Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERNANDA ISABEL PEREIRA | ||
Descritores: | APLICAÇÃO DA LEI NO ESPAÇO DIREITO COMUNITÁRIO REGULAMENTO (CE) 593/2008 APLICAÇÃO DE LEI ESTRANGEIRA INTERPRETAÇÃO DA LEI CADUCIDADE PRESCRIÇÃO CONTRATO DE COMPRA E VENDA CUMPRIMENTO DEFEITUOSO MORA PERDA DE INTERESSE DO CREDOR INCUMPRIMENTO DEFINITIVO RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO BOA FÉ | ||
Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 02/26/2015 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / DIREITOS DOS ESTRANGEIROS E CONFLITOS DE LEIS - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL ( COMPRA E VENDA ). DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO - APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO - DIREITO CIVIL ESPANHOL. | ||
Doutrina: | - ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 7ª Edição, vol. II, Almedina pp. 124, 275; na R.L.J. n.º 118, pág. 55, nota 1. - BAPTISTA MACHADO, Lições de Direito Internacional Privado, Almedina, 3.ª Edição, pp. 244 e 245; Pressupostos da Resolução por incumprimento - Obras dispersas, vol. I, Scientia Ivridica, pp. 136, 137, 162, 172 e 173. - BLAS PÉREZ GONZÁLEZ e JOSÉ ALGUER, na nota de adaptação e estudo comparativo (face ao Direito Espanhol) da p. 74 da tradução para língua castelhana do “Tratado de Derecho Civil – Derecho de Obrigaciones”, tomo II, 2.º vol., da autoria de LUDWIG ENNECCERUS e HEINRICH LEHMAN, Bosch, Casa Editorial. - CALVÃO DA SILVA, Compra e venda de coisas defeituosas, 4ª Edição, Almedina, pp. 44, 45, 72, 81, 82, 83 a 85. - DIAZ PAIRÓ – apud JOSÉ MANUEL LETE DEL RIO e JAVIER LETE ACHIRICA, ob. cit., vol. I, pp. 371 e 372. - FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, vol. I, Almedina, pág. 434. - Ferrer Correia, Ob. cit., págs. 434 e 435. - JOSÉ MANUEL LETE DEL RIO e JAVIER LETE ACHIRICA , Derecho de Obligaciones - Contratos, vol. I, pág. 372; vol. II, Thomson/Aranzadi, pp. 111-113. - JOSÉ RAMÓN DE VERDA Y BEAMONTE, “El régimen de conformidad y garantia en los productos y servicios”, in Derecho de Consumo, coord. de MARIA JOSÉ REYES LÓPEZ, Tirant Lo Blanch, pp. 446 - 448. - LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, vol. I, Almedina, p. 648. - PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso, Em especial na empreitada e na compra e venda, Almedina, pp. 129, 167, 415, 440, 441. - PESSOA JORGE, Ensaio Sobre Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa, p. 290 nota 3. - PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (com a colaboração de HENRIQUE MESQUITA), “Código Civil” Anotado”, vol. I, 4.ª Edição, Coimbra, p. 70; tomo II, 2ª Ed., Coimbra, p. 71. - RICHARD PLENDER e MICHAEL WILDERSPIN, The European Private Law of Obligations”, Sweet & Maxwell, 3.ª Edição, p. 408. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 23.º, N.º 1, 224.º, N.º1, 334.º, 432.º A 436.º, 762.º, N.º2, 790.º E SS., 804, N.º1, 805.º, N.º1, 808.º, N.ºS 1 E 2, 874.º, 905.º , 911.º, 913.º, 914.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 150.º, N.º1, 267.º. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 615.º, N.º1, 653.º, N.ºS 2 E 4. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 8.º, N.º4. | ||
Legislação Comunitária: | REGULAMENTO (CE) N.º 593/2008 DO PARLAMENTO E DO CONSELHO EUROPEU, DE 17 DE JUNHO DE 2008, PUBLICADO NO JOCE N.º L 177/6 DE 4 DE JULHO DE 2008: - ARTIGOS 1.º, N.º1, 3.º, N.º1, 4.º, N.º1, 12.º, N.ºS 1, ALS. A) A D), 2, 19.º, N.º1. | ||
Legislação Estrangeira: | CÓDIGO CIVIL ESPANHOL (PUBLICADO POR REAL DECRETO DE 24 DE JULHO DE 1889 E ACESSÍVEL EM HTTPS://WWW.BOE.ES/BUSCAR/ACT.PHP?ID=BOE-A-1889-4763 ): - ARTIGOS 7.º, N.º1, 140.º, 141.º, 1100.º, 1124.º, 1434.º, 1445.º,1461.º, 1472.º, 1474.º, 2.º PARÁGRAFO, 1484.º, 1485.º, 1486.º, 1490.º, 1930.º, 1961.º, 1961.º, 1964.º, 1969.º, 1973.º | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 21 DE MAIO DE 1998 - B.M.J. N.º 477, PÁG. 468 -DE 18 DE JULHO DE 2003 - PROFERIDO NO PROCESSO N.º03B3697 E ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT . -DE 6 DE NOVEMBRO DE 2003 – PROFERIDO NO PROCESSO N.º 03B2835 E ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT – E DE 31 DE JANEIRO DE 2012 – PROFERIDO NO PROCESSO N.º 2357/08.6TVLSB.L2.S2 E SUMARIADO PELA ASSESSORIA CÍVEL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM HTTP://WWW.STJ.PT/FICHEIROS/JURISP-SUMARIOS/REVISTAEXCECIONAL/REVISTAEXCEPCIONAL2012.PDF -DE 5 DE JULHO DE 2007 – PROFERIDO NO PROCESSO N.º 07B1835 E ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT . -DE 10 DE MARÇO DE 2005,PUBLICADO NA C.J.S.T.J., TOMO I/2005, PÁG. 126. -DE 7 DE MARÇO DE 2006, C.J.S.T.J., 2006, TOMO I, PÁG. 113. -DE 07 DE FEVEREIRO DE 2008, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 07A4437 E ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT . -DE 10 DE SETEMBRO DE 2009, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 170/09.2YFLSB E ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT . -DE 9 DE NOVEMBRO DE 2010, PROFERIDO NO PROCESSO N.º 12764/03.5TOER.L1.S1 E ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT . -DE 6 DE JULHO DE 2011 – PROFERIDO NO PROCESSO N.º 868/08.2TBCBR.C1.S1 E ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT . -DE 24 DE MAIO DE 2012 – PROFERIDO NO PROCESSO N.º 1288/08.4TBAGD.C1.S1 – E DE 25 DE OUTUBRO DE 2012 – PROFERIDO NO PROCESSO N.º 3362/05.TBVCT.G1.S1 -, AMBOS ACESSÍVEIS EM WWW.DGSI.PT . | ||
Jurisprudência Estrangeira: | JURISPRUDÊNCIA DA SALA CIVIL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ESPANHOL: -SENTENÇA N.º 6465/2007, DE 5 DE JUNHO DE 2007, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=443392&LINKS=1490%20Y%20CADUCIDAD&OPTIMIZE=20070709&PUBLICINTERFACE=TRUE ; -SENTENÇA N.º 4481/2007, DE 21 DE JUNHO DE 2007, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=418100&LINKS=1490%20Y%20CADUCIDAD&OPTIMIZE=20070719&PUBLICINTERFACE=TRUE ; -SENTENÇA N.º 5011/2007, DE 29 DE JANEIRO DE 2002, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=398591&LINKS=1490%20Y%20CADUCIDAD&OPTIMIZE=20070802&PUBLICINTERFACE=TRUE ; -SENTENÇA N.º 36/2009, DE 22 DE JANEIRO DE 2009, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=4273109&LINKS=1490%20Y%20CADUCIDAD&OPTIMIZE=20090205&PUBLICINTERFACE=TRUE ; -SENTENÇA N.º 3899/2010, DE 8 DE JULHO DE 2010, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=5697683&LINKS=1490%20Y%20CADUCIDAD&OPTIMIZE=20100812&PUBLICINTERFACE=TRUE ; * -SENTENÇA N.º 3760/2008, DE 12 DE JUNHO DE 2008, ACESSÍVEL EM WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=54407&LINKS=CADUCIDAD&OPTIMIZE=20080626&PUBLICINTERFACE=TRUE * -SENTENÇA N.º 907/2010, DE 17 DE FEVEREIRO DE 2010, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=5072372&LINKS=1490%20Y%20CADUCIDAD&OPTIMIZE=20100318&PUBLICINTERFACE=TRUE ; -SENTENÇA N.º 775/2010, DE 25 DE FEVEREIRO DE 2010, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=5072358&LINKS=1490%20Y%20CADUCIDAD&OPTIMIZE=20100318&PUBLICINTERFACE=TRUE ; -SENTENÇA N.º 6253/2010, DE 22 DE NOVEMBRO DE 2010, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=5798530&LINKS=ALIUD%20POR%20ALIO&OPTIMIZE=20101216&PUBLICINTERFACE=TRUE ; -SENTENÇA N.º 3925/2013, DE 30 DE ABRIL DE 2013, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=6728782&LINKS=1490%20Y%20CADUCIDAD&OPTIMIZE=20130603&PUBLICINTERFACE=TRUE ; * -SENTENÇA N.º 7750/2012 DE 20 DE NOVEMBRO DE 2012, ACESSÍVEL EM WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=6566437&LINKS=ALIUD%20POR%20ALIO&OPTIMIZE=20121210&PUBLICINTERFACE=TRUE * -SENTENÇA N.º 6402/2005, DE 21 DE OUTUBRO DE 2005, ACESSÍVEL EM HTTP://WWW.PODERJUDICIAL.ES/SEARCH/DOACTION?ACTION=CONTENTPDF&DATABASEMATCH=TS&REFERENCE=1135470&LINKS=ALIUD%20PRO%20ALIO%20Y%201964&OPTIMIZE=20051110&PUBLICINTERFACE=TRUE . | ||
