Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1708/20.0T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
CONTA CORRENTE
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
VENCIMENTO ANTECIPADO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
JUROS
AMORTIZAÇÃO
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Estando em causa um contrato de crédito ao consumo, na modalidade de conta corrente, por um valor máximo de 20.000 euros, pagável em 63 prestações mensais de 440 euros, o incumprimento de uma das prestações, após interpelação do credor, provoca o vencimento imediato de todas as prestações vincendas, nos termos do artigo 781.º do Código Civil.

II - Aos contratos de mútuo ou financiamento que envolvam um plano de amortização de quotas de capital e juros, durante um determinado período de tempo, aplica-se o prazo prescricional de 5 anos previsto no artigo 310.º, al. e), do Código Civil, ainda que se verifique o vencimento antecipado de todas as prestações.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. COFIDIS, pessoa coletiva n.º ..., com sede em ... intentou contra AA, NIF ..., e BB, NIF ..., residentes em ..., ação comum destinada a obter a condenação destes no pagamento da quantia de € 33.917,63 (trinta e três mil novecentos e dezassete euros e sessenta e três cêntimos), acrescida dos juros legais vincendos até efetivo e integral pagamento, bem como nas respetivas custas.

Para tanto, alega o incumprimento de um contrato de crédito em conta corrente, com três entregas, que os Réus deixaram de cumprir e que foi resolvido em abril de 2010, estando em dívida a quantia de € 24.224,98 (vinte e quatro mil duzentos e vinte e quatro euros e noventa e oito cêntimos), acrescida de juros.

2. Os Réus deduziram CONTESTAÇÃO, aceitando os pagamentos e a resolução, concluindo pela improcedência do pedido, alegando que celebraram um contrato de financiamento e não de conta corrente, no valor de €15.000, em 63 prestações mensais, não lhe tendo sido explicadas as condições, pelo que têm que ser excluídas. Por exceção, arguem ainda a prescrição de 5 anos para as prestações em dívida e os juros, havendo ainda de excluir os juros vencidos dos juros agora peticionados.

3. Notificada a Autora para se pronunciar sobre as exceções, veio concluir como na petição, alegando que o contrato é um empréstimo, tendo sido assinado pelos Réus e remetido à Autora, estando as cláusulas expressas no contrato assinado, tendo os Réus possibilidade de as conhecer e pedir esclarecimentos, tendo procedido ao pagamento por vários meses.

Relativamente às invocadas prescrições terão de improceder por se tratar de um pagamento fracionado, cujas prestações foram declaradas vencidas por resolução datada de 01/04/2010, e que ficou suspenso em virtude do processo de insolvência, desde 27/04/2010 até 26/03/2014.

Acrescentou que o cálculo de juros efetuado foi sobre o valor de capital à data do incumprimento, e não sobre o valor em dívida à data da resolução, não havendo anatocismo.

Foi proferido saneador e designada data para a audiência de julgamento.

4. Realizado o julgamento foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

“Face ao exposto, julgando a ação parcialmente procedente, e em consequência, condeno os Réus AA e BB, a pagar à Autora COFIDIS, S.A., a quantia correspondente ao montante de € 22.364,27 (vinte e dois mil trezentos e sessenta e quatro euros e vinte e sete cêntimos) ao qual, em sede de liquidação serão expurgados os juros remuneratórios, que se encontram prescritos. A esta quantia liquidada, acrescerão os juros de mora legais devidos nos 5 anos anteriores à citação ficta -desde 4 de abril de 2015, até efetivo e integral pagamento.”

5. Inconformados com o decidido os réus interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação ... decidido o seguinte:

«Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelada».


6. Inconformada, a autora, COFIDIS, veio interpor recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça, com subida em separado e efeito meramente devolutivo (artigos 675.º, n.º 2, e 676.º, n.º 1, ambos do CPC) e apresentar, nos termos do n.º 2 do artigo 637.º, do CPC, a sua alegação, que terminou com as seguintes conclusões:

«I. Vem a Recorrente interpor recurso do acórdão do Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no Art. 637.º, n.º 2, do CPC.

II. Revogou o Tribunal da Relação a decisão proferida na Primeira Instância por entender que quando a ação foi proposta a 30 de março de 2020 o crédito já se encontrava prescrito, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 310.º do Código Civil.

