrato, escritura ou contrato promessa de compra e venda», «requerendo e assinando tudo o que necessário for aos expostos nas alíneas anteriores».

59. Tendo presente o seu objeto social (compra e venda de imóveis para revenda, gestão de imóveis e participação em sociedades de qualquer objeto), nos termos do nº 2 do artigo 409° do Código das Sociedades Comerciais, a Recorrente não pode opor à Recorrida as limitações de poderes resultantes do seu objeto social;

60. Importando referir que, feita a ponderação dos interesses em causa, por um lado o da sociedade garante e Recorrente (LICRA), in casu, absolutamente conexionada com a sociedade devedora (E...), e, por outro lado, o interesse do terceiro (I...), que com ela se relaciona contratualmente, importa apurar qual a interpretação mais consentânea com o sistema legal e o funcionamento da sociedade, reconhecendo, entre os interesses em causa, quais é que devem merecer proteção superior;

61. Entende-se que, entre uns e outros, se impõe dar prevalência aos interesses de terceiros (Recorrida), porque a tutela da sua confiança, alicerçada na aparência da suficiência da representação como é o caso concreto atentos os factos provados, é a que melhor satisfaz o comércio jurídico, afastando atuações, que propiciam o abuso de direito;

62. Quanto á invocada nulidade da procuração usada nos atos em causa, não pode colher provimento a tese da Recorrente porquanto, tal como explicitada nos factos provados, a mesma delimita de modo específico, os poderes que são conferidos pela Recorrente, devidamente representada, aos mandatários, nomeadamente para hipotecar e assim cumprindo o desígnio para o qual foi usada;

63. Não estamos assim perante uma procuração com poderes gerais;

64. Entende a Recorrida que o Meritíssimo Juiz A QUO, na douta sentença, fez correta subsunção da Lei aos factos dados como provados, usando de fundamentação de Direito que está conforme à corrente jurisprudencial e doutrinária dominante, sem desprimor e respeito por opiniões contrárias;

Em face do exposto, entende-se ser de manter a douta sentença recorrida, julgando-se improcedente o recurso, fazendo-se assim JUSTIÇA”.


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6. Admitida a revista interposta ao abrigo do artigo 678.º do Código de Processo Civil e colhidos que foram os Vistos dos Senhores Juízes Conselheiros que intervêm no julgamento, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta.

Atendendo às conclusões das alegações do recurso de revista, as questões de que cumpre conhecer estão relacionadas com a validade da constituição das garantias prestadas pela sociedade “Licra - Comércio Imobiliário, S.A.” em relação às dívidas da sociedade “E..., S.A.” para com a exequente.

Tal questão central divide-se, para efeito de análise, em duas:

A de saber se a prestação de garantias relativas a uma dívida da sociedade terceira extravasa, no caso sub judice, a sua capacidade (artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais) por se situar fora do âmbito da prossecução dos seus fins legalmente estabelecidos;

Em caso de resposta negativa à anterior questão, a de saber se, em concreto, os representantes da sociedade garante que intervieram no acto de prestação da garantia estavam munidos de poderes para esse efeito e podiam validamente vincular a sociedade embargante, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade (artigo 409.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais).

Comecemos por analisar a matéria de facto que resultou provada.



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FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

São os seguintes os factos considerados provados, e não provados, em primeira instância:

A – Factos Provados

1. Por requerimento datado de 2 de fevereiro de 2016, a sociedade “Interkozha, S.L.” moveu contra “E..., S.A.” e “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.”, acção executiva, sob a forma de processo comum ordinário, para pagamento da quantia global de € 585.749,26 (quinhentos e oitenta e cinco mil setecentos e quarenta e nove euros e vinte e seis cêntimos), oferecendo como títulos executivos um denominado contrato de hipoteca celebrado no dia 18 de julho de 2013 (alvo de um aditamento datado de 16 de setembro de 2013) e uma denominada “confissão de dívida, acordo de pagamento” autenticada em 14 de fevereiro de 2014.

2. O aludido contrato de hipoteca foi outorgado por AA e BB, que se arrogaram na qualidade de procuradores da aqui executada / embargante “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.”, e por II, que se arrogou na qualidade de procurador da aqui exequente / embargada “Interkozha, S.L.”, com sede na Av. ..., ... (...), ..., NIPC JJ.

3. Por AA e BB, na dita qualidade em que outorgaram, foi dito que a “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.” é dona do prédio urbano constituído por quatro barracões para fábrica de curtumes e logradouro, atravessado pela Rua ..., na Zona Industrial ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...49/..., o qual “dão de hipoteca (…) pelo prazo de cinco anos, à I..., para garantia dos fornecimentos efectuados por esta à sociedade “E..., S.A.” (…) até ao montante de UM MILHÃO E QUINHENTOS MIL EUROS desde que verificadas as seguintes condições:

a) Que tais fornecimentos sejam efectuados com prazo de pagamento até noventa dias, contados a partir da recepção das mercadorias fornecidas na sede da E....

b) Decorrido o prazo de vencimento das facturas que titulam os fornecimentos, caso a ECOEXCLUSIVE os não pague, obriga-se a INTERKOZHA a notificar a garante LICRA, que deverá substituir-se à principal devedora e efectuar o pagamento no prazo de sessenta dias.

c) Caso a garante LICRA não pague os fornecimentos efectuados no prazo constante da alínea b), a INTERKOZHA poderá executar a garantia hipotecária.

d) Se a INTERKOZHA não cumprir os procedimentos constantes das alíneas anteriores, perde o direito de executar a garantia.

e) A presente garantia hipotecária abrange todas as quantias que se encontrem em dívida pela principal devedora, e cuja dívida corresponda aos fornecimentos efectuados a partir da data da presente hipoteca, desde que a INTERKOZHA tenha cumprido todas as condições previstas nas cláusulas antecedentes.

Por todos foi dito que aceitam o presente contrato nos termos expostos”.

4. No susodito dia 18 de julho de 2013, KK, solicitador com a cédula profissional n.º ...66, no âmbito de um termo de autenticação cujo teor se considera integralmente reproduzido, declarou terem comparecido perante si como outorgantes AA e BB, que outorgaram na qualidade de procuradores da sociedade “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.”, e II, que outorgou na qualidade de procurador da aqui exequente/embargada “Interkozha, S.L.”, mais declarando que verificou “a identidade dos primeiros outorgantes por meu conhecimento pessoal, tendo verificado os seus poderes por procuração de que apresentam fotocópia”, verificando ainda “a identidade do segundo, que compreende perfeitamente a língua portuguesa, pelo documento nacional de identidade nº ...8G (…), tendo verificado a qualidade em que se apresenta e os seus poderes de representação por procuração de que apresenta fotocópia”.

5. Declarou de igual modo que pelos identificados outorgantes foi dito “que confirmam perante mim o conteúdo do documento anexo, que leram e assinaram, declarando que ele exprime a sua vontade.

