Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1204/12.9TVLSB.L1.S3
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
PRESSUPOSTOS
QUESTÃO PREJUDICIAL
MATÉRIA DE FACTO
SERVIDÃO
INDEMNIZAÇÃO
DUPLA CONFORME
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 05/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / REVISTA EXCEPCIONAL.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 672.º, N.ºS 2, ALÍNEA C) E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 05-05-2005, PROCESSO N.º 05B691.
Sumário :

I - Tendo o acórdão recorrido sido proferido em obediência a aresto do STJ que anulara um anterior aresto da Relação, é inviável concluir que aquele é integralmente sobreponível à sentença da 1.ª instância.

II - O reconhecimento de força res judicata do conteúdo de decisões anteriores depende, em primeiro lugar, da constatação de que, na acção subsequente e nas acções anteriores, se discutiu, entre os mesmos sujeitos, a mesma relação jurídica e de que existe uma conexão evidente entre os objectos de ambas as acções, havendo ainda que apurar se o conteúdo daquelas decisões se deve ter como prejudicial em relação à decisão a tomar na acção sequente.

III - Entre uma acção em que, ademais, se peticionava a condenação no pagamento de uma indemnização – e que veio a ser julgada improcedente por as limitações tidas como indemnizáveis provirem de uma servidão necessária para a prossecução do interesse público – e uma acção ulterior em que se pede a condenação da mesma ré no pagamento de uma indemnização com base no exercício de uma servidão de passagem inexiste a relação de prejudicialidade mencionada em II.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
           


1) AA, Lda intentou a presente acção contra BB, SA e Município de Lisboa (chamado como interveniente principal), pedindo que a R BB seja condenada a pagar-lhe o montante de € 300.000, como indemnização pela afectação exclusiva de 2 lugares de estacionamento do parque que construiu ao abrigo do direito de superfície e pelo exercício da servidão da passagem para serviço e acesso à Subestação Eléctrica da concessão da R. Subsidiariamente, pediu a condenação do Município a pagar-lhe, na parte proporcional, a indemnização formulada contra a R BB pela redução do rendimento desse parque, resultante da diminuição da área que ficou impedida de explorar e demais prejuízos, caso se provasse que foi o chamado que promoveu e decidiu, em exclusivo ou em comparticipação, constituir servidão de acesso à subestação eléctrica da R BB, através do edifício da A, com ocupação permanente de uma parte deste.
Para tanto, a A alegou, em síntese:
- É dona de um parque subterrâneo que explora e por si construído horizontalmente em terreno do Município mediante acordo celebrado com este, tendo em vista 499 lugares de estacionamento;
- Tal construção contornou horizontalmente uma subestação eléctrica (SE) da R BB, lá instalada e afecta ao serviço público de distribuição de energia eléctrica, que foi salvaguardada pelo projecto de obra aprovado pela CML;
- No contrato de constituição do direito de superfície não constava que a obra da A ficasse onerada por qualquer servidão de passagem ou de estacionamento de veículos ou pessoas em benefício dessa SE e no projecto aprovado pela CML mantinha-se o acesso à mesma por vãos existentes na laje de cobertura, tipo alçapão;
- Na fase final da obra da A, a R BB submeteu a aprovação um projecto de alteração para abertura de acesso à SE através da cave -2, criando um novo acesso lateral, ao nível e através do piso -2, dotado de uma antecâmara, que implicava a anulação de um lugar de estacionamento;
- A A manifestou a sua concordância a essa alteração, condicionando-a ao ressarcimento pela ocupação do lugar de estacionamento, não tendo a R BB negado a legitimidade dessa sua pretensão;
- Para acesso e passagem para a SE a R BB acabou por afectar ao seu uso exclusivo dois lugares de estacionamento, por imposição das entidades que aprovaram a alteração;
- A R BB nunca comunicou a sua rejeição ou reserva à pretensão indemnizatória da A e, iniciada por esta a exploração do parque em 1-10-2001, a A interpelou a R para proceder ao pagamento da compensação monetária constante da proposta de protoloco de acordo, cujo pagamento a R recusou;
- Na sequência, a A propôs no Tribunal de Braga a acção judicial nº 637/03.6TBBRG, reclamando da R o pagamento da referida compensação, a qual foi definitivamente julgada improcedente por não se ter provado que a R se tivesse obrigado a pagá-la, apesar de conhecer a intenção da A de que houvesse lugar a tal retribuição;
- A A intentou, então, acção de reivindicação (1922/04.5TVLSB) contra a R BB, pedindo que esta fosse condenada a reconhecer o seu direito em relação aos 2 lugares de estacionamento por ela ocupados, com a consequente condenação a restituir-lhos e a pagar-lhe a indemnização pelo dano resultante da ocupação, bem como a reconhecer que a edificação não se encontrava onerada por qualquer servidão de passagem em favor da subestação da R.