III. Entende a Recorrente que, contrariamente ao entendido pelo Tribunal da Relação, e salvo o devido respeito, não se verifica a prescrição prevista no suprarreferido artigo, atento o facto de tal dispositivo legal não poder ser aplicado ao caso em concreto.

IV. Conforme a clausula resolutiva aposta no contrato (cláusula 10.º) verifica-se que o contrato foi resolvido com base no incumprimento definitivo, estipulando-se a perda do benefício do prazo, pelo que a Recorrente aquando da entrada da competente ação reclamou o montante da dívida global.

V. Conforme Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19/01/2021, relator Isabel Salgado, processo n.º 8636/16.1T8LRS-A-7, disponível para consulta em www.dgsi.pt: “1. No contrato de mútuo bancário liquidável em prestações sucessivas, assumindo estas a natureza de obrigações periódicas, distintas e autónomas, ficam sujeitas ao prazo de prescrição de 5 anos, estabelecido no artigo 310º, al) e) do Código Civil. 2. Porém, em caso de incumprimento do mutuário que deixa de pagar as prestações, tendo o mutuante considerado vencidas todas as prestações e devido o pagamento do valor total remanescente, fica sem efeito o plano de pagamento acordado, e nessa medida o montante em dívida retoma a sua natureza original de capital (e juros), sujeito ao prazo de prescrição ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309º, do Código Civil (…)”.

VI. Conforme referido na sentença do Tribunal de Primeira Instância “Após esta revogação do contrato por incumprimento e vencimento antecipado das prestações acordadas, com a interpelação para o seu pagamento, a dívida total passa a assumir a natureza de obrigação única, sujeita, por conseguinte, ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos estabelecido no artigo 309.º do Código Civil”.

VII. Conforme posição assumida pelo Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12/06/2018, relator Jorge Arcanjo, processo n.º 17012/17.8YIPRT.C1: “Portanto, o crédito reclamado já não se configura como “quotas de amortização”, mas antes uma dívida (global) proveniente da “relação de liquidação”, correspondente ao valor do capital em dívida, à data do incumprimento.”

VIII. Dito isto, importa dizer que existem vários entendimentos doutrinários e jurisprudenciais quanto ao alcance e interpretação da natureza do instituto da prescrição, pelo que entende a Recorrente que andou bem o Tribunal de Primeira Instância.

IX. Assim sendo, a decisão em crise fez uma incorreta interpretação dos factos e desadequada aplicação do Direito, devendo, por isso, ser determinada a anulação da decisão que revogou a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. SUPRIRÃO DEVE SER DETERMINADA A ANULAÇÃO DA DECISÃO QUE CONSIDEROU PRESCRITO O CRÉDITO, ANULANDO ASSIM A DECISÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL DA PRIMEIRA INSTÂNCIA.

Assim se fazendo JUSTIÇA».

7. Notificados das alegações de recurso da COFIDIS, os autores, agora recorridos, vieram defender que o recurso de revista devia ser rejeitado e apresentar as suas contra-alegações, para a hipótese de o recurso de revista ser admitido, formulando as seguintes conclusões:

«1ª. Não assiste qualquer razão à Recorrente na sua alegação de que o prazo prescricional aplicável no presente caso deveria ser o prazo ordinário de 20 anos com o motivo de a obrigação se ter tornado única por força do incumprimento definitivo e da resolução contratual.

Na verdade,

2ª. O Recorrido marido obrigou-se ao pagamento de uma prestação mensal que, ao longo do cumprimento do contrato, amortizaria o capital em dívida e, segundo a qual, eram pagos mensalmente uma parte do capital e uma parte dos juros, num total de 63 prestações.

3ª. Estas prestações mensais correspondem a quotas de amortização de capital, pagáveis com os juros, o que, nos termos da al. e) do artigo 310º do Código Civil, prescrevem no prazo de cinco anos.

4ª. Sendo certo que não é o simples facto de, por via do incumprimento, se verificar o vencimento da totalidade do crédito, que se altera o seu enquadramento jurídico no que diz respeito à prescrição que o legislador quis, expressamente, que fosse de cinco anos.