(…) Este termo foi lido e explicado o seu conteúdo aos outorgantes”.

6. Por intermédio de um denominado aditamento outorgado em 16 de setembro de 2013, AA e BB, que se arrogaram na qualidade de procuradores da aqui executada/embargante “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.”, e II, que se arrogou na qualidade de procurador da aqui exequente/embargada “Interkozha, S.L.”, foi dito:

“Que entre ambos outorgaram um contrato de hipoteca em dezoito de julho último (…), autenticado por KK, Solicitador, (…).

Que, pelo presente aditam ao referido contrato as seguintes cláusulas:

f) A presente garantia hipotecaria abrange igualmente todas as quantias em divida correspondente a fornecimentos efectuados desde um de janeiro de dois mil e treze e cujo pagamento se encontra titulado por cheques ou endossos entregues pela E..., S.A.

g) A INTERKOZHA, S.L. obriga-se a fornecer, desde que tal lhe seja solicitado, e no prazo de vinte dias, quantidades de mercadoria equivalentes às quantias efectivamente pagas pela E... na condição de existir acordo quanto aos requisitos de qualidade e preço da pele a fornecer e a mesma mercadoria esteja disponível em stock na INTERKOZHA, S.L., sendo certo que o montante global em dívida nunca pode ultrapassar um milhão e quinhentos euros.[2]

h) A garantia hipotecária poderá ser accionada desde que não sejam cumpridas todas as condições previstas.

i) Em caso de litígio, todas as comunicações serão expedidas por correio postal registado com aviso de recepção e caso venham a ser devolvidas ao remetente, a interpelação considerar-se-á então devidamente realizada através de depósito, pela segunda contraente ou por quem esta designe, de comunicação escrita com conteúdo idêntico, no receptáculo postal ou na própria morada da LICRA acima referida, atestado por declaração de uma testemunha.

j) A INTERKOZHA obriga-se a cumprir o contrato independentemente das pessoas que sejam titulares das suas participações sociais ou da sua administração, mesmo sendo esta administração judicial, obrigando-se a não executar a garantia sem que tenha decorrido cinco anos a contar de um de janeiro de dois mil e treze, desde que sejam cumpridas todas as cláusulas deste contrato.

Por todos foi dito que aceitam o presente contrato nos termos expostos”.

7. Naquele mesmo dia 16 de setembro de 2013, KK, solicitador com a cédula profissional n.º ...66, no âmbito de um termo de autenticação cujo teor se considera integralmente reproduzido, declarou terem comparecido perante si como outorgantes AA e BB, que outorgaram na qualidade de procuradores da sociedade “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.”, e II, que outorgou na qualidade de procurador da aqui exequente/embargada “Interkozha, S.L.”, mais declarando que verificou “a identidade dos primeiros outorgantes por meu conhecimento pessoal, tendo verificado os seus poderes por procuração de que apresentam fotocópia”, verificando ainda “a identidade do segundo, que compreende perfeitamente a língua portuguesa, pelo documento nacional de identidade nº 21953228G (…), tendo verificado a qualidade em que se apresenta e os seus poderes de representação por procuração de que apresenta fotocópia”.

8. Declarou ainda que pelos identificados outorgantes foi dito “que confirmam perante mim o conteúdo do documento anexo, que leram e assinaram, declarando que ele exprime a sua vontade.

(…) Este termo foi lido e explicado o seu conteúdo aos outorgantes”.

9. A susodita hipoteca voluntária mostra-se registada através da AP. ...09 de 013/07/31.

10. A denominada “confissão de dívida, acordo de pagamento” mencionada em 1 supra foi outorgada em 14 de fevereiro de 2014 por AA e BB na qualidade de procuradores da aqui executada/embargante “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.” (primeira outorgante) II na qualidade de procurador da aqui exequente/embargada “Interkozha, S.L.” (segunda outorgante), e CC na qualidade de administrador único da sociedade “E..., S.A.” (terceira outorgante), tendo o seguinte teor:

“(…) Considerando que:

A) A Segunda Outorgante forneceu bens à Terceira Outorgante no montante que, na presente data, 14 de fevereiro de 2014, ascende à quantia de € 646.149,26 (seiscentos e quarenta e seis mil, cento e quarenta e nove euros e vinte e seis euros), acrescido de juros vincendos, quantia esta de que a Terceira se confessa devedora da Segunda;

B) Pela escritura de Hipoteca formalizada em 18 de julho de 2013, bem como pelo aditamento de 16 de setembro de 2013, ficou convencionado pela Segunda e Terceira Outorgante o fornecimento de mercadorias e o respectivo pagamento como referido naqueles documentos;

C) A Segunda Outorgante, contraiu um empréstimo junto do Banco Popular, para poder pagar todos os valores que resultaram do desconto de cheques e letras que a Terceira Outorgante lhe entregou para pagar a dívida referida em A);

D) A Primeira Outorgante constituiu hipoteca voluntária sobre um prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...49 da Freguesia ..., Concelho ..., a favor da Primeira Outorgante para garantir o pagamento do fornecimento dos bens referidos em A) e por isso tem interesse direto na celebração de um acordo de pagamento do montante em dívida;

É celebrado e reciprocamente aceite o presente acordo de regularização de dívida que, incluindo os considerandos anteriores, se rege pelas cláusulas seguintes:

Cláusula PRIMEIRA

Pelo presente acordo, a TERCEIRA obriga-se a pagar à SEGUNDA o valor de Euros 646.149,26 acrescido de juros à taxa de 6,5% e uma comissão bancária de Euros 6.461,49 que a SEGUNDA pagará ao Banco Popular por conta do financiamento referido em C);

Cláusula SEGUNDA

O pagamento do montante referido na cláusula anterior acrescido dos juros e comissão bancária, é pago em prestações pela Terceira Outorgante à Segunda Outorgante de acordo com um plano elaborado pelo Banco Popular que se anexa e que fica a fazer parte integrante do presente contrato sendo paga a primeira prestação que se venceu em 12/2/2014 na presente data e devendo ser feito o pagamento das restantes prestações nas datas constantes daquele documento correspondentes ao dia 12 de cada um dos meses seguintes, por transferência bancária, usando as seguintes referências: (...)

Cláusula TERCEIRA

Para garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias resultantes do presente acordo, a Primeira Outorgante mantém a Garantia outorgada por Escritura formalizada a 18 de julho de 2013, bem como pelo aditamento de 16 de setembro de 2013 que outorgou a favor da Segunda Outorgante, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...49 da Freguesia ..., Concelho ....

Cláusula QUARTA

Consigna-se que o não pagamento de uma das prestações referidas na cláusula terceira implicará o vencimento das restantes assumidas por parte da TERCEIRA neste contrato, obrigando-se a INTERKOZHA a notificar a Garante, ora Primeira Outorgante, que deverá substituir-se à principal devedora e efectuar o pagamento do montante em divida no prazo de 60 dias de acordo com o estipulado na alínea b) da Hipoteca efetuada a 18 de julho de 2013.

