Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
570/19.0T9AGD.P1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
RECURSO DE DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA
PRESSUPOSTOS
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
CONTRAORDENAÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
INADMISSIBILIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 11/03/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - No modelo instituído pela revisão do CPP de 1998, em harmonia com o propósito de “evitar os riscos de rigidez jurisprudencial”, o recurso contra jurisprudência fixada (art. 446.º, do CPP) visou a criação de um mecanismo de reação e controlo de decisões judiciais contrárias a jurisprudência fixada, que passaram a ser admissíveis (art. 445.º, do CPP), podendo o STJ limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada ou proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada (art. 446.º, n.º 3, do CPP).

II - Ao recurso contra jurisprudência fixada são correspondentemente aplicáveis as disposições do recurso para fixação de jurisprudência (arts. 437.º a 444.º, do CPP), nomeadamente o critério de oposição de julgados, devendo o recorrente, para além do mais, justificar a oposição com a jurisprudência fixada (art. 438.º, n.º 2, in fine).

III - Estabelecendo a devida correspondência com o regime do recurso de fixação de jurisprudência (art. 446.º, n.º 1, do CPP, in fine), a oposição revelada pelo acórdão recorrido há de verificar-se relativamente ao acórdão de fixação de jurisprudência, na resolução da mesma questão de direito perante idêntica situação de facto, devendo traduzir-se numa decisão expressa contrária à jurisprudência fixada, que, não sendo obrigatória, admite decisão divergente sujeita ao dever de especial fundamentação imposto pelo n.º 3 do art. 445.º do CPP.

IV - O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 11/2005 do STJ (DR, Série I-A, de 19-12-2005) fixou jurisprudência nos seguintes termos: “Sucedendo-se no tempo leis sobre o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional, não poderão combinar-se, na escolha do regime concretamente mais favorável, os dispositivos mais favoráveis de cada uma das leis concorrentes”.

V - O acórdão recorrido, do tribunal da Relação, que negou provimento a recurso de decisão da 1.ª instância que julgou improcedente a impugnação de decisão administrativa de aplicação de uma coima pela prática de contraordenação ambiental, não se confrontou com uma questão de escolha do regime mais favorável à contraordenação, resultante de sucessão de leis no tempo, nomeadamente quanto à tipificação e sancionamento da infração, com incidência sobre o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional, em que se poderia equacionar a convocação da jurisprudência fixada no acórdão n.º 11/2005.

VI - No presente recurso, a recorrente, sem se preocupar em demonstrar a oposição de julgados, limita-se a reeditar a sua tese da sucessão de leis, de que resultaria a aplicação de um regime mais favorável, sustentada no recurso perante a Relação, procurando um resultado que só poderia ser obtido por via desse recurso.

VII - Inexiste, no acórdão recorrido, decisão contra jurisprudência fixada AFJ n.º 11/2005, que, nos termos do n.º 1 do art. 446.º, do CPP, possa constituir pressuposto do recurso

VIII - Em consequência, o recurso é rejeitado, por inadmissibilidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I.  Relatório

1. “Preceram Norte, Cerâmicas, S.A.”, interpõe recurso do acórdão do Tribunal da Relação ….. de 26.05.2021, que confirmou a sentença do Juízo Local Criminal ……, do Tribunal Judicial da Comarca......, que julgou improcedente a impugnação judicial apresentada e manteve a decisão administrativa proferida pela Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território que lhe aplicou uma coima no valor de €24.000,00.

Invoca que aquela decisão “ao não aplicar o regime mais favorável ao arguido, (…) vai contra a jurisprudência fixada no Acórdão n.º 11/2005 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República série I de 19/12/2005”, nos seguintes termos: “(…) Sucedendo-se no tempo leis sobre o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional, não poderão combinar-se, na escolha do regime concretamente mais favorável, os dispositivos mais favoráveis de cada uma das leis concorrentes. (…)”

2. Apresenta motivação de que extrai as seguintes conclusões:

«1) O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ….. com a Referência 14663744, vai contra a jurisprudência fixada no Acórdão n.º 11/2005 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República série I de 19/12/2005.