- A A invocou, ainda, na sua PI o acórdão deste STJ de 4-05-2010 [proferido no âmbito do referido processo 1922/04 (com cópia a fls. 86-101)], mediante o qual foi decidido julgar improcedentes os pedidos de restituição, de indemnização e de reconhecimento da inexistência de servidão de passagem, que a A aí formulara contra a R BB, ao abrigo do seu direito de superfície.

2) As RR contestaram, alegando que o novo acesso se tornou necessário naqueles moldes e foi construído antes do parque terminado e de iniciada a sua exploração, pelo que os 2 lugares nunca chegaram a existir.

3) A Sra. Juíza veio a proferir no saneador decisão sobre o mérito da causa, julgando a acção improcedente e absolvendo as RR dos pedidos formulados pela A.

4) A A interpôs apelação dessa sentença, que foi confirmada pela Relação de Lisboa por acórdão de que a A veio interpor recurso de revista, com fundamento em ofensa do caso julgado [art. 629º nº 2 a) do CPC ([1])] e contradição com acórdão do STJ já transitado (art. 672º nº 1 c)].

5) O Sr. Desembargador Relator, considerando verificada a dupla conformidade entre as decisões de ambas as instâncias, admitiu a revista excepcional. Porém, a Formação deste Supremo Tribunal prevista no nº 3 do art. 672º entendeu não ser relevante a questão da dupla conforme para o sistema especial de filtragem previsto no citado art. 629º nº 2 a), a hipótese dos autos, e que este prevalece sobre o sistema geral contido naquele art. 672º, pelo que decidiu não admitir a revista excepcional e determinar que os autos fossem distribuídos como recurso de revista normal.

6) Este Tribunal, mediante acórdão de 27-04-2017 (fls. 848-864), depois de considerar que a Relação confirmara, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão de 1ª instância, decidiu não tomar conhecimento do recurso de revista por não estar demonstrado o primeiro dos fundamentos em que a recorrente assentava a sua pretendida admissibilidade, a ofensa do caso julgado [art. 629º nº 2 a)], quanto à violação, quer da autoridade do caso julgado formado na revista nº 1922/04.5TVLSB.S1, quer do alegado caso julgado formal advindo dos despachos de 8-05-2014 – complementado com o de 14/5 subsequente – e de 12-11-2014.

7) Na sequência, a recorrente veio requerer (fls. 871-880) a apreciação preliminar sumária da verificação do segundo pressuposto invocado (art. 672º) para o conhecimento do objecto do recurso, como revista excepcional. Deferida tal apreciação à Formação prevista no nº 3 do art. 672º, esta acolheu a pretensão formulada e decidiu admitir o recurso de revista excepcional, ao abrigo do art. 672º nº 2 c), por entender haver contradição entre o acórdão da Relação recorrido e o acórdão do STJ, já transitado, de 5-05-2005 (p. 05B691).  

8) A recorrente delimitou o objecto do recurso de revista com conclusões em que, para além da questão da violação do caso julgado, já definitivamente defrontada naquele acórdão de 27-04-2017, suscitava as questões de saber se o acórdão recorrido sofria de nulidades por:

- Omissão de pronúncia sobre a questão de os factos julgados provados nas ações 637/03.6TBBRG e 1922/04.5TVLSB terem sido tidos por assentes nesta acção, com violação dos princípios que regulam a prova e sem julgamento ou qualquer análise crítica justificativa;

- Conhecimento de questão de que nele não se podia tomar conhecimento (ao considerar, em aditamento aos fundamentos da sentença, que a A, por transação, renunciara a ser indemnizada pelo Município).

