Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
26599/19.0YIPRT.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
INCUMPRIMENTO PARCIAL
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
FUNDAMENTOS
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
BOA FÉ
Data do Acordão: 11/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Em matéria de incumprimento parcial, só o incumprimento parcial definitivo confere ao accipiens a faculdade de resolver o negócio – art.º 802.º C.Civ.

II – O art.º 808.º CCiv faculta a resolução do contrato ao adimplente se ele demonstrar que perdeu objectivamente o interesse na prestação, perda que deve transparecer numa apreciação objectiva da situação, visando a lei evitar que o devedor fique sujeito aos caprichos do credor ou à perda infundada de interesse na prestação.

III – O objectivismo é controlado, não apenas pela lex contractus, mas também pelo princípio da boa fé, em decorrência dos artºs 432.º n.º 1 e 762.º n.º 2 CCiv – se não pode estar em causa um incumprimento levíssimo, um prazo essencial não absolutamente fixo pode acabar por se revelar essencial no decurso da respectiva execução.

IV – A objectividade da avaliação da perda de interesse do credor não significa que se não possa atender ao interesse subjectivo do credor e aos fins por ele visados, podendo resultar condições e expectativas que, na execução do negócio, venham a condicionar a sua execução.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Referências

    A Seguradoras Unidas, S.A., intentou contra Procifisc, Engenharia e Consultoria, Ldª, procedimento injuntivo, tal como previsto no regime anexo ao D-L n.º 269/98 de 01/09.

A acção correu, após, os respectivos termos como acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias.

Requereu a Autora a notificação da Ré para lhe pagar a quantia de € 38.357,55, acrescida de juros moratórios contados desde a data da sua citação até efectivo e integral pagamento.

Alegou que, em 30/11/2017, adjudicou à Ré, pelo valor de € 48.191,40, uma prestação de serviços traduzidos na realização de trabalhos de avaliação e certificação energética de um conjunto de imóveis por si detidos, tendo em vista a instrução do respectivo processo de venda e pagou à Ré todas as facturas por esta emitidas.

A Ré, todavia, atrasou-se, de forma extraordinária, no cumprimento do contratado, pelo que se viu forçada a contratar outra entidade para a conclusão dos serviços.

É assim a Ré responsável pelo pagamento do valor correspondente a serviços que lhe foram pagos e que não prestou e, bem assim, pelos custos adicionais que a Autora teve de suportar com a contratação de outra entidade para efectiva conclusão de tais serviços, custos correspondentes à diferença entre o que pagaria à Ré e o que teve que pagar a esta entidade, valor a que acrescerá o correspondente valor a título de juros moratórios.

A Ré impugnou o alegado pela Autora, negando que os atrasos verificados lhe sejam imputáveis, sendo certo, por outro lado, que nunca foi interpelada nos termos do disposto no art.º 808º do Código Civil,


As Decisões Judiciais

Em 1.ª instância, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.

Já na Relação, o acórdão recorrido julgou procedente a apelação da Autora e, em consequência, revogou a decisão recorrida, condenando a Ré a pagar a ela Autora as quantias a liquidar posteriormente:

a) correspondente ao valor dos honorários acordados e já pagos, para a realização da certificação energética dos prédios listados no ponto 22 da matéria de facto provada;

b) equivalente à diferença entre € 30.331,80 e a quantia a apurar referida em a).


Inconformada agora a Ré, recorre de revista, formulando as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que revoga a douta decisão recorrida, que absolveu a R. do pedido, a condena a pagar à A. as quantias a liquidar posteriormente: “a) correspondente ao valor dos honorários acordados e já pagos, para a realização da certificação energética dos prédios listados no ponto 22 da matéria de facto provada;” e “b) equivalente à diferença entre € 30.331,80 e a quantia a apurar referida em a).”

2. Coloca-se a questão de saber se se verifica a perda de interesse do credor na prestação que motivou a revogação da sentença prolatada pela instância.

3. A A. instaurou um procedimento de injunção previsto no regime anexo ao DL 269/98 de 01/09 contra a R. ora recorrente, peticionando que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 38.357,55 €, acrescida de juros moratórios contados desde a data da sua citação até efectivo e integral pagamento.