2) A licença ambiental da recorrente foi emitida ao abrigo de legislação já revogada.

3) Com a evolução dos estudos técnicos e a salvaguarda do ambiente, aquelas normas jurídicas foram revogadas, sendo actualmente aplicado um regime jurídico diferente estabelecido no D.L. 127/2013 e Portaria n.º 190-B/2018.

4) Estabelece o art.º 2, n.º 4 do Código Penal, aplicável ao processo de contraordenacional (art.º 2, n.º 1 da Lei nº 50/2006 e art.º 32 do D.L. n.º 433/82) o princípio da aplicação do regime mais favorável ao agente.

5) Estabelece a lei (D.L. 127/2013 e Portaria n.º 190-B/2018) um regime mais favorável para recorrente, tem este de ser aplicado ao caso concreto.

6) Não existe na lei a diferenciação entre os VEA e os VLE (alínea a) do n.º 3 do art.º 41, D.L. n.º 127/2008).

7) A licença que esteve na origem da autuação já caducou.

8) Não corresponde à realidade do caso concreto que a violação dos VLE prevê uma contraordenação muito grave prevista no art. 111.º, n.º 1, alínea i), uma vez que esta se aplica às instalações de incineração ou coincineração de resíduos (art.º 91, n.º 1 a 4).

9) As licenças têm a sua validade dependente da lei pelo que a licença não pode ser aplicada quando existe norma jurídica que alterou a lei pela qual foi emitida.

10) Opondo-se a decisão da Relação  ….. à matéria objecto de Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, deve o mesmo ser corrigido nos termos e para os efeitos do art.º 446 do CPP, com as necessárias consequências legais.»

3. Vem junta certidão do acórdão recorrido, com certificação do trânsito em julgado, da qual resulta que a interposição do recurso ocorreu dentro do prazo legalmente fixado.

4. Notificado o Ministério Público, para efeitos do disposto no artigo 439.º, n.º 2, do CPP, foi apresentada resposta pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação, em que conclui (transcrição):

«I - Os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal da Relação ….. invocados pelo recorrente não se apresentam em oposição ou contradição, mas, decidindo diversamente para diferentes quadros fácticos, extraíram soluções de direito congruentes entre si.

II - Deverá assim, por se não verificarem os respectivos pressupostos, ser rejeitado o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada.»

Diz na motivação:

«(…) Dos excertos [da decisão] transcritos resulta inequívoco serem diversos os quadros fácticos e jurídicos no âmbito dos quais foram proferidas as decisões em confronto, pelo que não se encontram em contradição. (…).

Aliás, o douto acórdão recorrido não faz qualquer alusão à jurisprudência fixada no AFJ 11/2005 porque a sua aplicação não estava em causa, isto é, a invocada prescrição do procedimento contra-ordenacional adviria do puro decurso do tempo e não de qualquer sucessão de regimes prescritivos, situação tratada naquele acórdão de uniformização de jurisprudência, pelo que não existe decisão proferida contra jurisprudência fixada

Assim, o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada deve ser, nos termos dos art.s 441.º e 446.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, rejeitado.»

5. Recebido, foi o processo com vista ao Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 440.º do CPP.

Pronunciando-se igualmente pela rejeição do recurso, diz a Senhora Procuradora-Geral Adjunta em seu parecer:

«(…) 2 - Resulta do texto do acórdão recorrido que o Tribunal da Relação ….., para além das demais questões suscitadas pela recorrente, equacionou e apreciou a questão relativa à aplicação da lei mais favorável à arguida, face à sucessão de leis no tempo relativas à tipificação da contraordenação imputada à arguida, tendo concluído que não se colocava a “questão de aplicação da lei mais favorável”, pelo que não colhia este fundamento do recurso. (…)

3 - Da simples leitura da decisão recorrida se conclui que quer a situação de facto quer a questão jurídica é diversa da que foi objecto do acórdão uniformizador invocado, pelo que, como bem demonstra o Magistrado do MP no Tribunal recorrido, as decisões em causa não estão sequer em contradição, antes “decidindo diversamente para diferentes quadros fácticos, extraíram soluções de direito congruentes entre si”.

