Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
108/09.7TBVRM.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: ACIDENTE DESPORTIVO
ACTIVIDADES PERIGOSAS
ATIVIDADES PERIGOSAS
CONSENTIMENTO DO LESADO
PRESUNÇÃO DE CULPA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ÓNUS DA PROVA
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
DESPORTO
Data do Acordão: 05/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS SINGULARES / DIREITOS DE PERSONALIDADE / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL ( EXTRACONTRATUAL ).
DIREITO DO DESPORTO - ACTIVIDADE DESPORTIVA ( ATIVIDADE DESPORTIVA ) / FUTEBOL.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª ed., 538.
- André Gonçalo Dias Pereira, “Responsabilidade Civil em Eventos Desportivos”, Dez Anos de Desporto & Direito, 2003 a 2013, Almedina, 118, 119, 124.
- Manuel da Costa Andrade, “As Lesões Corporais (e a Morte) no Desporto”, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, 781 e 719.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Tomo I, 1999, Almedina, 215.
- Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, Sumários desenvolvidos para o 2º ano do Curso Jurídico de 1980/81, Centelha, Coimbra, 1981, 195.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, 81.º, N.º1, 340.º, 487.º, N.º 2, 493.º, N.º2.
LEI DE BASES DA ACTIVIDADE FÍSICA E DO DESPORTO: - ARTIGO 42.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 30.11.2004, PROC. N.º 04A3925, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.STJ.PT
Sumário :
I - O n.º 2 do art. 493.º do CC, situado no domínio da responsabilidade aquiliana, consagra uma presunção de culpa no domínio das actividades perigosas, impondo a quem as exerce o ónus da prova da falta de culpa para excluir a sua responsabilidade. As actividades perigosas são aquelas que envolvem uma maior probabilidade de causação de danos do que aquela que se verifica nas restantes actividades, seja pelas características da actividade em si, seja pelos meios utilizados para a desenvolver.

II - Na actividade desportiva, têm-se como potencialmente perigosos, os desportos praticados “atleta-contra-atleta” que, sendo particularmente agressivos, tem por objectivo provocar lesões ao adversário, bem como alguns desportos automobilísticos, aquáticos e praticados na neve, os quais, pela sua natureza ou pelas características dos meios empregues, revelam maior aptidão para causarem frequentemente lesões graves nos seus praticantes.

III - O futebol é disputado entre duas equipas e tem como objectivo principal o jogo (sendo, porém, possível a ocorrência de lesões, devidas, em regra, à negligência na disputa da bola ou na sua projecção), não lhe estando associada qualquer ideia de particular perigosidade na sua prática (ainda que ocorra no âmbito federado) ou nos meios envolvidos. O contacto corporal é frequente e pode até envolver alguma violência ligada à competitividade que rodeia o jogo mas as lesões daí advenientes, desde que ligeiras e conquanto a sua causação não ultrapasse o limiar da mera culpa, são socialmente toleráveis.

IV - Não sendo a especial gravidade da lesão causada ao recorrente um factor de aferição da especial perigosidade da actividade desportiva, é de concluir que o futebol não integra a previsão do n.º 2 do art. 493.º do CC.

V - Não estando alegado e demonstrado que as lesões sofridas pelo recorrente foram ocasionados pela inobservância, por parte do recorrido – cuja equipa integrava –, de regras de segurança que devesse cumprir ou por qualquer evento estranho que devesse prevenir, não lhe podem os inerentes danos ser imputáveis, sob pena de se incorrer numa condenação em responsabilidade objectiva num caso imprevisto pela lei.

VI - No desporto, a intervenção do consentimento do lesado (art. 340.º do CC) como causa de exclusão da responsabilidade pressupõe sempre que a lesão, pela sua gravidade, se contenha no risco próprio da actividade desportiva, pois, se assim não for, o consentimento deverá ser tido como nulo (n.º 1 do art. 81.º do CC).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. AA intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra Companhia de Seguros BB, S.A., e Grupo Desportivo dos CC, pedindo a condenação dos Réus a pagar-lhe:

1) As despesas médicas que efectuou no montante de 250,76 €;

2) As despesas em deslocações no montante de 243,50 €;

3) As despesas de estadia no montante de 85,00 €;

4) O valor das obras efectuadas na adaptação da casa às necessidades de mobilidade do Autor no montante de 849,95 €;

5) Uma indemnização pelas dores sofridas pelo Autor em montante não inferior a 50.000,00 €;

6) Uma indemnização pelos danos psicológicos sofridos pelo Autor por não conseguir concluir o curso de valor não inferior a 25 000,00 €;

7) Uma indemnização pelos valores que o Autor deixou de auferir desde a data do acidente até à presente data no montante não inferior a 10.000,00 €;

8) Uma renda vitalícia em montante nunca inferior a 1.000,00 € mensais;

9) Uma indemnização ao Autor a título de incapacidade de ganho futuro em valor não inferior a 528 000,00 €;

10) Juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento sobre todas as quantias reclamadas.


O autor fundamentou estes pedidos nos danos resultantes de um acidente (ferimentos graves) ocorrido no decurso de um jogo de futebol em que participava na qualidade de jogador ao serviço do segundo réu e na cobertura parcial desses danos por um contrato de seguro obrigatório celebrado com a primeira ré (seguradora).


