Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1476/19.8YRLSB-A
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO PEREIRA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
EXTRADIÇÃO
Data do Acordão: 06/06/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO O PEDIDO DE HABEAS CORPUS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / MODOS DE IMPUGNAÇÃO / HABEAS CORPOS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL.
Doutrina:
- Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, Verbo, 1993, p. 260.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 222.º, N.º 2.
LEI DA COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL, APROVADA PELA LEI N.º 144/99, DE 31 DE AGOSTO: - ARTIGO 38.º, N.º 3.
Legislação Comunitária:
REGULAMENTO DA INTERPOL: - ARTIGO 82.º.
Legislação Estrangeira:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL COLOMBIANO: - ARTIGO 512.º.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH): - ARTIGOS 5.º, N.º 1, ALÍNEA C) E 6.º.
Sumário :
I - O art. 512.º do CPP colombiano é aplicável “sin perjuicio de lo previsto en tratados públicos”, como é o caso do Regulamento da Interpol, organização de que a Colômbia é Estado membro, estando pois vinculada, ativa e passivamente, ao que dispõe o art. 82.°, respeitante às notificações deste organismo, com vista à localização de pessoa procurada e sua detenção para efeitos de extradição, entrega ou aplicação de outras medidas jurídicas similares.
II - Não se verifica qualquer incumprimento do disposto no n.º 3 do art. 38.° da Lei 144/99, de 31-08, porquanto o pedido de detenção alude, ainda que resumidamente, aos factos imputados ao peticionante, disposições legais que os incriminam, datas em que ocorreram (quando tal é possível) e local da respectiva ocorrência.
III - Acresce que se está perante uma detenção não directamente solicitada para cuja execução simplesmente se requer que as pessoas visadas sejam procuradas por autoridades competentes estrangeiras para efeito de procedimento ou de cumprimento de pena "por factos que notoriamente justifiquem a extradição", como manifestamente é o caso.
IV - Há que salientar que estamos perante uma detenção provisória que terá novos desenvolvimentos no processo de extradição proprio sensu, fase processual que com maior detalhe avaliará os fundamentos do pedido, caso o mesmo seja oportunamente apresentado, sendo que, perfunctoriamente, nada de anómalo há apontar ao procedimento que levou à detenção e confirmação da mesma.
V - Também se não pode invocar violação do disposto nos arts. 5.° e 6.° da CEDH, não apenas porque a detenção foi efetuada nas condições previstas no seu art. 5.°, n.º 1, alínea c), mas também porque as exigências de um processo justo não são postergadas já que o detido terá necessariamente oportunidade de fazer oposição ao pedido de extradição e de apresentar provas.
VI - A providência de habeas corpus não é um verdadeiro modo de impugnação visto que o seu objecto se prende simplesmente com a verificação de uma situação de objectiva ilegalidade para de imediato lhe pôr termo. O tribunal, constatando que ocorre alguma das situações previstas nas diferentes alíneas do art. 222.°, n.º 2 do CPP, declara isso mesmo e ordena a libertação do requerente, não lhe competindo apreciar e/ou revogar o despacho que tenha determinado a prisão, competência essa que é exercida pelo tribunal competente em sede de recurso ordinário, se o houver.
VII - O “habeas corpus” não é o meio adequado para apreciar o mérito de uma decisão que tenha determinado a prisão.
VIII - Limitando-se a peticionante a questionar a verificação dos requisitos legais da detenção, não pela sua ausência mas pela sua substancia, o que nos remete para o mérito da decisão que os convoca, forçoso é considerar que a petição em apreço constitui uma verdadeira impugnação da decisão que manteve a prisão preventiva da peticionante, cujos fundamentos não são subsumíveis em qualquer das alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP, pelo que este requerimento de habeas corpus terá de considerar-se manifestamente infundado.