O acórdão recorrido não recusou a aplicação do acórdão uniformizador, mais, nem sequer a ele se referiu, pois não estava em causa nem a mesma situação de facto nem a mesma questão jurídica.

4 - Acresce que a recorrente na motivação do recurso não se preocupou em demonstrar essa oposição de julgados, apenas insistindo, em linha com a argumentação que apresentara no recurso ordinário, que o novo regime jurídico decorrente do DL nº 127/2013 e da Portaria 190-B/2018 é aplicável à licença ambiental que possuía e que esse regime lhe era mais favorável.

Concluindo que “opondo-se a decisão da Relação  ….. à matéria objecto de Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, deve o mesmo ser corrigido nos termos e para os efeitos do artº 446 do CPP, com as necessárias consequências legais”.

5 - O art. 446, do CPP dispõe o seguinte: (transcrição).

6 - Como decorre do disposto nos artigos 439-º, n.º 1, 441.º, n.º 1 e 442.º, n.º 1, todos do CPP, aplicáveis por força do disposto no n.º 1, do art. 446.º do mesmo código, a pronúncia neste momento processual deve incidir apenas sobre os pressupostos processuais comuns aos recursos ordinários, tais como a competência, legitimidade, tempestividade, regime e efeito, e sobre os pressupostos próprios deste recurso – a efectiva oposição de soluções sobre a mesma questão de direito.

Assim, afigura-se-nos não se suscitarem dúvidas quanto à verificação dos pressupostos processuais comuns, mas o mesmo não ocorre quanto ao pressuposto específico do presente recurso extraordinário – a verificação da violação da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão nº 11/2005.

Para apurar da verificação dessa violação o critério a utilizar é o da oposição de julgados previsto no art. 437.º, n.º 1, do CPP, para os recursos de fixação de jurisprudência, mas aqui aplicável por força do disposto no art. 446.º, n.º 1, do mesmo código, como vem decidindo, de forma uniforme, este Supremo Tribunal, do que são exemplos os acórdãos proferidos a 13/02/2014, no proc. 432/06.0JDLSB-O.S1 e a 2/10/2014, no proc. 154/11.0PAPNI.L1-B.S1, ambos referidos em anotação ao art. 446 (fls 1493 e 1494) do Código do Processo Penal Comentado, ed.2016.

7 - Confrontando a jurisprudência fixada no acórdão de fixação de jurisprudência nº 11/2005 e o acórdão recorrido, bem como as situações que lhes estão subjacentes, é forçoso concluir no sentido de que este não viola a jurisprudência fixada por aquele.

Como se sumariou no acórdão deste Supremo Tribunal de 28-11-2018:

“I - De harmonia com o preceituado nos n.ºs 1, 2, e 3 do art. 446.º do CPP, é admissível recurso directo para o STJ - a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, pelo arguido, pelo assistente, pelas partes civis ou pelo MP, para quem é obrigatório - de qualquer decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo mesmo STJ, que pode limitar-se a aplicar a jurisprudência já fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que ela se encontra ultrapassada.

II - Para além dos pressupostos formais que ficaram referidos, exige ainda a lei, no que concerne aos recursos de fixação de jurisprudência e de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, pressupostos substanciais, a saber:

- Justificação da oposição entre os acórdãos (o fundamento e o recorrido) que motiva o conflito de jurisprudência, e

- Inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação das decisões conflituantes.