4. Em apertada síntese alegou a A. que em 30.11.2017 adjudicou à R. pelo valor de 48.191,40 €, uma prestação de serviços que consistia na realização de trabalhos de avaliação e certificação energética de um conjunto de imóveis por si detidos, para instrução de processo de venda. Pagou à R. todas as facturas emitidas. Todavia, a R. atrasou-se, de forma extraordinária, no cumprimento do contratado, o que motivou a contratação de outra entidade para a conclusão dos serviços. A A. conclui dizendo que a R. é responsável pelo pagamento do valor correspondente a serviços que lhe foram pagos e não prestou, assim como pelos custos adicionais que a A. suportou com a contratação de outra entidade para a conclusão de tais serviços, custos esses que correspondem à diferença entre o que pagaria à R. e o que teve que pagar a esta entidade, valor a que acrescerá juros moratórios.

5. A R. em sede de contestação, invocou a verificação de erro na forma do processo, na medida em que, os valores peticionados pela A. correspondem a decorrências de uma resolução contratual, não sendo legítimo o recurso ao procedimento de injunção para este efeito. Impugnou a alegação vertida pela A., negando que os atrasos verificados lhe sejam imputáveis, sendo certo, por outro lado, que nunca foi interpelada nos termos do disposto no artigo 808.º do Código Civil, concluindo pela improcedência da acção.

6. Em primeira instância o tribunal julgou improcedente a pretensão

do A. por ter entendido que não se provou o incumprimento definitivo da prestação da R., mas apenas um incumprimento temporário que não confere à A. um direito à resolução do contrato e à consequente restituição da parte do preço, nem à compensação de custos acrescidos.

7. No douto Acórdão recorrido menciona-se que “É verdade que dos factos provados não resulta que a Autora tenha perdido o interesse na realização da parte da prestação incumprida, e que, apesar da Autora ter “ameaçado” a Ré que a responsabilizaria pelos prejuízos que resultariam desta não ter concluída a realização de todos os certificados energéticos até à data designada para a realização da escritura de alienação dos imóveis em causa, se possa entender que, em nenhum momento, a Autora advertiu a Ré que a sua obrigação se consideraria definitivamente incumprida, pelo que não se verificou uma verdadeira interpelação admonitória, como exige a jurisprudência dominante.”

8. Não obstante, prossegue o douto Acórdão dizendo que “… não só essa exigência não se assume hoje como a melhor doutrina, sendo suficiente, para que o seu incumprimento possa ser considerado definitivo, que, perante uma situação de mora, uma interpelação do credor que fixe um prazo final razoável, como aliás resulta da letra do art.º 808º, n.º 1, do C. Civil, como, neste caso, todo o comportamento da Ré, sobretudo a partir do mês de Agosto de 2018, justifica plenamente, num juízo objectivo, que a Autora tenha perdido a confiança que a Ré realizasse a parte da prestação em falta num tempo que permitisse a satisfação dos interesses que essa prestação visava, ou seja a alienação dos prédios na data programada para a sua realização.” “… a perda de confiança justificada do credor no cumprimento pelo devedor da totalidade da prestação acordada, num contrato de execução duradoura, pelo seu valor sintomático, pode justificar que aquele ponha termo à relação contratual, não sendo necessário aguardar pela consumação de um incumprimento definitivo. Por estas razões entendemos que o comportamento da Ré conferiu à Autora a opção por um dos direitos conferidos, em alternativa, pelo art.º 802º do C. Civil, pelo que tem a Autora direito a reduzir a sua contraprestação, na proporção correspondente à dimensão da parte da sua prestação incumprida, além da indemnização dos prejuízos causados pelo incumprimento parcial da Ré.”

9. O douto acórdão não demonstrou porém, qual o elemento probatório do qual resulte que estivesse designada data para alienação dos prédios identificados nos autos.

10. Não sendo suficiente para justificar a perda de interesse na prestação a mera circunstância de a A. ter contratado outra empresa para a prestar... (isso sim matéria assente)

11. De modo que não se alcança de onde se possa ter concluído que

se justifica plenamente, num juízo objectivo, que a Autora tenha perdido a confiança que a Ré realizasse a parte da prestação em falta num tempo que permitisse a satisfação dos interesses que essa prestação visava, ou seja a alienação dos prédios na data programada para a sua realização.