A 1ª ré contestou por impugnação, alegando ainda que o limite do capital seguro era de 26.000,00 € em caso de morte ou invalidez permanente e de 4.650,00 € relativamente a despesas de tratamentos, sendo que este último valor já foi pago ao hospital.


O 2º réu contestou por excepção e por impugnação.

Por excepção alegou que deviam ser chamadas a intervir a Associação de Futebol de Braga e a Federação Portuguesa de Futebol.

Por impugnação alegou, além do mais, que o autor era um atleta amador (embora federado), estando inscrito na Associação de Futebol de Braga (AFB) e na Federação Portuguesa de Futebol (FPF).


O ISS, IP/Centro Nacional de Pensões reclamou o reembolso das prestações já pagas ao autor a título de pensão de invalidez no valor de 4.194,68 € e, bem assim, do valor correspondente às prestações pagas a esse título na pendência da acção, acrescido dos respectivos juros de mora.


Foi admitida a intervenção principal de Federação Portuguesa de Futebol, do Instituto Português do Desporto e da Juventude, IP, e do Município de Terras de Bouro.


Realizada audiência preliminar, foram os chamados absolvidos da instância, com o fundamento na inexistência de causa de pedir quanto a eles (fls. 719).

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que se transcreve na parte dispositiva:

«Em face do exposto julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:

a) Condenar a Ré BB a pagar a pagar ao Autor a quantia de 27 000,00 euros, acrescida de juros de mora desde a data da citação;

b) Condenar o Réu Grupo Desportivo de CC a pagar ao Autor a quantia correspondente às despesas médicas que efectuou no montante de € 250,76, às despesas em deslocações no montante de € 243,50, às despesas de estadia no montante de € 85,00, ao valor das obras efectuadas na adaptação da casa às necessidades de mobilidade do Autor no montante de € 849,95;

c) Condenar o Réu Grupo Desportivo de CC a pagar ao Autor uma indemnização pelos danos não patrimoniais no valor de 55 000,00 euros

d) Condenar o Réu Grupo Desportivo de CC a pagar ao Autor uma indemnização no valor de 412.800,00 euros pela incapacidade de ganho futura;

e) Condenar o Réu Grupo Desportivo de CC a pagar ao ISS, IP/Centro Nacional de Pensões a quantia de 4.194,68 euros, acrescida do valor correspondente às prestações pagas a título de pensão de invalidez na pendência da acção

f) Condenar o Réu Grupo Desportivo de CC a pagar ao Autor os juros de mora vencidos até integral e efectivo pagamento sobre as quantias referidas em b), d) e e) desde a citação;

g) Absolver a ré Tranquilidade e o réu Grupo Desportivo de CC do demais peticionado».


Inconformados apelaram ambos os réus.

O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão, em 9 de Julho de 2015, julgando procedentes as apelações e, em consequência, decidiu revogar a sentença relativamente ao réu Grupo Desportivo dos CC, absolvendo-o do pedido, e alterá-la em relação à ré Tranquilidade, condenando-a a pagar a quantia de € 26.000,00 (em vez de € 27.000,00), acrescida de juros de mora desde a data da citação.


Deste acórdão recorreu o autor de revista para este Supremo Tribunal de Justiça.

Na respectiva alegação aduziu as seguintes conclusões:

1. O Recorrente pugna pela improcedência do Acórdão ora recorrido no que concerne à absolvição do pedido do Réu Grupo Desportivo dos CC devendo pois o mesmo ser revogado, o que desde já se requerer a Vossas Excelências.

2. Mais defende que a Douta Sentença da Primeira Instância se encontra criteriosamente e coerentemente sustentada quanto a esta matéria, não merecendo qualquer reparo a sua fundamentação, a qual se dá integralmente como reproduzida e se subscreve. Senão vejamos,

3. Com relevo para a aplicação do direito cumpre salientar da matéria de facto dada como provada que os danos sofridos pelo Autor resultam de um acidente ocorrido no decurso de um jogo de futebol que o mesmo efectuava ao serviço do Grupo Desportivo dos CC.

4. O acidente ocorreu num jogo de futebol entre duas equipas amadoras (mas federadas) quando um jogador da equipa contrária deu um pontapé na bola, a qual foi embater na cara do Autor, ora Recorrente, que lhe determinou uma incapacidade total para o trabalho e com os danos melhor descritos supra.

5. O Douto Tribunal da Relação de Lisboa considerou que o futebol não pode ser considerado uma actividade perigosa para os efeitos previstos no artº 493º nº 2 do C. C.

6. Do que o Autor tem conhecimento os Tribunais superiores ainda não se debruçaram sobre esta questão, o que irá trazer uma responsabilidade acrescida à decisão que Vossas Excelências irão tomar, tanto para o caso concreto como para situações futuras.

7. Para apreciação de tal questão jurídica a lei não nos dá uma definição do conceito de actividade perigosa.

8. Pelo que, para o efeito, temos que nos socorrer das orientações contidas no nº 2 do artº 493º do C. C., da jurisprudência e do entendimento doutrinal.

9. Que nos dizem que para uma actividade ser considerada perigosa bastará que o seja a natureza da actividade ou a natureza dos meios utilizados.

10. São-no aquelas que implicam uma propensão para o dano (nesse sentido: Mário Júlio Costa, Direito das Obrigações, Coimbra, 9ª Edição, pág. 538 e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª Edição, pág. 595.)

