Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A1564
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
DIREITO DE SUPERFÍCIE
PENHORA
HIPOTECA
REGISTO PREDIAL
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
Nº do Documento: SJ200711060015646
Data do Acordão: 11/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - O direito de superfície, sendo além do mais direito de construir ou de fazer plantações em terreno alheio, existe antes de concretizadas as construções ou as plantações, período de tempo em que incide apenas sobre o espaço aéreo ou o subsolo, embora incida posteriormente também sobre as aludidas construções ou plantações, como de forma pelo menos implícita resulta do disposto nos arts. 1528.º e 1538.º, n.º 1, do CC.
II - Destes normativos, conjugados ainda com os arts. 1534.º, 1541.º e 688.º, n.º 1, als. a) e c), do CC, decorre que o direito do superficiário sobre a coisa implantada é uma verdadeira propriedade, não um simples direito real de gozo de coisa alheia (pertencente ao proprietário do solo), semelhante por exemplo ao usufruto, mas um direito de domínio sobre coisa própria, que incide em consequência também sobre o espaço aéreo e o subsolo por ela ocupados.
III - O direito de superfície e o direito de propriedade do proprietário do solo constituem realidades jurídicas distintas, susceptíveis de serem objecto de relações jurídicas independentes, com a possibilidade de constituição e subsistência separada de direitos reais de garantia, como a penhora ou a hipoteca, só sobre o prédio constituído pelo espaço aéreo e pelo subsolo integrantes do direito de superfície, ou só sobre o prédio constituído pelo solo respectivo.
IV - Tendo sido penhorados, à ordem da presente execução, os prédios de cujo direito de superfície o executado era titular, vindo posteriormente este último a adquirir o direito de propriedade sobre o solo respectivo, tal determinou a extinção daqueles direitos de superfície (art. 1536.º, n.º 1, al. d), do CC), mas as penhoras que sobre eles recaíam não se extinguiram por via de tal fusão, continuando a onerá-los como se não tivesse havido extinção, conforme resulta do disposto no art. 1541.º do CC, ficção jurídica de inexistência de extinção referida apenas aos ónus anteriormente existentes sobre esses direitos.
V - Vindo depois a ser constituídas novas penhoras e hipotecas sobre os prédios, em propriedade plena, como tal inscritas no registo predial, e verificando-se a venda judicial dos direitos de superfície na presente execução, não há dúvida de que a ora agravante, que adquiriu tais direitos na venda judicial, tinha o direito de ver cancelado o registo das penhoras efectuadas nos presentes autos, caducadas, que incidiam exclusivamente sobre tais direitos (arts. 888.º do CPC e 824.º, n.º 2, do CC).
VI - Mas tendo sido, posteriormente à aquisição pelo executado da propriedade do solo, constituídas penhoras e hipotecas incidentes sobre os prédios, no seu conjunto integrado pelo solo e pelo espaço aéreo e subsolo, estas ficaram automaticamente limitadas, no que se refere ao seu objecto, por força da compressão resultante do renascimento dos direitos de superfície por via da posterior adjudicação à ora agravante, passando a não abranger o objecto dos direitos de superfície entretanto renascidos em consequência da venda judicial.
VII - Subsistem assim duas realidades: a dos direitos de superfície adquiridos pela ora agravante, aquisição esta oportunamente registada, e presentemente sem qualquer ónus, visto terem caducado e sido canceladas as penhoras (dos presentes autos) que sobre esses direitos incidiam, e a dos direitos de propriedade do executado, onerados com as penhoras e hipotecas acima referidas.
VIII - Não incidindo estes últimos ónus sobre os direitos de superfície, nem se encontrando eles registados com tal objecto, não se pode dizer que existiam como ónus sobre tais direitos, pelo que não caducaram com a venda destes, - pois para caducarem nos termos do art. 824.º, n.º 2, do CC, teriam de recair sobre tais direitos -, nem podem ser cancelados, pois só o poderiam ser, face ao disposto no art. 888.º do CPC, se estivessem registados como recaindo sobre os direitos de superfície como realidade jurídica autónoma.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
No processo executivo que, com base em petição inicial entrada em Juízo em 18/9/96, corre termos sob o n.º 834/1996 da 2ª Secção da 8ª Vara Cível do Porto, em que são, exequente, AA, e executado, o Clube Desportivo BB, foram penhorados, entre outros, o direito de superfície sobre o prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 3692-Paranhos (inscrição F1.............. – apresentação 17, de 8/1/97), e o direito de superfície sobre o prédio descrito na mesma Conservatória sob o n.º 3691-Paranhos (inscrição F1................. – apresentação 31, de 10/11/94), direitos esses que aquele executado adquirira por cedência da Câmara Municipal do Porto.