9) Este Tribunal, por acórdão de 17/10/2017, decidiu anular o acórdão recorrido e determinar a devolução dos autos ao Tribunal da Relação para que, nos termos que indicou, conhecesse do objecto da apelação na parte correspondente à arguida omissão de pronúncia quanto à questão de o julgamento de direito se estribar nos factos tidos por assentes nas acções nºs 637/03.6TBBRG e 1922/04.5TVLSB, que a ora A intentara anteriormente, sendo que na primeira não interviera o ora demandado Município de Lisboa.

10) Por acórdão sequentemente proferido em 13/11/2018, a Relação, cumprindo o determinado quanto à supressão da aludida omissão, consignou, de novo, como assentes os factos como tal julgados nas aludidas acções nºs 637/03.6TBBRG e 1922/04.5TVLSB, por entender dever acatar-se a autoridade do caso julgado formado pelo decidido em tais acções, uma vez que os respectivos objectos se inscrevem, como pressupostos indiscutíveis, no objecto desta posterior acção.

E, na sequência, decidiu manter a decisão de 1ª instância por ter concluído que essa factualidade não confere à A o pretendido direito a indemnização, uma vez que não se lhe afigurou que lesasse direitos ou legítimas expectativas da mesma «a mudança da servidão, por imposição da construção do parque de estacionamento subterrâneo e das obras de requalificação da Praça da Figueira, passando o acesso à SE da R BB a ser feito horizontalmente e implicando, na fase de construção e antes de iniciada a exploração do parque, a supressão de dois lugares de estacionamento no piso -2», porquanto «quer a ocupação/afectação exclusiva de 2 lugares de estacionamento para permitir o acesso à SE da R BB, quer o exercício da servidão de passagem pela mesma R para serviço e acesso à SE não constituem fundamento para afirmação do direito».

11) Inconformada, a A interpôs novo recurso de revista cujo objecto delimitou com extensas conclusões nas quais, depois de relembrar o atribulado percurso dos autos já sinopticamente exibido – tendo, designadamente, enunciado as questões já definitivamente defrontadas nos acórdãos deste Tribunal de 27/04/2017 e de 17/10/2017 –, recoloca as questões de saber se:

a) deve o processo ser remetido à 1ª instância, para julgamento dos factos alegados na presente acção, uma vez que não poderiam ser transpostos para esta os factos tidos por assentes nas precedentes acções;

b) a autoridade do caso julgado formado pelo decidido na acção 1922/04 de que que a edificação, quando a A já era dela proprietária superficiária, foi onerada com a constituição de uma servidão administrativa de passagem promovida pela R BB (com ocupação acessória de 2 lugares de estacionamento estende-se a este processo.

12) Contra-alegou o demandado Município de Lisboa, invocando a inadmissibilidade do recurso, ao abrigo do art. 671º nº 3.

*

Cumpre decidir.

1. A inadmissibilidade do recurso.

O demandado Município de Lisboa invoca a inadmissibilidade do recurso, por se verificar a “dupla conforme” das decisões das instâncias, mas sem razão.

Com efeito, no âmbito da sua competência exclusiva e definitiva, a Formação deste Supremo prevista no nº 3 do art. 672º, não obstante se verificar, então, essa dupla conformidade, decidiu admitir o primeiro recurso de revista, ao abrigo do art. 672º nº 2 c), por entender haver contradição entre o primeiro acórdão da Relação e um acórdão do STJ já transitado (de 5-05-2005). Na sequência, por acórdão de 17/10/2017, foi anulado esse acórdão da Relação e a esta remetido o processo para que conhecesse do objecto da apelação, na parte correspondente à questão de o julgamento de direito se estribar nos factos tidos por assentes nas acções nºs 637/03.6TBBRG e 1922/04.5TVLSB.

E é do acórdão sequentemente proferido pela Relação (em 13/11/2018) e que cumpriu o determinado que vem agora interposto este novo recurso de revista e não, naturalmente, do que, por ter sido anulado, ficou sem qualquer efeito.