11. A jurisprudência tem uma interpretação ainda mais abrangente do conceito de actividade perigosa pois considerou como tal, por exemplo, a construção de barragens, o abate de árvores, as escavações no sopé de encosta por máquinas escavadoras, a organização de provas de Karting, o lançamento de fogo de artifício, a prática desportiva de circulação de motas de água, a prática de hóquei patins e de paintball, etc.

12. Tendo mesmo o Acórdão do STJ de 29.04.2008 (proc. 08A 867) defendido que: “...a perigosidade a que alude o artigo 493.º, n.º 2, é uma perigosidade intrínseca da actividade exercida quer pela sua natureza, quer pelos meios utilizados, perigosidade que deve ser aferida a priori e não em função dos resultados danosos em caso de acidente, muito embora a magnitude destes possa evidenciar o grau de perigosidade da actividade, ou risco dessa actividade.

13. Cotejando os factos e aplicando o direito, bem andou o Tribunal da Primeira Instância ao entender que no caso em concreto, “...a actividade desenvolvida pelo 1º Réu através dos seus jogadores – futebol – assume natureza perigosa tendo em conta a circunstância de os jogadores se encontrarem num local de dimensões determinadas sem protecção para a cara e cabeça perante um objecto de borracha dura que pode atingir uma força e velocidade letais quando impulsionado pela forma prevista nas regras próprias – o pé.”

14. Sendo certo que o direito é uma realidade dinâmica que tem que acompanhar o desenvolvimento da sociedade e a renovação dos seus valores.

15. O futebol tem sido uma realidade social e económica com elevado grau de mutação face aos milhões de euros que movimenta.

16. Desse modo, os seus agentes são obrigados a atingir graus de competitividade elevadíssimos que pressupõem uma preparação física muito sofisticada e exigente dos jogadores.

17. Bem como a melhoria na qualidade dos equipamentos desportivos, tudo em prol de uma melhor prestação técnica e robustez física dos jogadores com o objectivo último de atingir níveis de eficácia elevados de modo a derrotar o adversário (mais força, mais velocidade e mais perigosidade).  

18. Derrota do adversário que pode levar em muitos caso à derrota de uma vida, como o dos presentes autos em que o autor ficou com uma incapacidade permanente total para o trabalho e dependente da ajuda de uma terceira pessoa para sobreviver no dia a dia mais banal de um cidadão comum.

19. Na presente data, tem a sua mãe, que se desempregou para lhe dar assistência, 24h sobre 24h, mas o que será deste indivíduo quando a mãe falecer!

20. A sua vida será em parte facilitada se for devidamente compensado, nos presentes autos, pelos danos sofridos, porque dessa forma poderá ser acautelar uma sobrevivência condigna.

21. De outro modo, não vislumbramos como!

22. Na verdade, o caso concreto e o largo historial do elevado número de jogadores de futebol que já morreram em campo a praticar este desporto é bem o exemplo acabado de que à luz da disposição legal citada o futebol deverá ser considerado uma actividade perigosa.

23. Tanto mais que os meios utilizados pelo futebol são potencialmente perigosos, seja porque, como já se referiu, a bola, objecto duro, atinge força e velocidades letais, seja porque os jogadores não têm protecção para a cara e porque usam como calçado chuteiras com pitões!

24. Já para não falar na existência no campo de futebol de 2 balizas fabricadas de material potencializador do dano morte após embate de um jogador resultante da própria dinâmica, disputa, força física e velocidade imprimida no jogo. 

25. Acresce que, já Waldemar Areno, estudioso na matéria defendeu que com a prática do rugby, futebol, esqui, boxe, luta livre, motociclismo e automobilismo estamos perante desportos de grande risco (vide Waldemar Areno; “Acidentes nas Atividades Esportivas”).

26. Deste modo, facilmente se conclui, conforme foi afirmado em sede de decisão da Primeira Instância, que: “... o exercício do futebol comporta em si um risco elevado de lesão para terceiros mesmo que observadas as normas e os regulamentos que a tutelam, e que por esse motivo se justifica o estabelecimento de uma presunção de culpa por parte de quem retira os benefícios dessa actividade.”

27. Nesse sentido, como bem refere a sentença ora recorrida, pronunciaram-se: “os Acórdãos do S. T. J. De 11/9/2012 (rel. Fernando do Vale) relativamente a jogo de hóquei em patins, e da Relação de Lisboa de 5/11/2013 (rel. Anabela Carvalho) relativamente ao jogo de paintball (disponíveis em www.dgsi.pt)”.

28. A diversidade fática, tanto em termos doutrinais como de jurisprudência, tem evidenciado, pontualmente, uma disparidade nos critérios atinentes à determinação do conceito de actividade perigosa; tal não nos deve toldar, mas sim trazer discernimento para uma abordagem mais justa de tal conceito para que as expectativas na justiça não fiquem defraudadas e que o cidadão comum se possa rever na decisão que se irá tomar e é isso que se pede a Vossas Excelências.

29. O Douto Acórdão recorrido veio também defender que no caso concreto o Autor assumiu o risco de: “...sofrer uma lesão provocada no decorrer de uma jogada normal, quer em consequência de uma falta do adversário, quer, simplesmente, como aconteceu, numa jogada ocasional.”

30. Também aí, no modesto entendimento do Autor, ora Recorrente, mal andou o Douto Tribunal da Relação de Lisboa pois o referido Acórdão viola as regras mais elementares do direito civil e constitucional.

