Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
376/09.4YFLSB
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
CULPA
VIOLAÇÃO DO DEVER GERAL DE DILIGÊNCIA
DANO DE PRIVAÇÃO DO USO
CONDENAÇÃO ILÍQUIDA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/10/2009
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
1.Não constitui «matéria de direito»,enquadrável no âmbito de um recurso de revista, a apreciação da culpa decorrente da inobservância dos deveres gerais de diligência,a valorar prudencial e casuisticamente segundo o padrão exigível a um «bonus paterfamilias»,mas tão somente a apreciação da culpa «normativa»,resultante da infracção de normas legais ou regulamentares.

2.É susceptível de ressarcimento o dano decorrente da imobilização prolongada da viatura sinistrada, pertencente a empresa transportadora e utilizada habitualmente nessa actividade empresarial,devendo proferir-se condenação genérica, a concretizar no âmbito de procedimento de liquidação, dentro dos limites do pedido originariamente concretizado pelo lesado, quando na acção se prove a existência de tal dano,sem todavia se apurar o seu quantitativo.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. A Empresa de Transportes A...F... S.A. intentou acção declarativa, na forma ordinária ,no Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, contra A... Portugal,Companhia de Seguros, S.A. e AA,pedindo que o condutor do veículo ...-...-QM fosse considerado o único e exclusivo culpado na eclosão do acidente descrito na petição inicial e,consequentemente,a primeira ré condenada a pagar à A. a quantia de 50.649,05 euro e respectivos juros legais;e, subsidiariamente,caso assim se não entendesse, que fossem ambos os réus condenados a pagar-lhe a referida quantia.Na fase dos articulados, foi requerida e deferida a intervenção principal provocada do Gabinete da Carta Verde ( já que o contrato de seguro não abrangia os riscos de circulação do semi-reboque que seguia atrelado àquela viatura pesada) e de BB (que seria a verdadeira proprietária do animal que participara na eclosão do acidente).
Entretanto, a demandada A..., invocando a existência de uma mesma causa de pedir, requereu a apensação da acção proposta,com base no mesmo acidente, por I...B..., Companhia de Seguros,S.A. contra CC, S... ,Sociedade de transportes Lda e a própria A..., peticionando o pagamento da quantia de 30.401,74 euro,com fundamento na regularização dos danos decorrentes do acidente, por força do seguro dos riscos que assumira quanto às mercadorias transportadas por conta da empresa A...F....No decurso dos articulados, foi requerida a intervenção provocada de BB e AA,bem como, pela demandada A..., do Gabinete Português da Carta Verde.
No despacho saneador,foram julgados partes ilegítimas os demandados AA, CC e a empresa S...,prosseguindo os ulteriores termos da causa contra a A..., o Gabinete Português da Carta Verde e a referida BB.
Após realização da audiência,foram proferidas sentenças nas acções apensadas:a primeira acção foi julgada parcialmente procedente,sendo condenadas as rés A..., o Gabinete da Carta Verde e a referida BB a pagarem à A.,solidariamente, a quantia de 40.149,05 euro e respectivos juros de mora ;a segunda causa apensada,atrás referida, foi também julgada procedente,sendo os mesmos réus condenados a pagar à A. I... a quantia de 30.401,74 euro, acrescida dos respectivos juros moratórios.
Inconformadas, recorreram para a Relação a demandada A... e a A. Empresa de Transportes A...F..., questionando a primeira todo o decidido quanto à eclosão do acidente e respectivas culpas,incluindo a matéria de facto apurada na 1ª instância;e a segunda a parcela da decisão que havia julgado improcedente o pedido fundado na existência de danos associados à imobilização prolongada do veículo que lhe pertencia.A apelação da A... foi julgada improcedente,procedendo,todavia o recurso da A...F...,revogando-se a sentença na parte em que havia absolvido os réus do pagamento dos danos decorrentes da imobilização do veículo,e condenando os demandados a pagarem à A. ,solidariamente, a quantia a liquidar em execução de sentença,de acordo com o que se vier a apurar quanto ao valor diário desse prejuízo,em função dos valores médios realizados em exercícios anteriores.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso de revista.