Sumário : | I - Resultando da aplicação do disposto no n.º 1 do art. 4.º do Regulamento (CE) n.º 593/2008, de 04-07, do Parlamento e do Conselho ser aplicável uma lei estrangeira, o juiz do foro, em consonância com o disposto no n.º 1 do art. 23.º do CC, deve efectuar a respectiva interpretação no contexto do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nele estabelecidas, o que impõe que se faça apelo à jurisprudência e doutrina dominantes no país de origem, que se tenha, como ponto de partida, a correcção da interpretação usual no Estado estrangeiro e que se actue com sensatez e prudência, de modo a colmatar a inerente menor familiarização com a lei estrangeira, só devendo tal interpretação ser afastada quando puder ser tida como inexacta. II - Sendo aplicável à apreciação da questão da caducidade o Código Civil Espanhol e enquadrando-se duas das pretensões formuladas pela autora na previsão do art. 1486.º do mesmo diploma, há que considerar o prazo a que alude o art. 1490.º daquele diploma como sendo de caducidade, como uniformemente tido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Espanhol e por grande parte da doutrina. III - Resultando da facticidade provada que os vícios que afectam a máquina vendida pela recorrente impedem o seu uso na actividade comercial da recorrida, há que considerar, em face da jurisprudência do Supremo Tribunal Espanhol, que estamos perante o incumprimento da obrigação de entrega e não de meros vícios redibitórios que apenas desencadeiam as acções a que alude o art. 1486.º do Código Civil Espanhol. IV - Não estando a acção resolutiva sujeita a prazo de caducidade, mas antes a um prazo de prescrição de 15 anos que ainda não havia decorrido ao tempo da propositura da presente acção, cabe concluir pela tempestividade da mesma. V - Devendo atender-se à lei portuguesa (i.e. a lei do país onde é cumprida a obrigação – cfr. n.º 2 do art. 12.º do Regulamento (CE) n.º 593/2008) no tocante às medidas que o credor deve tomar em caso de cumprimento defeituoso, a tutela do comprador reconhece-lhe o direito à anulação do contrato com base em erro ou dolo (art. 905.º ex vi art. 913.º do CC), à redução do preço (art. 911.º ex vi art. 913.º, ambos daquele diploma) e à reparação ou substituição da coisa (primeira parte do art. 914.º do mesmo diploma), só sendo admissível a resolução contratual caso se frustre a exigência do cumprimento perfeito do contrato consubstanciada no exercício destas duas últimas faculdades. VI - Como deriva dos n.ºs 1 e 2 do art. 808.º do CC, para que a mora no cumprimento da prestação possa redundar numa situação de incumprimento definitivo, é imperioso que, além do mais, se verifique a perda de interesse do credor na execução da prestação. VII - A perda de interesse que desencadeia a resolução do contrato há-de ser objectivamente evidenciada, a fim de evitar que o devedor fique sujeito ao capricho do credor ou que venha a ser confrontado com a invocação de razões banais ou infundadas para justificar a destruição do contrato. VIII - Havendo que concluir pela licitude da resolução, o enquadramento factual provado não autoriza que o comportamento da recorrida se deva ter por contrário aos ditames da boa fé ou que evidencie qualquer actuação em abuso do direito. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório: AA, Lda., intentou acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra BB, S.L., alegando, em resumo, que ajustou com a mesma um contrato de compra e venda de uma grua e pagou o respectivo preço (€ 125.000,00), não tendo, porém, a Ré, ao arrepio do que acordara com a Autora, dado formação ao pessoal desta e não tendo os técnicos que a primeira disponibilizou para a montagem demonstrado conhecer o funcionamento da máquina. Ao invés do que fora incutido pela Ré, a grua, ao ser colocada em funcionamento, evidenciou vários problemas e não trazia consigo o respectivo manual – o que foi comunicado à Ré –, sendo que aquela máquina fora construída em 1998 - e não em 1999, como havia sido indicado pela vendedora -. Nessa sequência, a Autora veio a perder o interesse na manutenção do negócio e a comunicar àqueloutra a intenção de o resolver, solicitando a devolução do preço pago e o levantamento da máquina, o que até agora não sucedeu. Sustenta que não teria celebrado o negócio nos mesmos moldes se conhecesse o estado de funcionamento da grua e o seu ano de fabrico e refere que a impossibilidade da sua utilização e o seu parqueamento lhe causa prejuízos. Finalizou, pedindo que se declarasse resolvido o contrato de compra e venda em causa e se condenasse a Ré a restituir-lhe o preço pago (€ 125.000,00), acrescido de juros moratórios, ou, em alternativa, se reduzisse o preço (no mínimo, em € 50.000,00) e se condenasse a Ré a reparar a máquina, em prazo não superior a 30 dias, e a restituir à Autora a diferença do preço, com juros moratórios. Mais pediu que se condenasse a Ré a indemnizar a Autora pelos prejuízos sofridos, em montante a liquidar. A Ré contestou, alegando, em resumo, que, face ao disposto no artigo 1484.º do Código Civil Espanhol, aqui aplicável, não está obrigada a indemnizar a Autora por serem manifestos os defeitos invocados à data da realização do negócio, que os direitos exercidos pela Autora já haviam caducado à data da apresentação da petição inicial e que desconhecia os defeitos da grua quando a vendeu à Autora, tendo-se limitado a intermediar o negócio entre o anterior proprietário da grua e aquela e não a examinou. Impugnou ainda, directa e motivadamente, a maior parte da factualidade vertida na petição inicial, referindo, em resumo, que a Autora não deu resposta a questões que lhe foram colocadas sobre as avarias que se terão registado, que os seus técnicos foram impedidos de efectuar reparações e que é irrelevante o ano de fabrico dos componentes. Pugnou pela procedência das excepções e, subsidiariamente pela improcedência da acção, concluindo pela absolvição do pedido. Na réplica, a Autora sustentou, em suma, que os defeitos não eram visíveis, que a Ré, em dois momentos, reconhecera os direitos que assistiam à Autora, que o termo do prazo de caducidade, por terminar em férias judiciais, se transferira para o primeiro dia útil após férias e que a Ré conhecia o estado e os defeitos da grua. Realizada a audiência de discussão e julgamento, proferiu-se sentença em que se julgou a acção parcialmente procedente, se declarou resolvido o contrato de compra e venda celebrado pelas partes e se condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 125.000,00, acrescida dos juros de mora vencidos desde a citação, até integral pagamento, à taxa de 5 %, ou outra que venha a vigorar na lei espanhola para os juros moratórios das dívidas civis.