12. Ora, para ser decretada a resolubilidade do contrato, não basta a simples perda (subjetiva) do interesse do credor – essa sim verifica-se no caso vertente – na prestação em mora.

13. O n.º 2 do art. 808.º exige que a perda do interesse seja apreciada objectivamente, aferindo-se em função da utilidade que a prestação para ele teria, embora atendendo a elementos suscetíveis de valoração pela generalidade da comunidade, justificada por um critério de razoabilidade própria do comum das pessoas.

14. A exigência decorrente do caso vertente se vislumbra demonstrada na douta decisão recorrida.

15. De modo que, inexiste fundamento para subsunção do caso vertente ao preceituado no artigo 802.º do Código Civil.

16. Ora, reconhecendo-se na douta sentença recorrida, como se julgou na decisão de primeira instancia, que não se verifica no caso vertente incumprimento definitivo, deve manter-se a decisão proferida em primeira instância, concluindo-se pela absolvição da R.

17. Face ao exposto, constata-se que o Acórdão recorrido viola o disposto nos artigos 808.º e 802.º do Código Civil.


A Autora produziu as respectivas contra-alegações, pugnando pela improcedência das pretensões deduzidas pela respectiva contraparte.


Factos Provados

1. Em 30 de Outubro de 2017, a Autora solicitou à Ré e a outras entidades similares a apresentação de proposta para realização da certificação energética de um conjunto de imóveis por si detidos tendo em vista a instrução dos processos de venda dos mesmos imóveis.

2. Do caderno de encargos elaborado no âmbito do processo referido em 1. constava a listagem dos prédios a que se referia a pretendida certificação.

3. De acordo com o caderno de encargos elaborado no âmbito do processo referido em 1., os relatórios de avaliação e os certificados energéticos deveriam ser entregues no prazo de 45 dias após a adjudicação.

4. Em 30 de Novembro de 2017, a Autora comunicou à Ré a aceitação da proposta por esta formulada para realização dos trabalhos mencionados em 1. com referência a 282 imóveis sitos nas zonas Centro, Sul e Ilhas.

5. A proposta formulada pela Ré para realização dos trabalhos referidos em 4. ascendia ao montante de 48.191,40 €.

6. Com referência aos trabalhos referidos em 4., a Ré emitiu, em nome da Autora e nas seguintes datas, as seguintes facturas, no valor global de 51.629,10 € e nos seguintes montantes e justificações individuais:

a) - Factura 40/2017, de 06/12/2017, no valor de 12.510,64 €;

b) - Factura 41/2017, de 06/12/2017, no valor de 16.080,41 €;

c) - Factura 28/2018, de 01/03/2018, no valor de 10.424,25 €;

d) - Factura 29/2018, de 01/03/2018, no valor de 5.983,95 €;

e) - Factura 30/2018, de 01/03/2018, no valor de 2.041,80 €;

f) - Factura 57/2018, de 16/05/2018, no valor de 4.588,05 €;

7. As facturas referidas em 6, respeitam respectivamente:

a) A factura 40/2017, de 06/12/2017, respeita a “Emissão de certificados energéticos + Taxas Adene – Zona Centro (30% Adjudicação + 50% taxas adene)”;

b) A factura 41/2017, de 06/12/2017, respeita a “Emissão de certificados energéticos + Taxas Adene – Zona Sul e Ilhas (30% Adjudicação + 50% taxas adene)”;

c) A factura 28/2018, de 01/03/2018, respeita a “Taxas Adene – Zona Centro, Sul e Ilhas (50% taxas adene)”;

d) A factura 29/2018, de 01/03/2018, respeita a “Emissão de certificado energético – Zona Sul e Ilhas – Adicional honorários”;

e) A factura 30/2018, de 01/03/2018, respeita a “Taxas Adene – Zona Sul e Ilhas – Taxa ADENE adicional”;

f) A factura 57/2018, de 16/05/2018, respeita a “Emissão de certificados energéticos – Zona Centro (50% de restante valor de trabalhos da Zona Centro)”.

8. Com referência às facturas 40/2017 e 41/2017, a Autora efectuou, em 25/12/2017, transferência bancária no valor de 28.591,05 € para a conta bancária da Ré.

