Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA | ||
Descritores: | TÍTULO EXECUTIVO EUROPEU CRÉDITOS NÃO CONTESTADOS OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO FUNDAMENTOS DECISÃO JUDICIAL INJUNÇÃO FALTA DE CONTESTAÇÃO CASO JULGADO MATERIAL PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO INTERPRETAÇÃO DA LEI DIREITO COMUNITÁRIO REENVIO PREJUDICIAL EXECUÇÃO DE DECISÃO ESTRANGEIRA INCONSTITUCIONALIDADE TÍTULO EXECUTIVO UNIÃO EUROPEIA | ||
Data do Acordão: | 09/21/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO EUROPEU - TÍTULO EXECUTIVO EUROPEU PARA CRÉDITOS NÃO CONTESTADOS. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 729.º, AL. G). | ||
Legislação Comunitária: | REGULAMENTO (CE) N.º 805/2004: - ARTIGO 4.º, 13.º, 20.º, N.ºS 1 E 8. | ||
Jurisprudência Internacional: | TJUE: -ACÓRDÃO DE 16/6/2016, PROC. C-511/14. | ||
Sumário : | I - Conforme tem sido afirmado pelo TJUE, “decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União Europeia, interpretação essa que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (acórdão de 5 de Dezembro de 2013, Vapenik, C-508/12, EU:C:2013:790, n.º 23 e jurisprudência referida)” – acórdão de 16/6/2016, proc. C-511/14. II - A definição de “Decisão”, constante do art. 4.º do Regulamento (CE) n.º 805/2004 (que criou o título executivo europeu para créditos não contestados) é perfeitamente clara quanto à respectiva interpretação e aplicação ao caso concreto, não se justificando, portanto, proceder ao reenvio prejudicial para o TJUE. III - Estando em causa uma decisão jurisdicional – posto que não há qualquer dúvida de que a decisão certificada nos autos como título executivo europeu por um tribunal italiano constitui, para efeitos do referido Regulamento, uma decisão – e não uma injunção, não valem aqui as razões subjacentes à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, “da norma constante do art. 857.º, n.º 1, do CPC (…) quando interpretada no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução instaurada com base em requerimentos de injunção à qual foi aposta fórmula executória”. IV - Não pode ser invocado como fundamento de oposição à execução, que tem por base a decisão do tribunal italiano, um facto extintivo da obrigação exequenda que seja anterior ao início do processo nesse tribunal ou, mais rigorosamente, à citação nele efectuada nos termos certificados. V - A limitação temporal constante do art. 729.º, al. g), do CPC está relacionada com a eficácia temporal do caso julgado material formado pela decisão (quando esta se torna definitiva) e com a regra da preclusão da defesa na contestação; esta inadmissibilidade ou preclusão vale nesta execução, tal como valeria na execução de uma sentença transitada em julgado, proferida por um tribunal português, numa acção não contestada, tanto mais que a decisão certificada como título executivo europeu é executada no Estado de execução “nas mesmas condições que uma decisão proferida” nesse mesmo Estado (art. 20.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 805/2004 e considerando n.º 8). | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:
1. No âmbito da execução sumária movida por AA, Srl., contra BB LDA – ..., Lda., no valor de € 112.118,00, com base num título executivo europeu proveniente do Tribunal de Cremona, Itália (cfr. requerimento executivo, certificado a fls. 16), a executada deduziu “oposição à execução e à penhora com pedido de suspensão da execução” (cfr. fls. 29, v.). Para o que especialmente releva para o presente recurso, a executada veio alegar ter pago até 20/10/2003 a totalidade do preço correspondente ao contrato invocado na execução, celebrado através de um representante da exequente, CC, a quem sempre foram feitos os pagamentos parciais, e que lhe deu quitação do pagamento de todo o preço devido, em 31/10/2003; e que, “nunca, desde 2003 até 2012, data em que a ora oponente recebeu o (…) documento do Tribunal de Cremona (…), quer a exequente, quer o seu representante, reclamaram o que quer que fosse à oponente (…)”. No despacho saneador (fls.64) decidiu-se, por entre o mais, que não procedida “ a excepção [de falta de título válido, exequível e inteligível] invocada pelo embargante”, por contrariar “a certificação como título executivo europeu, o que não é admissível” e definiram-se o objecto do litígio e o tema de prova – “saber se a embargante pagou à embargada a quantia