Apelou a Ré impetrando a modificação do decidido em matéria de facto e de direito, mas a Relação do Porto manteve a sentença recorrida sem a alterar. Irresignada, interpôs a Ré recurso de revista excepcional, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões: (…) 6.a Na primeira instância, a Mma. Juiz considerou, de forma errada, que o prazo de seis meses previsto no art.° 1490.° do CCE era de prescrição, entendimento secundado pelo Tribunal a quo que afirmou «É nosso entendimento que o defendido pela recorrente apoiada na Jurisprudência do Tribunal Supremo do país vizinho, não tem qualquer correspondência nos textos legais, pois que, não se descortina qual a razão para que o prazo estatuído no artigo 1490.° CCE não seja também de prescrição, não fazendo qualquer referência à caducidade»; «Não se concorda com tal entendimento, pese embora se respeite a opinião do Tribunal Supremo espanhol». 7.a Na verdade, à luz da interpretação unânime da doutrina e jurisprudência espanholas, que o Tribunal a quo reconhece existir, «Não há dúvida de que o invocado artigo 1490 estabelece o prazo de seis meses para exercer, entre outras, acções por vícios ocultos, prazo que tem carácter de "disposição especial", como previsto no artigo 1969 EDL Código Civil 1889/1, com o aviso também que, de acordo com pacífica opinião doutrinal e reiterada jurisprudência deste Tribunal, tal prazo é de caducidade e não de prescrição. O "dies a quo"para o início da contagem do prazo ocorre "a partir da entrega da coisa vendida." A simplicidade da regra não se presta a interpretações complicadas para além da literalidade do mesmo no que diz respeito à extinção prazo e cômputo» (decisão do Tribunal Supremo espanhol datada de 14/10/2003, com a referência Sala Ia, S 14-10-2003, n° 965/2003, rec. 3948/1997, Pte: Almagro Nosete, José; entre outra jurisprudência citada no corpo das alegações de recurso, págs. 101 e ss.). (da interpretação da lei estrangeira) 15.a O n.° 3 do art.° 8.° do Código Civil português (CCP) estabelece que «Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que merecem tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniforme do direito". O mesmo diploma, no seu artigo 23.°, dispõe que "A lei estrangeira é interpretada dentro do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nele fixadas". 16.a Neste contexto, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA ensinam que «[d]eve, por isso, o julgador orientar-se mais pelas lições da jurisprudência e da doutrina do Estado estrangeiro do que pela análise dos textos legislativos aplicáveis, evitando a natural influência que sobre ele podem exercer os métodos de interpretação da lei portuguesa. Por outro lado, é dentro do contexto em que se integra que lei estrangeira deve ser interpretada. Afasta-se deste modo a solução de a enquadrar, para o efeito, no sistema jurídico nacional, a coberto de qualquer ideia de recepção formal ou substancial do direito estrangeiro» (in Código Civil Anotado, Volume I, 2.a Edição, Coimbra Editora, 1979, pág. 57 - negrito nosso). 17.a Em sentido convergente João BAPTISTA MACHADO sufraga que «[s]e nosso DIP nos remete para um direito estrangeiro, isso significa que há-de ser actuada a valoração jurídico-material desse direito. Mas o verdadeiro significado e alcance de qualquer norma de um sistema jurídico é algo que, frequentemente, só a sua aplicação jurisprudencial e a sua interpretação através de certas regulae artis permitem estabelece[r]. Por isso se assenta hoje pacificamente na seguinte regra: o juiz que aplica o direito estrangeiro há-de interpretá-lo de conformidade com a jurisprudência e doutrina dominantes no país de origem. É esta também a orientação seguida pelo Tribunal Internacional de Justiça»; «[o] juiz português só deverá afastar-se da interpretação usual no Estado estrangeiro cujo direito aplica se tiver bons fundamentos para crer que essa interpretação, no caso sub judice, não é correcta. Sem dúvida, ele não é forçado a imitar servilmente, sempre e em cada caso, a interpretação que a uma regra jurídica é dada no país de origem - não se lhe impõe um tal sacrificium intellectus. No entanto, como ponto de partida, há que presumir que tal interpretação é a exacta e dele não de o juiz arredar-se sem necessidade e bons fundamentos, (in Lições de Direito Internacional Privado, 2.a Edição, Almedina, Coimbra, 1982, pág. 244 e 255 — negrito nosso). (da oposição de acórdãos - o acórdão de 06/11/2003) 22.a Entende a Recorrente que o acórdão recorrido ao decidir afastar o entendimento a interpretação que o CCE merece no domínio da jurisprudência e 23.a Neste acórdão de 06/11/2003, (relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Bettencourt de Faria, processo n.° 03B2835, disponível em www.dgsi.nt, cuja cópia se junta como doc. n.° 1), partindo do disposto no citado art.° 23.° do CCP, este Venerando Tribunal entendeu que "o juiz que aplica o direito estrangeiro há-de interpretá-lo de conformidade com a jurisprudência e doutrina dominantes no país de origem, sendo de observar, antes de mais, as regras estrangeiras sobre interpretação, e, devendo, além disso, uma e outiva ser observadas e seguidas com o mesmo respeito que no respectivo Estado lhes for tributada". 25.a Destarte, no acórdão fundamento este Venerando Tribunal, na interpretação do art.° 23.°, n.° 1 do CCP que integra a sua decisão, oferece as seguintes linhas orientadoras: Sendo conhecida a interpretação que lei estrangeira merece no sistema jurídico de onde provém (nomeadamente na sua jurisprudência), aplicar-se-á esse direito com o conteúdo que dessa interpretação decorrer; Não sendo conhecida tal interpretação, deve considerar-se que a norma estrangeira fica indeterminada e, nessa medida, aplicar a lei com a qual o caso concreto tenha conexão (no caso, o direito português). 29.a Entende a Recorrente que o acórdão recorrido se encontra em contradição com o acórdão deste Venerando Tribunal de 19/12/2006, na parte em que julgou improcedentes a arguição de nulidade (nos termos dos art.°s 3.°, n.° 3 e 5.°, n.° 2 e 615.°, n.° 1, al. d), segunda parte, do NCPC, anterior art.° 668.°, n.° 1, al d) na resposta dada aos quesitos 1.°, 5.°, 16.° e 18.° que, no seu entender, excederam a matéria de facto alegada e que se encontrava nos mesmos quesitada. 30.a Quanto a esta matéria, o Tribunal a quo entendeu que «a sentença não padece, pois de nulidade porque não analisou um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito»; «[a] fundamentação da sentença aponta apenas para a justificação da decisão final em face do direito substantivo aplicável»; concluindo «no caso concreto, não é este o vício que a recorrente diz a sentença padecer (...) os fundamentos que a recorrente alega neste segmento prendem-se com a decisão sobre a matéria de facto sendo, pois, no âmbito da impugnação desta matéria que se analisarão também tais fundamentos». 31.a Acontece que tal entendimento colide com o versado no acórdão fundamento, onde (analisando-se a resposta "Provado que a Autora ficou com uma incapacidade permanente global de 40% e impedido de exercer a sua actividade profissional habitual" à pergunta "A Autora ficará acometida de uma IPP que hoje não é possível quantificar?") se entendeu existir nulidade com a seguinte fundamentação: «Aquando das respostas há que lograr que as mesmas sejam claras, coerentes, congruentes, minuciosas e pormenorizadas, para definir com rigor o sentido do perguntado no quesito. Mas, para alcançar esse objectivo, a resposta pode surgir como simples ("está provado" ou "não está provado") que é a meramente afirmativa ou negativa mas pode, ainda, ser restritiva ("está provado apenas que...") ou, até, explicativa ("está provado, com o esclarecimento que..."). Estas últimas têm que obedecer a dois princípios rigorosos: conterem-se nos factos articulados; a explicação não cair, por exuberância, na criação de um novo facto. A resposta excessiva ou exuberante deve ter-se por não escrita, que não toda mas apenas na parte excrescente se for possível cindi-la. Decidir se há excesso passa por uma cuidada interpretação do princípio do artigo 664° do CPC segundo o qual, e para além da interpretação, aplicação e indagação das normas jurídicas ou outras regras de direito, o juiz só pode servir-se de factos articulados pelas partes, (cf., ainda, o artigo 264°)» (acórdão datado de 19/12/2006, relatado pelo Venerando Senhor Juiz Conselheiro SEBASTIÃO PÓVOAS, processo n.° 06A4115, consultado em www.dgsi.pt. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos: De facto: São os seguintes os factos fixados pelas instâncias, dispostos de forma lógica e/ou cronológica: De direito: 1 - Questões a resolver:
Nesta conformidade, por uma ordem de precedência lógica e considerando o que se deixou exposto no acórdão da Formação de admissão da revista excepcional, as questões a decidir no presente recurso são, fundamentalmente, as seguintes: Nas demais conclusões, a recorrente limita-se a invocar os pressupostos da revista excepcional (conclusões 1.ª a 3.ª, 22.ª a 26.ª e 28.ª a 32.ª), já objecto de apreciação. Note-se ainda que nas conclusões 29.ª a 32.ª apenas se expende que a decisão tomada quanto à invocada nulidade da sentença apelada por excesso das respostas dadas aos quesitos se mostra em oposição com o decidido num aresto deste Supremo Tribunal de Justiça. Ora, relativamente a este aspecto, a Formação a que alude o n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil considerou que inexistia qualquer contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça parcialmente transcrito na 29.ª conclusão recursiva e, decorrentemente, apenas admitiu a revista excepcional quanto às identificadas questões a resolver, por as mesmas serem genericamente recondutíveis à interpretação de direito estrangeiro e revestirem, pelos motivos ali expostos, a relevância jurídica a que se refere a alínea a) do n.º 1 do mesmo preceito (cfr. fls. 757 a 760). Estando este colectivo adstrito a esse julgamento (n.º 4 daquele preceito), torna-se evidente que a reapreciação que é pedida na parte final da 32.ª conclusão dessa questão – a nulidade da sentença de 1.ª Instância por nela se conterem respostas pretensamente excessivas – é-lhe vedada. Ainda assim e de um modo extremamente sucinto, sempre se dirá que, como transparece do conteúdo taxativo do corpo do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (na actual redacção), o cariz excessivo das respostas dadas aos quesitos não constitui causa de nulidade da sentença, o que bem se percebe, se tomarmos em conta que, no domínio da vigência do anterior diploma adjectivo civil, a decisão da matéria de facto tinha lugar num momento anterior à prolação da sentença e dela independente (cfr. n.ºs 2 e 4 do artigo 653.º do mesmo diploma). Por outro lado, confrontando as respostas dadas aos quesitos 1.º, 5.º, 16.º e 18.º[1] com o conteúdo destes, constata-se que, como se escreveu no acórdão recorrido, as mesmas são restritivas ou explicativas, o que, como aí doutamente se explanou, era e é legalmente autorizado, pelo que inexiste fundamento para que sejam desconsideradas. Não assistiria, pois, razão à recorrente quanto ao que se inscreve na parte final da 32.ª conclusão, não tendo sido violados os preceitos que, a este respeito, se acham enunciados na subsequente conclusão recursória.
1 - Da caducidade dos direitos exercitados pela recorrente através da presente acção: A resolução das questões a decidir tem como pressuposto primordial a designação do direito aplicável à relação contratual que vigorou entre as partes. Essa definição não é essencialmente controvertida nem problemática mas carece de alguma explicação. Vejamos. Podemos reconduzir o contrato firmado aos caracteres essenciais do contrato de compra e venda (cfr. artigo 874.º do Código Civil e artigo 1445.º do Código Civil Espanhol, doravante CCE). Como resulta do teor do escrito que o corporiza o contrato (fls. 55), a recorrida é uma sociedade de direito português com sede em Esmoriz e a recorrente é uma sociedade de direito espanhol com sede em Madrid. Temos assim que a causa apresenta conexões com duas ordens jurídicas nacionais distintas – a portuguesa e a espanhola –, colocando-se, pois, o problema de saber qual o ordenamento jurídico – o português ou o espanhol – que deve reger a relação contratual que ligou as partes. A República Portuguesa e o Reino de Espanha são Estados Membros da União Europeia, no seio da qual existem diplomas legislativos destinados a resolver esta questão. Assim, em obediência ao princípio do primado do Direito Europeu sobre o direito nacional e tendo em conta a aplicabilidade e efeito directo daquele, impõe-se ao tribunal (enquanto juiz comum do Direito Comunitário), a aplicação daqueles diplomas (cfr. n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa). Neste conspecto, o n.º 1 do artigo 1.º do Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento e do Conselho Europeu, de 17 de Junho de 2008[2] preceitua que “O presente regulamento é aplicável às obrigações contratuais em matéria civil e comercial que impliquem um conflito de leis.” pelo que se tem por inequívoca a sua aplicabilidade para solucionar o problema que supra enunciámos. Não resulta do dito texto contratual que as partes hajam elegido um qualquer ordenamento jurídico para disciplinar a relação que encetaram (cfr. n.º 1 do artigo 3.º do mesmo Regulamento), pelo que cumpre atentar nos critérios de determinação contidos nos artigos 4.º e ss. do mesmo diploma. Como vimos, essa relação contratual é recondutível ao contrato de compra e venda. Por isso, há que atentar no que se dispõe na alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º daquele Regulamento onde se lê que: “1. Na falta de escolha nos termos do artigo 3.º e sem prejuízo dos artigos 5.º a 8.º, a lei aplicável aos contratos é determinada do seguinte modo: a) O contrato de compra e venda de mercadorias é regulado pela lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual;”. Concatenando este normativo com o que supra expusemos a respeito da domiciliação das partes, cabe concluir que, tendo a recorrente – a vendedora, como resulta do teor do contrato firmado – sede em Espanha (local onde previsivelmente se situará a sua administração central – cfr. n.º 1 do artigo 19.º do mesmo Regulamento), será o Direito Espanhol a disciplinar a relação contratual “sub judice”[3], nomeadamente, a interpretação do contrato, o cumprimento das obrigações dele decorrentes, as consequências do incumprimento total ou parcial dessas obrigações, a prescrição e a caducidade (alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 12.º daquele Regulamento). Deste modo, versando a primeira questão a resolver sobre a tempestividade dos direitos exercidos pela Autora na presente acção, não oferece dúvidas que a mesma deve ser resolvida no contexto do ordenamento jurídico espanhol. Repare-se que, neste conspecto, não está em causa a avaliação da reacção da Autora ao putativo cumprimento defeituoso do contrato pela Ré mas antes a tempestividade da mesma, sendo que, como resulta do n.º 2 do artigo 12.º daquele Regulamento, só quanto às concretas “(…) medidas que o credor deve tomar no caso de cumprimento defeituoso (…)” se deve atender à lei do país onde a obrigação é cumprida. Para distinguir quais as normas do ordenamento jurídico espanhol que relevam, importa não olvidar que a presente acção se filia no putativo cumprimento defeituoso do contrato pela recorrente. Podemos falar em cumprimento defeituoso quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos, ao objecto da obrigação a que ele estava vinculado[4]. Trata-se de uma das modalidades que, a par do incumprimento definitivo e da mora, integra o conceito de incumprimento “latu sensu” da obrigação. Antes, porém, de avançarmos na prospecção das competentes normas da lei espanhola, convém ter presentes os critérios que devem nortear a interpretação de uma lei estrangeira. Como resulta do n.