III - Para além destes pressupostos tem a jurisprudência do STJ referido outros dois que se reportam à necessidade de a questão decidida em termos contraditórios ser objecto de decisão expressa nos dois arestos e de a identidade das situações de facto estar subjacente à questão de direito.”

De igual modo se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 21-03-2018, consignando-se, no respectivo sumário o seguinte:

“I - Para os efeitos de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, nos termos do art. 446.º do CPP, interessa que entre a jurisprudência fixada e aquele de que se recorrer, exista uma oposição de julgados expressa e não tácita. A oposição relevante de acórdãos ocorrerá quando existam nas decisões em confronto soluções de direito antagónicas e, não apenas, contraposições de fundamentos ou de afirmações; soluções de direito expressas e não implícitas, soluções jurídicas tomadas a título principal e não secundário.

II - Só se está perante a mesma questão de direito quando se recorra às mesmas normas, reclamadas para aplicar a uma certa situação fáctica e elas forem interpretadas de modo diferente. A expressão «soluções opostas» contida no n.º 1 do art. 437.º do CPP, pressupõe que nos 2 acórdãos a situação de facto seja idêntica uma vez que a decisão da questão de direito não pode ser desligada do substracto factual sobre a qual incide. Daí, que se considere que a identidade ou similitude substancial dos factos constitua também condição para determinar a identidade ou a oposição de julgados.”

Em conformidade com o exposto, consideramos não estar preenchido o requisito de oposição de julgados entre as decisões em causa, pelo que somos de parecer que o recurso deve ser rejeitado, nos termos do disposto nos artigos 440, n.º 3, 441, n.º 1 e 446, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal.»

6. Efectuado o exame preliminar, o processo foi remetido à conferência, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 440.º do CPP, aplicável ex vi artigo 446.º, n.º 1, do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

7. Sobre o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de justiça dispõe o artigo 446.º do CPP nos seguintes termos:

«1 - É admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo.

2 - O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

3 - O Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada.».

8. No modelo instituído pela revisão do CPP de 1998, o recurso contra jurisprudência fixada visou a criação de um mecanismo de reação e controlo de decisões judiciais contrárias a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que, diversamente ao que sucedia no regime anterior [de acordo com o qual a decisão uniformizadora de jurisprudência era obrigatória para os tribunais judiciais – sobre a história e sentido da evolução cfr. o acórdão de 6.4.2016, proc. 521/11.0TASCR.L1-A.S1 (Raul Borges), em www.dgsi.pt], passaram a ser admissíveis desde que, cumprindo um dever especial de fundamentação, os tribunais fundamentem as divergências (artigo 445.º do CPP), em harmonia com o propósito de “evitar os riscos de rigidez jurisprudencial” (como se explicitou na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, DAR, II-A, n.º 27, p. 486, que originou a Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, de revisão do CPP). Além do Ministério Público, para quem o recurso é obrigatório, podem ainda recorrer o arguido, o assistente e as partes civis, alargando-se, assim, com a Lei n.º 48/2007, de 29 de setembro, que neste sentido alterou o n.º 2 do artigo 446.º do CPP, as possibilidades de controlo e de atualização, pelo Supremo Tribunal de Justiça, de decisões judiciais contrárias a jurisprudência fixada.

Sendo um recurso extraordinário, que, como tal, pressupõe o trânsito em julgado da decisão recorrida, são correspondentemente aplicáveis as disposições do recurso para fixação de jurisprudência – artigos 437.º a 444.º do CPP –, nomeadamente o regime de interposição, devendo o recorrente, por conseguinte, para além do mais, justificar a oposição com a jurisprudência fixada (artigo 438.º, n.º 2, in fine).