Ora,

5ª. São indícios reveladores da existência de quotas de amortização do capital pagáveis com juros, nos termos do art. 310º, al. e) a circunstância de nos encontrarmos perante quotas integradas por duas fracções, nomeadamente uma de capital e outra de juros que são pagas conjuntamente e o facto de serem acordadas prestações periódicas, isto é, várias obrigações distintas, embora todas emergentes do mesmo vínculo fundamental, de que nascem sucessivamente, e que se vencerão uma após outra.

6ª. E, na verdade, o Supremo Tribunal de Justiça tem perfilhado o entendimento de que, perante situações de mútuo, como as dos presentes autos, com acordo de reembolso periódico de capital e juros remuneratórios, o prazo de prescrição aplicável, ainda que se verifique a resolução do contrato e o vencimento antecipado é sempre o de cinco anos, aplicável por via da al. e) do artigo 310º do Código Civil - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.04.2021, no proc. nº 1736/19.8T8AGD-A.P1.S1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2021 (proc. nº 20767/16.3T8PRT-A.S2), e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06.07.2021 (proc. nº 6261/19.4T8ALM-A.L1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

7ª. A alegada perda do benefício do prazo que a Recorrente invoca nas suas alegações, traduzida no vencimento imediato de todas as frações por via da falta de pagamento de uma delas, não altera a natureza da dívida.

8ª. E, desse modo, não interfere com o tipo de prescrição aplicável em função da natureza da obrigação que se mantém como sendo de cinco anos de forma a evitar a perpetuação, com a consequente incerteza e insegurança da situação dos devedores.

9ª. Não restam dúvidas de que a intenção do legislador, ao especificar este prazo prescricional mais curto, é a de defender o devedor da acumulação de dívida pela mera inércia do credor, evitando-se constrangimentos futuros.

10ª. Pelo que, bem andou o Tribunal da Relação ... ao aplicar o prazo de prescrição de 5 anos, assim determinando que a dívida reclamada já se encontra prescrita desde 29/01/2019.

11ª. Assim, quando a Recorrente propôs a presente ação, em março de 2020, o crédito já não era exigível por se encontrar prescrito.

12ª. Pelo que, deverá o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se incólume o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação ..., com todos os devidos e legais efeitos.

Termos em que deve o recurso de revista ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se assim, com todos os devidos efeitos, a decisão do Acórdão recorrido».

8. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

I - A questão prévia da admissibilidade da revista suscitada pelos recorridos;

II – Saber se o prazo de prescrição aplicável é o de 5 anos fixado no artigo 310.º, al. e), do Código Civil, ou se é o prazo geral de prescrição de 20 anos.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação  

A – Os factos provados

O Tribunal da Relação, após conhecer da impugnação da matéria de facto, fixou a seguinte matéria de facto provada:

“1.º O Réu, pretendendo um empréstimo, contactou telefonicamente a Autora, que, de acordo com o acordado, lhe remeteu formulário de contrato de crédito “VALOR TOP”, subordinado às condições gerais e particulares que dele constam, e que aqui se dão como reproduzidas, solicitando a reserva de 15.000 €, durante 63 meses, com o montante de 330 €.

2.º O contrato é composto por duas páginas, e contém, além da identificação dos intervenientes, todas as cláusulas que o integram, sendo a assinatura dos réus aposta abaixo dos seguintes dizeres: “O(s) abaixo assinado(s) Mutuário(s) declara(m) aceitar as Condições Gerais deste contrato de crédito, dos quais igualmente declara(m) ter tido integral conhecimento antes de assinar e das quais confirma(m) ter recebido um exemplar (…)”.

3.º Os Réus subscreveram a respetiva proposta em 02/08/2007, tendo preenchido o referido formulário em duplicado, sendo um exemplar enviado à Cofidis, e um exemplar conservado pelo cliente.

4.º Nos termos do acordado, o mutuário poderá pedir à Cofidis que disponibilize, por transferência bancária, o montante entre 10.000,00€ e 20.000,00 €, indicando-se um quadro de prazos e prestações de reembolso, sendo o custo do crédito variável, composto pelo crédito utilizado, juros diários vencidos, impostos e demais encargos, correspondendo a uma Taxa Anual Nominal de 12,00% e uma Taxa Anual Efetiva Global (TAEG) de 13,76%.