2. Após apreciação da impugnação deduzida, a Relação considerou provada a seguinte matéria de facto:


a)A A. é dona do veículo automóvel pesado de mercadorias de matrícula ...-...-HN e do reboque matrícula L-...;
b) Por contrato de seguro, a R. A... Portugal assumiu a responsabilidade pelos danos causados a terceiros, emergentes da circulação do veículo automóvel pesado de mercadorias composto pelo tractor matrícula ...-...-QM propriedade da empresa S..., Sociedade de Transportes, Lda.;
c) O semi-reboque de matrícula R.-...-BBB, que aquando do sinistro do presente pleito vinha atrelado ao tractor da de matrícula ...-...-QM, era propriedade de TIP Trailers Espana, com sede em C/Basauri, 17 - 28023 La Florida, Madrid e encontrava-se seguro na A... A... Ibérica, SA.;
d) No momento em que o acidente se deu, o veículo objecto do contrato de seguro celebrado com a R. A... Portugal, de matrícula ...-...-QM, era conduzido por CC;
e) A Interveniente BB era dona do animal de raça bovina portador de um brinco metálico com a identificação "V ...";
f) No dia 16 de Dezembro de 2002, pelas 05.45H, o veículo de matrícula ...-...-HN L..., circulava pela EN n.° 10, no sentido Vila Franca de Xira/Porto Alto;
g) Pela mesma estrada, mas em sentido contrário, circulava o veículo de matrícula ...-...-QM;
h) O local do acidente é uma recta e o tempo estava bom;
i) Ao Km 118 da referida EN 10, ocorreu um embate entre o animal referido em d) e o veículo de matrícula ...-...-QM, tendo aquele caído morto na berma direita da estrada no sentido Porto Alto/Vila Franca de Xira;
j) Em consequência do acidente ocorrido no dia referido em f), o veículo automóvel (tractor e reboque) ...-...-HN L ..., sofreu danos;
k) O veículo e o reboque ficaram impossibilitados de circular, não tendo os RR. disponibilizado meios para a substituição do veículo e reparação do reboque;
I) A parte esquerda da cabine e do reboque ficaram completamente danificados;
m) A R. A... Portugal, Companhia de Seguros, SA., vistoriou o veículo da A. Empresa de Transportes A...F..., Sa., tendo constatado a existência dos danos invocados;
n) O custo da reparação do veículo (tractor) ...-...-HN foi orçado em €43.240,40;
o) E o custo da reparação do reboque L... em € 13.369,65;
p) O veículo automóvel (tractor) sinistrado, ...-...-HN, é da marca Renault modelo AE...TT, tendo sido fabricado em Novembro de 1996;
q) A Associação Portuguesa de Seguradores e a A..., na sequência de estudos económicos efectuados com vista à celebração de acordo de fixação da indemnização pela paralisação relativa aos veículos pesados afectos ao transporte internacional de mercadorias, fixou em € 204,80 o custo diário da paralisação para o ano de 2003;
r) A seguradora considerou, por escrito, ter ocorrido perda total do veículo ...-...-HN, em 30/12/2002;
s) A viatura de matrícula ...-...-QM, após o embate no animal, foi embater, de seguida, com a parte da frente, lado esquerdo, na frente também do lado esquerdo, da viatura HN, que circulava na hemi-faixa de sentido oposto;
t) Em consequência do acidente, a viatura de matrícula ...-...-QM sofreu diversos danos;
u) A Companhia de Seguros A..., Sa., ao abrigo da apólice "danos próprios" com o n.° ..., suportou os custos de reparação da viatura ...-...-QM, com excepção dos respeitantes às franquias (€ 453,30 do tractor e € 3.480,00 do reboque);
v) Em consequência do acidente ocorrido a viatura QM esteve i m o b i l i z a d a para reparação entre os dias 18 de Dezembro de 2003 e 07 de Fevereiro de 2004, n total de 3 dias;
w) O condutor do veículo de matrícula ...-...-HN circulava pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha;