Ora, é inevitável constatar que o acórdão que agora vem impugnado não é sobreponível à sentença de 1ª instância, precisamente por ter sido proferido em obediência ao decidido por este Tribunal e, por isso, como o próprio arguente o reconhece, ter suprido a omissão assacada ao anulado e decidido – bem ou mal, por agora não releva – a questão da atendibilidade dos factos apurados nas ações anteriormente julgadas, em face da autoridade de caso julgado.


2. A autoridade do caso julgado.
Como é sabido, o âmbito do recurso, para além dos eventuais casos julgados formados nos autos, é confinado pelo objecto (pedido e causa de pedir) da acção, pela parte dispositiva da decisão impugnada desfavorável ao impugnante e pela restrição feita pelo próprio recorrente, no requerimento de interposição e nas conclusões da alegação (art. 635º). Portanto, é em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada, das conclusões da alegação da recorrente e dos casos julgados entretanto formados que se determinam as concretas questões controversas que importa resolver.

Alega a recorrente que o acórdão recorrido sofre de ilegalidade por fazer assentar o julgamento de direito desta ação nos factos julgados provados nas acções anteriores (637/03.6TBBRG e 1922/04.5TVLSB) e de os reputar como fundamento para qualificar de “mera mudança de servidão” a abertura do novo acesso à SE da R BB no seu parque de estacionamento, quando, na acção 1922/04.5TVLSB, esses mesmos factos tinham levado o STJ a admitir (“em tese”) o direito da A à indemnização pelo exercício pela R BB do acesso à SE pela sua (nova) abertura através do parque da A, com a inerente ocupação de 2 lugares de estacionamento, como consubstanciando a constituição de uma servidão administrativa, que passou a onerar o direito [de propriedade superficiária] da A.

Contrariamente ao pretendido pela recorrente, a questão da autoridade do caso jugado formado pelo decidido na acção 1922/04.5TVLSB está já arrumada nos termos da resposta (negativa) obtida nestes autos no aludido acórdão de 27/04/2017, a que estamos vinculados pela razão inicialmente exposta, o que obsta a que se repondere a sua pretensão a que se tenha por adquirido neste processo que a edificação, quando já era dela proprietária superficiária, foi onerada com a constituição de uma servidão administrativa de passagem promovida pela R BB.

Porém, também defende a recorrente que, considerando-se não coberta pelo caso julgado a mencionada ponderação sobre a qualificação da abertura do dito acesso como constituição de servidão administrativa, os autos prossigam para instrução e julgamento da matéria de facto alegada nos articulados e que importam ao reconhecimento de que a serventia realizada pela R corresponde à constituição de uma servidão administrativa, por expropriação de facto.

E o certo é que, independentemente da qualificação jurídica que possa vir a ser definitivamente oferecida aos moldes em que o direito de propriedade superficiária da A sobre o edificado no solo pertencente ao demandado Município acabou por ficar onerado com a dita “serventia”, não se antolha, in limine, atendendo à matéria de facto alegada, a possibilidade de arredar a verosimilhança da existência do direito à indemnização exercido pela A, fundado na alteração/afectação do gozo proporcionado por esse seu direito, relativamente ao que lhe seria facultado pelos termos em que os outorgantes do contrato que o instituiu configuraram a extensão do conteúdo do respectivo gozo: com tal alteração, o acesso pela R BB aos seus equipamentos e instalações passou a exercer‑se através do parque da A e a impor a ocupação de 2 lugares de estacionamento, quando, nos termos de tal contrato, o mesmo seria feito através de aberturas (alçapões) existentes à superfície do solo (P..... e, por isso, em nada contenderia com o gozo proporcionado à A pelo seu direito sobre a edificação em toda a sua área, da qual já estava, antecipadamente, excluída a afecta às instalações daquela R.

Segundo tudo indicia, foi já no decurso dos trabalhos de construção do parque de estacionamento que foi tomada a decisão de que o acesso pela R BB às suas instalações passasse a ser feito horizontalmente – ou seja, dentro do dito parque –, por razões, naturalmente, estranhas à própria A porque ligadas à requalificação da superfície da Praça, à segurança e à (melhor) acessibilidade a tais instalações.