O critério de aferição da existência de decisão proferida contra jurisprudência fixada não pode deixar de ser o da oposição de julgados – neste caso o de oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão de fixação de jurisprudência – critério aplicável ao recurso de fixação de jurisprudência, previsto no n.º 1 do artigo 437º, que estabelece: «Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar» [assim, além de outros, os acórdãos de 12-09-2013, proc. 267/09.9PGALM.L1-A.S1  e de 11-01-2017, proc. 133/14.6T9VIS.C1-A.S1 (Oliveira Mendes), em www.dgsi.pt, de 17.10.2013, proc. 5/05.5TELSB-0.S1, de 13.2.2014, proc. 432/06.0JDLSB-O.S1, e de 2.10.2014, proc. 154/11.0PAPNL.L1-B.S1, apud Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 2016, comentário ao artigo 446.º).

9. Constitui jurisprudência constante e uniforme deste tribunal a  de que a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência regulado nos artigos 437.º a 445.º do CPP depende da verificação de um conjunto de pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial [cfr., entre outros, os acórdãos de 11-7-2019, proc. 167/16.6GAVZL.C1-A, e jurisprudência nele mencionada, e ainda o recente acórdão do pleno das secções criminais de 8.7.2021, no Proc. 3/16.PBGMR-A.G1.S1, em www.dgsi.pt]. Verificam-se os pressupostos de natureza formal quando: (a) a interposição do recurso tenha lugar no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (acórdão recorrido); (b) o recorrente identifique o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição (acórdão fundamento), bem como, no caso de estar publicado, o lugar da publicação; (c) se verifique o trânsito em julgado dos dois acórdãos em conflito, e (d) o recorrente apresente justificação da oposição entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido que motiva o conflito de jurisprudência. Verificam-se os pressupostos de natureza substancial quando: (a) os acórdãos sejam proferidos no âmbito da mesma legislação, isto é, quando, durante o intervalo de tempo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida; (b) as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito controvertida, isto é, quando haja entre os dois acórdãos em conflito “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas; (c) a questão (de direito) decidida em termos contraditórios tenha sido objeto de decisões expressas, e (d) haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos em conflito, pois que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas.

10. Estabelecendo a devida correspondência com este regime (artigo 446.º, n.º 1, do CPP, in fine), a oposição revelada pelo acórdão recorrido há de verificar-se relativamente ao acórdão de fixação de jurisprudência, na resolução da mesma questão de direito perante idêntica situação de facto, devendo traduzir-se numa decisão expressa contrária à jurisprudência fixada, isto é, numa decisão proferida “contra” essa jurisprudência, que, como se disse, não sendo obrigatória, admite decisão divergente sujeita ao dever de especial fundamentação imposto pelo n.º 3 do artigo 445.º do CPP.

Uma decisão contra jurisprudência fixada é, pois, a decisão que, questionando essa jurisprudência, não a aceita. Só nestes casos se justifica o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, para que este a possa reexaminar se entender que está ultrapassada ou, não sendo caso disso, se limite a aplicá-la (artigo 446.º, n.º 3, do CPP). Não basta, pois, que a decisão recorrida não convoque ou deixe de aplicar a jurisprudência fixada, como se tem sublinhado [assim, designadamente, os acórdãos de 29-10-2020, proc. 185/19.2T9PTL-E.G1-A.S1 (Francisco Caetano) e jurisprudência nele mencionada, e de 13.11.2014, proc. 261/07.4PAALM-A.S1, cit., em www.dgsi,].

11. O acórdão de fixação de jurisprudência (AFJ) n.º 11/2005 do Supremo Tribunal de Justiça (publicado no DR Série I-A de 19.12.2005 ) verificou a oposição de julgados entre um acórdão do tribunal da Relação de Coimbra (acórdão recorrido) e um acórdão do tribunal da Relação de Évora (acórdão fundamento) quanto à mesma questão de direito, que era a de saber “qual o prazo de prescrição do procedimento da contra-ordenação prevista nos artigos 10.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 421/83, de 2 de Dezembro, considerada contra-ordenação muito grave à data da prática dos factos, ocorrida antes das alterações introduzidas pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, e que com a entrada em vigor do Código do Trabalho passou a ser considerada contra-ordenação grave”, tendo fixado jurisprudência nos seguintes termos: “Sucedendo-se no tempo leis sobre o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional, não poderão combinar-se, na escolha do regime concretamente mais favorável, os dispositivos mais favoráveis de cada uma das leis concorrentes”.