x) O veículo de matrícula ...-...-QM circulava a uma velocidade de 80 Km/hora, aproximadamente;
y) Ao Km 118 da referida EN 10, o animal de raça bovina referido em e) surgiu repentinamente na faixa de rodagem, pelo lado direito, atento o sentido de marcha do veículo ...-...-QM;
z) Tendo sido embatido na cabeça com a quina direita da cabine do veículo ...-..-QM;
aa) No preciso momento do choque com o animal de raça bovina, o condutor do veículo ...-...-QM, guinou a direcção para a esquerda;
bb) Invadindo por completo a metade esquerda da faixa de rodagem, tendo em conta o seu sentido de marcha;
cc) Ao aperceber-se da invasão da sua semi-faixa de rodagem por parte do veículo ...-...-QM, o condutor do veículo ...-...-HN travou e encostou o veículo à berma direita da faixa de rodagem, tendo em conta o seu sentido de marcha;
dd) Tendo aí sido embatido pelo veículo ...-...-QM;
ee) O embate deu-se na metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido de marcha do veículo ...-...- HN;
ff) Depois de embatido, o animal de raça bovina ficou caído morto numa vala existente na berma direita da estrada, considerando o sentido de marcha Porto Alto/Vila Franca de Xira;
gg) O veículo automóvel (tractor) sinistrado ...-...-HN, encontrava-se em bom estado de conservação e funcionamento;
hh) Ao tempo do acidente, o veiculo automóvel (tractor), de matricula ...-...-HN, tinha um valor comercial de pelo menos cerca de € 25.000,00;
ii) A A. Empresa de Transportes A...F..., Sa., dedica-se à prestação de serviços de transportes nacionais e internacionais de mercadorias por terra;
jj) O veículo sinistrado ...-...-HN era utilizado na efectuação de serviços de transportes;
kk) Em média, o veiculo ...-...-HN era utilizado cinco dias por semana em serviços de transporte;
II) Desde a data do acidente, a A. Empresa de Transportes A...F..., SA., ficou privada de utilizar o veículo ...-...-HN na sua actividade comercial, por período concretamente não apurado;
mm) Pese embora as sucessivas insistências da A. Empresa de Transportes A...F..., SA., junto da R. A... Portugal, Companhia de Seguros, Sa.;
nn) Para colocação do veículo no veículo que o iria rebocar, a A. Empresa de Transportes A...F..., SA., teve de recorrer aos serviços de uma grua;
oo) Despendendo a quantia de € 892,50;
pp) Para rebocar o veículo ...-...-HN do local do acidente até às suas instalações, a A. despendeu a quantia de € 886,90;
qq) O tractor/semi-reboque de matrícula ...-...-HN L-... foi fretado pela empresa F... - Assentos de Automóveis, Lda., para efectuar o transporte de estruturas metálicas de assentos de automóveis, desde S. João da Madeira até Palmela;
rr) O animal surgiu de um acesso existente no lado direito da via de trânsito, atento o sentido de marcha do veículo ...-...-QM;
ss) O veículo ...-...-QM R ...-BBB, embateu com o lado esquerdo do
tractor e do semi-reboque no lado esquerdo do tractor e do reboque do veículo pesado com a matrícula ...-HN L-...;
tt) Em consequência do embate referido o veículo pesado ...-...-HN L-... entrou em despiste, acabando por ficar imobilizado numa vala existente junto da berma daquela estrada;
uu) Do embate descrito resultaram danos materiais na carga transportada no veículo ...-...-HN L-..., designadamente nos contentores metálicos e nas estruturas metálicas de bancos automóveis neles transportados; w) Para regularização dos danos referidos liquidou a A. Companhia de Seguros I.../B..., Sa., à Empresa Transportes A...F..., SA., a quantia de € 29.070,74;
ww) Tendo ainda liquidado a A. Companhia de Seguros I.../B..., Sa., à Empresa Transportes A...F..., SA., a título de reparação de 12 contentores metálicos e perda total de 2 paletes de plástico termoformado, o montante de €1.331,00;