Cláusula QUINTA

UM: Nada foi convencionado entre as partes, directa ou indirectamente relacionado com a matéria do presente contrato, para além do constante nas respectivas cláusulas.

DOIS: Quaisquer alterações a este contrato só serão válidas desde que convencionadas por escrito com menção de cada uma das cláusulas eliminadas e da redacção que passa a ter cada uma das aditadas ou modificadas.

Cláusula SEXTA

UM: Com a formalização desta confissão de dívida ficam sem efeito todo e qualquer cheque que se encontrem em posse da Segunda Outorgante, sendo que nesta data também são entregues à Terceira Outorgante as respectivas Declarações de regularização dos cheques;

DOIS: Atentas as condições contratadas no presente contrato, consigna-se que a obrigação de fornecimento de peles por parte da Segunda Outorgante à Terceira Outorgante deixa de existir e, assim, o estipulado nas alíneas a), b), d), e), g), h) e j) do contrato e aditamento ao mesmo referidos em B) dos considerandos é dado sem efeito”.

11. Naquele mesmo dia 14 de fevereiro de 2014, KK, solicitador com a cédula profissional n.º ...66, no âmbito de um termo de autenticação cujo teor se considera integralmente reproduzido, declarou terem comparecido perante si como outorgantes AA e BB, que outorgaram na qualidade de procuradores da sociedade “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.”, II, que outorgou na qualidade de procurador da sociedade “Interkozha, S.L.”, e CC, que outorgou na qualidade de administrador único da sociedade “E..., S.A.”, mais declarando que verificou “a identidade dos primeiros e terceiro outorgantes por meu conhecimento pessoal, tendo verificado os seus poderes por procuração de que apresentam fotocópia e por certidão permanente nº ...42”, verificando ainda “a identidade do segundo, que compreende perfeitamente a língua portuguesa, pelo documento nacional de identidade nº 21953228G (…), tendo verificado a qualidade em que se apresenta e os seus poderes de representação por procuração de que apresenta fotocópia”.

12. Declarou ainda que pelos identificados outorgantes foi dito “que confirmam perante mim o conteúdo do documento anexo, que leram e assinaram, declarando que ele exprime a sua vontade.

Este termo foi lido e explicado o seu conteúdo aos outorgantes”.

13. A procuração em cuja cópia KK, solicitador, atestou, em todos os actos acima mencionados, que AA e BB seriam procuradores da aqui executada/embargante “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.” data de 8 de maio de 2013 e tem o seguinte teor:

“CC (…); e DD (…) – que outorgam na qualidade de administradores da sociedade: LICRA – COMÉRCIO IMOBILIÁRIO, S.A. (…), DECLARAM que nomeiam procuradores da sua representada AA (…) e LL (…), a quem, com os de substabelecer, conferem os seguintes poderes:

a) Pelo preço e condições que considerarem convenientes, vender, prometer vender, comprar, prometer comprar, permutar, prometer permutar, dividir e hipotecar e demarcar quaisquer bens imóveis ou móveis, quotas, ceder a posição contratual em quaisquer contratos de promessa de compra e venda, seja para que fim for, podendo outorgar escrituras e assinar contratos nos termos e com as cláusulas que bem entender;

b) para rectificar ou alterar qualquer contrato, escritura ou contrato promessa de compra e venda;

c) para requerer quaisquer actos de Registo Predial, provisórios ou definitivos, prestar declarações complementares, averbamentos, rectificações e impugnações, e para os representar junto de qualquer Repartição de Finanças, reclamando das matrizes prediais, se necessário, pagando impostos, requerendo isenções de impostos, reclamando contra os indevidos ou excessivos, recebendo os títulos de anulação e as importâncias destes;

(…)

e) dar ou tomar de arrendamento, no todo ou em parte, qualquer bem imóvel, receber ou pagar as respectivas rendas e delas passar e assinar os correspondentes recibos;

(…)

h) fazer ou aceitar confissões de dívida, ao juro, condições, obrigações e garantias que entender convenientes;

(…)

m) proceder a quaisquer actos de registo predial (…), provisórios ou definitivos, cancelamentos ou averbamentos;

(…)

o) poderes para, pelo preço e condições que considerar convenientes, dar em pagamento ou prometer dar em pagamento quaisquer bens, móveis ou imóveis, quotas, para liquidação de dívidas dos mandantes, seja qual for a sua natureza;

p) poderes necessários para com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os bens dela mandante (…);

(…)

s) requerendo e assinando tudo o que necessário for aos expostos nas alíneas anteriores”.

14. Naquele mesmo dia 8 de maio de 2013, KK, solicitador com a cédula profissional n.º ...66, no âmbito de um termo de autenticação cujo teor se considera integralmente reproduzido, declarou terem comparecido perante si como outorgantes CC e DD, que outorgaram na qualidade de administradores da sociedade “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.”, mais declarando que verificou “a identidade dos outorgantes por conhecimento pessoal, tendo verificado a qualidade e poderes por certidão permanente nº ...29 e por acta n.º ... da Assembleia Geral de 16-1-2013, que me exibiram”.

15. Declarou de igual modo que pelos identificados outorgantes foi dito “que confirmam perante mim o conteúdo do documento anexo, que leram e assinaram, declarando que ele exprime a sua vontade.

Assim o outorgaram. Este termo foi lido e explicado o seu conteúdo”.

16. Aquando da outorga dos instrumentos supra citados, a executada/embargante tinha como objecto social a compra e venda de imóveis para revenda, gestão de imóveis e participação em sociedades de qualquer objecto.

17. Obrigava-se com duas assinaturas, do Presidente e do Vice-Presidente do Conselho de Administração.

18. Era Presidente do Conselho de Administração CC e Vice-Presidente DD, o primeiro em virtude de deliberação datada de 25 de junho de 2012 e a segunda de deliberação datada de 16 de janeiro de 2013.

19. Por deliberação datada de 5 de abril de 2014, e para exercerem no triénio compreendido entre 2014 e 2016, foi nomeada MM como Presidente e BB como Vice-Presidente do Conselho de Administração da aqui executada/oponente.

20. De acordo com o n.º 3 do artigo 17.º do respectivo Pacto Social, “para alienar ou onerar bens móveis ou imóveis o Conselho de Administração carece de autorização da Assembleia Geral”.

21. Inexiste qualquer deliberação da Assembleia Geral da executada/embargante a autorizar a outorga da hipoteca e do aditamento mencionados nos factos provados em 2 a 8 supra.

22. Em pelo menos uma das ocasiões em que foi levada a cabo a aludida outorga da hipoteca e do aditamento o representante da exequente/embargada esteve acompanhado de advogado.

23. A sociedade “Ecoexclusive, Lda.” foi constituída por deliberação de 30 de dezembro de 2009, tendo como sócios EE e BB, sendo gerente este último.