5.º Após a receção da documentação, foi aprovado pela Autora o valor máximo de € 20.000,00 (vinte mil euros), quantia que foi transferida a pedido dos Réus e para a sua conta bancária, em 04/08/2007, e que ficaram de devolver em 63 prestações mensais de 440 € (quatrocentos e quarenta euros) cada, por débito em conta, desde 1 de setembro de 2007.

6.º A solicitação dos Réus, foram depositadas, ao abrigo do mesmo contrato e na mesma conta bancária dos Réus, as seguintes quantias: transferência no valor de 1.159,00€ concretizada em 09.01.2008, a transferência no valor de 1.387,00€ concretizada em 08.07.2008 e, por fim, a transferência no valor de 1.081,00€ concretizada em 11.12.2008.

7.º Todos os meses era remetido aos Réus um extrato de conta, com as utilizações e prestações pagas e em falta, não tendo sido pedidos esclarecimentos em nenhuma ocasião.

8.º Os Réus pagaram à Autora a prestação que se venceu em 01/09/2007 e as que posteriormente se venceram, até 01/07/2009, deixando de pagar as restantes, não obstante a interpelação.

9.º No referido contrato ficou acordado que a falta de pagamento de uma prestação implicaria uma penalidade mensal de 4% sobre cada uma das prestações, podendo a Autora, mantendo-se o incumprimento, resolver o contrato e exigir o pagamento imediato de todas as prestações vincendas, sendo as penalidades da mora substituídas por uma penalidade única de 8% sobre todo o saldo em dívida.

10.º Em 1 de abril de 2010, foram os Réus interpelados para, no prazo suplementar de 8 dias, proceder ao pagamento das prestações em atraso de 22.545,21 € (vinte e cinco mil quinhentos e quarenta e cinco euros e vinte e um cêntimos), acrescida de uma cláusula penal de 8% sobre o saldo em dívida, no montante total de € 24.224,98 (vinte e quatro mil duzentos e vinte e quatro euros e noventa e oito cêntimos), não o tendo feito, foi o contrato resolvido.

11.º Os Réus foram declarados insolventes por sentença proferida em 27/04/2010, pelo Tribunal da Comarca ... - Instância Local – Secção Cível – J... de ..., a qual transitou em julgado em 07/06/2010.

12.º Em 08/07/2010 foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, tendo, no entanto, sido posteriormente proferido despacho de revogação da exoneração do passivo restante em 26/03/2014, transitado em 29/04/2014.

13.º No âmbito do processo de insolvência, foi declarado pelos Réus uma lista de credores onde consta o crédito da Autora, no montante de € 20.464,37, não havendo lugar à prolação de sentença de verificação e graduação de créditos.

14.º A presente ação deu entrada em 30 de março de 2020 e os Réus citados a 4 de junho de 2020.”

B – O Direito

I – Questão prévia da admissibilidade do recurso

Entendem os recorridos que o recurso de revista deve ser rejeitado, na medida em que não foram observados os requisitos previstos no artigo 637.º do CPC, ou seja, a Recorrente requer que o recurso tenha subida em separado, nos termos do artigo 675º, nº2, do CPC, quando o recurso deve subir nos próprios autos, segundo o teor do n.º 1 do citado preceito, e não indica em que termos legais interpõe o presente recurso ou com que fundamentos como demanda o artigo 674.º do CPC.

Vejamos:

No requerimento de interposição de recurso, o recorrente deve indicar a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso (artigo 637.º, n.º 1, do CPC).

Ora, a recorrente, Cofidis, ao solicitar a subida do recurso em separado cometeu um erro, pois que o recurso interposto de uma decisão que conheceu do mérito e que pôs termo ao processo, nos termos do artigo 671.º, n.º 1, do CPC, sobe nos próprios autos, como claramente estipulado na lei processual (artigo 675.º, n.º 1, do CPC).

Todavia, este erro não vincula nem o tribunal recorrido, nem o tribunal ad quem, e encontra-se corrigido pelo despacho do Tribunal da Relação que admitiu o recurso de revista, com subida imediata nos próprios autos e efeitos devolutivos, pelo que não se verifica a causa de rejeição do recurso invocada pelos recorridos.