xx) A vaca surgiu na faixa de rodagem, sem parar e quando o veículo ...-...-QM se encontrava a uma distância concretamente não apurada; yy) No local não existia iluminação pública;
zz) A viatura da A. Empresa de Transportes A...F..., SA., era conduzida pelo seu trabalhador DD, ao seu serviço;
aaa) No dia do acidente, o marido da Interveniente BB tinha umas vacas a pastar numa pastagem sita no Porto Alto, atravessada pela EN 10; bbb) Sendo necessário, por vezes, mudar o gado bovino de pastagem, atravessando a referida estrada;
ccc) Conforme prática comum entre os proprietários de gado da zona;
ddd) No dia do acidente, o marido da interveniente atravessou as vacas, tendo a vaca referida em e) ficado para trás;
eee) A A. Companhia de Seguros I..., SA., na qualidade de seguradora e Empresa de Transportes A...F..., SA., na qualidade de segurada, através dos seus legais representantes, declararam celebrar entre si um contrato facultativo de seguro de mercadorias, com início em 01/01/01, nos termos do qual a primeira se declarou obrigar a cobrir os riscos de perda ou dano, de natureza acidental, das mercadorias diversas confiadas à segurada para transporte rodoviário, em veículos automóveis de mercadorias a esta pertencentes ou de terceiros operando por conta dela, declarações essas tituladas pela apólice n.° 00000009/00.

3.São as seguintes as conclusões da alegação apresentada que,como é sabido,delimitam o elenco das questões a apreciar:

1. O Acórdão em crise fez errada aplicação do Direito na consideração da existência da culpa -n e g l i g ê n c i a - apontada ao condutor do v e í c u l o seguro na Ré.
2. A existência de "culpa" é um conceito de Direito, estando aberta ao STJ a requalificação dos factos efectuados pela 1a Instância e pela Relação.
3. O acidente não se deu em virtude da negligência do condutor do QM.
4. Inexistindo culpa do condutor do veiculo QM, a causa exclusiva da produção do acidente seria o abandono do animal bovino na estrada.
5. Matéria pela qual é exclusivamente responsável - de forma objectiva - o seu proprietário, nos termos do artigo 502° do Código Civil.
6. Daí que a circunstância de risco ser o próprio da utilização do animal tem como consequência, imediata, que toda a responsabilidade lhe deva ser assacada, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 493° e 502° do Código C i v i l .
7. O Tribunal da Relação de Lisboa, ao concluir pela existência de prejuízo indeterminado com a paralisação do veículo parte do pressuposto - erróneo - de que a qualquer paralisação de u m a v i a t u r a sempre e q u i v a l e um dano.
8. A p a r a l i s a ç ã o não é - e não tem assim s i d o entendida pela Jurisprudência como um dano autónomo.
9. E que a Autora o m i t i u o dever p r o b a t ó r i o que sobre si impendia de demonstrar o dano s o f r i d o , o que, por si só, è s u f i c i e n t e para que s e j a mantida a decisão de 1ª i n s t â n c i a .
10. A situação dos autos é enquadrável no n° 3 do artigo 566° do Código Civil e nunca em sed i n d e t e r m í n a b i l i d a d e porquanto não estão em causa quaisquer "danos f u t u r o s " .
11. Os critérios fixados pelo Tribunal da Relação não podem ser os aplicados, porquanto esse c r i t é r i o s não se l i m i t a m ao pedido efectuado pela Autora quanto a essa parcela do seu pedido: €45.100 de pedido global ou €204,8 de pedido diário - que sempre deveriam ter sido considerados como o l i m i t e máximo, sob pena de n u l i d a d e da Sentença nos termos do a r t i g o 666°doCPC.
