Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22/17.2T8CLB.C1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
TU QUOQUE
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
ATIVIDADE COMERCIAL
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
Data do Acordão: 12/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E REPRISTINADA A SENTENÇA DA 1ª INSTÂNCIA
Sumário : A proibição do venire contra factum proprium é um afloramento do princípio da protecçãoou da tutela da confiança —e, em consequência, o preenchimento dos requisitos específicos da proibição do venire contra factum proprium depende do preenchimento dos requisitos gerais da tutela da confiança.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. — RELATÓRIO

  1. CC, residente em ..., intentou contra AA e mulher BB, residentes em ...., acção declarativa pedindo que os réus sejam condenados a:

a) afectar a fracção autónoma de que são proprietários ao fim de comércio a que a mesma se destina, não a utilizando, nem arrendando ou autorizando, por qualquer meio, a sua utilização por terceiros para a actividade de restauração e bebidas, abstendo-se e exigindo a abstenção de terceiros que a ocupem emitindo fumos, cheiros e ruídos perturbadores da saúde e descanso da autora;

b) a pagar à autora, a título de sanção pecuniária compulsória, o valor diário de 200 € desde a data da sua citação até que a aludida fracção seja afecta ao fim de comércio e não de restauração e bebidas e cessem as emissões de fumos, cheiros e ruídos;

c) a proceder ao levantamento das condutas de extracção de fumo, do “hot”, do respiradouro e dos aparelhos de ar condicionado instalados no edifício sob apreciação, repondo as partes comuns do edifício no mesmo estado em que se encontravam anteriormente à sua instalação;

d) e a pagar à autora o valor de 6000 €, a título indemnizatório, acrescidos de juros de mora vincendos, à taxa legal supletiva, actualmente de 4%, contabilizados desde a data da sua citação e até integral pagamento.

  2. Os Réus AA e BB contestaram, alegando abuso de direito, nas modalidades de tu quoque e de venire contra factum proprium, e deduziram reconvenção, pedindo que a Autora seja condenada:

a) a afectar a fracção designada por CC-Um ao fim de garagem a que a mesma se destina, não a utilizando, nem arrendando ou autorizando, por qualquer outro meio, a sua utilização para a actividade de “serviços”;

b) a demolir a instalação sanitária, construída na sua garagem e remover as caixas de esgoto doméstico e todos os canos de ligação ao saneamento principal do prédio.

  3. A Autora CC replicou, dizendo que não há, de sua parte, abuso do direito; que, ao exercer a actividade de vidente na sua garagem, não excede o uso residencial da fracção; que há abuso do direito da parte dos autores; e que deve ser absolvida do pedido reconvencional deduzido.

 4. O Tribunal de 1.ª instância proferiu sentença que:

  I. — julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus de todos os pedidos formulados na petição inicial;

 II. — declarou a inutilidade superveniente da lide quanto ao primeiro pedido reconvencional formulado e, em consequência, declarou extinta a instância nessa parte;

 III. – julgou totalmente improcedente o segundo pedido reconvencional formulado e, em consequência, absolveu a Autora desse pedido.

  5. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação.

 6. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

I – Salvo o devido respeito, que é muito - mal andou o Tribunal a quo.

II – Conforme decorre do disposto nos artigos 154.º e 615.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil, as decisões judiciais proferidas carecem, sempre, de condigna fundamentação, bastante para permitir aos intervenientes processuais alcançar o processo lógico-dedutivo que conduziu à decisão final proferida pelo julgador, sob pena de nulidade, designadamente, da sentença proferida.

III – A mera menção telegráfica, junto dos factos provados, dos meios de prova que conduziram a tal decisão, quando não acompanhada de uma resenha que permita alcançar o raciocínio do julgador que determinou tal conclusão, cominando a necessidade das partes e do Tribunal ad quem ouvirem as gravações dos depoimentos elencados para, subsequentemente, tentar alcançar o raciocínio do julgador, não configura um preenchimento do dever de fundamentação que sobre ele impende, tendo como consequência a nulidade da sentença em crise.

IV – Salvo o devido respeito, que é muito, entende a Autora que, atenta a prova produzida nos presentes autos, foram incorrectamente julgados os seguintes pontos de facto dos “FACTOS PROVADOS” que se impugnam: 6, 24, 25, 28, 29, 34, 37, 47, 48, 49, 50, 54, 56 e 62.