Decisão Texto Integral:   

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

           

I – Relatório

1.1 - Por petição remetida ao Tribunal da Relação de Lisboa em 3 de junho de 2019 e distribuída no dia imediato no Supremo Tribunal de Justiça, AA, de nacionalidade ..., nascido em, ... de 1973, extraditando a pedido das autoridades da ..., cujos termos correm nos autos supra referenciados veio, invocando o disposto  nos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 222.º do Código Processual Penal (CPP), pedir a providência excepcional de Habeas Corpus, invocando para tal os fundamentos seguintes:

“(…)


1.º

Por despacho judicial proferido em 23 de maio de 2019, foi validada a detenção e aplicada ao ora requerente a medida de coacção de prisão preventiva, em consequência do mandado de detenção internacional, oriundo de ....


2.º

Foi pedida a detenção provisória nos termos do art.º 38º e 39º da Lei 144/99, de 31 de Agosto que foi mantida pelo Venerando Desembargador.

3.º

Todavia, do pedido da Interpol deveria constar a existência do mandado de detenção ou decisão condenatória contra pessoa reclamada, devendo conter o resumo dos factos constitutivos das infrações, com indicação do momento e lugar da sua prática, conforme n.º 3 do art.º 38º da citada lei.

4.º

No mesmo refere-se que existem motivos fundados para concluir que AA, é provável autor das condutas puníveis assinaladas acima, nomeadamente os factos ocorridos em 2012 em ..., onde aparece como vitima o senhor BB, assassinado em 15-06-16.

5.º

Ora salvo o devido respeito, este mandado não cumpre os requisitos previstos no n.º 3, do art.º 38 da Lei 144/99, porquanto não concretiza em relação a cada infração, o momento, tempo e lugar de cada uma delas, a descrição, ainda que sintética, dos factos, para que dessa forma o requerente se pudesse inteirar dos mesmos, contra si deduzidos e apresentar a sua defesa.

6.º

A vasta informação proveniente da comunicação social, incendiaria, junta aos autos, sabe-se lá de que fontes, e que veracidade a mesma contém, de que se muniu o Ministério Público, para fundamentar a sua petição, não pode servir como fonte atendendo ao acima referido

7.º

Além de que, no mesmo mandado da Interpol, diz se destinar o requerente a cumprir medida de segurança.

8.º

Ora quanto ao requerente não existe nenhuma medida aplicada de segurança, para que desta forma se mantenha este mandado, conforme documento que se junta passado pelo Departamento de ... em 29 de maio de 2019., onde expressamente se refere.

Conforme documento 1 cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.

Refere o documento:


9.º

De acordo com a lei 906 de 2004 - Código de Procedimento Penal ...no Atual, o artigo 512 refere quais são os requisitos para solicitar a extradição:

 “Requisitos para solicitarla. Sin perjuicio de lo previsto en tratados públicos, cuando contra una persona que se encuentre en el exterior se haya proferido en ... resolución que resuelva la situación jurídica, imponiendo medida de aseguramiento, resolución de acusación en firme o sentencia condenatoria por delito que tuviere pena privativa de la libertad no inferior a dos (2) años de prisión, el funcionario que conociere del proceso en primera o única instancia, pedirá al Ministerio del Interior y de Justicia que se solicite la extradición del procesado o condenado, para lo cual remitirá copia de la providencia respectiva y demás documentos que considere conducentes.

La solicitud podrá elevarla el funcionario de segunda instancia cuando sea él quien ha formulado la medida.”

Não se procedeu à tradução em virtude de ser língua de fácil compreensão.


10.º

Em suma, não existe nenhuma medida de segurança já aplicada ao requerente, para que possa ser extraditado para a cumprir, nos termos do art.º 512.º do CPP daqueles pais.

11.º

Além de que o pedido da Interpol não reúne os requisitos para que possa a detenção ser validada, não só de acordo com a falta de fundamentação nos termos do n.º 3 do art.º 38 da Lei 144/99, assim como por violação do art.º 5.º e 6.º da Convenção dos Direitos do Homem.

12.º

Estamos face à manutenção de uma situação de ofensa à liberdade, manifestamente ilegal, consubstanciada num erro grosseiro, atendendo ao acima exposto.

Termos em que se requer a V. ª Exa.:
A concessão da providência do Habeas Corpus, art.º 222.º, n.º 2, al. b) do C.P.P.[1]
Seja declarada ilegal a prisão do requerente, e por esse motivo o mesmo restituído à liberdade, (art.º 223.º, n.4, al. d) do C.P.P.).
(…)”.
Juntou um documento.