9. Com referência às facturas 28/2018, 29/2018 e 30/2018, a Autora efectuou, em 02/03/2018, transferência bancária no valor de 18.450,00 € para a conta bancária da Ré.

10. Com referência à factura 57/2018, a Autora efectuou, em 28/05/2018, transferência bancária no valor de 4.588,05 € para a conta bancária da Ré.

11. Em 17.07.2018, pelas 17h58, a Ré dirigiu à Autora email com o seguinte teor: “Caro Dr. As minhas desculpas por só me libertarem agora. Ligo amanhã na primeira hora. Seguem CE’ definitivos. Com os melhores cumprimentos. AA, Eng.”;

12. Em 07.08.2018, pelas 16h10, a Autora dirigiu à Ré email com o seguinte teor:

“Boa tarde, Exmos Senhores, Eng.º AA, Somos a solicitar que nos informem com a maior brevidade possível da data prevista para a entrega dos certificados ainda em falta Obrigado. Na expectativa de breves notícias, com os melhores cumprimentos. BB”.

13. Em 14.08.2018, pelas 09h37, a Autora dirigiu à Ré email com o seguinte teor: “Bom dia, Exmos Senhores, Eng.º AA, Somos a solicitar que até ao próximo dia 17 de Agosto de 2018 nos sejam remetidos os certificados energéticos em falta, conforme listagem em anexo. Obrigado. Na expectativa de breves notícias, com os melhores cumprimentos. BB”.

14. Em 20.08.2018, pelas 11h53, a Ré dirigiu à Autora email com o seguinte teor:

“Exmºs Srs. Antes de mais as nossas desculpas pelo atraso em responder devido a dificuldade na coordenação de meios durante este mês, uma situação alheio aos srs. sem desculpas.

Contamos fechar este processo durante o mês de setembro com entrega das restantes 30 CE’s dos imóveis.”.

15. Em 20.08.2018, pelas 18h36, a Autora dirigiu à Ré email com o seguinte teor:

“Boa tarde, a escritura de venda dos imóveis está marcada para início de Setembro, pelo que os relatórios devem ser entregues até final deste mês, aliás a situação é insustentável e incompreensível dado o tempo decorrido desde a adjudicação. Se porventura o Acto não se realizar, devido à ausência de certificados, imputaremos toda e qualquer perda financeira à Procifisc, cumprimentos.”

16. Em 21.08.2018, pelas 17h21, a Autora dirigiu à Ré email com o seguinte teor:

“Caro Eng.º AA,

Solicito ponto de situação urgente, referente aos certificados em falta, de acordo com a listagem enviada. Pedimos vossa célere resposta com detalhe de datas referentes aos imóveis com CE em falta.”

17. Em 23.08.2018, pelas 13h01, a Autora dirigiu à Ré email com o seguinte teor: “Caro Eng. AA,

Manifestamos desde já o nosso descontentamento com a ausência de resposta da vossa parte, relativa às solicitações efectuadas, carecem as mesmas de definição de datas exactas para o envio dos CE em falta. Lembramos que a não emissão dos mesmos condiciona o processo de transacção dos imóveis em causa, sendo posteriormente imputados à SEGURADORAS UNIDAS, custos associados à não transacção dos imóveis.

Informamos desde já que iremos repercutir à PROCIFISC todos os custos, que possam ser imputados À SEGURADORAS UNIDAS, resultantes da ausência dos Certificados Energéticos. Melhores cumprimentos. CC”;

18. Em 27.08.2018, pelas 17h40, a Autora dirigiu à Ré email com o seguinte teor: “Exmos Srs Solicitamos vossa resposta urgente relativa à data de entrega dos certificados energéticos em falta. Melhores cumprimentos, CC”;