O mesmo vale para a alegada falta de fundamentos do recurso, pois que, na sua alegação de recurso, a recorrente identifica a questão que a leva a recorrer, a qual diz respeito à questão de saber se o prazo de prescrição é de 5 ou de 20 anos.

Sem mais delongas, admite-se o recurso de revista.


II – Aplicabilidade do prazo de prescrição de 5 anos ao crédito peticionado

1. Discute-se, nestes autos, a questão de saber se o prazo de prescrição aplicável ao caso em apreço é o ordinário de 20 anos (artigo 309.º do Código Civil Civil) ou se é o prazo mais curto de 5 anos previsto no artigo 310.º, al. e), do mesmo diploma.

1.1. Sobre esta questão de direito, o tribunal de 1.ª instância julgou improcedente a exceção perentória de prescrição invocada pelos réus, e decidiu ser aplicável o prazo geral de prescrição de 20 anos, entendendo que a obrigação emergente do contrato outorgado entre as partes, após a sua resolução e comunicação para pagamento, tornou-se única, ficando, por isso, sujeita à prescrição ordinária de 20 anos e não à de 5 anos.


1.2. Diferentemente o acórdão do Tribunal da Relação considerou que a obrigação já estava prescrita, por aplicação do prazo mais curto fixado no artigo 310.º, al. e), do Código Civil, com o seguinte fundamento:

«A jurisprudência do STJ é quase unânime em considerar que aos contratos de mútuo, que envolvam um plano de pagamento, em que o montante fixado é amortizado em quotas de capital e juros, durante um determinado período de tempo, se aplica o prazo prescricional de 5 anos previsto no artigo 310 al e) do C. Civil. E isto porque se pretende defender o devedor da acumulação de dívida pela inércia do credor, evitando-se constrangimentos futuros, traduzidos na impossibilidade de liquidá-la, gerando uma situação de insolvência. Com um prazo curto de 5 anos, impõe-se ao credor mais diligência no exercício do seu direito de cobrança da dívida por incumprimento, sob pena de extinção por prescrição.

E este objetivo aplica-se também às situações em que o vencimento é antecipado, uma vez que esta situação não atinge a estrutura inicial da obrigação composta por amortização de quota de capital e juros. Continuam a ser exigíveis as prestações em dívida, deduzidas dos juros por força do acórdão uniformizador de jurisprudência 7/2009 publicado no DRSI, 36 de 5/05/2009 (conferir – Ac. STJ 27/03/2014; Ac. STJ. 29/9/2016; Ac. STJ. 6/6/2019; Ac. STJ. 3/11/2020; Ac. STJ. 26/01/2021; Ac. STJ. 6/07/2021; Ac. STJ. 10/09/2021 www.dgsi.pt ).

No caso em apreço os réus/apelantes deixaram de cumprir o contrato a 1/07/2009, que veio a ser resolvido a 1/4/2010, porque os devedores não pagaram as prestações em dívida até esse momento. O prazo prescricional de 5 anos começou a correr, sendo suspenso com a declaração de insolvência e admissão da exoneração do passivo restante que veio a ser revogado e transitado em julgado a 29/04/2014.

Decorreram cerca de 3 meses entre a resolução do contrato e o despacho de admissão do pedido de exoneração do passivo restante, que ocorreu a 08/07/2010.


Continua-se a contar o prazo prescricional a partir do trânsito em julgado do despacho que revogou a exoneração do passivo restante, que se verificou a 29/04/2014. Subtraindo os 3 meses já decorridos à data de 29/04/2014, temos que o prazo prescricional de 5 anos ocorreu a 29/01/2019. Quando a ação foi proposta a 30 de março de 2020 já o crédito estava prescrito, pelo que não exigível».

1.3. Entende a recorrente que o prazo de prescrição é de 20 anos, porque tendo o contrato sido resolvido com base no incumprimento definitivo, o Banco invocou, conforme a cláusula contratual n.º 10, a perda do benefício do prazo, e reclamou o montante da dívida global, ficando sem efeito o plano de pagamento acordado, e nessa medida o montante em dívida já não se configura como “quotas de amortização”, mas retoma a sua natureza original de capital (e juros), sujeito ao prazo de prescrição ordinário de 20 anos, previsto no artigo 309º do Código Civil.