1.2 - Em cumprimento do disposto no art.º 223.º, n.º 1 do CPP, a Ex.ma Desembargadora titular do processo proferiu o seguinte despacho:

“(…)

Nos termos do disposto nos artigos 222º e 223º do CPP determino que o presente requerimento de habeas corpus seja remetido, imediatamente, para o Supremo Tribunal de Justiça, por ser o competente para a sua apreciação.

Mais determino que seja acompanhado de certidão integral do processado, que se reporta a pedido de extradição em que se aguarda a apresentação do pedido formal pelo prazo máximo de 18 dias a contar da data da detenção, em conformidade com o disposto no art.º 64.º n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 144/99, de 31/08, conforme consta da acta de inquirição de detido.

A detenção e a medida de coacção foram determinadas e executadas nos termos da Lei 144/99.

 “(…)

-          

1.3 - Teve lugar a audiência a que alude o n.º 3 do art. 223.º do CPP, pelo que cumpre conhecer e decidir.

II - Conhecendo.

2.1 - Dos factos

2.2.1 - Com relevância para a questão em apreço e tendo em conta os elementos constantes da petição, a informação da M.ma juiz e a certidão junta aos autos, elencam-se os seguintes factos:
a) O peticionante AA foi detido pelas 00h40m do dia 22 de maio de 2019, na localidade de ..., em execução de mandado de detenção e condução, da mesma data, por contra ele existir mandado de detenção internacional por crimes de homicídio, exploração sexual de menores, tráfico de estupefacientes, lavagem de dinheiro, associação criminosa, emitido pelas autoridades judiciárias da ..., inserido no sistema da Interpol com o n.º ..., com vista à sua extradição (fls. 20 a 22);
b) O peticionante tinha sido objecto de ordem de captura (071) emitida pelas autoridades judiciárias ...nas, com  data de 6 de dezembro de 2018 e com validade de um ano, por lhe serem imputados os crimes acima mencionados, praticados entre o ano de 2012 e 6 de dezembro de 2018, em ..., sendo que o crime de homicídio que lhe é também imputado, que vitimou o cidadão BB, terá sido praticado em 15 de junho de 2016, no Bairro ... – fls. 63.
c) Em 24 de abril de 2019 foi contra ele emitida uma ordem de captura internacional pela OCN ... ... (notificação vermelha), pelos factos acima referenciados (fls 53 e 54);
d) No momento da detenção o peticionante identificou-se como CC tendo apresentado como documentos comprovativos dessa identidade o passaporte n.º ..., emitido pelo Estado de ... e carta de condução com o n.º ..., também de ..., tendo ainda com essa identidade, um cartão multibanco do Activo Bank - BCP, com o n.º ....
e) Verificou-se porém que o passaporte usado pelo detido consta como “roubado em branco” conforme inserção no Sistema da Interpol feita pelo Estado de ... (fls. 69);
f) E as impressões digitais contantes dos documentos em nome de ... coincidem com as associadas à notícia vermelha da Interpol, com o n.º ..., em nome de AA (fls. 72);
g) Face aos mencionados elementos, após audição do detido, em 23 de maio de 2019, foi validada e mantida a sua detenção e  (fls. 90 a 92).

2.2 – Do direito

2.2.1 - No entendimento do peticionante não existe medida de segurança já aplicada ao requerente, para que possa ser extraditado, para a cumprir, nos termos do art.º 512.º do CPP daquele país e o pedido da Interpol não reúne os requisitos para que possa a detenção ser validada, por falta de fundamentação, nos termos do n.º 3 do art.º 38.º da Lei n.º 144/99, assim como por violação do art.º 5.º  e 6.º da Convenção dos Direitos do Homem.

Pelo que deve ser concedida a providência de Habeas Corpus , nos termos do art.º 222.º, n.º 2, alínea b) do CPP, ou seja, por a prisão ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite.