24. Por deliberação de 25 de maio de 2012, foi a mesma transformada em sociedade anónima, assumindo a firma “E..., S.A.” e tendo como sócios EE, BB, AA, CC e FF.

25. Por deliberação de 14 de junho de 2012, foi EE nomeado Presidente e NN do Conselho de Administração, tendo a sociedade tomado conhecimento das respectivas renúncias a tais cargos em 23 de julho de 2012.

26. Por deliberação datada de 23 de julho de 2012 foi nomeado como administrador único, para o triénio 2012/2014, CC, que viria a renunciar em 23 de outubro de 2017.

27. EE está registado como filho de OO e de PP.

28. CC e GG estão registados como filhos de EE.

29. BB está registado como filho de OO e de PP, tendo casado com HH em 28 de setembro de 1985.

30. BB está registado como filho de BB e de HH.

31. Aquando da outorga dos instrumentos contratuais em apreço, a co-executada “E..., S.A.” exercia a sua actividade nas instalações correspondentes ao imóvel objecto da hipoteca.


B – Factos Não Provados

Foram na sentença impugnada descritos como não provados os seguintes factos:

a) A executada/embargante apenas soube da garantia prestada na data de realização da assembleia de aprovação de contas do exercício de 2014;

b) A outorga da hipoteca e do aditamento mencionados nos factos provados em 2 a 8 visou garantir a assumpção da dívida da co-executada “E..., S.A.” proveniente de crédito da exequente/embargada sobre a insolvente “U...”, tendo todos os intervenientes consciência e conhecimento de que nunca a aqui executada/embargante consentiria naquela outorga;

c) A exequente/embargada sabia que os procuradores não detinham poderes de representação da executada/embargante para celebrar os negócios em causa.



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Parte II – O Direito

1. Servem de título executivo na acção de que estes autos de oposição por embargos de executado são apenso, documentos particulares – confissão de dívida e hipoteca voluntária – devidamente autenticados que importam o reconhecimento de uma obrigação (artigo 703.º n.º 1, b) do Código de Processo Civil).

O que se discute na presente oposição por embargos apresentada pela executada “Licra – Comércio Imobiliário, S.A.” e constitui objecto do presente recurso de revista é, como já atrás se indicou, a validade da prestação de uma garantia real por parte de uma sociedade comercial em relação a dívidas de uma sociedade terceira.

Caberá a prestação de tal garantia no âmbito da capacidade da sociedade comercial garante, no caso a ora embargante “Licra – Comércio Imobiliário, SA”?

A quem compete o ónus de alegar e provar que, não obstante a prestação de garantia ser, em princípio, contrária aos fins da sociedade, não opera em concreto a exclusão da sua capacidade de gozo de direitos e obrigações?

E, caso se conclua que, em abstracto, tal acto é válido, estavam os representantes da sociedade garante munidos de poderes para obrigar a sociedade, vinculando-a ao cumprimento da obrigação, apesar das limitações decorrentes do contrato de sociedade?


2. Sobre a capacidade de gozo das sociedades comerciais e em particular para garantir o cumprimento de obrigações de entidades terceiras dispõe o artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, na parte que importa para o caso presente, o seguinte:

“1. A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuando aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.

2. (…)

3. Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.”

Decorre do parcialmente transcrito artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais – que no seu n.º 1 reproduz o artigo 160.º n.º 1 e 2 do Código Civil sobre a capacidade das pessoas colectivas – que a capacidade de gozo das sociedades comerciais compreende os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins, estando a eles limitada [3].

A referência aos fins prosseguidos pela sociedade comercial tem de ser entendida por referência ao preceituado no artigo 980.º do Código Civil que estabelece a noção de contrato de sociedade em geral.

De onde liminarmente se conclui que as sociedades comerciais possuem capacidade de gozo de direitos e obrigações no contexto da prossecução dos seus fins legais, a qual é avaliada em função da potencialidade dos actos concretamente praticados para a criação de proventos económicos e posterior repartição do lucro resultante da sua actividade entre os sócios.


3. Sucede que essa limitação da capacidade de gozo de direitos e obrigações definida através dos específicos fins da sociedade comercial estabelecidos na lei – (princípio da especialidade) – é fortemente atenuada no nosso quadro legal, e desde logo face aos termos do próprio preceito que a estabelece, ao incluir na sua capacidade não só os direitos e obrigações necessários à prossecução dos seus fins lucrativos mas também os que se revelem meramente convenientes a esse fim.

Trata-se, no dizer dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela no seu “Código Civil Anotado – I Volume” a página 164 da 3.ª edição, de uma capacidade de exercício de direitos e obrigações pautada pelo princípio da especialidade, “mas com uma larga atenuação do seu rigor” dada a flexibilidade de actuação consentida pelo legislador.

Detenhamo-nos um pouco mais neste ponto.


4. É inquestionável que os actos praticados no contexto dos direitos e obrigações tendentes à prossecução dos seus fins lucrativos podem não ter para a sociedade – e muitas vezes não têm – um reflexo patrimonial positivo directo, como sucede com os encargos assumidos com a aquisição de bens ou serviços, no interesse da sociedade e no contexto da sua actividade. E nem por isso tais actos deixam de estar incluídos na sua capacidade de gozo e de ser plenamente válidos e vinculantes.

O mesmo sucede com o gozo de direitos e obrigações que se enquadrem numa perspectiva de estratégia de posicionamento da sociedade no mercado que sejam necessários ou se revelem convenientes à prossecução dos seus fins numa abordagem mais abrangente em termos temporais ou de relacionamento comercial com outras entidades.

Significa isto que, apesar de a capacidade das sociedades comerciais ser aferida em função da potencialidade geradora de lucros de cada um dos actos em que se materializa a sua actividade, a sua capacidade não fica excluída pelo facto de, em concreto, de cada um desses actos ser susceptível de gerar – ou não gerar – lucro.

Os n.º 2 e 3 do mencionado artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais partem exactamente desse pressuposto, esclarecendo que, dentro de determinados condicionalismos, as liberalidades usuais feitas pelas sociedades não são havidas como contrárias aos seus fins – a regra é a sua validade se se verificar dentro dos condicionalismos definidos – e que, ao contrário, a prestação de garantias a dívidas de outras entidades só não é contrária ao fim da sociedade no caso de haver fundado interesse próprio da sociedade garante ou de a dívida garantida ser de sociedade que esteja com a sociedade garante em relação de domínio ou de grupo.


5. A afirmação da capacidade da sociedade comercial para a prestação de garantias a dívidas de entidades terceiras – em regra contrária aos seus fins legalmente estabelecidos – dependerá assim da avaliação das circunstâncias em que ela foi prestada.