º 1 do artigo 23.º do Código Civil, a interpretação da lei estrangeira deve ser efectuada no contexto do sistema a que pertence e de acordo com as regras interpretativas nele estabelecidas[5]. Por outras palavras, trata-se de “(…) imputar ao preceito estrangeiro o conteúdo e alcance que lhe forem atribuídos no âmbito do respectivo sistema legislativo (…)”[6]. No desempenho dessa tarefa, importa, pois, fazer apelo às regras de interpretação, à jurisprudência e doutrina dominantes no país de origem[7]. Sendo certo que o juiz do foro dispõe da mesma margem de apreciação e desenvolvimento que o ordenamento jurídico estrangeiro reconhece aos seus intérpretes, deve, porém, ter como ponto de partida, a correcção da interpretação usual no Estado estrangeiro e a actuar com sensatez e prudência, de modo a colmatar a inerente menor familiarização com a lei estrangeira, o que levará a que aquela interpretação só deva ser afastada quando a mesma se revelar inexacta[8]. Rememorados estes ensinamentos, há que atentar nos preceitos relevantes da lei espanhola. Como resulta da petição inicial da presente acção, a causa de pedir dos pedidos formulados a título principal[9] – a resolução do contrato ou, em alternativa, a redução do preço e a condenação na reparação dos defeitos – assenta na ocorrência de defeitos na grua vendida e na circunstância de esta ter sido fabricada em 1998 e não em 1999. O artigo 1461.º do Código Civil Espanhol[10] proclama que “El vendedor está obligado a la entrega y saneamiento de la cosa objeto de la venta”, adiantando o mesmo diploma, mais adiante, que, em virtude desse saneamento, o vendedor responde perante o comprador pelos vícios e defeitos ocultos da coisa (2.º parágrafo do artigo 1474.º). Precisa o artigo 1484.º daquele diploma que “El vendedor estará obligado al saneamiento por los defectos ocultos que tuviere la cosa vendida, si la hacen impropia para el uso a que se la destina, o si disminuyen de tal modo este uso que, de haberlos conocido el comprador, no la habría adquirido o habría dado menos precio por ella; pero no será responsable de los defectos manifiestos o que estuvieren a la vista, ni tampoco de los que no lo estén, si el comprador es un perito que, por razón de su oficio o profesión, debía fácilmente conocerlos”. Tal como o seu congénere português, o CCE não conceptualiza a noção de defeito. Porém, pode extrair-se deste preceito que o vendedor está adstrito a sanar o vício material da coisa que se traduza numa “(…) ausência de qualidade expressamente ou implicitamente pressupostas pelo contrato (…)” e que tenha como consequência “(…) a inabilidade da coisa vendida ou uma diminuição do uso que razoavelmente o comprador esperava obter da mesma, impedindo ou dificultando a consecução da finalidade por ele pretendida com a conclusão do contrato (…)”, exigindo-se ainda que esse vício seja grave, oculto e preexistente à celebração do contrato[11]. Por outras palavras e de acordo com uma Sentença da Sala Civil do Supremo Tribunal Espanhol comummente citada, são quatro os princípios que enformam a noção de defeito consagrada neste preceito, a saber “(…) a) que el vicio consiste en una anomalía por la cual se distingue la cosa que lo padece de las de su misma especie y calidad; b) que es preciso que el vicio sea anterior a la venta aunque su desarrollo sea posterior; c) que es preciso que el vicio no fuera conocido por el adquirente, ni conoscible por la simple contemplación de la cosa teniendo en cuenta la preparación técnica del sujeto al efecto; d) que ha de ser de tal naturaleza que haga la cosa impropia para el uso a la que la destina o disminuya de tal modo ese uso, que de haberlo conocido el comprador no lo hubiera adquirido o habría dado menosprecio, es decir, que no se trata de que sea inútil para todo uso, sino para aquél que motivo la adquisición, si nada se hubiere pactado sobre el destino, debiendo entenderse que la cosa fue comprada para aplicarla al uso mas conforme con su naturaleza y mas en armonía con la actividad a que se dedicaba el adquirente (…)”[12]. Da combinação desses pressupostos, emerge a responsabilidade – independente de culpa - do vendedor perante o comprador (artigo 1485.º do CCE). Estando-se em presença de defeitos ocultos que tornem a coisa vendida imprópria para o uso a que se destina ou que diminuem esse uso de tal forma que o adquirente não a compraria ou apenas a compraria por um preço menor, o artigo 1486.º do mesmo diploma preceitua que “(…) el comprador podrá optar entre desistir del contrato, abonándosele los gastos que pagó, o rebajar una cantidad proporcional del precio, a juicio de peritos.”. Prevê este preceito as acções edílicas tradicionais, quais sejam a redibição (actio redhibitoria) – que, no direito espanhol, é identificada com a “desistência” do contrato e a restituição do preço, ou seja a resolução[13] - e a acção estimatória (actio quanti minoris), isto é, a redução proporcional do preço. Não se antevê que seja particularmente dificíl a recondução das pretensões de resolução do contrato e de redução do preço formuladas pela recorrente ao enunciado do preceito contido no artigo 1486.º do CCE. Atentemos, por isso, no prazo que a lei assinala para o seu exercício, já que esse é âmago da presente questão solvenda. Prescreve o artigo 1490.º do mesmo diploma que “Las acciones que emanan de lo dispuesto en los cinco artículos precedentes se extinguirán a los seis meses, contados desde la entrega de la cosa vendida.”. Consagra-se, neste preceito, um prazo de 6 meses para o exercício, em juízo, dos direitos contidos, ademais, no artigo 1486.º do CCE, cujo início coincide com a entrega da coisa vendida. Consideraram as instâncias que o prazo em causa se devia considerar como sendo um prazo prescricional, tendo por referência o que consta do 2.º parágrafo do artigo 1930.º - onde se define a prescrição extintiva, para a diferenciar da prescrição aquisitiva (a usucapião) a que alude o 1.º parágrafo do mesmo artigo -, do artigo 1961.º, 1961.º e do artigo 1973.º, todos do CCE[14]. A jurisprudência uniforme da Sala Civil do Supremo Tribunal de Justiça Espanhol perfilha, diferentemente, o entendimento de que aquele preceito do CCE prevê um prazo de caducidade[15] [16]. Perante esta discrepância, que devemos decidir. Mesmo que considere que o juiz do foro não está adstrito a uma aplicação “fotográfica”, isto é, acrítica do direito estrangeiro, temos como seguro que aquele há de sempre ter em conta a jurisprudência dominante, maxime quando existe jurisprudência firmada sobre o sentido de uma determinada norma. Como Ferrer Correia certeiramente afirma[17] “(…) se o sentido da norma interpretanda estiver fixado por uma jurisprudência uniforme e constante, cumprir-Ihe-á não se apartar dessa directiva: não lhe pertence corrigir ou melhorar o que a seu juízo for errado ou imperfeito. (…)”. Não obstante a premência desta razão, sempre se dirá, em acrescento que a interpretação da letra do artigo 1490.º do CCE à luz do preceituado no n.º 1 do artigo 3.º do mesmo diploma – e, mormente, do segmento em que se prevê que as acções se extinguem no prazo de seis meses – inculca a ideia de que se trata de um prazo de caducidade[18]. Tal conclusão assenta no teor literal desse segmento normativo – repare-se que, ao invés, v.g., do preceituado no artigo 1472.º do CCE, não se refere que as acções prescrevem – e, sobretudo, na constatação de que essa extinção opera por mero efeito da lei, não estando, pois, dependente da arguição por parte do interessado, como sucederia se de um prazo de prescrição se tratasse. Por seu turno e ao contrário do que parece decorrer do acórdão recorrido, o instituto da prescrição no domínio do direito espanhol não esgota os efeitos do decurso do tempo sobre as acções (vg. o que se dispõe nos artigos 140.