Quid Iuris?

1.4. No caso vertente, estamos perante um contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo bancário, na modalidade de crédito em conta corrente, celebrado entre a autora, COFIDIS, e os réus, através da técnica das cláusulas contratuais gerais, que os réus subscreveram, apondo a sua assinatura no contrato (factos provados n.º 1 e n.º 2).

O contrato dos autos encontra-se legalmente definido no artigo 2.º, n.º 1 alínea a), do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de setembro, o diploma vigente à data da celebração do contrato (agora regulado pelo Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, com as alterações subsequentes, as últimas das quais definidas no DL n.º 74-A/2017, de 23/06), como “o contrato pelo qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartão de crédito, ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante”.

O contrato tem de ser reduzido a escrito, assinado pelos contraentes e entregue um exemplar ao consumidor, e tem de conter os restantes elementos referidos no artigo 6.º do referido Decreto-Lei n.º 359/91, nomeadamente a TAEG e condições de pagamento, sob pena de nulidade ou inexigibilidade (artigo 7.º).

Nos contratos de crédito em conta corrente, nos termos do artigo 13.º, tem ainda que existir informação, por escrito, do eventual limite do crédito ou a forma de o determinar, sendo remetida informação das alterações através de extrato de conta. A inobservância presume-se imputável ao credor (artigo 7.º, n.º 4).

Segundo o facto provado n.º 5, foi aprovado pela Autora o valor máximo de € 20.000,00 (vinte mil euros), quantia que foi transferida a pedido dos Réus e para a sua conta bancária, em 04/08/2007, e que ficaram de devolver em 63 prestações mensais de € 440 (quatrocentos e quarenta euros) cada, por débito em conta, desde 1 de setembro de 2007.

  Neste contrato, a obrigação de pagamento foi fixada em sucessivas prestações periódicas que englobam, simultaneamente, os juros remuneratórios e a amortização do capital mutuado. Trata-se, pois, de “quotas de amortização do capital pagáveis com os juros”, como sucede com muita frequência nos contratos de financiamento.

Segundo o facto provado n.º 8, os réus deixaram de pagar as prestações, não obstante a interpelação para o fazerem.

Nos termos do facto provado n.º 9, ficou acordado no contrato que a falta de pagamento de uma prestação implicaria uma penalidade mensal de 4% sobre cada uma das prestações, podendo a Autora, mantendo-se o incumprimento, resolver o contrato e exigir o pagamento imediato de todas as prestações vincendas, sendo as penalidades da mora substituídas por uma penalidade única de 8% sobre todo o saldo em dívida. Segundo o facto provado n.º 10, em 1 de abril de 2010, foram os Réus interpelados para, no prazo suplementar de 8 dias, procederem ao pagamento das prestações em atraso, no valor de 22.545,21 euros e, não o tendo feito, foi o contrato resolvido.

1.5. Para fundar a sua pretensão no recurso de revista, a recorrente invoca a cláusula n.º 10, que classifica como cláusula resolutiva, aposta no contrato, a qual tem o seguinte teor (nos termos que foram dados como provados nos factos n.º 9 e n.º 10):


 

Prossegue a recorrente, alegando que, tendo sido o contrato de empréstimo resolvido com base no incumprimento definitivo, e tendo sido estipulada a perda do benefício do prazo, acompanhada da reclamação do montante global da dívida, deixa de ser aplicável o prazo curto de prescrição fixado na al. e) do artigo 310.º do Código Civil

2. Vejamos:

Nos termos do artigo 310.º (Prescrição de cinco anos) do Código Civil, «Prescrevem no prazo de cinco anos: e) As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros».

Segundo o artigo 781.º (Dívida liquidável em prestações) do Código Civil, «Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas».

A obrigação de pagamento das quotas de capital traduz-se numa obrigação unitária, de montante predeterminado, cujo pagamento foi parcelado ou fracionado em prestações, sendo a amortização fracionada do capital em dívida realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma prestação unitária e global.