V – Os aludidos pontos de facto deveriam ser julgados nos seguintes moldes, em virtude dos meios probatórios especificamente indicados em sede das alegações supra, que aqui se dão por integralmente reproduzidos: 6 - Essas condutas têm saída última pela chaminé do edifício, passando pelo interior da corete do mesmo, por uma tubagem dedicada exclusivamente à fracção dos Réus, e pela fachada posterior do edifício; 24 - Para darem cumprimento às exigências legais dos requisitos exigidos pelo Município para a actividade de restauração e bebidas, os Réus procederam à execução das obras tidas por necessárias para o efeito na sua fracção, objecto de projecto, e ainda à instalação de um sistema de extracção de fumos na garagem, com saída pela fachada posterior do edifício, mediante prévio recurso à alteração do projecto em sede de “loteamento” e notificação dos seus confinantes ao invés dos condóminos; 25 - Os Réus colocaram condutas de extracção de fumos cuja saída é efectuada por uma tubagem interna, que existe desde raiz, desde a construção do edifício, na sua fracção, independente da tubagem principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125mm, inferior ao de 180mm verificado no interior da fracção; 28 – Não provado; 29 - As obras mencionadas foram objecto de reclamação em reunião de assembleia de condóminos; 34 - Existem no local onde se situa o restaurante em apreço cheiros, odores e barulhos provenientes do mesmo, os quais perturbam o sossego e bem-estar de quem ali reside, nomeadamente, da Autora, assim como fumos oriundos do sistema de extracção de fumos da fracção dos Réus; 37 - A queixa apresentada foi arquivada, junto da Provedoria da Justiça, por se considerar, erroneamente, que a queixosa “se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade; 47 - Não provado; 48 - À data da aquisição da fracção pelos Réus, esta estava dotada de raiz, desde a construção do edifício, de uma tubagem independente da principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125 mm, inferior ao de 180 mm verificado no interior da fracção; 49 - A Autora é conhecida no concelho como vidente, fazendo-o ao longo dos anos, pelo menos, num dia indeterminado da semana e aos sábados, sendo que, até ao ano passado, exercia tal função na garagem afecta à sua fracção, na qual construiu uma divisória onde colocou uma instalação sanitária para se servir dela e facultar tal possibilidade às pessoas que ajudava semanalmente; 50 - A utilização que a Autora deu à sua garagem e, depois, habitação propriamente dita, foi levada a cabo sem autorização dos demais condóminos mas com o conhecimento dos Réus que jamais se manifestaram contra tal comportamento; 54 - A Autora procedeu na garagem à colocação de uma divisória e instalação sanitária com a intenção de que fossem utilizadas por si e por quem ajudava enquanto vidente; 56 - As obras efectuadas pela Autora foram-no sem autorização dos Réus ou demais condóminos do edifício mas com o conhecimento dos Réus que jamais se manifestaram contra as mesmas; e 62 - A Autora recebia como gratificação pela ajuda prestada entregas em espécie – como garrafões de azeite e batatas – e noutras vezes quantias monetárias que medeiam entre os € 5,00 (cinco euros) e os € 30,00 (trinta euros).

VI – Entende a Autora, contrariamente ao Tribunal a quo, que, atenta a prova efectivamente produzida nos presentes autos, deverão ser dados por provados os seguintes pontos de facto dos “FACTOS NÃO PROVADOS” que igualmente se impugnam: 1, 5, 7, 8, 11, 12, 15 e 34.

VII – Devendo ser julgados nos seguintes moldes, em virtude dos meios probatórios especificamente indicados em sede das alegações supra, que aqui se dão por integralmente reproduzidos: 1 – A Autora aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante; 5 – A Autora vê a sua fracção e o interior do edifício constantemente invadidos de maus cheiros provenientes do sistema de extracção propriedade dos Réus; 7 – O restaurante instalado na fracção propriedade dos Réus mantém-se aberto em dias de festa, até, pelo menos, as 23h00; 8 – Em consequência, a Autora vê a sua tranquilidade perturbada com ruído efectuado pelos clientes e funcionários, no período nocturno, designadamente, aquando da limpeza e arrumação do estabelecimento no final da jornada de trabalho; 11 – Ocorreram infiltrações de água pelo tecto e paredes da garagem da Autora; 12 – Causando, inevitavelmente, o levantamento da tinta ali aplicada e do estuque e o enegrecimento de tais estruturas, carecendo, para a sua reparação, de ser efectuada a sua pintura, com duas de mão, com tinta plástica de igual qualidade à ali existente, com custo nunca inferior a € 500,00 (quinhentos euros); 15 – A Autora tem dificuldade em dormir em virtude do ruído causado pelo funcionamento do restaurante, havendo, inclusivamente, alterado a sua rotina; e 34 – A esplanada do restaurante em apreço é acessível através de uma zona comum a todos os condóminos.

VIII – A aplicação da figura do abuso de direito, prevista no artigo 334.º do C.C., de criação jurisprudencial francesa, exige que o excesso dos limites enunciados seja manifesto, ou seja, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”, estando reservada às hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, não se podendo olvidar o seu carácter excepcional, na medida em que permite afastar um direito legalmente previsto e reconhecido à parte em questão tendo por base um particular circunstancialismo apresentado – vide, nesse sentido, Manuel de Andrade, in “Direito Civil – Obrigações”, policopiado, 1964, págs. 63-64, e Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Volume I, páginas 298 e 299.