exequenda” –, como alegara na petição de embargos. Pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls.111, que revogou a decisão sumária proferida na apelação interposta pela exequente (fls. 72), com o objectivo de que os embargos fossem julgados inadmissíveis, nos termos do artigo 729º do Código de Processo Civil, e que procedesse a correspondente contestação, foram liminarmente indeferidos os embargos de executado, determinando-se “o normal andamento dos termos da execução”. Para assim decidir, a Relação considerou que “ao admitir a oposição deduzida pela embargante nos termos do disposto no artº 729º, al. g) do C. P. Civil, ao não julgar totalmente improcedentes os embargos de executado sem necessidade de realização de audiência de discussão e julgamento e ao não ordenar o normal andamento da execução até final – violou, designadamente, o disposto no invocado artº 729º, do C. P. Civil” e 857º do mesmo Código, aplicáveis por força do disposto no nº 1 do artigo 20º do Regulamento (CE) 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, uma vez que o pagamento invocado nos embargos “é anterior (…) à citação da embargante efectuada pelo Tribunal de Cremona, ocorrida em 2012, pelo que, porque não houve contestação naquela acção instaurada no tribunal italiano, deve ter-se por adquirido que a ora embargante não pagou a peticionada dívida e, assim, o referido título executivo europeu deve abranger a quantia aí peticionada, ou seja, a ora quantia exequenda”. E recordou ainda que, de acordo com o nº 2 do artigo 21º do Regulamento, o Estado da execução não pode rever o mérito, nem da decisão, nem da sua certificação como título executivo europeu. O acórdão de fls. 111 referiu ainda que no recurso “tramitado no Apenso nº 53/14.4T8CBR-E.C1” havia sido proferida em 5 de Julho de 2016 decisão sumária que, “julgando improcedentes os embargos de executado deduzidos pela recorrente BB, declarou válido e exequível o Título executivo europeu dado à execução e ordenou o normal andamento dos autos de execução”. Este acórdão de fls. 111 foi completado pelo acórdão de fls. 166, aprovado na sequência do despacho de fls. 161, no qual se decidiu que, contrariamente ao alegado pela apelante, não era inconstitucional a norma constante do nº 2 do artigo 21º do Regulamento (CE) nº 805/2004, não devendo, por conseguinte, ser recusada a respectiva aplicação. E foi ainda junta cópia da decisão proferida no apenso 53/14.4T8CBR-E.C1, com a indicação de ter transitado em julgado. Ficou assim a conhecer-se neste recurso – que, tal como a apelação, subiu em separado – o teor dessa decisão, e pode verificar-se que as questões colocadas na revista foram já parcialmente resolvidas com força de caso julgado no presente processo. A fls.178, a recorrente veio alargar o âmbito do recurso, invocando o suprimento da nulidade operado pelo acórdão de fls. 166.
2. Nas alegações de revista foram formuladas as conclusões seguintes, que se transcrevem parcialmente: 4 - Com efeito, o Tribunal Italiano "limitou-se" a ordenar à ora recorrente que 5 - Nenhuma outra intervenção teve o Tribunal italiano através do sr. magistrado titular do processo, designadamente, não foi proferida qualquer decisão, após análise do comportamento processual da Ré, isto é, não houve qualquer "sentença" proferida pelo Tribunal Italiano após constatar a revelia (alegadamente operante) da Ré, sentença essa que, por não existir, não foi notificada à mesma, como obrigatoriamente teria de ser. 6 - Ora, a mera leitura do documento notificado à ora recorrente por qualquer pessoa com um entendimento médio – o bonus pater familiae – permite constatar e concluir sem nenhuma margem para dúvidas que as indicações do prazo para oposição, a obrigatoriedade, ou não, de se fazer representar por um advogado, as consequências da falta de contestação e a sua responsabilidade pelos custos da acção, não constam da notificação do documento que dá início à instância e que é, aliás, o único documento emitido pelo tribunal italiano, o que permite, portanto, fazer o Tribunal Português perceber e constatar que o constante do ponto 11.2 do modelo italiano da Certidão de Título Executivo Europeu, dado à execução, não corresponde à verdade, não tendo o devedor sido informado em conformidade com os artigos 16° e 17° do Regulamento. 