Posto que,

31. Em primeiro lugar, a problemática da assunção do risco é um instituto não escrito no direito português e embora algumas das vezes leve à exclusão da ilicitude, está sujeito ao crivo do regime previsto nos artsº 81º e 340º do C. C. e artº 26º da C. R. P.

32. Tal instituto deixou de ser seguido em alguns países da Europa, nomeadamente pela França, quando o seu ordenamento jurídico foi sendo confrontado com situações de riscos anormais, nomeadamente, de dano morte.

33. Ainda não é o caso de Portugal, e diversos civilistas têm-se debruçado sobre a matéria, como Antunes Varela e Mário Júlio Almeida Costa, assim como, André Gonçalo Dias Pereira numa abordagem jurídico-dogmática em que no âmbito da responsabilidade aquiliana prevista no artº 483º do C. C. a lei permite que nalguns casos possamos estar perante situações de justificação de ilicitude, como é a chamada “assunção do risco”, que justifica a conduta do lesante tornando o fato lícito.

34. Por exemplo, André Gonçalo Dias Pereira citado no Douto acórdão refere, num artigo seu sobre “ Assunção do Risco Em Actividades Desportivas no Direito Português”, publicado na Revista “ Desporto & Direito – Revista Jurídica do Desporto nº 9 , Ano III – Maio/Agosto 2006, da Coimbra Editora,  pág. 423, que “....Com efeito, no domínio das actividades desportivas, a ideia de um consentimento do lesado para os danos futuros não é a mais adequada, uma vez que os aqui os concretos danos nem são previsíveis, nem são desejados.”

35. No mesmo artigo e citando Pinto Monteiro, pág. 424 é referido que: “...o facto de o lesado ter conhecido de antemão o risco a que voluntariamente se expunha não significa, por si só, que ele tenha consentido na lesão, ou que tenha aceitado tacitamente a irresponsabilidade do lesante. Muito menos que o lesado liberte o lesante dos deveres de cuidado que este deve observar.”

36. Na pág. 43, André Gonçalo Dias Pereira, refere ainda que: “...O risco só é aceitável se for normal. A normalidade deve resultar quer da fonte do risco, quer da sua manifestação concreta. Assim exige-se uma prática leal e correta do desporto, e apenas os riscos inerentes a um determinado desporto são abrangidos pela assunção do risco. Risco normal é aquele que é normalmente previsível pelo lesado.

A assunção dos riscos deve ser vista em função das circunstâncias e dos intervenientes, pelo que parece legítimo estabelecer regimes diferenciados. Assim, advogamos regimes distintos consoante a idade das pessoas envolvidas no jogo de futebol e da circunstância de se tratar de desporto profissional ou competitivo ou de actividades lúdicas ou de mera recreação.”

37. Nesse sentido, Carla Câmara, “ A Responsabilidade Civil do Organizador do Evento Desportivo”, in “o Desporto Que os Tribunais Praticam, Coordenação de José Manuel Meirim, Coimbra Editora, 2014, pág. 162: “ O risco só é aceitável se for normal. A normalidade deve resultar quer da fonte do risco, quer da sua manifestação concreta. Assim, exige-se uma prática leal e correcta do desporto, e apenas os riscos inerentes a um determinado desporto são abrangidos pela assunção do risco. Risco normal será aquele que é normalmente previsível pelo lesado, variando consoante a idade das pessoas envolvidas, o regime de prática, o próprio desporto em si.”

38. Como se pode verificar, mal andou, repete-se, o Douto Acórdão da Relação de Lisboa ao ter entendimento que no caso concreto se aplica tal instituto.

39. Sendo certo que, mesmo que tal se admitisse por cautela de patrocínio que o mesmo se aplica ao caso concreto, teria sempre que ser articulado com o disposto no artº 570º ou 494º, ambos do C.C. e que se invoca para os devidos efeitos legais.

40. Partindo do direito para os fatos, facilmente se conclui que nem para o Autor nem para qualquer jogador de futebol, federado, amador ou lúdico era ou é expectável que ao entrar num campo de futebol pode sofrer as lesões descritas nos autos e que se tenha conformado ou conforme com a sua ocorrência!

41. Atenção, e repete-se, estamos a falar de uma pessoa que ficou com uma incapacidade permanente total para o trabalho e que está dependente de terceira pessoa para sobreviver de forma condigna (vide matéria dada como provada e relatório pericial do IML de fls.)!

42. Face ao supra alegado, entende-se que mal andou o Douto Tribunal da Relação de Lisboa ao revogar a sentença da Primeira Instância e absolver o Réu Grupo Desportivo dos CC do pedido, pois violou os artsº 493º nº 2, 81º, 340º, 570º e 494º do C. C. e 26º nº 1 da C. R. P., o que se invoca nos termos e para os efeitos do artº 674º nº 1 al. a) do C. P. C.

43. Pelo que deverá ser revogado o Douto Acórdão da Relação de Lisboa na parte que absolve do pedido o Réu, ora recorrido, Grupo Desportivo dos CC, e ser mantida na íntegra a sentença da Primeira Instância no que concerne à condenação do Grupo Desportivo dos CC, cuja fundamentação de facto e de direito se dá integralmente como reproduzida e se subscreve pois só desse modo se Fará Justiça!!!