Aqui chegados importa deixar duas notas:

- A primeira para salientar que não relevam para efeitos de avaliação da limitação da capacidade de gozo de direitos e obrigações os fins da sociedade estabelecidos nos respectivos estatutos ou no pacto social, mas apenas os fins que resultem da lei.

Os actos praticados que excedam a capacidade de gozo da sociedade ex contractu ou ex decisione são, em princípio válidos, ainda que possam ocasionar a responsabilidade civil dos titulares envolvidos ainda que possam ser inválidos perante terceiros de má-fé (assim os anotadores do “Código das Sociedades Comerciais anotado” obra coordenada pelo Prof. Doutor António Menezes Cordeiro, a página 95 da segunda edição – Almedina 2014).

- A segunda para afirmar, com suporte no artigo 6.º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais em conjugação com o artigo 294.º do Código Civil, que a prestação de garantias a dívidas de entidades terceiras, feita a título gratuito, é, em princípio, nula, porque contrária à prossecução dos fins legalmente estabelecidos para a actividade das sociedades comerciais.

Porém, em determinadas circunstâncias previstas na lei, subsiste incólume a capacidade de gozo da sociedade comercial para a prestação dessas garantias.


6. Na parte final do artigo 6.º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais o legislador considerou estar abrangida na capacidade de gozo da sociedade comercial o exercício de direitos e obrigações traduzido na prestação de garantia a entidades terceiras em que se constate haver “justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de uma sociedade” – a sociedade terceira, com a qual a sociedade garante esteja – “em relação de domínio ou de grupo.”

Resulta do princípio da especialidade largamente mitigado no que se refere à capacidade de gozo das sociedades comerciais, que em caso de dúvida sobre a validade ou nulidade da prestação de garantia a dívidas de entidades terceiras, se tenha sempre que apurar se ocorre alguma das circunstâncias previstas na parte final do artigo 6.º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais.


7. Da matéria de facto provada não resulta que a sociedade garante – ora embargante – tenha tido um “justificado interesse próprio” na constituição da garantia hipotecária de um prédio sua propriedade a favor da exequente. A única referência a um interesse directo da embargante consta da alínea D) dos Considerandos do documento designado “confissão de dívida e acordo de pagamento” (ponto 10 dos Factos provados supra descritos) e reporta-se ao interesse na celebração de um acordo para pagamento do montante em dívida da “E..., S A” à sociedade exequente.

O justificado interesse a que alude o artigo 6.º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais “remete para a existência de uma relação entre a prestação da garantia e o interesse da sociedade (leia-se, o interesse social). Não basta, porém, que seja alegada a existência dessa relação. A exigência de que o interesse próprio da sociedade seja justificado torna claro que a sociedade tem que concretizar as vantagens que retirará por prestar a garantia. Só assim estará a justificar”. [4]

Ora no caso presente nada se extrai da matéria de facto sobre o interesse da sociedade embargante na prestação da garantia à dívida da “E..., SA”.


8. O mesmo se dirá quanto à existência de uma relação de grupo ou de domínio entre a sociedade garante e a sociedade devedora, apesar da existência de relações pessoais muito próximas entre os sócios de uma e outra sociedade.

Na verdade, esta segunda excepção à incapacidade de gozo da sociedade comercial deve ser apreciada de acordo com os critérios que o Código das Sociedades Comerciais estabelece para a identificação de relações de domínio ou de grupo, nomeadamente entre sociedades coligadas (artigos 481.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais), que não se encontram no caso presente preenchidos, sendo para tanto insuficiente que um dos administradores da sociedade garante seja o administrador único da sociedade cuja dívida foi garantida.


9. A sociedade comercial exequente demandou as sociedades executadas na pressuposição – num quadro factual de aparente normalidade de exercício de alegados direitos – da validade da constituição da garantia hipotecária e da capacidade de gozo da “Licra – Comércio Imobiliário, SA” – sociedade garante – para a prestação da garantia através dos seus representantes.

Um dos fundamentos dos presentes embargos é exactamente a falta de capacidade da sociedade embargante para a prestação de garantias relativamente a uma dívida de sociedade terceira.

Como se viu, sendo, em princípio, nula a prestação de garantia a favor de uma sociedade terceira a validade dos actos em que ela se traduziu dependeria da prova sobre alguma das circunstâncias previstas na parte final do artigo 6.º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais.

Porém, nenhuma dessas circunstâncias resultou provada.

O que nos reconduz à questão de saber a quem compete a alegação e prova da capacidade da sociedade comercial para a prestação da garantia, ou seja, o ónus de provar esse facto essencial à determinação do sentido em que o tribunal deve decidir caso não se faça a sua prova.


10. Tem a jurisprudência dos Tribunais Superiores tido entendimentos divergentes em relação ao ónus da prova das circunstâncias mencionadas na parte final do artigo 6.º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais, em especial sobre o justificado interesse próprio da sociedade na prestação da garantia a dívidas de terceiros, ainda que as divergências assentem nas particularidades de cada caso.

Também na doutrina se não regista unanimidade de opiniões.


11. No sentido de que se presume a existência de um justificado interesse próprio da sociedade comercial e de que, de acordo com as regras gerais sobre o ónus da prova, quem invoca a incapacidade de gozo da sociedade garante – habitualmente a própria sociedade que a nega – tem o ónus de alegar e provar os factos que conduzam à afirmação da inexistência de um justificado interesse próprio da sociedade decidiram os seguintes acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça [5]:

- de 13 de maio de 2003, de que foi relator o Juiz Conselheiro Pinto Monteiro;

- de 17 de junho de 2004, de que foi relator o Juiz Conselheiro Quirino Soares, referindo ser esse o sentido em que se vinha orientando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça;

- de 30 de setembro de 2004 de que foi relator o Juiz Conselheiro Abílio Vasconcelos;

- de 7 de outubro de 2010, de que foi relator o Juiz Conselheiro Álvaro Rodrigues;

- de 28 de maio de 2013, de que foi relator o Juiz Conselheiro Fernandes do Vale, aderindo à fundamentação do acórdão de 13 de maio de 2003;

- de 22 de maio de 2018 (revista 3524/12.3YYLSB-A.L1.S1) de que foi relatora a Juíza Conselheira Ana Paula Boularot (neste caso tinha sido afirmada no acto de constituição da garantia que a mesma era prestada no interesse da sociedade garante);

- de 12 de março de 2019, de que foi relatora a Juíza Conselheira Dr.ª Ana Paula Boularot.

Colhe-se da fundamentação expressa nalguns dos mencionados acórdãos a preocupação na tutela dos interesses dos credores garantidos ou a favor de quem a garantia é prestada face a uma atitude aparentemente contraditória da sociedade garante, salientando-se que é a sociedade garante quem está em melhor posição para fazer a prova do seu interesse na prestação da garantia.

A situação seria então de enquadrar no artigo 342.º n.º 2 do Código Civil, segundo o qual a prova dos factos impeditivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.