7 - Por outro lado, os pontos 13.1, 13.2 e 13.3 referem-se à comunicação da decisão tomada após o decurso do prazo para contestar (característica, aliás, de qualquer "Sentença") e, consequentemente, querem forçosamente referir-se a uma nova comunicação ao devedor, necessariamente diferente da notificação do documento que deu início à instância e que sanaria este – documento esse que não existe, pois a existir teria sido junto ao presente processo, por tal ser obrigatório nos termos do artigo 20° n° 2, alínea a) do Regulamento (CE) n° 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21/04/2001. 8 - Ou seja, após o decurso do prazo da contestação, não foi proferida qualquer sentença, como se alcança facilmente pelos documentos juntos, não tendo sido efectuada qualquer nova notificação à Ré, comunicando-lhe a (inexistente) sentença contra si proferida. 13 - Ou seja, ao contrário do alegado pelo exequente e aparentemente aceite 14 - Com efeito, a interpretação que o douto Tribunal da Relação (e a 15 - Ora, nenhum dos argumentos agora explanados pela recorrente foi 20 - Como se disse já, a mera leitura do documento notificado à ora 23 - Não tendo sido efectuada uma nova notificação ao devedor, 24 - Qualquer interpretação do referido artigo 18°, n° 1 do Regulamento (CE) n° 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21/04/2001,diferente da agora exibida, designadamente, a interpretação daquele artigo 18° no sentido de 25 - O documento dado à execução é, como se demonstrou, inválido e inexequível, o que resulta à saciedade da simples leitura do mesmo, que permite concluir que não foram respeitados, nem assegurados os direitos de defesa da ora recorrente, pelo que não pode o Estado-Membro de execução deixar de ter competência, ou seja, o poder e o dever de verificar e decidir, não o mérito da causa, mas o cumprimento dos requisitos processuais para que a decisão proferida possa ser executada, sob pena de violação séria, grave e de impossível reparação dos princípios fundamentais do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, da legalidade e da igualdade. 26- Pelo que podia e devia o tribunal de 1a instância e o douto Tribunal a quoter decidido a desaplicação do artigo 21°, n° 2 do Regulamento (CE)n°805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21/04/2001, porestanorma,conjugada com a correcta interpretação do artigo 18° do mesmo regulamento, violar os artigos 8o, 27 - Ao decidir da forma constante do douto acórdão proferido, violou o douto Tribunal a quo, entre outros, o disposto nos artigos 729°, 731° e 857° do Código de Processo Civil, 13°, 14°, 16°, 17°, 18° e 21°, n° 2 do Regulamento (CE) n° 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21/04/2001, 8o n° 4, 9°, alínea b), 13°, 18°, e 20° da Constituição da República Portuguesa, o acórdão do Tribunal Constitucional n° 388/13 de 09/07 e ainda os princípios constitucionalmente consagrados da legalidade, do acesso ao direito e aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva, da igualdade e do direito a um processo equitativo. Termos em que e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, e, consequentemente, ser revogado o douto acórdão proferido, tudo com todas as legais consequências. JUSTIÇA!»
O recurso de revista foi admitido.
Na ampliação de fls. 178, a recorrente formulou as seguintes conclusões adicionais: «1-A – (…) 2-A – Partindo da hipótese – que se não aceita, como adiante se explanará – que existe um título válido e eficaz, temos então que nenhuma reparo ou censura merecem nem o douto despacho saneador proferido, nem a douta decisão singular do Tribunal da Relação que o confirmou, porquanto podia e devia aquele ter enunciado o objecto do litígio e identificado o tema da prova, o que fez correctamente. 3-A – No caso concreto, a ora recorrente não pode defender-se no tribunal italiano, por não perceber o que lhe era dito acerca de tal matéria – o que é perfeitamente verificável em Portugal e possivelmente escapou ao tribunal italiano (sem qualquer culpa sua, pois confiou no tradutor) – e, a manter-se a decisão recorrida, não poderá defender-se no tribunal português, ou seja, não pode defender-se em lado nenhum! 4-A – E não pode o princípio da segurança jurídica, e muito menos neste caso concreto, sobrepor-se ao direito fundamental do acesso ao direito e aos tribunais e uma tutela jurisdicional efectiva, antes devendo ceder perante este direito fundamental. 5-A – Mantendo-se as inconstitucionalidades invocadas e que devem ser declaradas.»