12. Em segundo l u g a r porque de nada s e r v i r á ao T r i b u n a l , a não s e r c o m o elemento meramente indicativo, t e r evidência nos autos "dos valores médios apurados pela demandante em exercícios anteriores, relativamente a esse veículo ou a veículos de características análogas", critério delimitador do prejuízo que o Tribunal da Relação optou por oficiosamente aplicar.
13. Havendo que atentar, apenas, a quais os negócios - e os lucros - que a Autora deixou de realizar em função da paralisação.

Não foram apresentadas contra-alegações.

4.São duas as questões suscitadas pela entidade recorrente- aprimeira relativa ao apuramento da culpa na eclosão do acidente e a segunda referente à problemática da existência e apuramento dos danos decorrentes da imobilização da viatura sinistrada.
Importa começar por verificar se a impugnação deduzida contra a decisão das instâncias que imputou uma parcela da culpa no desencadear do acidente ao motorista da viatura pesada ...-...-QM ,considerando que a sua reacção- «produção de uma
guinada de direcção para a esquerda,aparentemente de natureza mais instintiva do que técnica (já que não teve qualquer eficácia porque ocorreu no momento do embate com o bovino e não antes, ou seja, já sem a possibilidade de evitar o acidente
inicial)»,causando o abalroamento do outro pesado que circulava em sentido contrário- não foi a mais adequada ,configurando-se antes como «contraproducente,inútil e negligente»,tendo em conta o nível de profissionalização e específicos conhecimentos e perícia no domínio da viatura, exigíveis a um condutor de veículos pesados, integra «matéria de direito»,enquadrável no específico fundamento do recurso de revista:a «violação de lei substantiva»(art.721 nº 2 do CPC).Na verdade, constitui jurisprudência reiterada do STJ, ao longo dos anos ,a que considera que não cabe nos poderes do Supremo a apreciação da culpa decorrente da inobservância dos deveres gerais de diligência, mas tão somente a culpa de cariz «normativo»,resultante da infracção de normas legais ou regulamentares (vejam-se, a título meramente exemplificativo, os acs. de 24/5/95 ,in CJ II/95 pg.293 ,de15/1/04 no p.03B3718 e de 11/1/2000,in sumários,37º,17).
No caso dos autos, é evidente que não está em causa a específica violação pelo condutor do pesado de uma norma de direito estradal, cuja «fattispecie» careça de ser interpretada pelo Supremo, assentando o juízo decisório sobre a negligência na concretização da cláusula geral constante do art. 487,nº 2, do CC:a diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso:do que se trata, em última análise, é de averiguar e decidir se podia e devia exigir-se a um condutor, sujeito a particulares exigências de formação e profissionalização,decorrentes dos riscos acrescidos potenciados pelo tipo de viatura conduzida,um grau de concentração, perícia,autocontrolo e« sangue frio»que o levassem a abster-se da manobra de desvio instintivo da direcção que realizou, num momento em que era patente a ocupação da faixa contrária por outro veículo, tornando-se inevitável a colisão.
Ora, ao contrário do que sustenta a recorrente para fundamentar a possibilidade de o Supremo sindicar o juízo decisório das instâncias sobre a culpa ,decorrente da densificação da referida cláusula geral,não basta dizer que esta, integrando a previsão de uma norma legal, é um conceito «jurídico»:é que nem toda a concretização e densificação de conceitos jurídicos indeterminados envolve matéria de direito, da competência decisória de um «tribunal de revista»;na verdade, também o princípio da livre apreciação da prova,segundo a prudente convicção do tribunal , enunciado no art.655º,nº1, do CPC é, nesse sentido, um conceito «jurídico»,sem que tal obviamente envolva a possibilidade de o Supremo sindicar o modo como ele foi actuado e concretizado, em cada caso, pelas instâncias.