O acórdão confirmou o acórdão recorrido – em que se decidira que “a uma contra-ordenação laboral na qual os factos imputados ao arguido ocorreram em 4 de Dezembro de 2000 não é aplicável, no que respeita ao prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional, o prazo previsto na alínea b) do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na redacção do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, tendo em conta a alteração da moldura da coima aplicável operada pela entrada em vigor do Código do Trabalho e do respectivo regime sancionatório” –, “com o esclarecimento de que é de dois anos [artigos 27.º, alínea b), e 28.º do Decreto-Lei n.º 433/82, na versão anterior à Lei n.º 109/2001] o prazo de prescrição procedimental de uma contra-ordenação, anterior à Lei n.º 100/2001, originariamente punível com coima até 4900000$00 e, a partir de 1 de Dezembro de 2003, com coima até 40 UC”.

12. O acórdão recorrido, do tribunal da Relação do ….., julgou improcedente o recurso interposto pela recorrente “Preceram Norte, Cerâmicas, S.A.” e confirmou a decisão do Juízo Local Criminal ...... que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão administrativa proferida pela Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território que lhe aplicou uma coima no valor de €24.000,00, pela prática da contra-ordenação p. e p. nos termos do artigo 111°, n.º 2, al. a), do DL n.º 127/2013, de 30 de Agosto, que estabelece o regime de emissões industriais aplicável à prevenção e ao controlo integrados da poluição, bem como as regras destinadas a evitar e ou reduzir as emissões para o ar, a água e o solo e a produção de resíduos, transpondo a Diretiva n.º 2010/75/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de novembro de 2010, relativa às emissões industriais (prevenção e controlo integrados da poluição). Dispõe este preceito que: “2 - Constitui contraordenação ambiental grave, nos termos da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 89/2009, de 31 de agosto, a prática dos seguintes atos: a) O incumprimento da obrigação de assegurar que a exploração da instalação é efetuada de acordo com as obrigações estabelecidas no artigo 7.º”. (que dispõe sobre as obrigações gerais do operador, no âmbito da exploração da instalação).

No recurso perante a Relação a recorrente invocou a nulidade da sentença, alegando que esta que “não se pronunciou sobre a prescrição dos factos”, nem sobre “a aplicação ao caso concreto da norma legal mais favorável”, bem como a prescrição do procedimento pela contra-ordenação, alegando que “os factos constantes na acusação datam de 2012 e 2013, datando o auto de notícia de 17/3/2014 e a decisão administrativa de fevereiro de 2019”, pelo que, tendo decorrido o prazo de prescrição, de 5 anos, sobre a prática dos factos, aplicável às contraordenações graves (art.º 40.º, n.º 1 da lei n.º 50/2006), requereu “o arquivamento do processo por prescrição, com as necessárias consequências legais”.

Alegou também que deveria aplicar-se a lei mais favorável, dizendo que “dois factos jurídicos ocorreram: a emissão de nova Licença Ambiental, a LA nº 203/1.0/2017 e a Portaria nº 190-B/2018 de 2-7 que estabeleceram novos valores máximos de emissão para a recorrente”, pelo que “por aplicação do disposto no artº 4, nº 2 da Lei nº 50/2006 e do disposto no nº 4 do artº 2 do Código Penal” deveria a recorrente” ser absolvida do presente processo de contraordenação”.