Nos termos do artigo 781.º do Código Civil, nas dívidas a prestações ou fracionadas, tendo o devedor faltado ao cumprimento de uma prestação, o credor poderá exigir imediatamente as restantes prestações, antes do tempo acordado para a sua exigibilidade. Este regime aplica-se não só ao pagamento do preço em prestações, mas também à restituição do capital mutuado em frações. Trata-se de uma hipótese de perda de benefício do prazo, que, em regra, não é automática, mas exige que o credor interpele o devedor para cumprir imediatamente todas as prestações vincendas. Tem-se entendido na doutrina (cfr. Ana Afonso, “Anotação ao artigo 781.º”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade católica Editora, Lisboa, 2018, p. 1071), que, «Não sendo uma norma imperativa, é possível convencionar o vencimento automático das prestações vincendas, independentemente de ter havido interpelação, conforme decidiu o Ac STJ 21.11.2006».

 A lei determina a aplicação a estas prestações do prazo quinquenal de prescrição (artigo 310.º, al. e), do Código Civil).

A ratio da lei reside na proteção dos devedores, que, nos casos de incumprimento, poderiam ser confrontados com a exigência de pagamentos de montantes avultados durante um período demasiado longo, caso fosse aplicável o prazo geral de prescrição de 20 anos.

O artigo 310º do Código Civil consagra uma prescrição de curto prazo (dentro das prescrições extintivas), e encontra a sua razão de ser, como esclarecia Vaz Serra (in Revista Decana, 89.º/328), na proteção do devedor contra a acumulação da sua dívida, que se transformaria de dívida de anuidades, pagas com os seus rendimentos, em dívida de capital suscetível de o arruinar, caso o pagamento lhe pudesse ser exigido de um golpe ao cabo de um número demasiado de anos.  

Esta solução não se altera pela circunstância de, por meio do vencimento antecipado, após interpelação para cumprir, sem que o devedor o tenha feito (artigo 781.º do Código Civil), a multiplicidade de obrigações fracionadas se transformarem numa obrigação unitária, decorrente da operação de liquidação efetuada.

O vencimento imediato das prestações previsto no artigo 781.º do Código Civil (Dívida liquidável em prestações) é uma norma supletiva e exige que o credor interpele o devedor nesse sentido, declarando-lhe que considera vencidas todas as prestações em dívida, o que se verificou no caso vertente.

O recurso a esta norma não altera o prazo de prescrição, e, em particular, não faz com que o prazo de prescrição deixe de ser de cinco anos e passe a ser de 20 anos. As finalidades de proteção do devedor e de promover um especial dever de diligência do credor na reclamação judicial célere do pagamento continuam presentes neste contexto.

Para efeitos de prescrição, o vencimento ou a exigibilidade imediata das prestações, por aplicação do disposto no artigo 781.º do Código Civil, não altera a natureza das obrigações inicialmente assumidas, antecipando apenas o momento da exigibilidade das quotas. Mesmo que, por aplicação do AUJ n.º 7/2009, o vencimento imediato das prestações não implique a obrigação de pagamento de juros remuneratórios nelas incorporados, mantém-se válido o risco de “acumulação de contas rapidamente ruinosa para o devedor” que a doutrina pretendeu evitar, servindo este regime jurídico, simultaneamente, para incentivar a célere cobrança, pelo credor, dos montantes em dívida, só a ele sendo imputável a inércia.

3. Assim se decidiu neste Supremo Tribunal de Justiça, entre outros, nos seguintes Acórdãos:

- Acórdão de 29-9-16 (proc. n.º 2012/13), em cujo sumário se refere que:

“I - Prescrevem no prazo de 5 anos, nos termos da al. e) do art. 310º do CC, as obrigações consubstanciadas nas sucessivas quotas de amortização do capital mutuado ao devedor, originando prestações mensais e sucessivas, de valor predeterminado, englobando os juros devidos.

II - Na verdade, neste caso – apesar de obrigação de pagamento das quotas de capital se traduzir numa obrigação unitária, de montante predeterminado, cujo pagamento foi parcelado ou fracionado em prestações - a circunstância de a amortização fracionada do capital em dívida ser realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma prestação unitária e global, determinou, por expressa determinação legislativa, a aplicabilidade a toda essa prestação do prazo quinquenal de prescrição.”