Nestes termos, deve o presente recurso de Revista proceder, revogando-se o Douto Acórdão da Relação de Lisboa e mantendo-se na íntegra a Douta Sentença proferida em sede de Primeira Instância, no que concerne ao Réu, ora Recorrido, Grupo Desportivo dos CC.»


Contra-alegou o recorrido, pugnando pela manutenção do decidido no Tribunal da Relação de Lisboa.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

Foram dados como provados os seguintes factos:

1. No dia 4 de Fevereiro de 2007, pelas 15.03 horas, o Autor foi vítima de um acidente desportivo.

2. O acidente referido sucedeu no decorrer de um jogo de futebol que o Autor efectuava no campo de futebol da Vila do ..., Conselho de Terras do Bouro.

3. O Autor jogava o jogo em causa na qualidade de membro da equipa e jogador de futebol do Clube de Futebol do Grupo Desportivo dos CC.

4. Sucedeu que durante o jogo e no decorrer de um lance de bola de outro jogador, o Autor apanhou em cheio com a bola na face.

5. O Autor foi transferido para o Hospital de Santo António, no Porto.

6. Onde ficou internado em estado crítico na Unidade de Cuidados Intensivos até dia 27/02/2007.

7. Pois como consequência directa, necessária e adequada da bolada sofrida, o Autor apresentou Escala de Coma de Glasgow (ECG) 8, com edema cerebral difuso, contusões bifrontais, HSA traumática e fractura temporal.

8. Por apólice número …30 foi transferida para a primeira Ré a responsabilidade relativamente ao Autor com a seguinte cobertura:

“- para despesas de tratamento até ao limite de € 4.650,00; e

- por morte ou invalidez permanente até ao limite de € 26.000,00”.

9. Das Condições Particulares da apólice referida no facto anterior consta o seguinte:

3 – Garantias e Capitais Seguros

3.1 O presente contrato garante em relação a cada Pessoas Seguras, até ao limite dos capitais indicados, as seguintes garantias:

Restantes jogadores de futebol amador
Garantias
Capitais
Morte ou Invalidez Permanente
€ 26.000,00
Despesas de tratamento e Repatriamento
€ 4.650,00
3.3 Ao abrigo da Garantia "Morte ou Invalidez Permanente", o risco de morte será extensivo à denominada morte súbita, entendendo-se como tal, a morte quando ocorrida durante a prática do futebol. quando não provocada directamente por acidente, desde que não resulte de doença ou situação clínica previamente diagnosticada.

3.4 Caso se verifique uma situação de Invalidez Permanente, garantida ao abrigo das garantias "Invalidez Permanente" ou "Morte ou Invalidez Permanente" fica estabelecido que o pagamento da indemnização far-se-á nos seguintes termos:

- Se o grau de invalidez permanente for inferior a 10%, não haverá lugar ao pagamento de qualquer indemnização;

- Se o grau de invalidez permanente for igual ou superior a 10% e inferior a 66%, será paga à Pessoa Segura uma indemnização na proporção do respectivo grau de invalidez permanente;

- Se o grau de invalidez permanente for igual ou superior a 66%, será considerado exclusivamente para efeitos de indemnização um grau de invalidez de 100%, sendo pago à Pessoa Segura a totalidade do capital seguro previsto para a respectiva cobertura".

10. Consta das Condições Gerais da apólice referida no facto 8° a seguinte tabela:

TABELA PARA BASE DE CÁLCULO DAS INDEMNIZAÇÕES DEVIDAS POR
INVALIDEZ PERMANENTE


A — INVALIDEZ PERMANENTE TOTAL

                                                                                                   %

- Perda total dos dois olhos ou da visão dos dois olhos:                    100

- Perda completa do uso dos dois membros inferiores ou superiores:    100

- Alienação mental incurável e total, resultante directa e exclusivamente de um acidente:                                                                                                   100

- Perda completa das duas mãos ou dos dois pés:                           100

- Perda completa de um braço e de uma perna ou de uma mão e de uma perna:                                                                                                       100

- Perda total de um braço e de um pé ou de uma mão e de um pé:   100

- Hemiplegia ou paraplegia completa:                                              100)


NOTA: De acordo com o estipulado no n.° 4 do Artigo 3.° da Condição Especial de Morte ou Invalidez Permanente, quando a lesão da Pessoa Segura não constar da presente tabela e a aplicação de outras regras de desvalorização não tenham sido acordadas. a Tranquilidade procederá à determinação da invalidez permanente com base na Tabela Nacional de Incapacidades, considerando para o efeito 75% da incapacidade aí definida".

11. Ao abrigo da cobertura de despesas com tratamentos do autor, a primeira Ré já liquidou a quantia de 4.650,00€ ao Centro Hospitalar do Porto – EPE, tituladas pela factura n.° 81…, datada de 31/12/2008, despesas estas que tiveram origem nos tratamentos efectuados ao autor na sequência do sinistro invocado nos autos.

12. AA é o beneficiário n° 10… do ISS, IP/Centro Nacional de Pensões.

13. Em 2010.06.23 o referido beneficiário requereu ao ISS, IP/Centro Nacional de Pensões, a pensão de invalidez.

14. Pelo ISS, 1P/Centro Nacional de Pensões foi-lhe deferida uma pensão de invalidez, com início em 04-02-2010, no valor mensal de € 303, 23.