Na doutrina, entre outros, assim parecem entender os anotadores do “Código das Sociedades Comerciais anotado” (2.ª edição Almedina 2014) sob coordenação do Prof. António Menezes Cordeiro que opinam que “celebrada a garantia, cabe à sociedade que invoque a nulidade o ónus da prova da ausência de interesse próprio ou da inexistência da relação de grupo”.[6]


12. Contra tal entendimento se defende que o artigo 6.º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais se destina (também) à protecção da sociedade – mesmo contra actos dos seus administradores – e que tal protecção se reflecte no plano probatório pois que a primeira parte da norma em causa estabelece uma presunção no sentido de que a prestação de garantias pela sociedade a favor de uma sociedade terceira é contrária aos seus fins.

E existindo uma presunção legal de incapacidade da sociedade comercial para a prestação da garantia de dívidas alheias por ser contrária aos seus fins legais, ela só pode ser ilidida por prova do contrário por parte de quem pugne em juízo pela capacidade da sociedade comercial e pela consequente validade dos actos praticados, tudo como previsto nos artigos 344.º n.º 1 e 350.º n.º 1 e 2 do Código Civil.

Daí que “se é invocado um justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação da garantia, quem tem o ónus de alegar e provar que existe aquele interesse é quem tem interesse em afirmar a validade da garantia. Para que a garantia deva ser considerada nula, basta que não se prove que existe esse justificado interesse próprio da sociedade garante”. [7]

No sentido de que, até prova do contrário, se deve presumir a incapacidade da sociedade comercial para a prestação da garantia a dívidas de terceiros e que é sobre o beneficiário da garantia que recai o ónus de alegar e provar a existência de justificado interesse da sociedade garante, decidiram o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de outubro de 2003, de que foi relator o Sr. Juiz Conselheiro Moreira Alves e o acórdão de 16 de novembro de 2017 de que foi relatora a Sr.ª Juíza Conselheira Graça Amaral.

Escreve-se no primeiro dos mencionados arestos o seguinte:

“(…) a regra geral contida na 1ª parte do nº. 3 do artigo 6º, cede perante as excepções previstas na parte final do preceito, isto é, no caso de existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou de se tratar de sociedades em relação de domínio ou de grupo.

Em tais hipóteses a sociedade possuirá plena capacidade de gozo para a prestação da garantia.

Por conseguinte, a verificação dessas situações excepcionais aparecem como condição de validade das garantias prestadas e por isso têm de ser provadas pelo beneficiário da garantia que dela se quiser prevalecer.”


13. A valer como tal a presunção legal inserida na parte inicial do artigo 6.º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais e a inerente inversão do ónus da prova permitiriam ter como certo o facto presumido – no caso a incapacidade da sociedade comercial para a prestação da garantia de dívidas de terceiros – não se fazendo prova do contrário (assim Pires de Lima e Antunes Varela em anotação ao artigo 344.º do seu Código Civil Anotado Volume I 3.º edição a página 306).

É, porém, da própria natureza das coisas, que num quadro de normalidade e de actuação racional da sociedade comercial em que todos os seus actos tendem à prossecução da sua finalidade de obtenção de lucro, que a prestação de uma garantia – em especial gratuita – a uma dívida de terceiros tem que ter uma qualquer justificação, já que ninguém garante dividas alheias sem que nisso tenha algum interesse ou motivo, mesmo que este não se oriente para a obtenção de lucro.

E foi nesse pressuposto que a sentença impugnada, com apoio no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5 de abril de 2022, considerou que cabia à sociedade garante ilidir a presunção de que tinha interesse na prestação da garantia provando que nenhum fundado interesse tinha nesse acto e que não havia qualquer relação entre ela e a sociedade devedora qualquer relação de domínio ou de grupo.


14. Considerando a autonomia da oposição por embargos relativamente ao processo de execução, sendo esta proposta contra a ora embargante na pressuposição – que apesar de tudo corresponde à normalidade dos casos – da validade da garantia prestada e na inexistência de incapacidade para o acto por parte da sociedade garante, a dedução dos embargos com fundamento na alegada incapacidade de gozo da sociedade garante faz centrar toda a questão nessa capacidade de gozo da sociedade comercial garante que aqui se discute.

Como equacionar então a questão do ónus da prova no caso presente?


15. Dispõe o artigo 342.º do Código Civil o seguinte, sob a epígrafe “Ónus da Prova”:

“1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.

2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.

3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.”


16. De acordo com o preceito acabado de transcrever, a sociedade embargante tem o ónus de provar, segundo as regras gerais do ónus da prova, os fundamentos dos embargos, isto é, a sua própria incapacidade de gozo para a prestação de garantias por dividas de terceiros.

Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de setembro de 2004, “tendo sido a sociedade autora quem prestou, a terceiro, as questionadas garantias, e pretendendo ela valer-se, agora, da nulidade dos actos que praticou, deverá ser ela a ter que provar a inexistência de qualquer situação legitimadora dessa prática.”

Tal sucede na medida em que, de acordo com a normalidade das coisas, é a sociedade quem se encontra em condições de apurar e decidir se tem interesse próprio na prestação da garantia e se lhe convêm ou não dá-lo a conhecer.


17. Com o acórdão que vem de ser citado se dirá então que “nada obsta a considerar a inexistência das duas situações ressalvadas no nº 3 do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais como elemento constitutivo do direito que a autora pretende fazer valer”.

Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 342.º do Código Civil [8] esclarecem a este propósito:

"Para sabermos se um facto é constitutivo ou impeditivo não se pode olhar ao facto isoladamente considerado, mas à sua conexão com o direito invocado ou com a pretensão formulada. Assim, o erro, o dolo e a coacção revestem em regra a natureza de factos impeditivos; mas, se o autor vier alegar qualquer desses vícios para pedir a declaração judicial de nulidade do negócio, esses factos passam a funcionar como constitutivos (da pretensão deduzida pelo autor)”.

Em caso de dúvida sobre se determinado elemento é constitutivo do direito – devendo ser provado por quem alega o direito – ou impeditivo do direito invocado pela parte contrária – devendo ser provado por aquele contra quem a invocação é feita, deve ter-se em contra o disposto no n.º 3 do artigo 342.º do Código Civil e considerado o facto como constitutivo do direito.


18. Do exposto resulta que em matéria de capacidade da sociedade comercial, o artigo 6.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais visando garantir a protecção dos interesses dos credores e da própria sociedade, inclusive contra os actos dos seus administradores [9], consagra claramente, na sua articulação com o n.º 3 do mesmo artigo, o princípio da especialidade largamente mitigada quanto à capacidade das pessoas colectivas.

Porque assim não poderá, sem mais, extrair-se da simples constatação da prestação da garantia a favor de entidade terceira, por via de presunção legal, que esse acto não está contido na capacidade de gozo da sociedade garante, antes se impõe para que possa concluir-se se a prestação de garantia é ou não contrária ao fim da sociedade e excluída da sua capacidade de gozo, apurar se, em concreto, ocorre alguma das circunstâncias previstas na parte final do artigo 6.º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais.