E a plausibilidade desse fundamento – aliás, admitida pela “tese” (apenas) aventada na decisão que este Tribunal proferiu nos autos 1922/04.5TVLSB – não se mostra ilidida, sem mais, com a contrapartida que esteja a ser paga pela A em função do número de lugares de estacionamento efectivamente explorados ou, sequer, com o teor da transação celebrada na acção administrativa (186/2003) entre o ora demandado Município e a A, apenas relativa ao valor dos trabalhos realizados na Praça da Figueira, à superfície ou subterrâneos.

Realmente, é de ponderar a argumentação aduzida pela recorrente com que sustenta, por um lado, que o alcance de tal transação se queda pelo valor dos trabalhos realizados – como o respectivo texto aparenta sugerir –, não abarcando a renúncia da A à indemnização pela afectação do seu direito de superfície, e, por outro, que o que estará em causa será a medida dessa afectação, sendo certo que no “deve e haver” a computar na delimitação do quantum que, eventualmente, seja arbitrado não poderá deixar de ser sopesado o montante da contrapartida (cânon superficiário) a que a A se encontre adstrita em função do número de lugares de estacionamento efectivamente explorados.

Ora, a questão da (indevida) transposição para estes autos dos factos tidos por assentes nas precedentes acções fora já suscitada na apelação (conclusões 11ª, 13ª, 21ª e 22ª), invocando a recorrente (então apelante), em relação a parte de tais factos, inexactidão e contradições com alguns dos alegados nesta acção ([2]) e rejeitando a autoridade do caso julgado sobre os factos.

Sobre a referida transposição dos factos já ficou dito no acórdão deste Tribunal de 17/10/2017 que, não tendo havido, em qualquer das instâncias, julgamento sobre a matéria de facto ou qualquer análise crítica justificativa dessa opção, a mesma não poderia ser encarada como tendo sido determinada por uma putativa decisão implícita fundamentada na eficácia extraprocessual das provas produzidas nos anteriores processos, ao abrigo do princípio consagrado no art. 421º, nº 1, com a interpretação que lhe ofereceu o acórdão deste Tribunal de 5-05-2005 (p. 05B691), sendo que, de todo o modo, explicitou-se o entendimento de que, ainda que se pudesse configurar ter havido uma pronúncia implícita com tal alcance, subsistiria a questão da invocada violação dos princípios que regulam a prova pela decisão de 1ª instância – e, por consequência, também pela da Relação –, dado não ter havido julgamento.

Por outro lado, no mesmo acórdão também foi abordada a questão de tal determinação poder resultar de uma decisão, necessariamente implícita, fundamentada na autoridade do caso julgado, com que se pretendesse evitar a contradição de julgados, perante a existência de anteriores decisões, em concreto, potencialmente incompatíveis, o que pressuporia a decisão (transitada) de determinadas questões que já não poderiam agora voltar a ser discutidas.

Constata-se que no acórdão ora recorrido a Relação (re)emitiu a sua pronúncia sobre a pretensão formulada pela A na acção, depois de ter, de novo, corroborado a selecção dos factos tidos por assentes nas precedentes acções (637/03.6TBBRG e 1922/04.5TVLSB), invocando, agora, a autoridade do caso julgado formado pelo nelas decidido, por entender que, pela «sua manifesta relação, conexão e prejudicialidade, em relação ao caso sub judice», o respectivo «objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto [desta] acção posterior»: mantendo a matéria de facto que se considerara provada em 1ª instância, com ela concluiu que o direito à indemnização pretendida pela A não é conferido pela «mudança da servidão, por imposição da construção do parque de estacionamento subterrâneo e das obras de requalificação da Praça da Figueira».

É certo que, como já exposto nos anteriores acórdãos de 27-04-2017 de 17/10/2017, «entendemos que os considerandos decisórios conducentes ao dispositivo de decisão proferida numa anterior acção poderão estar, ou não, abrangidos pelo caso julgado material, consoante o sentido e o alcance que a interpretação de tal decisão lhes fixe, a qual aferirá da eficácia do caso julgado, dela excluindo os julgamentos sobre questões de facto e de direito por ela não abarcados, ainda que integrem os fundamentos de tal decisão».