15. De 2010.02.04 a 2011.01.31, foram pagos ao Autor pensões de invalidez no valor de € 4.194,68.

16. Ao tempo do acidente, o Autor era estudante finalista do quarto ano do Curso de Direito da Universidade do …..

17. E começou de imediato a deitar sangue pelo nariz e pelos ouvidos.

18. e 19. O Autor ficou logo inconsciente e foi levado de imediato para o Hospital de S. Marcos, em Braga.

20. Em 27/02/2007 o Autor foi transferido do Hospital de Santo António, no Porto, para o Hospital de S. Marcos, em Braga, onde permaneceu internado até ao dia 17/08/2007.

21. Durante este ultimo internamento, o Autor teve como intercorrência, pneumonia com insuficiência respiratória.

22. Em 15/03/2007, o Autor foi admitido no UCIP por quadro choque séptico com disfunção multiorgânica e necessidade de ventilação mecânica, e em 01/04/2007 foi entubado.

23. Em 23/04/2007 foi observado pela Medicina Física e Reabilitação e apresentava ECG 9, em ventilação espontânea, hemodinamicamente estável, com quadro neuromotor de tetraparesia espástica de predomínio esquerdo e mobilizava espontaneamente os membros inferiores e o membro superior direito.

24. Quando em 17/05/2007 foi transferido para o Serviço de Medicina Física e Reabilitação do referido Hospital de S. Marcos para iniciar programa de reabilitação funcional, obedecia a ordens simples, não falava, apresentava hipotrofia generalizada e utilizava SNG para se alimentar.

25. Em 17/08/2007 teve alta para o domicílio ainda com uso de fralda e só conseguia dar pequenos passos e somente com o apoio de outra pessoa.

26. Em 18/09/2007 foi avaliado pelo CMR Sul e mantinha o quadro que apresentara na data da referida alta, e continuava com uso de fraldas e totalmente dependente para banho, vestuário, utilização de sanita e todas as movimentações, só trocava passos e não subia ou descia escadas.

27. Apresentava um défice de memória com incapacidade para aprender e recordar, que lhe impediam o funcionamento social e ocupacional.

28. Apenas podia ingerir alimentos líquidos.

29. Possuía um discurso não fluente e dificuldades na compreensão verbal e na identificação de objectos.

30. Manifestava comportamentos de oposição e agressividade.

31. O Autor teve que ser submetido a um programa de reabilitação intensivo interdisciplinar e realizou tratamento 6 horas diárias, 6 dias por semana, com Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Psicologia, Dietista, Enfermagem de Reabilitação e Enfermagem.

32. Ainda apresenta sinais de inibição emocional e ansiedade.

33. Apresenta dificuldades na resolução de problemas e na habilidade construtiva em geral.

34. Mantém problemas na leitura, na escrita, na expressão verbal e não automatizou a produção correcta dos fonemas.

35. E está obrigado a tomar medicação vária para sempre.

36. Mantém a Epilepsia que contraiu como causa directa, necessária e adequada do embate da bolada e do acidente que a mesma deflagrou.

37. Com o acidente e com os tratamentos que foi obrigado a fazer, por via do mesmo, o Autor sofreu dores, aflições, incómodos e angústias.

38. e 39. A mãe do Autor teve de fazer obras de adaptação da sua residência para o respectivo uso pelo Autor, que custaram € 849,95.

40. Em virtude do acidente que padeceu, o Autor não pode concluir o curso de Direito.

41. À data do acidente o Autor, nascido em 3/5/1981, estava matriculado no 4° ano da Licenciatura de Direito na Universidade do ….

42. O Autor ficou com uma incapacidade permanente total para o trabalho.

43. O Autor suportou despesas médicas no montante de € 250,76.

44. E com deslocações que efectuou para tratamentos no valor de € 243,50.

45. E suportou despesas de estadia para os tratamentos no valor de € 85.00.


De direito:

Em face da síntese conclusiva contida na alegação do autor, ora recorrente, delimitadora do objecto do recurso, salvo questão de conhecimento oficioso, a questão nuclear a apreciar consiste em saber se o futebol pode ser qualificado como actividade perigosa à luz do disposto no artigo 493º nº 2 do Código Civil e, consequentemente, ser o réu Grupo Desportivo dos CC obrigado a indemnizar o autor pelos danos sofridos durante a prática de tal modalidade desportiva.

1. As Instâncias afastaram, in casu, a responsabilidade contratual daquele réu, o que não suscitou qualquer discordância das partes. Divergiram, contudo, no tocante a considerá-la (ou não) subsumível à figura da responsabilidade por actividade perigosa prevista no citado normativo. 

Assim, a 1ª instância condenou o Grupo Desportivo dos CC na obrigação de indemnizar o autor pelos danos que sofreu em consequência do acidente ocorrido no decurso do jogo de futebol que protagonizou como seu jogador, integrando o futebol no conceito de actividade perigosa.

O Tribunal da Relação, por sua vez, não sufragou tal entendimento, defendendo que o futebol não cabe no âmbito do conceito de actividade perigosa e ainda que essa prática desportiva envolve por parte do jogador a assunção do risco de se lesionar, absolvendo, por conseguinte, aquele Grupo Desportivo dos CC dos pedidos contra si deduzidos.