19. Com o recente acórdão de 28 de junho de 2022 do Tribunal da Relação de Coimbra (apelação 2464/20....) face à amplitude do princípio da especialidade consagrado no artigo 6.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais e à dúvida sobre se a primeira parte do n.º 3 do mesmo preceito estabelece uma presunção legal de incapacidade de gozo das sociedades comerciais (em todo o caso limitada à prestação de garantias a título gratuito), somos a entender que quem invoca a nulidade de acto praticado por uma sociedade tem o ónus de provar os factos de que depende essa nulidade, nomeadamente que a prestação de garantia a dívidas alheias se situa fora do âmbito da sua capacidade de gozo por não ser necessário nem conveniente aos seus fins legais [10].

Tendemos, por isso, a considerar que da conjugação dos n. nº 1 e 3, primeira parte do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais não resulta estabelecida uma presunção legal sobre a incapacidade de gozo da sociedade comercial de que derive o afastamento da regra geral sobre a matéria do ónus da prova consagrado no artigo 342.º n.º 1 e 2 do Código Civil e a imposição do preceituado no artigo 350.º n.º 1 do Código Civil.


20. São evidentes, por outro lado, e não devem ser desconsideradas no contexto da interpretação  da lei, as consequências da adopção de um entendimento de acordo com o qual existe uma presunção legal de incapacidade da sociedade comercial fora dos limites da sua finalidade lucrativa, e que compete a quem – agindo de boa-fé - com ela se relacione, a prova de que a sociedade actuou sem estar afectada na sua capacidade de gozo.

A confiança necessária à fluidez do comércio jurídico e ao estabelecimento de um profícuo relacionamento comercial parecem impor que não se desconsidere a tutela dos terceiros de boa-fé em interação com a sociedade garante, mesmo que os limites da capacidade se refiram apenas aos seus fins legais, impondo-lhes redobradas e quiçá inoperantes cautelas, perante a prestação de garantias a dívidas de terceiro porque esse acto é, em princípio, contrário aos seus fins.


21. Cabendo à embargante a prova dos fundamentos dos embargos, ou seja, a sua própria incapacidade para a prestação da garantia em causa nestes autos, a consequência do não apuramento das circunstâncias de que derivaria a sua alegada incapacidade é a improcedência dos embargos quanto a tal fundamento.


22. E que dizer quanto ao fundamento dos embargados relacionados com a não vinculação da sociedade embargante aos actos praticados em seu nome pelos intervenientes na constituição da garantia a favor da sociedade exequente?


23. Sobre a matéria da vinculação preceitua o artigo 409.º do Código das Sociedades Comerciais o seguinte, exactamente sob a epígrafe “Vinculação da Sociedade”:

“1 – Os actos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas.

2 – A sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objecto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos accionistas.

3 – O conhecimento referido no número anterior não pode ser provado apenas pela publicidade dada ao contrato de sociedade.

4 – Os administradores obrigam a sociedade, apondo a sua assinatura, com a indicação dessa qualidade.”


24. No caso presente vem provado (factos descritos nos pontos 20 e 21 da matéria de facto) que o artigo 17.º n.º 3 do Pacto Social da embargante ora recorrente exige para alienar ou onerar bens móveis que o Conselho de Administração obtenha autorização da Assembleia Geral e que não existe qualquer deliberação da Assembleia Geral da sociedade embargante a autorizar a outorga da hipoteca e aditamento referidos nos factos 2 a 8 do elenco da matéria de facto apurada.

Não resultou porém provado (factos não provados descrito na alínea c) dos factos não provados supra indicados) que os intervenientes na outorga da hipoteca e aditamento de 16 de setembro de 2013 – em especial quem neles interveio em nome da sociedade embargante como seus procuradores (AA e BB) [11] – tenham tido consciência que a sociedade embargante nunca consentiria nesse acto e que a sociedade embargante através do seu representante, soubesse que os procuradores intervenientes no acto não detinham poderes de representação da sociedade embargante para celebrar os negócios em causa.

Acresce que a sociedade embargante tem por objecto social a compra e venda de imóveis para revenda, gestão de imóveis e participação em sociedades de qualquer objecto e que do teor da procuração que legitimou a intervenção nos actos ora postos em crise praticados por AA e BB em nome da sociedade embargante resulta que eles tinham poderes para hipotecar bens imóveis da sociedade (facto 13 alínea a) dos poderes conferidos através da procuração).

25. Como resulta do artigo 409.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, acima transcrito, a sociedade embargante só poderia opor a terceiros as limitações resultantes do seu pacto social desde que provasse que a sociedade exequente sabia – ou que não podia ignorar – que os actos praticados pelos seus procuradores não respeitavam a limitação estatutária aos poderes dos seus representantes consignada na mencionada cláusula 17.ª n.º 3 do seu pacto social.

Não estando em causa uma limitação legal mas meramente estatutária aos poderes de vinculação dos representantes da sociedade, não pode presumir-se o seu conhecimento por parte dos terceiros que, de boa-fé, interagem com a sociedade.

No caso presente, não estando provado o conhecimento por parte da sociedade exequente da limitação resultante da cláusula 17.º n.º 3 do pacto social da sociedade embargante, pelo que, em conclusão, não se podem dar por verificados os apontados requisitos de desvinculação da sociedade dos actos praticados pelos seus representantes.

26. Daí que também não assista razão à embargante ao pretender nesta sede recursória o reconhecimento da falta de poderes dos seus representantes nos actos supra descritos para a vincularem aos efeitos da constituição da hipoteca por eles outorgado e ao aditamento, bem como aos efeitos da posterior confissão e reconhecimento da dívida da “E..., S A”.

27. O recurso de revista improcede integralmente, confirmando-se a, aliás douta, sentença impugnada.

Porque vencida a embargante e ora recorrente suportará as custas da instância recursória.



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DECISÃO

Termos em que, julgam improcedente o recurso de revista, confirmando integralmente a sentença impugnada.

A recorrente, porque vencida nesta instância de recurso suportará as respectivas custas.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 9 de maio de 2023


Manuel José Aguiar Pereira (relator)

Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor

Jorge Manuel Leitão Leal (vencido conforme declaração de voto que segue)

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Vencido.

Efetivamente a 1.ª questão objeto do recurso - constituição de garantia a favor de terceiro - suscita muita controvérsia.

O acórdão envereda pelo caminho que me parece ser maioritário ao nível do STJ. Tal preponderância no Supremo tem inegáveis reflexos nas Relações, embora aqui haja, ainda assim, um maior equilíbrio. Assim, em sentido diverso da posição aparentemente maioritária, cfr., além do acórdão da Relação de Coimbra citado no acórdão (de 07.9.2020), ac. da Rel. de Évora, de 23.4.2020 (proc. 2326/15.6) e ac. da Rel. do Porto, de 09.9.2019 (proc. 329/14.0).