Ainda por cedência dessa entidade, o dito executado adquiriu a propriedade sobre aqueles mesmos prédios, posteriormente às aludidas penhoras, conforme inscrição G................... – apresentação 64, de 18/10/00, tendo tais prédios, depois dessa data, sido objecto de diversas penhoras e hipotecas, não sem que os mencionados direitos de superfície que haviam sido penhorados tivessem sido objecto de venda judicial à sociedade FGVS – Lda.
Esta registou a seu favor a aquisição desses direitos, por via da inscrição G................ – apresentação 29, de 21/7/06, sendo que, por despacho de 5/6/06, tais direitos lhe haviam sido adjudicados, no mesmo despacho se ordenando o cancelamento “de todas as inscrições que sobre tais imóveis impendem no registo e que caducam em consequência da venda”.
Tendo aquela FGVS requerido na Conservatória o cancelamento dos ónus existentes sobre os ditos prédios à data do citado despacho, tal requerimento foi-lhe indeferido na mesma Conservatória por despacho de 4/8/06, por falta de especificação de quais os registos a cancelar e porque, relativamente àqueles prédios, apenas fôra transmitido o direito de superfície sobre eles, sendo que os encargos que recaíam sobre os mesmos, com excepção de uma penhora, incidiam sobre a propriedade plena.
Requereu então a mesma FGVS, na execução, em 21/8/06, que o despacho de 5/6/06 fosse esclarecido ou corrigido por forma a que dele ficasse a constar a ordem de cancelamento especificado dos ónus que incidiam sobre os bens adjudicados, o que o Ex.mo Juiz fez esclarecendo que os direitos reais que caducavam eram, quanto ao prédio n.º 3692, a penhora F..............., apresentação 02 de 12/6/00, e, quanto ao prédio n.º ........, a penhora F1............., apresentação 29 de 14/3/97, acrescentando que as restantes inscrições existentes no registo e respeitantes a esses imóveis não incidiam “sobre o direito de superfície, mas sim sobre a propriedade de raiz ou plena”, pelo que não caducavam com a venda do direito de superfície sobre os mesmos.
Deste despacho, datado de 5/9/06, após indeferido um requerimento de aclaração apresentado pela dita requerente, agravou a mesma FGVS, quanto à parte do mesmo que não ordenara o cancelamento parcial (no que respeitava aos direitos de superfície vendidos) das inscrições das restantes penhoras e das hipotecas que incidiam sobre os ditos prédios, tendo esse agravo sido objecto de acórdão da Relação que lhe negou provimento.
É desse acórdão que vem interposto o presente agravo, de novo pela FGVS, que, em alegações, formulou as seguintes
Conclusões:
1ª - A agravante adquiriu, em venda judicial, na presente execução, os direitos de superfície sobre dois terrenos situados na freguesia de Paranhos, no Porto, ambos descritos na 1ª Conservatória do Registo Predial do Porto, um com o n.º ..... e o outro com o n.º ........, na sequência de penhoras sobre esses direitos, registadas em 14/3/97 e 12/6/00;
2ª - Posteriormente a essas penhoras, o executado adquiriu a propriedade do solo desses dois terrenos, e, depois, sobre a propriedade plena dos mesmos foram constituídas as seguintes penhoras e hipotecas:
Sobre o prédio descrito sob o n.º 3692:
Inscrição Apresentação Encargo
F............. Ap. 02 de 12/6/00 Penhora
C............ Ap. 13 de 12/4/01 Hipoteca voluntária;
C............ Ap. 47 de 4/10/01 Hipoteca voluntária;
F..............