Com efeito, ainda que no último de tais acórdãos não se tenha suprido a nulidade advinda da omissão de pronúncia sobre tal questão, por ser vedado pelo comando do art. 779º, não deixou de se enunciar, na conjugação de ambas essas decisões, o entendimento – expresso de modo que ousamos estimar claro – sobre os requisitos da inclusão pelo caso julgado material dos considerandos decisórios conducentes ao dispositivo de decisão proferida numa anterior acção.

Para evitar inútil reprodução, avocamos aqui esse entendimento quanto aos pressupostos da força de “res judicata” conferida ao conteúdo da decisão sobre as questões ou pretensões suscitadas e às respectivas premissas, se absolutamente determinantes, e à decorrente vinculação do tribunal, na acção subsequente, a tudo o que esteja coberto pela autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida na causa anterior ([3]).

Todavia, sempre reiteramos que o reconhecimento de tal força dependeria da constatação de que, nesta e em ambas as mencionadas acções anteriores, estaríamos perante a mesma relação jurídica, com os mesmos sujeitos e com evidente conexão entre os objectos de ambas as acções, ainda que não se verificasse inteira identidade quanto ao pedido e à causa de pedir nelas apresentadas. Depois, haveria que aferir se poderia ser tido por prejudicial, «em relação ao caso sub judice», o conteúdo de qualquer decisão proferida em tais acções sobre questões ou pretensões nelas suscitadas e das respectivas premissas se absolutamente dela determinantes ([4]).

Posto isto, estão fora dessa cogitação quaisquer decisões tomadas na acção 637/03.6TBBRG porque nela não intervieram os mesmos sujeitos da ora em apreciação.

Já no que concerne ao encadeamento verificado entre esta e a acção 1922/04.5TVLSB é certo que estamos perante a mesma relação jurídica, com os mesmos sujeitos e uma certa conexão entre os objectos de ambas as acções, embora sem identidade quanto ao pedido e à causa de pedir nelas aduzidas.

Relembramos que nessa acção (de reivindicação) nº 1922/04 foi decidido julgar improcedentes os pedidos que a A, ao abrigo do seu direito de superfície, aí formulara contra a R BB de restituição, de indemnização e de reconhecimento da inexistência de servidão de passagem.

Da fundamentação dessa decisão fazia parte o seguinte discurso argumentativo: [A alteração, determinando] «a inutilização de dois lugares de estacionamento (…) apenas terá sido aceite pela A no pressuposto de um entendimento com a R e por forma a ficcionar-se uma avença permanente dos ditos dois lugares» (…). Não podendo, assim, discutir-se o direito da BB a aceder à subestação subterrânea através do parque, então em fase de conclusão dos trabalhos, também se não pode questionar o direito, em tese, da A ser indemnizada pelos prejuízos que derivam da limitação e não aproveitamento da utilidade própria do espaço concedido pela CML (...) isto justamente por as servidões necessárias para a prossecução do interesse público, no caso desempenhada pela referida subestação, dão direito a uma indemnização nos termos gerais definidos no actual Cód. das Expropriações – art° 8º – e nos termos específicos da legislação própria das instalações eléctricas». E concluiu assim: «A indemnização a que possa ter jus a A e que não vamos aqui discutir o respectivo acerto e sustentação com base nos lugares de estacionamento existentes e não taxados, terá, por isso, de ser estruturada noutros moldes, face a ser inviável a restituição pretendida» (sublinhados nossos).

            Esta “tese” sobre a hipotética indemnização a que a A pudesse ter jus veio, depois, a ser aclarada por acórdão proferido em 13-7-2010, nestes termos: «não podendo o tribunal que, de resto não se pronunciou senão em termos teóricos sobre o direito da A, fazer valer ou poder fazer o direito à indemnização com base na eliminação de lugares de estacionamento previstos e da perda do inerente rendimento, porventura não compensável pelos existentes e não taxados no âmbito do contrato de concessão (…)»

Com efeito, a factualidade tida por assente naquela acção baseou o juízo nela formulado quanto à improcedência da pretensão indemnizatória da A por a «limitação e não aproveitamento da utilidade própria do espaço concedido pela CML» advirem de uma servidão necessária para a «prossecução do interesse público», pelo que, se não se poderia questionar o direito, “em tese” ou “em termos teóricos”, de os prejuízos que derivam dessa limitação serem ressarcidos «nos termos gerais definidos no actual Cód. das Expropriações – art° 8º - e nos termos específicos da legislação própria das instalações eléctricas», a sua indemnização teria «de ser estruturada noutros moldes».