º, 141.º e 1434.º, todos do mesmo diploma). Sopesando todos estes motivos, deve reconhecer-se razão à recorrente ao sustentar que, no citado artigo 1490.º do CCE, se consagra um prazo de caducidade e que tal entendimento deve ser - embora não acriticamente, acrescentamos nós - acatado pelos tribunais portugueses (o que equivale por dizer que se acolhem, com ressalva quanto a alguns dos argumentos aí empregues, as conclusões 4.ª a 8.ª e 15.ª a 21.ª da minuta recursória). À semelhança do que pacificamente podemos afirmar perante o direito português, também em Espanha se considera que o decurso de um prazo de caducidade implica a impossibilidade de ser exercitado o direito a ele sujeito, o que determina a sua extinção automática. Mais se pode asseverar que, em face da ordem jurídica espanhola, o decurso desse prazo é insusceptível de ser interrompido ou suspenso[19]. Regressando ao caso vertente, temos que a entrega da grua em causa à autora ocorreu a 28 de Janeiro de 2010 (cfr. ponto n.º 23 do elenco factual) e que a petição inicial com que se iniciaram os presentes autos deu entrada em juízo a 1 de Setembro de 2010 (cfr. fls. 37). Sendo esta última data a da propositura da acção (n.º 1 do artigo 150.º e n.º 1 do artigo 267.º, ambos do Código de Processo Civil, na redacção à data vigente), haveria que concluir que, nessa data, já se haviam extinguido, por decurso do prazo de caducidade a que alude o artigo 1490.º do CCE, os direitos outorgados à recorrida pelo artigo 1486.º do mesmo diploma e que, como atrás dissemos, se reconduzem às pretensões edílicas tradicionais. É neste sentido que conclui a recorrente. Todavia, não podemos ter como acertada a conclusão referida no antecedente parágrafo. Vejamos. Relembrando o que expusemos acerca da relevância da consideração da jurisprudência na interpretação do direito estrangeiro, há a salientar o seguinte. Por se reconhecer que o prazo a que nos vimos reportando é exíguo e porque os direitos conferidos pelo artigo 1486.º do CCE ao comprador podem não se ajustar às pretensões de um adquirente (repare-se que o mesmo preceito não contempla vg. a condenação na reparação do bem), a jurisprudência da Sala Civil do Supremo Tribunal do país vizinho tem vindo a sedimentar a doutrina do “aliud pro alio” (literalmente, uma coisa por outra)[20]. Em brevíssima síntese, tem-se entendido que, quando os vícios que afectam a coisa atinjam uma gravidade tal que a tornem totalmente inábil para o fim a que se destina, já não estamos em presença de um mero vício redibitório oculto (e, como tal, contemplado no artigo 1484.º do CCE) mas antes perante a entrega de uma coisa distinta daquela que foi contratada, i.e. de incumprimento da obrigação de entrega que tipifica o contrato de compra e venda (cfr. a definição genérica constante do artigo 1445.º e o já citado artigo 1461.º, ambos daquele diploma)[21] [22], o que legitima a resolução do mesmo, ao abrigo do disposto nos artigos 1100.º e 1124.º, ambos do mesmo diploma[23]. E, no que aqui releva, tem sido entendido que a acção destinada a efectivar essa resolução não está sujeita ao prazo de caducidade a que atrás aludimos mas antes ao prazo de prescrição de 15 anos a que se refere a parte final do artigo 1964.º daquele diploma[24], cujo cômputo se inicia na data em que esse direito puder ser exercido (artigo 1969.º do mesmo diploma). Na esteira do que expusemos, crê-se ser patente que estes ensinamentos não podem ser desconsiderados para solucionar a questão, sendo certo que a recorrente – que evidencia ter conhecimento profundo da jurisprudência dos tribunais superiores espanhóis –, não poderá, com propriedade, argumentar que a sua reversão para o caso vertente contende com o princípio da confiança (cfr. o que se escreveu na conclusão 21.ª das alegações de recurso, a respeito da interpretação adoptada pela instância recorrida). Assim sendo e retomando o caso de que nos ocupamos, há a considerar que a recorrida exerce a actividade de transportes rodoviários de mercadorias, tendo, para esse efeito e, mais precisamente, “(…) para prestar serviços no seu terminal (…)” adquirido à recorrente uma máquina usada da marca “CC”, modelo “HH …”, produzida pela empresa italiana “DD (…) S.p.A.” pelo preço de € 125.000,00 (pontos n.ºs 1, 5, 9, 15 e 16 e 20 da matéria de facto). Como resulta do texto do contrato, transcrito no ponto n.º 15 da facticidade provada,[25] e do seu ponto n.º 49 a autora necessitava da grua para o exercício da sua actividade. Sucede que, imediatamente após a sua entrega, foi constatado que a dita grua padecia de problemas no funcionamento da transmissão, dos hidráulicos e das luzes de sinalização e funções, os quais foram reconhecidos pela recorrente (pontos n.ºs 23, 24, 25, 27 e 29 daquele elenco factual). Em virtude da subsistência de tais problemas, a recorrida ficou privada da utilização de uma máquina de que necessita para o exercício da sua actividade, tendo que proceder ao seu parqueamento (ponto n.º 48 do referido elenco), sendo certo que, atento o real estado de funcionamento da máquina, aquela não teria ajustado a venda, pelo menos pelo referido valor (ponto n.º 48 do mencionado elenco). Valorando estes factos provados, podemos, com propriedade, concluir que, em decorrência dos ditos problemas, a grua em causa se revelou absolutamente inidónea para o fim para o qual a recorrida a adquiriu (o emprego na actividade a que esta se dedica), não se podendo, pois, considerar satisfeitas as suas pretensões com a celebração de tal negócio. Daí que, em face dos ensinamentos da jurisprudência dos tribunais espanhóis referidos, o presente caso era perfeitamente integrável na doutrina “aliud pró alio” por aqueles professada. Deste modo, ultrapassando os problemas detectados na grua vendida pela recorrente o limiar dos vícios redibitórios tal como ele é concebido na jurisprudência espanhola (cfr. artigo 1484.º do CCE), evidencia-se que a pretensão resolutiva formulada pela recorrida (que mereceu acolhimento nas instâncias e cujo exercício a recorrente censura no presente recurso) não se funda no disposto no artigo 1486.º daquele diploma mas antes nas regras gerais sobre incumprimento, não estando, portanto, sujeita ao prazo a que alude o artigo 1490.º do mesmo diploma. Por outras palavras, temos que a gravidade dos vícios em causa permite suplantar a aplicabilidade ao caso do prazo de caducidade a que antes aludimos. Por sua vez, não tendo ainda decorrido 15 anos sobre o dia 29 de Janeiro de 2010 – data em que, teoricamente, a recorrida estaria em condições de resolver o contrato por ocorrência dos ditos problemas técnicos -, é manifesto que não se verificou a extinção, por prescrição (cfr. artigo 1964.º do CCE), do correspondente direito.
3. Da conformidade da resolução operada pela recorrente com os ditames da boa fé: Como atrás demos nota, o n.º 2 do artigo 12.º do Regulamento n.º 593/2008 já citado estatui que, no que toca às “(…) medidas que o credor deve tomar no caso de cumprimento defeituoso (…)” se deve atender à lei do país onde a obrigação é cumprida. A sobredita disposição deve ser interpretada no sentido de que essa lei deve ser tida em consideração e não necessariamente aplicada[26]. Como também já dissemos, afigura-se-nos ser evidente, quer perante a lei espanhola, quer perante a lei portuguesa, que estamos em face de um caso de cumprimento defeituoso. Tendo em conta que a obrigação de entrega da coisa, cuja propriedade se transmitiu por intermédio do contrato de compra e venda ajustado entre as partes foi cumprida em …, Ovar, ou seja, em território português (pontos n.ºs 17, 21, 23 e 24 da facticidade provada), será primordialmente à luz do direito português que deve ser apreciada a questão em apreço. Temos assim que nem todos os aspectos em que se desdobra o presente recurso devem ser apreciados à luz do direito espanhol.