Em contra-alegações, a embargada começou por suscitar, como questão prévia, a inadmissibilidade do recurso, por estar já decidido com força de caso julgado que o título executivo é válido e eficaz (apenso E) e, se assim se não entendesse, a sua improcedência, concluindo assim, quanto a esta:
(…) 28. Assim, bem estiveram os Mmos. Juízes a quo, ao considerarem a oposição apesentada como inadmissível, indeferindo-o liminarmente por falta de fundamento legal, uma vez que não estão ao abrigo de nenhum dos fundamentos previstos no art. 729 cpc, estando os autos em condições para prolação de sentença e por conseguinte ser julgada procedente a contestação da Embargada, prosseguindo a execução seu termos. Pede-se assim que o presente recurso não seja admitido (…) e, caso assim não se entenda (…), seja o recurso considerado improcedente (…).»
Em resposta ao alargamento de fls. 178, a recorrida veio reiterar o seu acordo ao acórdão recorrido e, portanto, à improcedência do recurso. Salientam-se as seguintes conclusões: «(…). 5. Por conseguinte, conforme douto acórdão recorrido, equiparando o Reg. Comunitário 805/2004 uma decisão italiana a uma decisão portuguesa, à presente execução apenas poderão ser admitidos como fundamentos para oposição, os do art. 729º CPC, isto é, ‘Fundamentos de oposição à execução baseada em sentença’. 6. Não estamos perante uma situação em que, conforme alega a recorrente, o princípio da segurança jurídica se sobrepõe ao princípio do acesso ao direito e aos tribunais. Estamos sim perante o casamento perfeito entre ambos, pois é permitido o acesso ao direito e aos tribunais sempre, mas evitando a discussão da mesma temática vezes sem fim, daí o legislador ter criado mecanismos como o instituto despacho revelia operante e inoperante e a (im)possibilidade de invocar argumentos em sede de execução que deveriam ter sido levantados em sede de acção declarativa, evitando-se assim maior morosidade na justiça! Já quanto a matéria/factos novos, modificativos ou extintivos da obrigação existentes posteri9ormente à acção declarativa, o legislador não levantou quaisquer limitações, como é óbvio (art. 729º al.g)). 7. A embargante/ recorrente alega no seu articulado o suposto pagamento à embargada da quantia exequenda. No entanto, esse alegado pagamento – que a recorrida reitera que não recebeu – é anterior à acção judicial que correu termos em Itália, pois a embargante alega pagamentos de 2001 e 2003, tendo sido citada para a acção italiana em 17.10.2012, e como tal fora dos motivos elencados no art. 729º CPC e motivo pelo qual não é admissível a sua discussão. 8. Discutir o tema de prova enunciado de ‘saber se a embargante pagou à embargada a quantia exequenda’ é entrar no mérito da causa, pois os factos alegados são anteriores à sentença emitida pelo tribunal italiano e respectivo título executivo europeu. Or seja, o tribunal português está a rever no mérito uma decisão jurisdicional italiana, em violação do estabelecido no Reg CE 805/2004; Reg CE 44/2001 e subsequente Reg CE 1215/2012. 9. A embargante, ao apresentar uma oposição com base em certos fundamentos que estão fora dos legalmente admissíveis não pode ter outra consequência, que não seja a rejeição da mesma, não sendo tal situação, de todo, inconstitucional, não tendo a decisão proferida violado a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente os princípios da legalidade, acesso ao direito e aos tribunais, e a uma tutela jurisdicional efectiva, da igualdade e do direito a um processo equitativo.»