19. Em 28.08.2018, pelas 17h01, a Ré dirigiu à Autora email com o seguinte teor:

“Boa tarde, caro e estimado, Sr. CC, Uma vez que o Engº AA se encontra de férias, assumo a resposta aos seus e-mails… Em meu nome e de toda a minha equipa, vimos antes de mais as nossas desculpas por todo este embaraço!!! Conforme transmitido hoje telefonicamente ao Dr. EE, estamos com alguns atrasos com prestadores de serviços na emissão de CE’s e não nos é possível cumprir a data limite de 12/09 pese embora os CE’s em falta estejam todos em processo de cálculo. Iremos precisar sempre de mais tempo e também de um reforço de pagamento da vossa parte para ajudar no pagamento das taxas ADENE e aos prestadores de serviços que nos darão outra garantia em termos de cumprimento de prazo. Estamos ao vosso inteiro dispor para encontrar as soluções para a resolução definitiva. Obrigado. Com os melhores cumprimentos, DD”;

20. Em 28.08.2018, pelas 17h21, a Autora dirigiu à Ré email com os seguintes dizeres:

“Eng. DD, Na conversa telefónica havida, fui claro que a Escritura de Venda realiza-se a 12/09, e que tínhamos de entregar os relatórios no Cartório até ao final desta semana. Houve compromisso da sua parte em entregarem todos os relatórios no limite até 11/09, através de contratação de outro prestador de serviço, e agora por escrito, não assume essa responsabilidade, não percebo…clarifique sff. EE”;

21. Em 28.08.2018, pelas 17h28, a Ré dirigiu à Autora email com o seguinte teor:

“Boa tarde Dr. EE, Só falei com o prestador em questão depois de falar consigo, e o mesmo informou que devido a outros compromissos, não lhe é possível assumir essa data. Estamos obviamente disponíveis para ajudar na procura de soluções. Com os melhores cumprimentos. DD”;

22. No final de Agosto de 2018, encontravam-se por concluir os seguintes trabalhos de avaliação e certificação energética:

Zona – ...e ... (…).

Zona Centro – … (...) – … (…) – … (…, …, … e …) – … (…) – … (…,  ..) – … (…) – … (…) – … (…) – … (…) – … – … (…).

Sul – … – … (…) – … (…) – … (…) – … (…) – … (…).

23. Para realização dos trabalhos de certificação energética referidos em 22., a Autora aceitou, em 31 de Agosto de 2018, a proposta da More Value no valor de 30.331,80 €.

24. Por meio de carta registada com aviso de recepção datada de 13 de Dezembro de 2018, a Autora comunicou à Ré que “(…) não obstante os diversos contactos e diligências feitas pelos nossos serviços nesse sentido, a Procifisc foi adiando sucessivamente a entrega daquela documentação, para concretizar os serviços adjudicados. Assim, em 28.02.2018, apenas nos foram entregues os processos respeitantes a 19 imóveis, num total de 157 imóveis adjudicados.

Tendo sido ultrapassados todos os prazos razoáveis e sendo manifesto o incumprimento da Procifisc, a Seguradoras Unidas viu-se forçada a adjudicar a outra empresa a prestação dos serviços em falta de avaliação e certificação energética. o contrato de prestação de serviços adjudicados a V.Exªs. deve considerar-se resolvido por incumprimento exclusivamente imputável à Procifisc, nos termos gerais do direito. Em consequência, entendemos que não são devidos quaisquer valores adicionais à Procifisc ao abrigo daquele contrato, antes sendo-nos devido os seguintes montantes:

1) € 24.839,70 correspondente a adiantamento de honorários liquidados à Procifisc por serviços não prestados.

2) € 5.492,10 a título de ressarcimento pelos custos adicionais que resultaram da adjudicação a outra entidade dos serviços não prestados pela Procifisc (…)”.


Conhecendo:


I


Tem a presente impugnação em vista o disposto no art.º 808.º n.º1 CCiv, segundo o qual, “se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada no prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação”.

Como é sabido, a simples mora constitui o inadimplente na obrigação de reparar danos (art.º 804.º n.º1 CCiv), mas a mora pode efectivamente conduzir à perda de interesse na prestação.

Mas o art.º 808.º C.Civ. faculta a resolução do contrato ao adimplente se ele demonstrar que perdeu objectivamente o interesse na prestação.

A perda de interesse deve transparecer numa apreciação objectiva da situação – art.º 808.º n.º2 CCiv.

A lei, ao impor que a perda de interesse se aprecia objectivamente, visa “evitar que o devedor fique sujeito aos caprichos do credor ou à perda infundada de interesse na prestação” (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, II, 3ªed., pg. 72); ou ainda, nas palavras de I. Galvão Telles, Obrigações, 4ªed., pg. 235, “não basta que o credor diga, mesmo convictamente, que a prestação já não lhe interessa”.