Conhecendo do recurso, o tribunal da Relação:

a) Quanto à invocada nulidade, decidiu que não havia omissão de pronúncia quanto à alegada prescrição e que a sentença enfermava de nulidade quanto à omissão de pronúncia sobre a questão da aplicação da lei mais favorável, mas supriu essa omissão ao pronunciar-se sobre esta questão.

b) Quanto à prescrição do procedimento contraordenacional: tendo em conta o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais), no artigo 111.º, n.º 2, alínea a), do DL n.º 127/2013, de 30 de agosto, e nos artigos 27.º-A e 28.º n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, na redação da Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro, decidiu nos seguintes termos:

Nos presentes autos de recurso de contraordenação foi imputada à arguida uma contraordenação ambiental grave p. e p. nos termos do art. 111.º, n.º 2, alínea a), do DL n.º 127/2013, de 30/8. (…)

No caso presente, ocorreu a interrupção do prazo da prescrição com a notificação para o direito de audição em 2/6/2015, em 22/6/2015 com a pronúncia da arguida e em 1/2/2019 com a prolação da decisão administrativa, com o que se iniciou um novo prazo de prescrição em cada interrupção.

Considerando o prazo máximo de prescrição de 5 anos, acrescido de metade, a que acresce o prazo de suspensão de 6 meses, decorrente da pendência após a notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso, ou seja, um total de 8 anos (5 + 2 anos e 6 meses + 6 meses), face à data do último facto imputado à arguida – Dezembro de 2013 resulta que o prazo máximo da prescrição do procedimento contra-ordenacional ainda não decorreu.

Nesta conformidade, o procedimento contraordenacional ainda não se mostra prescrito, pelo que improcede este fundamento do recurso”.

c) Quanto à aplicação da lei mais favorável apreciou e decidiu assim:

“(…) na tese recursiva, nos termos do art. 4.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2006 deve aplicar-se a lei mais favorável ao arguido e uma vez que, após a prática dos factos, foi emitida uma nova Licença Ambiental - LA203/1.0/2017 - e entrou em vigor a Portaria n.º 190-B/2018, de 2/7, que estabeleceram novos valores máximos de emissão, por força da aplicação da lei mais favorável, impõe-se a absolvição da recorrente.

Salvo o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos não assistir razão à recorrente. Vejamos.

Desde logo, nos termos do art. 111.º, n.º 2, alínea a), do DL n.º 127/2013, de 30/8, constitui contraordenação grave “O incumprimento da obrigação de assegurar que a exploração da instalação é efetuada de acordo com as obrigações estabelecidas no artigo 7.º.”

Por sua vez, o referido art. 7.º, n.º 1, alínea a) prevê que são obrigações do operador, no âmbito da exploração da instalação, cumprir as condições de licenciamento especificamente estabelecidas.

Aquando dos factos, a arguida era titular da Licença Ambiental n.º 203/2008, emitida pela APA a 24/11/2008 e válida até 24/11/2013, sendo que em 15/11/2013, a APA prorrogou o prazo de validade da Licença Ambiental supramencionada até à decisão sobre a renovação da Licença, encontrando-se em vigor à data da inspeção.

Pese embora em 9/2/2017 tenha sido emitida uma nova Licença Ambiental – LA 203/1.0/2017 -, esta refere-se aos VLE adotados especificamente para a arguida e em 2/6/2018 foi publicada a Portaria n.º 190.º-B/2018 que se refere aos VLE adotados em termos gerais para o setor de atividade a que pertence a arguida, ou seja, reportam-se aos VLE.

Sucede que, no caso vertente, o que está em causa não são os VLE (Valor Limite de emissão), situação que, a verificar-se, se enquadraria numa contraordenação muito grave [art.111.º, n.º 1, alínea i)] mas antes o incumprimento por parte da arguida dos VEA (Valores de Emissão Associados às MDT) fixados na Licença Ambiental n.º 203/2008, pelo que tratando-se de realidades distintas, não há que confundi-las.