Observa Menezes Cordeiro que «a ocorrência de danos é uma possibilidade no mundo do Direito, dada a contingência e a precariedade das realidades humanas» (Tratado de Direito Civil, Tomo I, 1999, Almedina, pág. 215). No entanto, o instituto da responsabilidade civil, seja no campo da responsabilidade contratual fundada no incumprimento da obrigação, seja no domínio da responsabilidade extracontratual, subjectiva ou objectiva, permite ao lesado fazer repercutir os danos na esfera jurídica de outrem desde que verificados os respectivos pressupostos.

Embora a responsabilidade obrigacional e a extracontratual ou delitual pressuponham a culpa do agente, o seu regime probatório diverge. Enquanto na primeira se presume a culpa do devedor (artigo 799º nº 1 do Código Civil), cabendo-lhe o ónus de ilidir essa presunção legal, na responsabilidade extracontratual por facto ilícito recai, por regra, sobre o lesado o ónus de demonstrar a culpa do lesante (artigo 487º do Código Civil).

Casos há, porém, de responsabilidade delitual em que se abrem excepções a essa regra, ocorrendo a inversão do ónus probatório, como sucede com a responsabilidade por danos decorrentes do exercício de uma actividade perigosa.

Neste caso, preceitua o nº 2 do artigo 493º do Código Civil: «quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir».  

O legislador, mantendo, embora, essa responsabilidade no domínio da culpa, tratando-a como responsabilidade extracontratual ou aquiliana, consagrou uma presunção de culpa na produção dos danos causados no exercício de actividade perigosa, impondo àquele que a exerce o ónus de demonstrar a falta de culpa como causa de exclusão da sua responsabilidade.                   

Como se assinalou no acórdão recorrido, «a lei parte do princípio de que, dadas as circunstâncias do caso, o lesante deve ser responsabilizado, havendo presunção de culpa. Mas permite-lhe também que possa ilidir essa presunção, mostrando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos. Isto é, em relação aos danos causados no exercício de uma actividade perigosa, o lesante só poderá exonerar-se da sua responsabilidade perante o lesado, se provar que empregou todos os meios para os prevenir, ou seja, que foi cuidadoso e diligente de acordo com as circunstâncias exigíveis no caso».

A lei não definiu o conceito de «actividade perigosa», deixando esse labor à doutrina e à jurisprudência. Deixou, porém, claro que a perigosidade há-de resultar da própria natureza da actividade desenvolvida ou da natureza dos meios utilizados. Perigosa será a actividade que envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pág. 538) quer pelas características da actividade em si, quer pelos meios utilizados para a desenvolver, sendo a sua apreciação casuística.

No campo da actividade desportiva vêm-se considerando como potencialmente perigosos, entre outros, o boxe e as artes marciais, desportos praticados por “atleta-contra-atleta”, particularmente agressivos e que têm por objectivo causar lesões no adversário.

O futebol integra os designados desportos “uns-contra-os-outros”, em duas equipas adversárias se confrontam. O seu objectivo principal é o jogo, embora no decurso do mesmo possam ocorrer, e ocorrem frequentes vezes, lesões devidas, por regra, a conduta negligente de um atleta da mesma equipa ou da equipa adversária na disputa pela posse da bola e, bem assim, na projecção desta durante as jogadas.

O grau de perigosidade que lhe está associado não é, contudo, comparável ao inerente a actividades como os já referidos boxe e artes marciais, bem como a alguns desportos aquáticos, automobilísticos e praticados na neve, os quais pela sua natureza e pelos meios envolvidos revelam maior susceptibilidade ou aptidão para provocarem lesões de gravidade nos seus praticantes e mais frequentes do que sucede noutras modalidades desportivas (cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal de 30.11.2004, proc. 04A3925, acessível em www.dgsi.stj.pt, que julgou a circulação de motas de água uma prática desportiva perigosa subsumível à previsão do artigo 493º nº 2 do Código Civil).

Sendo um desporto que congrega o interesse generalizado quer de praticantes, quer de espectadores, o futebol constitui, culturalmente, uma actividade desportiva, que começa na meninice e se prolonga muitas vezes durante a juventude e a idade adulta, com um pendor puramente recreativo e sem que lhe esteja associada qualquer ideia de particular perigosidade tanto na sua prática, como nos meios que envolve, embora a possibilidade de contrair lesões não lhe seja alheia e estas possam atingir extremo nível de gravidade, como o revela o infortúnio do autor.

A prática do futebol como desporto federado não lhe confere carácter de maior perigosidade, se bem que, como observa André Gonçalo Dias Pereira (“Responsabilidade Civil em Eventos Desportivos”, Dez Anos de Desporto & Direito, 2003 a 2013, Almedina, pág.124), «O facto de o desporto federado se encontrar melhor regulamentado, quer ao nível das exigências da medicina desportiva, quer ao nível da protecção dos seguros desportivos, passando pela existência de sistemas punitivos ligados à justiça desportiva, e à qualidade do equipamento utilizado, conduz-nos à necessidade de defender um campo de intervenção mais amplo para o direito civil relativamente ao desporto de mero recreio».

Existe no futebol um modelo de interacção que, mesmo com respeito pelas regras pré-estabelecidas, envolve o contacto corporal frequente dos jogadores na disputa pela bola e até, como se dá nota no acórdão recorrido, alguma violência ligada à competitividade que rodeia o jogo, à velocidade e à força física que os jogadores imprimem durante o mesmo, o que é susceptível de causar lesões corporais.