IX – Atenta a impugnação da matéria de facto acima vertida, afastando o exercício de uma efectiva “actividade” pela Autora e demonstrando a existência de cheiros e ruídos na fracção propriedade da mesma, em adicionais fracções e nas partes comuns do edífico, os quais lhe causam angústia, provenientes do restaurante instalado na fracção dos Réus, em violação do título constitutivo e das suas legítimas expectativas, cujo próprio acesso à esplanada carece de recurso àquelas zonas comuns, salvo o devido respeito, não se alcança como poderemos estar perante uma situação de abuso de direito.

X – O facto da Autora ser vidente, fazendo “sessões” bissemanalmente na sua garagem e recebendo meras gratificações, a maior parte delas em espécie, não pode determinar que a mesma seja obrigada a suportar cheiros e ruídos que lhe causam angústia em virtude da ilícita instalação de um restaurante numa fracção destinada a comércio, propriedade dos Réus, nem poderá, salvo o devido respeito, a sua vontade de que tal comportamento cesse ser considerada clamorosamente ofensiva do direito que lhe é legalmente tutelado.

XI – Mesmo a considerar a factualidade tida por provada pelo Tribunal a quo, teríamos que não estamos perante uma situação de abuso de direito, visto que uma “actividade” que implica que, duas vezes por semana, no período da tarde, a Autora receba “clientes” na sua garagem não configura uma violação da afectação da sua fracção, posto que não extravasa o uso residencial da mesma, nos termos do disposto no artigo 1092.º do C.C., s.m.o., inteiramente aplicável à relação entre condóminos no que concerne ao uso dado às fracções autónomas pelo condómino, não sendo admissível que o legislador pretendesse permitir ao arrendatário o que não autoriza ao respectivo proprietário - vide, nesse sentido, o douto acórdão emanado do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/12/2003, acessível in www.dgsi.pt.

XII – Inexistindo qualquer proporcionalidade entre a pseudo-actividade desempenhada pela Autora, com carácter bissemanal, no período da tarde, na sua garagem, sem oposição dos Réus, e a instalação de um restaurante, com funcionamento diário, numa fracção destinada a comércio, com reiterada oposição da Autora e determinante da apresentação de sucessivas queixas junto das mais diversas entidades públicas e privadas, jamais seria aplicável na situação vertente a figura do abuso de direito para impedir que a Autora reivindique a cessação do comportamento ilícito dos Réus.

XIII – Mesmo a sufragar do entendimento de que tal sucede quanto ao exercício ilícito da actividade de restauração no edifício em apreço, a ideia que a Ré, ao colocar uma pequena instalação sanitária na sua garagem, ligada ao saneamento geral do edifício, legitima que os Réus rasguem a fachada do prédio, instalando um sistema de extracção de fumos pela mesma, com passagem pela garagem, assim como aparelhos de ar condicionado, e diversos dispositivos no telhado do prédio em regime de propriedade horizontal, é, s.m.o., no mínimo, abusiva.

XIV – A completa desproporcionalidade entre as obras realizadas pelos Réus, as quais ocorreram não só no interior da sua fracção mas nas próprias partes comuns do edifício, e a obra realizada no interior da garagem da Autora, s.m.o., afasta, per se, a aplicação da figura do abuso de direito, na modalidade de tu quoque.

XV – Quando muito, estaria vedado à Autora peticionar o levantamento das casas-de-banho que os Réus instalaram na sua garagem, considerando a instalação sanitária colocada pela mesma, mas já não todas as demais obras materializadas pelos Réus quer no interior da fracção com ligação às partes comuns quer nas próprias partes comuns do edifício, compropriedade de todos os condóminos, visto que o lesado, com base no abuso do direito, pode requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito que a lei confere a outrem, mas não pode, com base no instituto, requerer que o direito não seja recohecido ao titular, que este seja inteiramente despojado dele – vide nesse sentido Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Volume I, página 300.

XVI - A aplicabilidade da figura de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium tendo por base o arquivamento pelo Provedor de Justiça da queixa apresentada pela Autora, sufragada pelo Tribunal a quo, carece, salvo o devido respeito, de sentido atenta a impugnação da matéria de facto realizada no presente recurso, da qual decorre que tal arquivamento foi baseado numa errónea convicção da Provedoria de Justiça.

XVII - Mas mesmo que tal não sucedesse, o arquivamento pelo Provedor de Justiça não se trata de um factum proprium da Autora, ficando por demonstrar que tal sucedeu por expressa vontade sua – vide facto provado sob o ponto 37 da douta sentença e crise.