Aqui chegados, cumpre fazer uma brevíssima aproximação ao conceito de defeito e aos modos de reacção ao cumprimento defeituoso. Neste contexto, a sede legal da questão é o artigo 913º do Código Civil, o qual dispõe da seguinte forma: “1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes. 2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.”. Como se extrai do n.º 1 do citado preceito, a lei civil portuguesa coloca o assento tónico na falta de idoneidade da coisa para o fim a que se destina. Assim, tem-se por defeituosas as coisas que padeçam de vícios materiais (estruturais, intrínsecos e funcionais da coisa) que a desvalorizem ou que impeçam a realização do seu fim ou que careçam das qualidades que lhe foram atribuídas pelo vendedor ou que se revelem necessárias para o fim a que se destinam. O fim relevante tanto pode ser revelado pelo contrato (a concepção subjectiva de defeito) ou corresponder à função normal das coisas da mesma categoria (noção objectiva de defeito) se esse fim não resultar do contrato[27]. Temos assim que a noção de defeito comporta uma dimensão objectiva – os vícios correspondem a desvios à qualidade normal – e uma dimensão subjectiva - as desconformidades descortinam-se no confronto com o fim acordado - que se confundem entre si. É que a determinação do referente – a qualidade ou o fim normal – faz-se por apelo aos dados que emirjam da interpretação do contrato[28]. A tutela do comprador reconhece-lhe o direito à anulação do contrato – com base em erro ou dolo (artigo 905.º ex vi artigo 913.º, ambos do Código Civil) -, à redução do preço (artigo 911.º ex vi artigo 913.º, ambos daquele diploma) e à reparação ou substituição da coisa (primeira parte do artigo 914.º do mesmo diploma), ainda que o vendedor não seja o produtor da coisa. Trata-se, no fundo, de exigir o cumprimento perfeito (isento de vícios) da prestação a que o credor tem jus, o que constitui o seu interesse primário. O dualismo das reacções previstas no Código Civil português assenta na consideração de que os vícios da coisa já existentes no momento da formação do contrato configuram um erro sobre as qualidades do objecto - o qual é sancionável pela anulabilidade -, ao passo que os vícios que se revelam posteriormente a esse momento e persistem na fase dinâmica daquele, porque perturbam a relação sinalagmática, facultam ao comprador o restabelecimento do equilíbrio prestacional colocado em crise pela projecção daqueles no programa prestacional querido pelas partes mediante a redução do preço, a reparação ou a substituição da coisa[29]. À semelhança do que sucede com qualquer outro direito, também o exercício de cada uma destas faculdades está sujeito ao confronto com os ditames da boa fé, isto é, as exigências de lealdade, honestidade e correcção próprias de pessoas de bem que exprimem os valores fundamentais do sistema (n.º 2 do artigo 762º do Código Civil), podendo, eventualmente, ser convocado o instituto do abuso de direito (artigo 334.º do mesmo diploma) e as regras gerais do incumprimento (artigos 790.º e ss. daquele diploma) para solucionar questões, como sejam, a excessiva onerosidade da reparação ou a insignificância do defeito que funda a resolução[30]. Sublinhe-se ainda que o vendedor está primeiramente adstrito à eliminação dos defeitos ou à substituição da prestação, podendo, depois, ser exigida a redução do preço ou a resolução do contrato, caso se frustrem aquelas pretensões[31]. Neste conspecto, cumpre relembrar que, perante uma situação de mora do vendedor na reparação que deve efectuar, o mesmo sujeita-se a ressarcir os danos moratórios (n.º 1 do artigo 804º do Código Civil) e, no que mais nos interessa, à conversão da mora em incumprimento definitivo (artigo 808º do mesmo diploma) que legitima a resolução. E é neste plano que se situa a questão em análise. Na verdade, só o incumprimento definitivo autoriza o credor a resolver o contrato (artigos 432º a 436º e n.º 1 do artigo 808º, todos do Código Civil) e a demandar ao devedor a restituição do que houver prestado (artigo 433º do Código Civil). Em tese geral, a resolução é a destruição da relação contratual operada por acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado (assim Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 7ª Edição, vol. II, Almedina pág. 275). Valorando os problemas de funcionamento a que alude o ponto n.º 27 do elenco factual e a medida em que, determinantemente, afectam a utilidade que a recorrida pretendia obter com o seu emprego no referido terminal e, mais abrangentemente, na actividade comercial a que se dedica (cfr. ponto n.º 49 do mesmo elenco), crê-se ser indisputada a conclusão de que a grua vendida pela recorrente deve, em face do que expusemos, ser tida como um bem defeituoso. Os ditos problemas de funcionamento foram comunicados pela recorrida à recorrente no dia 29 de Janeiro de 2010 e no dia 2 de Fevereiro do mesmo (cfr. ponto n.º 28 do elenco factual), tendo-lhe sido exigida a sua resolução mediante a intervenção de um técnico da empresa fabricante (cfr. o conteúdo do e-mail parcialmente reproduzido no ponto n.º 31 do mesmo elenco). Como vimos, a recorrente não pôs em questão a sua existência (cfr. pontos n.ºs 29, 30, 34, 36, 37, 40 e 47 da facticidade provada), o que não deixa de ser contrastante com a sua atitude anterior, visto ter anunciado antes do negócio ajustado com a recorrida que a dita grua se encontrava operacional a cem por cento, indicação que, aliás, se revelou importante para que a recorrente a adquirisse (cfr. pontos n.ºs 12 e 16 dos factos provados). Sucede que, apesar de, em 1 de Fevereiro de 2010, a recorrente ter informado a recorrida de que seria enviado um técnico para ver a máquina (cfr. ponto n.º 30 daquele elenco), a mesma, nos dias 11, 22 e 25 desse mês, solicitou informações adicionais sobre as avarias registadas (cfr. pontos n.ºs 32, 34 e 37 do aludido elenco factual). É certo que a recorrente não prestou à recorrida as informações por ela solicitadas (cfr. pontos n.º 33, 35 e 38 do mesmo elenco). Repare-se, porém, que, de premeio, mais, concretamente no dia 23 do mesmo mês, a recorrente deu nota da sua exasperação com o arrastamento da situação e referiu que “(…) não sabemos explicar melhor o que se passa (…)”, afirmando, inclusive, que iria recorrer a terceiro para solucionar as avarias e apresentar a conta à recorrente (cfr. teor do e-mail parcialmente transcrito no facto n.º 35). É, por isso, de estranhar que a recorrente insistisse na prestação de outras informações quando era patente que a recorrida não estava em condições de as fornecer. Mas, sobretudo, o certo é que não emerge dos factos provados a relevância dessas informações para a concretização da reparação a que a recorrida estava adstrita e com a qual se comprometera. Daí que não se possa considerar que a dita atitude omissiva daquela evidencie falta de colaboração relevante para a valoração da resolução em apreço. Prosseguindo na análise dos factos, temos que a recorrente, em 1 de Março de 2010, fez deslocar às instalações da recorrida um técnico, o qual constatou a necessidade de abertura e desmontagem da transmissão para resolver o problema localizado nesse componente mecânico (cfr. ponto n.º 40 do elenco factual). No dia 22 desse mês compareceu nas instalações da recorrida um técnico da recorrente para recolher o dito componente, tendo, nessa ocasião, sido impedido de o fazer por esta última (cfr. pontos n.ºs 41 e 42 do mesmo elenco). Nessa sequência e após um exame que efectuou a recorrida veio a comunicar à recorrente a intenção de resolver o contrato em causa (cfr. pontos n.ºs 44 e 46 do mesmo elenco). Apreciando estes factos, sobressai, desde logo, o lapso de tempo decorrido entre o dia 1 de Fevereiro de 2010 – data em que, pela primeira vez, a recorrente anunciou o propósito de reparar alguns dos problemas detectados - e o dia 22 de Março de 2010, data em que, pela primeira vez, praticou um acto que se deve ter como preparatório da reparação de um desses problemas (não estamos, pois, perante a execução da reparação em si mesma, como sustenta a recorrente). É também de referir que, como transparece da factualidade provada (cfr. parte final do ponto n.º 48), ainda permaneciam por resolver, nessa data, os defeitos de funcionamento dos hidráulicos e das luzes a que atrás aludimos. Por outro lado, há a observar que a recorrente não alegou nem demonstrou qualquer facto que, de algum modo, justificasse plausivelmente a delonga que mediou entre o momento em que se constatou a necessidade de abertura e desmontagem da transmissão e o momento em que fez comparecer um técnico para a recolher, sendo certo que a comunicação telemática parcialmente transcrita no ponto n.º 40 do elenco factual nada indica a esse respeito. Desse modo, apesar de a reparação se apresentar como possível, é patente que a recorrente, a quem foi exigida essa prestação de facere (cfr. factos n.º 48 e n.º 31), se achava em mora quanto à sua execução (cfr. n.º 2 do artigo 804.º e n.º 1 do artigo 805.º, ambos do Código Civil). Ora, a distinção entre o incumprimento definitivo e a mora assenta na manutenção do interesse do credor na realização da prestação, pressupondo-se que esta é ainda possível (n.º 1 do artigo 808º do Código Civil). É, porém, possível que a mora se transmute em incumprimento definitivo. Para tanto, cumpre ter presente o que se dispõe o artigo 808º do Código Civil, onde, sob a epígrafe, “Perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento” se lê: “1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação. 2. A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente.”