3. Os factos relevantes resultam do relatório. O objecto do recurso reduz-se a saber se, no presente processo executivo, é admissível alegar como fundamento de oposição à execução um pagamento da dívida exequenda anterior à citação ou notificação da embargante, efectuada, segundo consta do certificado de título executivo europeu – decisão judicial junta a fls. 23v., nos termos do artigo 13º do Regulamento (CE) 805/2004 (cfr. ponto 11, fls. 24v.). A recorrente coloca ainda a seguinte questão de constitucionalidade: “a interpretação que o douto Tribunal da Relação (e a exequente) faz da conjugação do artigo 20° n° 1 com o artigo 21° n° 2 do Regulamento (CE) n° 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 21/04/2001 e seguida pelo douto Tribunal da Relação, interpretando-os no sentido de que está vedado ao Estado-Membro de execução qualificar processualmente como Injunção a decisão dada à execução e, consequentemente, admitir oposição Observa-se desde já que a delimitação do objecto do presente recurso, que desconsidera as questões relativas à validade, exequibilidade e inteligibilidade (aqui incluída a questão da tradução) da decisão italiana, certificada como título executivo europeu, se explica pela circunstância de tais questões se encontrarem decididas com força de caso julgado no presente processo pela decisão proferida no Apenso 53/14.4T8CBR-E.C1, junto ao recurso na sequência do despacho de fls. 161, como se disse já. Não serão, portanto, apreciadas; mas essa circunstância não impede a admissão do recurso, uma vez que não esgota as questões directa ou indirectamente colocadas pela recorrente.
4. A recorrente insiste em que a decisão italiana que constitui o título executivo seja tratada como injunção, por razões de todos conhecidas. O acórdão nº 264/2015 do Tribunal Constitucional, de 12 de Maio de 2015, reiterando a orientação formulada pelo acórdão nº 388/2013 do Tribunal Constitucional quanto ao nº 2 do artigo 814º do anterior Código de Processo Civil, na redacção resultante do Decreto-Lei nº 226/2008, de 20 de Novembro, que o declarara inconstitucional, com força obrigatória geral, “quando interpretado “no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução instaurada com base em requerimentos de injunção à qual fo[ra] aposta a fórmula executória, por violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.º 1 da Constituição”, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, «da norma constante do artigo 857.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, quando interpretada “no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução instaurada com base em requerimentos de injunção à qual foi aposta a fórmula executória”», também “por violação do princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”. Julgou-se assim que as alterações introduzidas pelo Código de Processo Civil de 2013, quanto aos termos possíveis da oposição a uma execução baseada numa injunção a qual foi aposta a fórmula executória, eram irrelevantes para a questão da conformidade constitucional. O acórdão recorrido considerou que, tendo em conta a proibição de revisão do mérito da decisão italiana, certificada como título executivo europeu – nº 2 do artigo 21º do Regulamento nº 805/2004 –, nunca a alegação do pagamento poderia ser admitida no caso presente, não relevando saber se a execução se baseia “em sentença ou em requerimento de injunção ao tenha sido aposta a fórmula executória” (fls. 116). A recorrente pretende, assim, que se recuse a aplicação do nº 2 do citado artigo 21º do Regulamento nº 805/2004 com fundamento em inconstitucionalidade, entendendo desconforme com os princípios constitucionais que refere ser impossível considerar a concreta decisão italiana como uma injunção e, portanto, permitir a discussão de todos os fundamentos que poderiam ser invocados como meio de defesa numa acção declarativa.
5. Mas, na verdade, no contexto da afirmação de inconstitucionalidade da recorrente, nem interessa saber se os tribunais portugueses estão ou não impedidos de “qualificar processualmente como Injunção a decisão dada à execução” no presente processo, para usar os termos em que a recorrente se exprime. Para além de se tratar de uma decisão proveniente de um juiz, o que faz toda a diferença numa ordem jurídica, como a portuguesa, em que o juiz não tem intervenção quando o secretário judicial apõe a fórmula executória numa injunção sem oposição, a verdade é que, se fosse possível que os tribunais portugueses avaliassem se a decisão do tribunal italiano deve ou não ser considerada como uma decisão jurisdicional para os efeitos do nº 1 do artigo 4º do Regulamento 805/2004, chegar-se-ia à conclusão de que essa decisão contém os elementos necessários para ser tratada como sentença, mesmo à luz da lei portuguesa. Recorde-se, aliás, que a não intervenção de um