E, nesta acção, as instâncias consideraram, ainda que sem uma análise crítica, que essa factualidade seria para aqui transponível, tendo, depois, concluído que a mesma não conferiria à A o pretendido direito à indemnização, assim rejeitando liminarmente a plausibilidade de qualquer solução jurídica conducente ao reconhecimento desse direito, apesar de admitida, nos apontados moldes, pela decisão proferida na dita acção 1922/04.

Ora, repetimos, independentemente da qualificação jurídica que aqui se possa vir a adquirir para a limitação estabelecida ao gozo do direito de propriedade superficiária da A relativamente ao que seria facultado pelos termos estipulados no contrato que o instituiu, não vislumbramos qual possa ser a relação de prejudicialidade, que justifique a questionada importação de factos naquela assentes, entre as premissas determinantes de qualquer das decisões obtidas nessa acção 1922/04 e o objecto desta.

Na verdade, excluindo desta ponderação, à partida, a decisão sobre o pedido de restituição – relativamente à qual, obviamente, nenhuma dependência pode ter o objecto desta acção –, também quanto às demais decisões obtidas – de improcedência dos pedidos de indemnização e de reconhecimento da inexistência de servidão de passagem – não vemos qual possa ser a conexão relevante, para o efeito em apreço, entre as já sintetizadas premissas que as determinaram e o objecto desta acção.

Assim, a aferição do concreto conteúdo das decisões proferidas na acção 1922/04 sobre as questões ou pretensões nela suscitadas não permite corroborar a afirmação genérica emitida pela Relação de que o decidido nessa acção teria «manifesta relação, conexão e prejudicialidade, em relação ao caso sub judice».

Por conseguinte, deve o processo ser remetido à 1ª instância para que as questões colocadas pela pretensão indemnizatória deduzida pela A possam vir a ser ponderadas, sem a questionada importação, mas apenas com base nos factos articulados na presente acção e julgados assentes de entre os que forem objecto de seleção, à luz das regras de processo que a hão-de reger.

Nos estritos termos expendidos, procede o recurso e mostra-se prejudicado o conhecimento das demais sub-questões nele suscitadas.
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Decisão
Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista e, por consequência, decide-se revogar o acórdão recorrido, anular a sentença do Tribunal de 1ª instância e determinar a devolução a este dos autos para que, nos termos acima indicados, selecione os factos que importam para o conhecimento da pretensão indemnizatória deduzida pela A, apenas de entre os articulados na presente acção, seguindo-se, depois, os normais termos do processo.

Custas deste recurso pela parte vencida a final.

Lisboa, 14 Maio de 2019

Alexandre Reis (Relator)

Lima Gonçalves

Fátima Gomes

es

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[1] Código a que pertencem todas as normas que se citarem sem indicação da respectiva fonte.

[2] Segundo alegou a recorrente, além de se verificar alguma contradição entre os factos de cada uma das ações, a CML não foi parte na ação de 2003 e na presente acção adoptou uma posição contraditória com a dos factos mais relevantes para a qualificação da servidão constituída (exemplo dos artºs 14º, 15º e 21º da sua Contestação e Doc. 2 junto à mesma (o novo acesso não foi determinado pela A nem pela CML, antes foi determinado e promovido pela R e a Câmara não se responsabilizou nem assumiu resolver com a A eventuais alterações consequentes da oneração do parque com o novo acesso).

[3] Lembrou-se, a título de mero exemplo, que, se uma acção de reivindicação for julgada improcedente por nela se ter provado uma factualidade que permita concluir ter sido cedido o gozo da coisa reivindicada mediante o pagamento de uma renda, não faria sentido que, entre as mesmas partes, numa posterior acção, por hipótese de despejo, se possa ter como controversa tal factualidade.

[4] O que, como então se registou, não abarca os meros argumentos de «exegese jurídica ou de exposição doutrinária», pois o caso julgado apenas se destina a obstar decisões concretamente incompatíveis e não a colisão teórica de decisões.