Sendo o STJ ,nos termos da Constituição e das leis de organização judiciária,um «tribunal de revista» que,em regra, só conhece «matéria de direito»,é naturalmente necessário delinear um conceito funcionalmente adequado de «questão de direito»,que se compatibilize inteiramente com a referida natureza do Supremo e com a particular configuração do recurso de revista:ora,sendo fundamento específico do recurso de
revista a violação de lei substantiva e, acessoriamente,a violação da lei de processo,o dito conceito funcionalmente adequado de «matéria de direito»terá de reportar-se a um critério ou padrão normativo,extraído ou inferível da lei pretensamente violada,cabendo ao STJ identificá-lo, mediante interpretação da lei,para,de seguida- precisados os seus contornos- lhe subsumir a concreta situação fáctica apurada pelas instâncias.

E, nesta perspectiva, estão subtraídos à competência decisória do Supremo, desde logo, os «juízos probatórios»das instâncias,através dos quais se visa reconstruir a concreta situação de facto que está na base do litígio,mediante a livre apreciação das provas, alicerçada na prudente convicção do julgador,desde que tal não contenda com o valor
legal ou «tarifado»de determinados meios probatórios – incluindo a inadmissibilidade do controlo dos poderes inquisitórios ou instrutórios prudencialmente atribuídos às instâncias (cfr.M. Teixeira de Sousa Estudos sobre o Novo Processo Civil,1997,pag.423),bem como,segundo orientação largamente maioritária,a substância das presunções naturais ou judiciais, através das quais a Relação, fundando-se nas «regras da experiência»,procede à reconstrução global e integrada da situação de facto relevante (veja-se, a título puramente exemplificativo, o ac. de 19/11/03 ,no p.04B1528).
Por outro lado, cumpre realçar que nem todos os «juízos decisórios»das instâncias envolvem a resolução de uma questão de direito,estando,desde logo, manifestamente excluídos deste âmbito os casos em que a lei outorga ao juiz a possibilidade de decidir segundo critérios de conveniência ou oportunidade (art. 1411º, nº2 do CPC) ou em consonância com a equidade (caso em que apenas será sindicável se o julgador se conteve dentro da margem de«discricionariedade» consentida pela norma).O mesmo ocorre, a nosso ver,quando se trate de concretizar ou preencher conceitos indeterminados fundamentalmente através de juízos práticos ou empíricos,baseados nas regras de experiência e numa avaliação prudencial e inteiramente casuística das circunstâncias do caso- mais do que na aplicação de um parâmetro normativo inferível da própria lei.
É esta situação –de algum modo paralela e equiparável à insindicabilidade pelo Supremo da «substância» ou conteúdo das presunções judiciais ,extraídas pelas instâncias do resultado directo e imediato dos meios probatórios produzidos- que permite compreender o referido entendimento jurisprudencial reiterado,segundo o qual,não estando em causa uma actividade de interpretação e subsunção às normas legais ou regulamentares que densificam o dever de diligência,constitui« matériade facto»a apreciação,perante todas as circunstâncias concretas do caso,da falta de observância das regras gerais de diligência que devem vigorar
em cada actividade,da falta de atenção, destreza ou perícia do autor da conduta lesiva, bem como da falta de cuidado ou desleixo do responsável.
Como se afirma,por exemplo,no ac. de 24/5/95 (in CJ II/95 pag.293):«Simplesmente,um juízo sobre a culpa,assente sobre esta base,ou seja, sobre as circunstâncias que rodearam o acidente,implica sempre um juízo de facto.A culpa baseada em inconsideração ou falta de atenção integra matéria de facto;quando é fundada na inobservância de deveres gerais de diligência,envolve sempre e só matéria de facto.Tais afirmações correspondem a jurisprudência pacífica, desde sempre, deste Supremo Tribunal.Só a culpa decorrente da inobservância de preceitos legais e regulamentares constitui matéria de direito ,sendo por isso a sua apreciação susceptível de integrar objecto de revista».