Não obstante, não se trata de modalidade desportiva dotada de perigosidade intrínseca em função da sua natureza e/ou dos meios nela utilizados, sendo até consideradas socialmente toleráveis lesões ligeiras, sob a forma de heterolesão, ocorridas durante os jogos desde que não seja ultrapassado o limiar da mera culpa.

É certo que as lesões nem sempre são leves. São os casos de lesões graves como as que o recorrente infelizmente sofreu, de gravidade muito superior às que normalmente acontecem em desafios de futebol, que se revelam problemáticas.

Contudo, a especial perigosidade a que a lei se refere não se afere pela gravidade da lesão do atleta ou jogador. Terá de resultar da verificação de um dos pressupostos enunciados no nº 2 do artigo 493º citado. E porque assim é, sufraga-se o acórdão recorrido no entendimento de que o futebol não constitui na acepção daquele normativo uma actividade perigosa, ficando afastada a aplicação da regra de inversão do ónus probatório nele consignada.

No caso, as graves lesões sofridas pelo autor, enquanto jogador integrado na equipa do réu Grupo Desportivo dos CC, em consequência de uma jogada feita por um elemento da equipa adversária sem estar alegado e demonstrado que tal aconteceu devido a qualquer violação de regras de segurança que aquele devesse garantir ou a qualquer evento estranho que lhe cumprisse prevenir, não lhe são imputáveis, não obstante a ocorrência do evento nefasto e a insuficiente protecção conferida pelo contrato de seguro celebrado, que é obrigatório para os agentes desportivos inscritos em federações desportivas (artigo 42º da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto).

Está, por conseguinte, afastada a responsabilidade extracontratual do réu por ausência de facto ilícito e de culpa. Responsabilizá-lo nestas circunstâncias equivaleria a condená-lo com base em responsabilidade objectiva ou pelo risco num caso em que a lei a não prevê.

2. O acórdão recorrido faz ainda apelo ao consentimento do lesado (anterior à lesão) como causa de exclusão da responsabilidade do réu, nos termos do disposto no artigo 340º nº 1 do Código Civil.

Estando em causa a lesão de um direito de personalidade protegido pela Constituição e pela lei ordinária (artigo 70º do Código Civil) – o direito à integridade física – no exercício da prática desportiva, vem-se discutindo a questão de saber se existe espaço para a intervenção da doutrina do consentimento do lesado no desporto.

Foram surgindo nesta área das causas de exclusão da ilicitude várias doutrinas, das quais destacamos a do «risco permitido», a «heterocolocação-em-risco-consentida» e a «assunção do risco».

Manuel da Costa Andrade (“As Lesões Corporais (e a Morte) no Desporto”, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, págs. 781 e 719), ainda que com enfoque na vertente do ilícito penal, manifestou preferência pela doutrina do «risco permitido», afirmando, em síntese conclusiva, poder “admitir-se que a obediência às regras do jogo afastará, em princípio, o tipo e, por vias disso, a ilicitude e as reacções criminais. Mas já a inversa não é verdadeira: a violação das regras do jogo não tem necessariamente – nem sequer normalmente – de realizar o risco proibido capaz de suportar a imputação do resultado lesivo típico. Tal só sucederá nas constelações em que a violação das regras, pela sua violência e desproporcionalidade e pela gravidade das lesões produzidas, perde a conexão de sentido com o jogo, mesmo o jogo jogado com o mais exasperado e agónico empenhamento.”

No seu artigo “Responsabilidade Civil em Eventos Desportivos” (in Dez anos de Desporto & Direito (2003 a 2013), Coimbra Editora, págs. 118 e 119) André Gonçalo Dias Pereira defendeu que a «assunção do risco» deve ser um instituto operacional no domínio do desporto, citando Brandão Proença quando afirma:

A assunção do risco pode ter um âmbito de aplicação mais geral que o consentimento, sendo relevante para os casos de danos sofridos pelos que participam em actividades ou jogos desportivos (…)”. Este instituto “traduz, essencialmente, a atitude do lesado de se expor conscientemente a um perigo típico ou específico conhecido, sem a isso ser obrigado, mas conservando a esperança de o perigo não se concretizar em dano”.

Contudo, este autor não deixa de referir que a norma de direito civil que consagra a limitação voluntária dos direitos de personalidade (artigo 81º do Código Civil) – em seu entender a doutrina da assunção do risco – exige como requisitos: capacidade para dispor de direitos de personalidade; a decisão voluntária e livre; disponibilidade dos bens jurídicos; o limite da ordem pública; a livre revogabilidade.

Seja qual for a opção doutrinária, uma exigência se coloca para que possa ocorrer a causa de justificação de que falamos: a lesão não pode pela sua gravidade ir além do risco próprio da actividade desportiva. Como escreveu Orlando de Carvalho (Teoria Geral do Direito Civil, Sumários desenvolvidos para o 2º ano do Curso Jurídico de 1980/81, Centelha, Coimbra, 1981, pág. 195), “a exposição a uma situação de perigo não implica disposição do direito à integridade física (atribuição a outrem de um poder de lesão) ”, sob pena de ter de considerar-se o consentimento nulo por contrário à ordem pública (artigos 81º nº 1 e 340º do Código Civil).


III. Decisão:

Termos em que se acorda em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 12 de Maio de 2016


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Olindo Geraldes

Pires da Rosa