Ap. 50 de 7/2/02 Penhora;
C............ Ap. 38 de 10/10/02 Hipoteca voluntária;
C............. Ap. 49 de 10/9/03 Hipoteca voluntária;
F2............ Ap. 24 de 9/2/04 Penhora;
C............. Ap. 17 de 16/6/04 Hipoteca voluntária;
F.............. Ap. 43 de 24/5/05 Penhora;
F.............. Ap. 30 de 8/8/05 Penhora;
F.............. Ap. 07 de 11/1/06 Penhora;
F............... Ap. 06 de 17/1/06 Penhora;
F............... Ap. 51 de 18/1/06 Penhora;
F2............. Ap. 01 de 29/3/06 Penhora;
F2............. Ap. 39 de 12/4/06 Penhora;
F2.............. Ap. 40 de 12/4/06 Penhora;
F2.............. Ap. 43 de 12/5/06 Penhora;
F2.............. Ap. 42 de 2/6/06 Penhora;
F2............. Ap. 43 de 2/6/06 Penhora;
F2.............. Ap. 44 de 2/6/06 Penhora;
F2.............. Ap. 45 de 2/6/06 Penhora.
Sobre o prédio descrito sob o n.º 3691:
Inscrição Apresentação Encargo
F1............... Ap. 29 de 14/3/97 Penhora;
C................ Ap. 13 de 12/4/01 Hipoteca voluntária;
C................ Ap. 47 de 4/10/01 Hipoteca voluntária;
F2............... Ap. 50 de 7/2/02 Penhora;
F2............... Ap. 40 de 6/5/02 Penhora;
C2.............. Ap. 38 de 10/10/02 Hipoteca voluntária;
C.............. Ap. 49 de 10/9/03 Hipoteca voluntária;
F2............. Ap. 24 de 9/2/04 Penhora;
F.............. Ap. 36 de 25/3/04 Penhora;
C.............. Ap. 17 de 16/6/04 Hipoteca voluntária;......... Ap. 43 de 24/5/05 Penhora
F.................. Ap. 36 de 6/6/05 Penhora
F.................. Ap. 07 de 11/1/06 Penhora
F.................. Ap. 06 de 17/1/06 Penhora
F.................. Ap. 51 de 18/1/06 Penhora
F.................. Ap. 01 de 29/3/06 Penhora
F.................. Ap. 42 de 12/5/06 Penhora
F.................. Ap. 42 de 2/6/06 Penhora
F.................. Ap. 43 de 2/6/06 Penhora
F.................. Ap. 44 de 2/6/06 Penhora
F.................. Ap. 45 de 2/6/06 Penhora.
3ª - Com a aquisição da propriedade do solo, extinguiu-se o direito de superfície (art.º 1536º, n.º 1, al. d), do Cód. Civil), mas mantiveram-se as penhoras referidas na conclusão 1ª, atento o disposto no art.º 1541º do mesmo diploma;
4ª - Todos os ónus e encargos que incidiam sobre os direitos adquiridos pela agravante deviam ter sido cancelados nos termos do art.º 824º, n.º 2, do Cód. Civil, ou seja, as penhoras referidas na conclusão 1ª e as penhoras e hipotecas referidas na conclusão 2ª, na parte respeitante ao direito de superfície, dado que, incidindo estas sobre a propriedade plena, abrangiam o direito de superfície em que aquela, em conjunto com o direito ao solo, se decompõe;
5ª - Porém, o acórdão recorrido, confirmando o despacho da 1ª instância proferido sobre tal matéria, entendeu que apenas caducaram e como tal devem ser canceladas as penhoras que incidiam sobre os direitos de superfície (referidas na conclusão 1ª), mantendo as penhoras e hipotecas referidas na conclusão 2ª, uma vez que estas últimas incidem sobre a propriedade plena (que também apelida, não se sabe porquê, de propriedade da raiz), e a agravante só adquiriu os direitos de superfície;
6ª - Porém, os encargos referidos na conclusão 2ª, que o acórdão recorrido entende deverem ser mantidos, incidem sobre um direito mais vasto que o direito de superfície: a propriedade plena;
7ª - Assim, e porque a propriedade plena abrange o direito de superfície e o direito ao solo, um ónus ou um encargo que recaia sobre a propriedade plena recai também, de forma necessária, sobre o direito de superfície;
8ª - Daí que as hipotecas e penhoras referidas na conclusão 2ª devem caducar no tocante ao direito de superfície, que se mantém nos termos do art.º 1541º do Cód. Civil, e subsistir, apenas, quanto ao direito ao solo;
9ª - Veja-se a este respeito o exemplo prefigurado por Antunes Varela na anotação ao dito art.º 1541º, cuja similitude com o caso dos autos é flagrante;
10ª - Doutro modo, teria redundado num prejuízo absurdo a aquisição feita pela agravante na venda judicial que teve lugar nesta execução;
11ª - Depois destas evidências, a agravante fica na dúvida se não terá sido vítima de uma confusão das instâncias, na medida em que estas terão suposto incidirem os encargos referidos no n.º 2º apenas sobre a propriedade do solo (a que chamam raiz, também designada por nua propriedade), não abrangendo, portanto, o direito de superfície;
12ª - Assim, o acórdão recorrido violou o disposto nos art.ºs 1524º, 1534º, 1541º (com referência ao art.º 1536º, n.º 1, al. d), 822º, n.º 1, e 824º, n.º 2, do Cód. Civil, pelo que deve ser revogado, ordenando-se consequentemente o cancelamento das penhoras e hipotecas referidas na conclusão 2ª, na parte respeitante ao direito de superfície, e devendo manter-se apenas no tocante ao direito ao solo.