Aderindo a este entendimento,e delimitando o objecto do recurso,não se conhecerá da questão suscitada pela recorrente em sede de imputação da culpa ao condutor do pesado,por a mesma se não enquadrar no específico fundamento do recurso de revista,nos termos do art.721º,nº2, do CPC,pelo que fica naturalmente prejudicada a pretensão de reconfigurar a repartição das culpas dos responsáveis pela eclosão do acidente ,alicerçada na imputação da exclusiva responsabilidade por todos os danos produzidos ao proprietário do animal que contribuiu para o sinistro.


5.Resta,pois passar à apreciação da segunda questão suscitada pela recorrente, em sede de avaliação do dano decorrente da privação do veículo .
Sustenta, em primeiro lugar, a recorrente que a Relação ,ao revogar a absolvição parcial do pedido,alcançada na 1ªinstância,teria partido do erróneo pressuposto de que a qualquer paralização de uma viatura sempre equivale um dano.Note-se,desde logo, que- como se decidiu no recente acórdão de 6/5/2008 ,proferido pelo Supremo no p.08A1279- ,a simples privação do uso do veículo constitui uma ofensa ao direito de propriedade, enquanto envolve a manifesta impossibilidade de obter e realizar uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária e adequada compensação.De qualquer modo,e no caso dos autos,perante a matéria de facto fixada,é manifesto que não estamos confrontados com uma «qualquer paralização» de uma viatura,mas com uma paralização, prolongada no tempo,de uma viatura incluída no estabelecimento comercial de uma empresa de transportes,sendo tal veículo utilizado efectivamente e em média cinco dias por semana em serviços de transportes.Ora,perante tal quadro factual, é evidente e incontroverso que a A. cumpriu o ónus probatório que sobre si recaía quanto à demonstração da existência de um dano efectivo e ressarcível. O que não logrou provar,face ao entendimento vertido no acórdão recorrido,foi o exacto valor pecuniário de tal dano concretamente sofrido no seu património com a indisponibilidade da viatura, o que determinou a prolação de condenação genérica, relegando para fase ulterior o apuramento do exacto valor pecuniário do prejuízo, não imediatamente alcançável mediante juízos de equidade.
Sustenta, em segundo lugar, a recorrente que- ao ter proferido condenação genérica-a Relação teria adoptado critérios para a quantificação do dano que se não limitam ao pedido formulado pela autora quanto a essa parcela do seu pedido:na verdade,no caso ora em apreciação,a A. havia formulado um pedido líquido quanto aos danos decorrentes da paralização do veículo, resultando a condenação genérica, proferida ao abrigo do nº2 do art. 661º do CPC,da circunstância de,tendo-se provado a existência de danos,não se ter logrado apurar o exacto quantitativo destes.Ora,nesta situação processual ,parece evidente que não deverá interpretar-se o decidido no acórdão recorrido como envolvendo a possibilidade de,no âmbito do procedimento de liquidação, se postergar a regra fundamental e estruturante do processo civil,segundo a qual não pode ocorrer condenação em valor superior ao pedido formulado pelo autor:o que ali se estabelece são determinados critérios ou parâmetros a observar na actividade probatória a exercer futuramente no referido procedimento de liquidação, podendo naturalmente o réu invocar a nulidade da decisão que,porventura,o viesse a condenar em quantia superior ao pedido formulado.De qualquer modo – e para prevenir quaisquer dúvidas, evitando futuras controvérsias, explicita-se tal interpretação na condenação genérica que se confirma,deixando assente que a concretização do dano sofrido pela recorrida não poderá exceder os limites do pedido por ela originariamente formulado quanto aos danos dessa natureza:a recorrida já benificiou da isenção de qualquer preclusão,decorrente de não ter conseguido provar o exacto montante dos danos sofridos,pelo que não deve ser« duplamente beneficiada»,de modo a ficar também dispensada de qualquer vinculação ao« limite máximo»que optou por atribuir ao dano sofrido.