- Acórdão de 06-06-2019 (Proc. n.º 902/14.7T8GMR-A.G1.S1), em cujo sumário se consagrou o seguinte:

«I - A previsão da al. e) do art. 310.º do CC exige que o vencimento das prestações remuneratórias coincida temporalmente com o vencimento das prestações de amortização do capital – em suma, exige a natureza unitária das prestações –, impondo ao credor um dever de diligência na cobrança dos seus créditos e tutelando, paralelamente, o interesse do devedor em não ser confrontado, a destempo, com a acumulação de dívidas menores mas com vencimentos sucessivos e periódicos.

- Acórdão de 08-04-2021 (proc. n.º 5329/19.1T8STB-A.E1.S1) em cujo sumário se determinou que:

«Em contratos de mútuo, em que se “compartimenta” a obrigação de restituição do capital em quotas de amortização, o vencimento antecipado de todas as prestações, em consequência do art. 781.º do Código Civil, não prejudica a aplicação do prazo do art. 310.º do Código Civil».

           

- Acórdão de 26-01-2021 (proc. n.º 20767/16.3T8PRT-A.S2), onde se tratou a questão da seguinte forma:  

«(…) segundo a doutrina dominante, o incumprimento de uma das prestações em que a obrigação de reembolso é dividida ou repartida preenche a facti-species do art. 781.º, ainda que o incumprimento se reporte a uma prestação com função simultaneamente amortizadora e remuneratória do capital, ou seja, a obrigações com um componente de restituição do capital e outro de pagamento de juros[4].


De acordo com o disposto no art. 781.º do CC, “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.

(…)

5. Importa, por outro lado, ter em devida conta que o tratamento diferenciado das prestações em função dos seus componentes de capital e de juro não consente, necessariamente, resolver todos os problemas surgidos a propósito destas obrigações híbridas ou mistas. Não permite, designadamente, resolver todas as questões em que a solução abranja necessariamente a obrigação na sua totalidade ou globalidade, como acontece, verbi gratia, com a determinação do respetivo prazo prescricional[11].


6. Considerando-se estarem em causa dívidas a prestações, uma vez que o objeto da prestação se encontra pré-determinado, o valor da prestação não depende da duração da relação contratual e, por isso, aplicar-se-ia, o prazo ordinário de prescrição de vinte anos. Porém, e de modo a evitar que o credor deixe acumular excessivamente os seus créditos, para tutelar o devedor contra a acumulação da sua dívida – e, até, a eventual insolvência -, deve aplicar-se o prazo de prescrição do art. 310.º, als. d) e e) do CC - de cinco anos a contar do respetivo vencimento[12]. De facto, “a lei funda-se no intuito de evitar que o credor deixe acumular os seus créditos a ponto de ser mais tarde ao devedor excessivamente oneroso pagar”[13]. Destaque nosso

            (…)

8. A hipótese do art. 310.º, al. e), do CC contempla, precisamente, essas obrigações híbridas ou mistas, que têm um componente de reembolso e outro de juro. Pretende-se estimular o credor na cobrança pontual das diversas prestações periódicas em que essas obrigações se dividem, evitando-se, assim, o protelamento do exercício do direito de crédito para o termo do contrato de mútuo, que teria por objeto a totalidade do montante em dívida».


 

4. Pelo exposto, dúvidas não restam de que a solução mais adequada à lei e à sua razão de ser é a que foi adotada no acórdão recorrido.

Assim, confirma-se o acórdão recorrido e declara-se prescrito o crédito reclamado nos autos, nos exatos termos determinados pelo Tribunal da Relação.

5. Anexa-se sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:  

I - Estando em causa um contrato de crédito ao consumo, na modalidade de conta corrente, por um valor máximo de 20.000 euros, pagável em 63 prestações mensais de 440 euros, o incumprimento de uma das prestações, após interpelação do credor, provoca o vencimento imediato de todas as prestações vincendas, nos termos do artigo 781.º do Código Civil.

II - Aos contratos de mútuo ou financiamento que envolvam um plano de amortização de quotas de capital e juros, durante um determinado período de tempo, aplica-se o prazo prescricional de 5 anos previsto no artigo 310.º, al. e), do Código Civil, ainda que se verifique o vencimento antecipado de todas as prestações.


III – Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas da decisão de admissibilidade do recurso pelos recorridos.

Custas da revista pela recorrente.


Lisboa, 24 de maio de 2022


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)