Não houve contra alegações.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que os factos assentes são os descritos no antecedente relatório, ao que acresce que as penhoras e hipotecas constituídas sobre os ditos prédios após aquisição da propriedade do solo pelo executado são as referidas naquela conclusão 2ª.
Em questão está apenas saber se deve ser determinado o cancelamento parcial, na medida em que abranjam os direitos de superfície, dos registos respeitantes às penhoras e hipotecas referidas na antecedente conclusão 2ª, como consequência da aquisição daqueles direitos de superfície pela ora agravante em venda judicial a que se procedeu na execução instaurada contra o BB.
O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (art.º 1305º do Cód. Civil), direitos esses que, sendo o objecto do direito de propriedade um imóvel, abrangem o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico (art.º 1344º do mesmo diploma).
Tal implica que, quando a lei define prédios no art.º 204º, n.º 2, ainda do mesmo Código, referindo-se ao solo e às construções nele existentes (prédios rústicos), ou aos edifícios nele incorporados, com os terrenos que lhes sirvam de logradouro (prédios urbanos), considera manifestamente como prédio não só o solo, as construções, os edifícios ou os aludidos terrenos, mas o solo ou terreno, já ocupado ou não, bem como o espaço aéreo e o subsolo susceptíveis de serem ocupados por tais construções no exercício dos direitos do proprietário.
Donde que tenha de se entender que, constituído um ónus ou encargo sobre determinado prédio, se deva concluir que tal ónus ou encargo incide, pelo menos em princípio, não só sobre o solo respectivo, mas também sobre o espaço aéreo e o subsolo correspondentes: tudo isso constitui o prédio onerado.
Por outro lado, no exercício dos seus direitos pode o proprietário, no seu prédio, obviamente e como resulta do já exposto, construir ou manter construções, fazer ou manter plantações. Tal faculdade faz parte do seu direito de propriedade, sem autonomia em relação a este, não podendo por isso, dado incidir sobre o seu próprio terreno, ser qualificada como direito de superfície, que incide apenas sobre terreno alheio.
Esse direito de construção ou manutenção num terreno de obras ou de realização ou manutenção de plantações, pode, porém, ter sido adquirido por terceiro que não seja proprietário do mesmo.
Com efeito, como resulta do disposto no art.º 1524º do Cód. Civil, o direito de superfície consiste na faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações, - e isto mesmo sendo a construção ou a manutenção da obra sob o solo alheio (art.º 1525º, n.º 2).
Quer isto dizer que o direito de superfície reveste um carácter autónomo, isto é, como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. III, ed. de 1984, pg. 590), é um direito real autónomo, em relação ao direito de propriedade do dono do terreno, sendo o seu objecto integrado pela faculdade de ocupação do espaço aéreo e do subsolo correspondentes à porção delimitada de terreno que, embora continuando, no que ao solo se refere, pertença daquele, pelo superficiário pode ser ocupada com a construção ou com a plantação que tenha direito a fazer ou manter.