Acresce que uma Licença Ambiental tem um período de validade e estabelece determinados parâmetros a cumprir para esse período, sendo que uma posterior Licença Ambiental, reportando-se a um período de validade diferente, não tem aplicação a factos anteriores à emissão da Licença.

Não há, pois, aqui uma questão de aplicação da lei mais favorável, pelo que não colhe este fundamento do recurso.”

13. No presente recurso, como certeiramente nota a Senhora Procuradora-Geral Adjunta em seu parecer, a recorrente, sem se preocupar em demonstrar a oposição de julgados, limita-se a reeditar a sua tese da sucessão de leis, sustentada no recurso perante a Relação, de que resultaria a aplicação de um regime mais favorável, concluindo que o acórdão da Relação, “ao não aplicar o regime mais favorável ao arguido, (…) vai contra a jurisprudência fixada no Acórdão n.º 11/2005 do Supremo Tribunal de Justiça “ e pedindo que seja “corrigido nos termos e para os efeitos do art.º 446 do CPP, com as necessárias consequências legais”.

Ora, como se vê do acórdão recorrido, o tribunal da Relação nem sequer se confrontou com uma questão de escolha do regime mais favorável à contraordenação, resultante de sucessão de leis no tempo, nomeadamente quanto à tipificação e sancionamento da infração, com incidência sobre o prazo de prescrição do procedimento contraordenacioanal, em que se poderia equacionar a convocação da jurisprudência fixada no acórdão n.º 11/2005, nem a ele se referiu.

Pelo contrário, dando por assente que a arguida praticou “uma contraordenação ambiental grave p. e p. nos termos do art. 111.º, n.º 2, alínea a), do DL n.º 127/2013, de 30/8”, excluiu-a, dizendo expressamente que “no caso vertente, o que está em causa não são os VLE (Valor Limite de emissão), (…) mas antes o incumprimento por parte da arguida dos VEA (Valores de Emissão Associados às MDT) fixados na Licença Ambiental n.º 203/2008, pelo que tratando-se de realidades distintas, não há que confundi-las” e concluindo que “não há aqui uma questão de aplicação da lei mais favorável”.

Ao não convocar a aplicação do AFJ n.º 11/2015 e ao não questionar a sua aplicação ao caso sub judice, o acórdão recorrido nem sequer constituiu a base necessária à formulação de uma decisão divergente, de não aceitação da jurisprudência nele fixada, de modo a permitir identificar a “oposição” suscetível de, na perspetiva do recorrente, justificar o recurso (supra, 8 e 10), justificação que, como se viu, não se satisfaz com mera alegação de não aplicação.

14. Pelo que, inexistindo, no acórdão recorrido, decisão “contra” jurisprudência fixada AFJ n.º 11/2015, que, nos termos do n.º 1 do artigo 446.º do CPP, possa constituir pressuposto do recurso, se deve concluir pela sua inadmissibilidade.

Nos termos do disposto no artigo 441.º, n.ºs 1 e 3, do CPP o recurso é rejeitado, em conferência, se o tribunal concluir pela inadmissibilidade ou pela não oposição de julgados.

Quanto a custas e sanção processual

15. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 1 e 5 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Em conformidade com o disposto no artigo 420.º, n.º 3, do CPP, aplicável ex vi artigo 448.º do CPP, se o recurso for rejeitado, o tribunal condena o recorrente, se não for o Ministério Público, ao pagamento de uma importância entre 3 UC e 10 UC.

III. Decisão

16. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Rejeitar, por inadmissibilidade, o recurso extraordinário contra jurisprudência fixada interposto por “Preceram Norte, Cerâmicas, S.A.”;

b) Condenar a recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 2 UC;

c) Condenar a recorrente no pagamento da importância de 4 UC, nos termos do artigo 420.º, n.º 3, do CPP.


Supremo Tribunal de Justiça, 3 de novembro de 2021.


José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria da Conceição Simão Gomes