juiz é o fundamento essencial do julgamento de inconstitucionalidade atrás referido. É todavia certo que não se pode recorrer à lei interna (do Estado da execução, neste caso, Portugal) para interpretar o sentido que deve ser atribuído às decisões definidas no nº 1 do artigo 4º do Regulamento 805/2004, com o objectivo de saber se a decisão do Estado de origem (Itália, no caso) deve ser havida como sentença ou como injunção, para efeitos de determinação do âmbito de oposição à execução (cujos trâmites e condições da execução se regem pela lei portuguesa, nº 1 do artigo 20º do Regulamento). Na verdade, como todos sabemos e foi mais uma vez recordado, por exemplo, no acórdão de 16 de Junho de 2016 do Tribunal de justiça da União Europeia, processo).” C‑511/14, Pebros Servizi srl contra Aston Martin Lagonda Ltd,“decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União Europeia, interpretação essa que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e o objectivo prosseguido pela regulamentação em causa (acórdão de 5 de Dezembro de 2013, Vapenik, C‑508/12, EU:C:2013:790, n.º 23 e jurisprudência referida)”. Ora, a definição de decisão constante do artigo 4º do Regulamento – “Para efeitos do presente regulamento, aplicam-se as seguintes definições: 1. «Decisão»: qualquer decisão, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como a fixação, pelo secretário do tribunal, do montante das custas ou despesas do processo.” – é perfeitamente clara quanto à respectiva interpretação e aplicação ao caso concreto. Não se justifica, no entender deste Supremo Tribunal, a suspensão da execução e o pedido de interpretação ao Tribunal de Justiça da União Europeia, como questão prejudicial. Nem nenhuma das partes, nem nenhuma das instâncias suscitou a questão, e o Supremo Tribunal de Justiça não tem qualquer dúvida de que a decisão certificada como título executivo europeu pelo Tribunal de Cremona é uma decisão, no sentido do nº 1 do artigo 4º acabado de transcrever, e uma decisão jurisdicional.
6. Mas suponha-se, apenas para efeitos de raciocínio, que era possível que os tribunais portugueses recorressem à lei portuguesa para avaliar se a decisão do tribunal italiano deve ser considerada como uma decisão jurisdicional – como uma sentença, no caso concreto – ou como uma injunção, ou seja, para interpretar o sentido que deve ser atribuído às decisões previstas no nº 1 do artigo 4º do Regulamento 805/2004, e se a decisão sob execução estava abrangida por esse sentido. Ainda assim, e contrariamente ao que afirma a recorrente, concluir-se-ia que a referida decisão contém os elementos necessários para ser considerada como sentença, mesmo à luz da lei portuguesa. Com efeito, e tendo como referência os argumentos constantes da conclusão 13ª, na qual a recorrente, invocando o artigo 607º do Código de Processo Civil, sintetiza as razões pela qual “o documento dado à execução não contém qualquer elemento que o possa fazer equipara-se a uma sentença portuguesa”, sempre se acrescenta que tal afirmação não corresponde à lei portuguesa: cfr. nº 2 do artigo 152º do Código de Processo Civil (noção de sentença), nº 1 do artigo 153º (requisitos externos) e nº 3 do artigo 567º (simplificação da sentença proferida em processo não contestado). Por esta razão, não se aprecia a questão de constitucionalidade tal como foi formulada pela recorrente, por inutilidade: com efeito, também a lei portuguesa impediria o tratamento da decisão do Tribunal de Cremona como injunção.
7. Não pode pois ser invocado como fundamento de oposição à decisão do Tribunal de Cremona um facto extintivo da obrigação exequenda que seja anterior ao início do processo nesse Tribunal, ou, se formos mais rigorosos, à citação nele efectuada (nos termos certificados). Como todos sabemos, a limitação temporal constante da al. g) do artigo 729º do Código de Processo Civil, que é o preceito a que naturalmente nos estamos a referir, está relacionada com a eficácia temporal do caso julgado material formado pela decisão, quando se torna definitiva, e com a regra da preclusão da defesa na contestação. Esta inadmissibilidade – ou preclusão, se quisermos – vale nesta execução, tal como valeria na execução de uma sentença proferida numa acção não contestada transitada em julgado proferida por um tribunal português. Recorde-se mais uma vez, e a terminar, que uma decisão certificada como título executivo europeu será executada no Estado de execução “nas mesmas condições que uma decisão proferida” nesse mesmo Estado (nº 1 do artigo 20º do Regulamento (CE) 805/2004 e considerando nº 8.
8. Assim sendo, resta negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Nestes termos, nega-se provimento ao recurso. Custas pela recorrente.
Lisboa, 21 de Setembro de 2017
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora) Salazar Casanova Távora Victor |