Isto é, o direito de superfície, sendo além do mais direito de construir ou de fazer plantações em terreno alheio, existe antes de concretizadas as construções ou as plantações, período de tempo em que incide apenas sobre o espaço aéreo ou o subsolo, embora incida posteriormente também sobre as aludidas construções ou plantações, como de forma pelo menos implícita resulta do disposto no art.º 1528º do Cód. Civil ao dizer, além do mais, que o direito de superfície pode resultar da alienação de obra ou árvores já existentes, separadamente da propriedade do solo, e do art.º 1538º, n.º 1, ao dispor que, sendo o direito de superfície constituído por certo tempo, o proprietário do solo, logo que expire o prazo, adquire a propriedade da obra ou das árvores (propriedade essa que, portanto, antes de findo o prazo não lhe pertencia, mas ao superficiário).
Daí resulta também, conjugando ainda esses dispositivos com os dos art.ºs 1534º, 1541º, e 688º, n.º 1, als. a) e c), do Cód. Civil, que o direito do superficiário sobre a coisa implantada é uma verdadeira propriedade, não um simples direito real de gozo de coisa alheia (pertencente ao proprietário do solo), semelhante por exemplo ao usufruto, mas um direito de domínio sobre coisa própria (P. Lima e A. Varela, obra citada, págs. 587 e 588), - a propriedade superficiária, distinta da propriedade do dono do chão e paralela a esta -, que incide em consequência também sobre o espaço aéreo e o subsolo por ela ocupados, tanto assim que, enquanto não iniciada a construção da obra ou a realização da plantação, o proprietário do solo apenas dispõe do uso e fruição da superfície (art.º 1532º do mesmo Código).
Tudo conduz por isso à conclusão de que o direito de superfície, embora o restrinja, não constitui um simples ónus limitativo do direito de propriedade do proprietário do solo, mas um direito de edificar ou de plantar, ou de manter construção ou plantação, em terreno alheio, de forma a ocupar um espaço aéreo ou de subsolo integrantes de um direito de propriedade próprio do superficiário, como se de um prédio distinto se tratasse, por resultar do parcelamento jurídico de um prédio, determinado pela constituição daquele direito.
Por isso, o direito de superfície e o direito de propriedade do proprietário do solo constituem realidades jurídicas distintas, susceptíveis de serem objecto de relações jurídicas independentes, de tal modo que o art.º 1541º do Cód. Civil determina que, “extinguindo-se o direito de superfície perpétuo, ou o temporário antes do decurso do prazo, os direitos reais constituídos sobre a superfície ou sobre o solo continuam a onerar separadamente as duas parcelas ...”, do que deriva a possibilidade de constituição e subsistência separada de direitos reais de garantia, como a penhora ou a hipoteca, só sobre o prédio constituído pelo espaço aéreo e pelo subsolo integrantes do direito de superfície, ou só sobre o prédio constituído pelo solo respectivo.
Na hipótese dos autos, o executado começou por ser titular dos direitos de superfície sobre os prédios descritos sob os n.ºs 3691 e 3692.
Enquanto titular desses direitos, foram estes, e só estes, penhorados, à ordem da presente execução, penhora essa oportunamente inscrita no registo predial.
Posteriormente, porém, o executado veio a adquirir também o direito de propriedade sobre o solo respectivo, o que, à luz do disposto no art.º 1536º, n.º 1, al. d), do Cód. Civil, determinou a extinção daqueles direitos de superfície, possibilitando a constituição das novas penhoras e das hipotecas sobre os prédios, em propriedade plena, como tal inscritas no registo predial.
Não obstante, depois dessa constituição de novos ónus, vieram os mesmos direitos de superfície a ser vendidos judicialmente na dita execução, pelo facto de os ónus – as duas iniciais penhoras - que sobre eles anteriormente recaíam não se terem extinguido por via de tal fusão, continuando a onerá-los como se não tivesse havido extinção, conforme resulta do disposto no citado art.º 1541º, ficção jurídica esta de inexistência de extinção referida apenas, porém, aos ónus anteriormente existentes sobre esses direitos.
Daí que não haja dúvida de que a recorrente, face à dita venda judicial, tinha o direito, que lhe foi reconhecido e não está em causa, de ver cancelado o registo das duas mencionadas penhoras, caducadas, que incidiam exclusivamente sobre tais direitos (art.ºs 888º do Cód. Proc. Civil e 824º, n.º 2, do Cód. Civil).