Também a esse respeito, elucidativamente, Pessoa Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, pg. 20, nota 3: “O interesse do credor como fim da obrigação apresenta conteúdo essencialmente variável, pois reporta-se às utilidades concretas que a coisa lhe proporciona; e, por isso, pode dizer-se que se atende ao valor subjectivo da prestação para exprimir a utilidade que hic et nunc tem para o sujeito activo. Valor subjectivo não significa, porém, valor apreciado pelo sujeito, mas valor apreciado em função do sujeito. Não se trata pois de valor arbitrariamente fixado pelo credor, mas valor determinável por terceiro (nomeadamente pelo tribunal) em atenção às utilidades que concretamente o credor tiraria da prestação”.

Foi esta referida “perda de interesse” que, em 1ª instância, se julgou decisivamente não verificada – o contrário se tendo acertado no acórdão recorrido.

Múltiplos exemplos de perda de interesse, apreciada objectivamente, têm sido referidos na doutrina.

P.e., Vaz Serra, Impossibilidade Superveniente e Cumprimento Imperfeito Imputáveis ao Devedor, Bol.47, nº18, cit. in Pires de Lima e Antunes Varela, Anotado, II/4ª ed., pg.71: “o credor não sabe já em que empregar o objecto que o devedor lhe deve entregar, por ter passado o momento próprio (como quando se trate, por exemplo, de mercadorias de temporada, de um vestido de baile, quando este se realizou)”; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 4ªed., §305: “artista contratado para participar em determinado espectáculo; trabalhadores rurais assalariados para fazer uma ceifa ou para proceder à apanha de frutos prestes a cair da árvore”; Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, pg. 141: “a mudança de estação relativamente a vestuário ou a perda de utilidade de realização (p.e., em negócios sazonais)”. 

Esclareça-se também que, em matéria de incumprimento parcial (os ditos trabalhos que o Autor tinha por realizar) só o incumprimento parcial definitivo confere ao accipiens a faculdade de resolver o negócio – art.º 802.º C.Civ. O incumprimento parcial temporário rege-se pelas consequências da mora em geral para a subsistência do contrato – art.º 808.º C.Civ.

Pode-se, portanto, lançar mão do disposto no artº 802º n.º 1 CCiv (impossibilidade parcial definitiva) para a justificação da resolução do negócio (como aliás, sublinhe-se, também se procedeu no acórdão recorrido).

Em concretização dessa ideia, seria de considerar que a recusa peremptória à prestação, a inaptidão manifesta para prestar ou o comportamento concludente com tal significado (recusa ou inaptidão) equivalem ao incumprimento definitivo.

Sobre a perda de interesse do credor e a objectividade da sua avaliação, importa salientar que “tal não significa, de forma alguma que se não atenda ao interesse subjectivo do credor, e designadamente aos fins visados pelo credor que, não tendo sido integrados no conteúdo do contrato, representam simples motivos em princípio irrelevantes” (assim, Baptista Machado, Obra Dispersa, I, 1991, pg. 137).

A perda de interesse do credor tem sim que resultar objectivamente das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio, bem como das que, posteriormente, venham a condicionar a sua execução, inscrevendo-se no contexto de um determinado “programa obrigacional” – Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 13ª ed., pg. 154.

Objectivismo que é controlado, não apenas pela lex contractus, mas também pelo princípio da boa fé, em decorrência dos artºs 432.º n.º 1 e 762.º n.º 2 CCiv.

Não pode estar em causa um incumprimento levíssimo, de todo insignificante na economia do contrato – Baptista Machado, op. cit., pgs. 186 e 187.

Em regra, um prazo essencial não é absolutamente fixo, não revelando um interesse temporalmente limitado das partes, mas a maior ou menor “força” das expressões empregues pelas partes constituirá elemento hermenêutico a ter em conta – assim, Brandão Proença, Do Incumprimento do Contrato Promessa Bilateral – A Dualidade Execução Específica – Resolução, 1996, pgs. 110 a 112 e nota 243.

Um prazo essencial, no contrato não absolutamente fixo, pode acabar por se revelar essencial (“fatal”) no decurso da execução do contrato.