Já na doutrina, vislumbro tendencial preponderância no sentido de que recai sobre quem pretende prevalecer-se da garantia o ónus da prova das circunstâncias que, à luz da lei, a viabilizam. Vide, além de Alexandre de Soveral Martins, citado no acórdão, Osório de Castro (ROA, 1996, vol. II e ROA, 1998, vol. II), Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, 5.ª edição, pp. 189 e 190), Miguel Teixeira de Sousa (no artigo citado no acórdão, que além de publicado na RDS pode ser encontrado no Blog do IPPC, post de 15.7.2019).

Compreendo que cause relutância admitir-se que a sociedade que concedeu uma garantia venha, confrontada com a exigência da sua efetivação, arguir a sua nulidade, numa espécie de venire contra factum proprium. Também têm peso as considerações acerca das dificuldades que o credor poderá enfrentar na prova das referidas exceções, sendo certo que a sociedade garante melhor saberá das razões que a levaram a constituir a garantia. Depois, a posição aparentemente maioritária - em que se integra o acórdão - invoca o interesse da segurança e fluidez do tráfico jurídico, a tutela da boa-fé de terceiros e, também, a presunção de que a sociedade terá um interesse justificado na sua atuação.

Pondera-se, no acórdão, que é "da própria natureza das coisas, que num quadro de normalidade e de actuação racional da sociedade comercial em que todos os seus actos tendem à prossecução da sua finalidade de obtenção de lucro, que a prestação de uma garantia – em especial gratuita – a uma dívida de terceiros tem que ter uma qualquer justificação, já que ninguém garante dividas alheias sem que nisso tenha algum interesse ou motivo, mesmo que este não se oriente para a obtenção de lucro".

Ora, creio que o legislador, no regime que instituiu no n.º 3 do art.º 6.º do CSC, absteve-se de um tal "voto de confiança" na atuação das sociedades comerciais, tendo, na ponderação dos diversos interesses em presença nesta matéria, optado por solução diversa.

Creio, na linha da posição que, de resto, o acórdão em nada escamoteia, que o legislador consagrou a presunção de que a constituição (gratuita) de garantias a favor de terceiros por uma sociedade comercial está fora da sua capacidade, atenta contra a razão de ser da sua ampla capacidade. Só não será assim se se demonstrar que a sociedade tem justificado interesse próprio na constituição da garantia (justificado interesse que, assim, não se presume), ou que a garantia foi constituída no âmbito de uma relação de domínio ou de grupo entre sociedade garante e sociedade devedora.

Nesta matéria o legislador consagrou o predomínio do interesse dos credores sociais (visando que a garantia patrimonial dos seus créditos não seja desviada em benefício de terceiros) e, quiçá, da própria sociedade e/ou dos seus sócios (visando que os seus interesses não sejam instrumentalizados pelos interesses pessoais dos representantes da sociedade).

A proibição legal constante no n.º 3 do art.º 6.º do CSC está patente no nosso ordenamento jurídico desde 1986, pelo que nenhum credor poderá invocar o seu desconhecimento (para além do que a esse respeito já se discutia anteriormente, à luz da lei pretérita). O credor que pretenda prevalecer-se de uma garantia que não seja concedida por um seu devedor, mas por uma sociedade comercial terceira, deverá acautelar-se, em conformidade, averiguando e exigindo a demonstração de que a referida limitação legal está ultrapassada. No mais, deverá estar ciente do risco que corre.

Do exposto resulta, a meu ver, que à sociedade ou a um credor social basta, para fazer atuar a nulidade prevista no n.º 3 do art.º 6.º do CSC, demonstrar que a garantia que contra a sociedade é invocada foi contraída para garantir uma dívida alheia. Sobre quem quiser prevalecer-se da garantia assim constituída recairá o ónus da prova das circunstâncias previstas na segunda parte do n.º 3 do art.º 6.º do CSC.

In casu, a embargante demonstrou (aliás, tal foi desde o início alegado pela exequente) que a hipoteca dada à execução foi constituída para garantir uma dívida de outra sociedade, que não da embargante. Recaía sobre a exequente (seja como facto constitutivo do seu direito - art.º 342.º n.º 1 do CC -, seja, se se quiser, como facto integrando exceção a aduzir contra a arguição de nulidade deduzida pela embargante - art.º 342.º n.º do CC) o ónus da prova de que a constituição da dita hipoteca correspondia a justificado interesse próprio da embargante/executada ou que entre a embargante e a sociedade devedora existia uma relação de domínio ou de grupo. Como nada se provou acerca disso - o que é reconhecido no acórdão -, os embargos deveriam ter sido julgados procedentes, declarando-se a nulidade dos negócios constitutivos da hipoteca, com as respetivas consequências.

Sendo tais negócios contrários à lei, prejudicada ficaria a apreciação da sua conformidade com os estatutos da sociedade embargante (isto é, ficaria prejudicada a apreciação da segunda questão exposta no recurso).”

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[1] Respeita-se a numeração das conclusões constante das alegações no documento inserido no processo apesar de se registar um salto entre a segunda e a trigésima segunda conclusão.
[2] É patente o lapso na quantia indicada já que, de acordo com os demais elementos dos autos, o limite máximo acordado para o montante global da dívida seria de um milhão e quinhentos mil euros.

[3] Estão igualmente fora do âmbito da capacidade de gozo da sociedade comercial os direitos e obrigações que lhe sejam expressamente vedados por lei ou que sejam tipicamente inseparáveis da personalidade singular.
[4] Assim Alexandre de Soveral Martins in “Código das Sociedades Comerciais em comentário” Vol I 2.ª edição Almedina a página 128.
[5] Todos os acórdãos dos Tribunais superiores citados ao longo do texto são consultáveis em www.dgsi.pt
[6] Obra citada a página 96.
[7] Assim Alexandre de Soveral Marins, obra citada a página 128.
[8] A página 303 do 1.º Volume da 3.ª edição (Coimbra Editora, Limitada, 1982)

[9] Professor Miguel Teixeira de Sousa no artigo intitulado “O que realmente se estabelece no artigo 6.°, n.° 3, Código das Sociedades Comerciais ” publicado na Revista de Direito das Sociedades ano XI (2019) 1, a páginas 251 a 256.
[10] No sentido de que a sociedade garante que invoca a incapacidade para a prestação de garantias por dívidas de terceiros tem que provar simplesmente que a garantia foi prestada a título gratuito, cabendo à contraparte provar a verificação de alguma das duas excepções previstas na segunda parte do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de setembro de 2020 (apelação 142/19....).
[11] Um dos administradores da sociedade embargante subscritor em 8 de maio de 2013 da procuração utilizada pelos referidos AA e BB foi, de resto, CC, o único representante da sociedade cuja dívida foi garantida.