Posteriormente, porém, à aquisição pelo executado da propriedade do solo, com a consequente extinção dos direitos de superfície salvo em relação aos ónus anteriormente existentes, foram constituídas, como se disse, sobre os prédios com as ditas descrições prediais, agora no seu conjunto integrado pelo solo e pelo espaço aéreo e subsolo correspondentes, as demais penhoras e hipotecas acima referidas, todas anteriormente à adjudicação dos direitos de superfície à ora recorrente.
Ora, constituídas as ditas penhoras e hipotecas sobre os prédios referidos, em propriedade plena, uma vez que aquando da sua constituição os direitos de superfície se encontravam, - por via da aquisição do direito de propriedade também sobre o solo por parte do executado e face ao disposto no citado art.º 1536º, n.º 1, al. d) -, extintos para todos os efeitos que não fossem os resultantes das duas penhoras que, incidindo apenas sobre tais direitos de superfície, se mantinham por força do disposto no mencionado art.º 1541º, e apesar da autonomia em relação ao direito de propriedade, quer sobre o solo quer sobre o prédio considerado como o conjunto atrás referido, dos direitos de superfície renascidos por via da posterior adjudicação à ora recorrente, tem de se concluir que as penhoras e hipotecas indicadas na conclusão 2ª, incidentes sobre tais prédios, constituídas sobre a sua globalidade tal como acima definida e que como tal podiam ser, como foram, registadas, ficaram automaticamente limitadas, no que se refere ao seu objecto, por força da compressão resultante daquele renascimento, passando a não abranger o objecto dos direitos de superfície entretanto renascidos em consequência da venda judicial.
Subsistem, assim, duas realidades: a dos direitos de superfície adquiridos pela ora recorrente, aquisição esta oportunamente registada, e presentemente sem qualquer ónus, visto terem caducado e sido canceladas as duas penhoras que sobre esses direitos incidiam, e a dos direitos de propriedade do executado, onerados com as penhoras e hipotecas referidas na conclusão 2ª, igualmente registadas.
Em tal situação, e face à autonomia referida entre as duas figuras jurídicas, entende-se nada obstar à subsistência da inscrição destes ónus sobre os direitos de propriedade, na medida em que, encontrando-se inscritos também os direitos de superfície, a qualquer pessoa que tenha interesse em consultar o registo respeitante aos prédios em causa se torna manifesta a existência da clara restrição aos direitos de propriedade constituída pelos direitos de superfície, ficando sempre salvaguardada a finalidade do registo predial de publicitar a situação jurídica dos prédios. Ou seja, na hipótese dos autos, a existência de dois prédios onerados com penhoras e hipotecas mas com a restrição consistente na existência concorrente dos direitos de superfície autónomos sobre os quais não incide ónus algum e que, por sua vez, limitam o objecto dos próprios ónus inscritos, limites estes que obviamente poderão desaparecer na hipótese de extinção de tais direitos .
O mesmo é dizer que, não incidindo aqueles ónus sobre os direitos de superfície nem se encontrando eles registados com tal objecto, não se pode dizer que existiam como ónus sobre tais direitos, pelo que não caducaram com a venda destes, não onerados por eles, - pois para caducarem nos termos do art.º 824º, n.º 2,do Cód. Civil, teriam de recair sobre tais direitos -, nem podem ser cancelados, pois só o poderiam ser, face ao disposto no art.º 888º do Cód. Proc. Civil, se estivessem registados como recaindo sobre os direitos de superfície como realidade jurídica autónoma.
Assim, encontrando-se os direitos de superfície adquiridos pela ora agravante desonerados por inexistirem ónus reais que recaiam sobre eles, pelo que também não se encontram inscritos no registo predial quaisquer ónus sobre eles incidentes, e sem que daí resulte qualquer prejuízo seja para quem for, mesmo para terceiros, atendendo a que se encontra registada a aquisição dos direitos de superfície, sem ónus, a limitar os direitos de propriedade e os ónus que sobre estes recaiam, não se pode reconhecer razão à agravante.

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo, e em confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela agravante.

Lisboa, 06 de Novembro de 2007

Silva Salazar (Relator)
Nuno Cameira
Sousa Leite