Tudo ponderado, impõe-se a análise casuística e a peculiaridade de interesses das partes no caso, para ajuizar da relevância do interesse do credor e da forma ou contexto em que o incumprimento contratual possa reflectir-se ou vir a determinar o desinteresse do credor quanto à realização e cumprimento final da obrigação.



II


Os factos provados fornecem abundante demonstração da perda de interesse objectiva da Autora nos serviços da Ré.

No final de Agosto de 2018 encontravam-se por realizar uma significativa série de trabalhos de avaliação e certificação energética, tal como transparece do facto provado 22.º.

O negócio foi concretizado em 30/11/2017 e os trabalhos constantes do caderno de encargos, que a Ré aceitou e em função da qual elaborou a sua proposta contratual, deveriam ser finalizados em 45 dias.

Aliás, em 28/5/2018, encontravam-se os trabalhos integralmente pagos pela Autora, em função do facturado pela Ré.

Durante todo o mês de Agosto de 2018 foi trocada abundante correspondência electrónica entre as partes, como os autos demonstram, significando que a Autora pretendia efectuar a alienação dos imóveis a avaliar e a certificar energeticamente, pelo que o atraso da Ré a fazia incorrer, a ela Autora, em significativos prejuízos.

A Ré, ao invés, demonstrou incapacidade sequer para justificar um atraso no cumprimento da sua obrigação, junto do credor.

O tom das comunicações da Autora foi significativamente tornado mais veemente, no decurso do tempo, sem que a Ré desse resposta ou, como sublinhado, justificasse o atraso ou lançasse mãos de quaisquer meios ao seu alcance para cumprir.

Naturalmente que a Autora, entidade seguradora, tinha interesse em vender o património imobiliário em causa, no prazo significado à Ré na correspondência, levando também em conta o notório atraso com relação ao inicialmente acordado e o facto de as escrituras de alienação dos imóveis se realizarem no mês de Setembro (cf. emails de 20/8 e de 28/8 e os avisos deles constantes).

O facto de o prazo fixado para a prestação da Ré (45 dias) não se ter revelado como prazo essencial fixo, logo na celebração do contrato, com a aceitação da proposta da Ré, não prejudica a conclusão de que a mora desta Ré veio a ocasionar, em boa fé, no decurso da execução contratual, a perda de interesse do credor, levando em conta o seu conhecido interesse subjectivo, mesmo que objectivamente apreciado pelo terceiro julgador.

Tem assim a Autora direito à redução da sua contraprestação e a Ré deve igualmente satisfazer-lhe a diferença entre o preço contratado entre as partes e aquele que, em excesso, a Autora teve que satisfazer a terceiro, como referido no acórdão recorrido, em aplicação das normas dos art.ºs 562.º, 564.º e 566.º n.º1 CCiv.


Concluindo:

I – Em matéria de incumprimento parcial, só o incumprimento parcial definitivo confere ao accipiens a faculdade de resolver o negócio – art.º 802.º C.Civ.

II – O art.º 808.º CCiv faculta a resolução do contrato ao adimplente se ele demonstrar que perdeu objectivamente o interesse na prestação, perda que deve transparecer numa apreciação objectiva da situação, visando a lei evitar que o devedor fique sujeito aos caprichos do credor ou à perda infundada de interesse na prestação.

III – O objectivismo é controlado, não apenas pela lex contractus, mas também pelo princípio da boa fé, em decorrência dos artºs 432.º n.º 1 e 762.º n.º 2 CCiv – se não pode estar em causa um incumprimento levíssimo, um prazo essencial não absolutamente fixo pode acabar por se revelar essencial no decurso da respectiva execução.

IV – A objectividade da avaliação da perda de interesse do credor não significa que se não possa atender ao interesse subjectivo do credor e aos fins por ele visados, podendo resultar condições e expectativas que, na execução do negócio, venham a condicionar a sua execução.

Decisão:

Nega-se a revista.

As custas são da responsabilidade da Recorrente sem prejuízo da dispensa do seu pagamento em virtude do apoio judiciário de que beneficia.

                                     

S.T.J., 30/11/2021


Vieira e Cunha (relator)

Abrantes Geraldes

Tomé Gomes