A condenação genérica proferida no acórdão recorrido coloca ainda uma questão de que se irá conhecer oficiosamente,apesar de não suscitada pela recorrente,e que tem a ver com a determinação do regime de direito transitório aplicável ao procedimento de liquidação: como é sabido , a reforma da acção executiva de 2003 alterou radicalmente a fisionomia de tal procedimento, substituindo o tradicional enxerto declaratório no início da acção executiva por um incidente posterior à dita condenação genérica,inserido no próprio processo declaratório,mesmo que já haja findado, cuja instância se renova, nos termos dos arts.378º,nº2, e 379º do CPC.E, por força do preceituado no art.21º, nº 3,do DL 38/03 (na redacção introduzida pelo DL 199/03), este inovatório regime processual aplica-se ,não apenas aos processos «novos»,iniciados após 15/9/03, mas também –no que se refere à nova fisionomia procedimental da liquidação- aos processos declarativos pendentes nessa data em que ainda não haja sido proferida sentença em primeira instância.
No caso dos autos,verifica-se que as acções apensadas foram instauradas , respectivamente, em11/11/03 e 18/5/04,sendo ,consequentemente,a sentença proferida em primeira instância muito posterior à referida data limite (no caso, foi proferida em 12/12/07) o que naturalmente dita a aplicação do novo regime da liquidação da condenação genérica- que se processará,não em execução de sentença,mas no âmbito de incidente da própria acção declaratória,nos termos das disposições atrás citadas.
Insurge-se ainda a recorrente contra o segmento do acórdão recorrido em que, como forma de avaliação do dano decorrente da privação do veículo,se manda atender aos valores médios diários apurados em exercícios anteriores relativamente a viatura análoga à imobilizada:na sua óptica,o decisivo seria apurar quais os negócios e lucros que a recorrida deixou de realizae nos períodos posteriores à imobilização forçada da viatura.
Tal linha argumentativa não tem,porém, na devida conta as naturais dificuldades probatórias inerentes à directa e cabal demonstração do montante pecuniário de um dano associado a uma utilização puramente hipotética da viatura em causa e que- convém realçar- já ditaram a prolação da condenação genérica ora impugnada.Ora,nesta prespectiva, considera-se aceitável o critério instrumental estabelecido pelo acórdão recorrido, partindo de um juízo relativamente seguro e alcançável sobre o tipo de utilização que efectivamente vinha sendo dada à viatura sinistrada para,na normalidade das situações ,concluir sobre qual seria provavelmente o «nível»da futura utilização ,no âmbito da actividade empresarial exercida, frustrada pelo acidente.

6.Nestes termos e pelos fundamentos expostos ,negando em parte provimento à revista,confirma-se a decisão recorrida,salvo no respeitante à condenação genérica da recorrente, em que se deixa consignado que o apuramento do exacto valor dos danos decorrentes da imobilização da viatura pertencente à recorrida,a realizar mediante incidente de liquidação, terá como limite o valor do pedido originariamente formulado pela autora relativamente aos danos dessa natureza.
. Custas por recorrente e recorrida,na proporção de 9/10 para a primeira e de 1/10 para a segunda,nos termos do nº3 do art. 446º do CPC( na versão anterior ao Rgulamento das
Custas,aplicável ao presente recurso,nos termos do disposto no nº 2 do art.27º do DL 34/08, por este se ter iniciado antes da data em que tal diploma iniciou a sua vigência),atenta a manifesta diferença da sua participação nesta instância de recurso.


Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Setembro de 2009

Lopes do Rego (Relator)
Ferreira de Sousa
Pires da Rosa (com a declaração de que apreciaria a questão da «culpa», entendida como a definição da responsabilidade na produção do acidente no confronto da conduta estradal do condutor do veículo com a presença do boi na estrada, e da responsabilidade do respectivo proprietário)