. Como deriva deste preceito, para que a mora no cumprimento da prestação possa redundar numa situação de incumprimento definitivo, é imperioso que se verifique a perda de interesse do credor na execução da prestação (sendo esta apreciada objectivamente – n.ºs 1 e 2 do artigo 808º do Código Civil) ou, por outro lado, que o credor fixe um prazo suplementar razoável para o cumprimento da prestação e o devedor, ainda assim, a não realize. Não tendo a recorrida interpelado admonitoriamente a recorrente para realizar a necessária reparação, abordemos a perda de interesse na prestação. Por via de regra, a prestação é primordialmente estabelecida no interesse do credor, pelo que o desinteresse deste implica que o devedor já não a possa realizar. Todavia, a perda de interesse que desencadeia a resolução do contrato tem de ser demonstrada (e não somente alegada) e, sobretudo, há-de ser objectivamente evidenciada, i.e. não pode ser meramente subjectiva[32]. Essa apreciação objectiva visa evitar que o devedor fique sujeito ao capricho do credor (não basta um “não quero”) ou que venha a ser confrontado com a invocação de razões banais ou infundadas para justificar a destruição do contrato[33]. Como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Março de 2005[34] essa objectividade “(…) é verificável se fundada em causa objectiva, razoavelmente compreensível e aceitável ao juízo comum de pessoas normais em actuação negocial, de boa fé, de lisura e de honestidade no trato (…)”. A perda (e não a simples diminuição), deve, pois, ser aferida tendo em vista a “(…) utilidade que a prestação teria para o credor, atendendo a elementos susceptíveis de serem valorados pelo comum das pessoas (e necessariamente à especificidade dos interesses em causa no concreto negócio jurídico onde tal apreciação se suscite), devendo mostrar-se justificada segundo o critério da razoabilidade própria do comum das pessoas (…)”[35]. Contudo, convém não olvidar o interesse credíticio, o qual deve nortear a avaliação da gravidade ou relevo do inadimplemento gerador da resolução. Como lucidamente escrevia BAPTISTA MACHADO[36] “(…) O que essa objectividade quer significar é, antes, que a importância do interesse afectado pelo incumprimento, aferida embora em função do sujeito, há-de ser apreciada objectivamente, com base em elementos susceptíveis de serem valorados por qualquer outra pessoa (designadamente pelo próprio devedor ou pelo juiz), e não segundo o juízo valorativo arbitrário do próprio credor. Isto fundamentalmente porque o direito de resolução legal tem a sua fonte imediata na lei. (…) sabendo-se que, “na maioria das vezes, o desaparecimento do interesse do credor na manutenção do contrato tem a ver com as finalidades de uso ou de troca que o credor visava conseguir com a prestação”. Revertendo estas considerações para o caso vertente, há a sopesar, na avaliação da conduta da recorrida, o seguinte. O anúncio, feito pela recorrida, de que se socorrerá de terceiros para solucionar os problemas detectados na grua a expensas da recorrente e a posterior inviabilização da recolha da transmissão constituem sinais claros da perda de interesse, por parte daquela, na prestação debitória a cargo da recorrente. Daí que o facto vertido no ponto n.º 42 do elenco factual não represente, como a recorrente sustenta, uma falta de colaboração do credor na execução de uma prestação que ainda se deve ter como possível mas antes a manifestação do desinteresse na mesma, o qual veio a desembocar na resolução posteriormente operada. Avaliemos se essa perda de interesse se deve ter como razoavelmente fundada. Para além da verificação de uma situação de mora - que, ao tempo da resolução, perdurava já há cerca de 2 meses -, há a ter em conta o valor elevado pelo qual a grua foi adquirida (€ 125.000,00), bem como a circunstância de a recorrida estar privada da sua projectada utilização na actividade a que se dedica em virtude da falta de reparação dos defeitos e de se ver forçada a parqueá-la (cfr. facto n.º 49). Avulta ainda que a recorrida jamais teria efectuado o negócio por aquele valor se conhecesse o estado de funcionamento da grua (cfr. facto n.º 48), o que traduz bem a importância que a prestação de facto a cargo da recorrente representava para a recorrente. Há também a ter em consideração a inusitada persistência na solicitação de informações adicionais já referidas. Valorando conjugadamente todos estes dados factuais à luz dos ensinamentos de que demos nota e num prisma estritamente objectivo, temos que, por um lado, a perda de interesse na prestação a cargo da recorrente evidenciada pela recorrida assenta na mora em que a contraparte se achava incursa e, por outro, resulta de uma causa objectiva – a privação do uso a que o bem vendido se destinava em virtude da inaceitável subsistência dos defeitos e que a recorrente assegurara estar totalmente operacional. Por outras palavras, a mudança de atitude da recorrida, consubstanciada na recusa da prestação da recorrente, é, face ao juízo comum da boa fé negocial, objectivamente fundada. Na verdade, como bem se reflectiu no acórdão recorrido: “Evidentemente que, face aos valores envolvidos na aquisição da máquina, qualquer comprador colocado na posição da recorrida que, passados quase dois meses, ainda não tivesse a máquina com aptidão para ser utilizada para aquilo que a havia destinado, com a agravante de que só 08.03.2010 a Ré recorrente se dispôs a recolher a transmissão, teria optado por termo ao contrato, tanto mais que nessa decisão sempre teria de estar latente a imprevisibilidade do tempo em que a máquina continuaria paralisada para reparação, com os inerentes prejuízos que isso continuava a acarretar.” Daí que, sendo embora a prestação da recorrente possível, a mesma deixara de apresentar, numa perspectiva objectiva, qualquer utilidade para a recorrida. Ora, como vimos, a subsistência do interesse do credor é o critério decisivo para aferir da existência de incumprimento definitivo. Evidenciando o quadro factual supra destacado a perda de interesse na prestação, a mora em que a recorrente incorreu converteu-se em incumprimento definitivo. O facto vertido no ponto n.º 42, além de evidenciar, de sobremaneira, essa perda, constitui uma manifestação clara perante a recorrente de que o interesse na sua prestação deixou de existir, assim se respeitando a exigência, decorrente da boa fé contratual, de que a perca do interesse deve ser imediatamente comunicada ao devedor[37]. Desse modo, há que considerar a subsequente resolução contratual justificada e legítima, em face do disposto nos artigos 432º a 436º e n.º 1 do artigo 808º, todos do Código Civil, donde se conclui que a recorrida respeitou a sequência lógica a que antes aludimos e a que a recorrente também faz referência. E não se antevê que o comportamento da recorrida seja contrário aos ditames da boa fé, entendidos por referência às concepções ético-jurídicas prevalentes na nossa sociedade, ou evidencie qualquer abuso de direito, na acepção do artigo 334.º do Código Civil. Na verdade, os factos valorados como faltas de colaboração e que são destacados pela recorrente não podem ser analisados fora do contexto em que ocorreram e, sobretudo, olvidando a inexplicável mora em que esta já então se achava incursa. E mesmo que somente se tomassem em consideração as pertinentes disposições do CCE a solução não seria diferente. Como vimos, a entrega da grua com os defeitos graves de que a mesma padecia consubstanciava um incumprimento contratual da obrigação de entrega decorrente da compra e venda. Encontrando-se a recorrente em mora quanto ao cumprimento dessa obrigação em termos perfeitos (cfr. primeira parte do artigo 1461.º e n.º 1 do artigo 1100.º, ambos do CCE), ou seja, em termos que satisfizessem o interesse da recorrida e sendo esta prestação sinalagmática da prestação pecuniária por esta antes realizada (cfr. a definição do contrato de compra e venda constante do artigo 1445.º do mesmo diploma), o segundo parágrafo do artigo 1124.º daquele diploma faculta à comprador a opção entre a resolução do contrato e o cumprimento. Assim, pese embora a reparação fosse possível, nada impediria a recorrida de resolver o contrato, tanto mais que, face ao contexto do autos, é por demais evidente a desnecessidade/impossibilidade de estabelecer qualquer prazo (terceiro parágrafo daquele mesmo preceito) para que a recorrente cumprisse a prestação a que estava adstrita. Dir-se-ia ainda que, tendo em vista o dito quadro factual, de onde ressalta o contraste entre a operacionalidade da grua assegurada pela recorrente e a mora na efectivação da reparação das avarias graves que foram detectadas, dele não sobressaindo, ao invés, a apregoada falta de colaboração da recorrida, não se vislumbra que o exercício do direito à resolução contratual contenda com as exigências de boa fé que devem nortear o exercício de qualquer direito (n.º 1 do artigo 7.º do CCE). Não podem, por isso, ser acolhidas as conclusões 10.ª a 14.ª, nem se têm por violadas as normas jurídicas enunciadas na conclusão 33.ª da alegação recursória. Em síntese conclui-se:
Improcede, assim, o recurso. Porque vencida, as custas ficam a cargo da recorrente (n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil).
III. Decisão:
Pelo exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso de revista excepcional e, consequentemente, em manter o acórdão recorrido, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2015
Fernanda Isabel Pereira (Relatora) Pires da Rosa Maria dos Prazeres Beleza
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