2.2.2 - Importa desde já salientar que a citada norma do código de processo penal ... é aplicável sin perjuicio de lo previsto en tratados públicos, como é o caso do Regulamento da Interpol, organização de que a ... é Estado membro, estando pois vinculada, ativa e passivamente, ao que dispõe o art.º 82.º, respeitante às notificações deste organismo, com vista à localização de pessoa procurada e sua detenção para efeitos de extradição, entrega ou aplicação de outras medidas jurídicas similares.

Também não tem razão quando invoca o incumprimento do disposto no n.º 3 do art.º 38.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, porquanto o pedido de detenção alude, ainda que resumidamente, aos factos imputados ao peticionante, disposições legais que os incriminam, datas em que ocorreram (quando tal é possível) e local da respectiva ocorrência.

Acresce que se está perante uma detenção não directamente solicitada para cuja execução simplesmente se requere que as pessoas visadas sejam procuradas por autoridades competentes estrangeiras para efeito de procedimento ou de cumprimento de pena “por factos que notoriamente justifiquem a extradição”, como manifestamente é o caso.

Há que salientar que estamos perante uma detenção provisória que terá novos desenvolvimentos no processo de extradição proprio sensu, fase processual que com maior detalhe avaliará os fundamentos do pedido, caso o mesmo seja oportunamente apresentado, sendo que, perfunctoriamente, nada de anómalo há apontar ao procedimento que levou à detenção e confirmação da mesma.

Também se não pode invocar violação do disposto nos artigos 5.º e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não apenas porque a detenção foi efetuada nas condições previstas no seu art.º 5.º, n.º 1, alínea c), mas também porque as exigências de um processo justo não são postergadas já que o detido terá necessariamente oportunidade de fazer oposição ao pedido de extradição e de apresentar provas.

Acresce que…

2.2.3 -  O habeas corpus “…é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação da liberdade”[2].

Dada a sua natureza extraordinária os respetivos fundamentos são os que se encontram taxativamente fixados na lei, devendo a ilegalidade ser direta e imediatamente verificável, ainda que com eventual necessidade da realização urgente de diligências, nos termos do art.º 223.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal.

No caso em apreço rege o disposto  no art.º 222.º do Código de Processo Penal:

      “1. A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

        2. A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

         a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

         b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite; ou

     c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

2.2.4 - A providência de habeas corpus não é um verdadeiro modo de impugnação visto que o seu objecto se prende simplesmente com a verificação de uma situação de objectiva ilegalidade para de imediato lhe pôr termo. O tribunal, constatando que ocorre alguma das situações previstas nas diferentes alíneas do art.º 222.º, n.º 2 do CPP, declara isso mesmo e  ordena a libertação do requerente, não lhe competindo apreciar e/ou revogar o despacho que tenha determinado a prisão, competência essa que é exercida pelo tribunal competente em sede de recurso ordinário, se o houver.

Do exposto resulta também que o habeas corpus não é o meio adequado para apreciar o mérito de uma decisão que tenha determinado a prisão. 

2.2.5 – A peticionante não invoca qualquer facto que legalmente exclua a aplicação da prisão preventiva ou a sua manutenção ou que revele excesso dos respectivos prazos, não se questionando também a competência de quem a determinou.

Questiona, é certo, a verificação dos requisitos legais da detenção, não pela sua ausência mas pela sua substância, o que nos remete para o mérito da decisão que os convoca. Todavia,, esta não é questão que possa ser apreciada em sede de recurso de habeas corpus.

2.2.6 - Conclui-se pois que a petição em apreço constitui uma verdadeira impugnação da decisão que manteve a prisão preventiva da peticionante, cujos fundamentos não são subsumíveis em qualquer das alíneas do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, pelo que este requerimento de habeas corpus terá de considerar-se manifestamente infundado.

III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus formulada pelo recluso AA.

Condena-se o peticionante nas custas, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.

Vai ainda condenado em 6 UC nos termos do disposto no art.º 223.º, n.º 6 do CPP.


Supremo Tribunal de Justiça, 6 de junho de 2019

Júlio Pereira

Clemente  Lima

Manuel Braz


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[1] Por manifesto lapso, posteriormente corrigido pelo peticionante, fazia-se no requerimento inicial alusão à alínea n).
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, Verbo, 1993, pag. 260.