XVIII – Não logrou, igualmente, o Tribunal a quo estabelecer qualquer relação entre as obras materializadas pelos Réus, cuidadosamente discriminadas nos autos, e a promoção da segurança e salubridade do estabelecimento de restauração em causa, impedindo o raciocínio materializado.

XIX – Instalando os Autores ilicitamente um restaurante numa fracção destinada a comércio, determinando a ocorrência de cheiros e fumos na fracção propriedade da Autora e nas partes comuns do edifício, e fazendo obras de adaptação quer no interior da sua fracção com ligação às partes comuns quer nas próprias partes comuns, tudo sem autorização para o efeito e causando angústia à Autora, deverão ser condenados a afectar a fracção autónoma sua propriedade ao fim de comércio a que a mesma se destina, não a utilizando, nem arrendando ou autorizando por qualquer meio a sua utilização por terceiros, para a actividade de restauração e bebidas, abstendo-se e exigindo a abstenção de terceiros que a ocupem de emitir fumos, cheiros e ruídos perturbadores da saúde e descanso da Autora; pagar à Autora, a título de sanção pecuniária compulsória, o valor diário de € 200,00 (duzentos euros), desde a data da sua citação até que a aludida fracção seja afecta ao fim de comércio e não de restauração e bebidas e cessem as emissões de fumos, cheiros e ruídos; proceder ao levantamento da condutas de extracção de fumo, do “hot” e do respiradouro instalados no edifício sob apreciação, repondo as partes comuns do edifício em causa no mesmo estado em que se encontravam anteriormente à sua materialização; e pagar à Autora o valor de € 5000,00 (cinco mil euros), a título indemnizatório, por danos não patrimoniais inflingidos, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal supletiva, actualmente de 4%, contabilizados desde a data da sua citação e até efectivo e integral pagamento, sendo, assim, a presente acção julgada parcialmente procedente, por provada.

XX – A douta sentença ora em crise violou, de entre outras, as seguintes disposições legais: artigos 154.º e 615.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil e 70.º, 334.º, 342.º, 483.º, 829.º-A, 1092.º, 1346.º, 1406.º, 1420.º, 1421.º e 1422.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), todos do Código Civil.

Termos em que deve ser dado provimento à presente apelação, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por outra decisão judicial na qual se declare a parcial procedência da presente acção e se condene os Réus a afectar a fracção autónoma sua propriedade ao fim de comércio a que a mesma se destina, não a utilizando, nem arrendando ou autorizando por qualquer meio a sua utilização por terceiros, para a actividade de restauração e bebidas, abstendo-se e exigindo a abstenção de terceiros que a ocupem de emitir fumos, cheiros e ruídos perturbadores da saúde e descanso da Autora; pagar à Autora, a título de sanção pecuniária compulsória, o valor diário de € 200,00 (duzentos euros), desde a data da sua citação até que a aludida fracção seja afecta ao fim de comércio e não de restauração e bebidas e cessem as emissões de fumos, cheiros e ruídos; proceder ao levantamento das condutas de extracção de fumo, do “hot” e do respiradouro instalados no edifício sob apreciação, repondo as partes comuns do edifício em causa no mesmo estado em que se encontravam anteriormente à sua materialização; e pagar à Autora o valor de € 5000,00 (cinco mil euros), a título indemnizatório, por danos não patrimoniais inflingidos, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal supletiva, actualmente de 4%, contabilizados desde a data da sua citação e até efectivo e integral pagamento.

Assim se fazendo sã e inteira JUSTIÇA !!!

  7. Os Réus AA e mulher BB contra-alegaram.

  8. Finalizaram a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:

1. No entendimento da Recorrente a sentença proferida é nula, por o tribunal ad quo, junto dos factos provados e dos meios de prova que determinaram a decisão, não apresentar uma pequena súmula, em violação do disposto nos artigos 154.º e 615.º, n.º 1, alínea b), ambos do C.P.C.

2. Entende ainda a recorrente que o Tribunal recorrido deu como provados factos que deveriam ter sido considerados não provados e não deu como não provados factos que ficaram demonstrados.

3. Tal legação é completamente descabida.

4. Não é necessário, nem aconselhável que a motivação se traduza na reprodução ou no resumo dos depoimentos prestados pelas testemunhas.

5. O que a recorrente faz é substituir-se ao Julgador e determinar o sentido da prova segundo a sua conveniência, segundo a sua reacção à improcedência da acção, e não em razão do que resulta da factualidade provada.

6. Como era expectável, o Tribunal “ad quo” procedeu a uma análise crítica das provas, especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, indicou as ilacções inferidas dos factos instrumentais e tomou em consideração os factos que estão provados por documentos, compatibilizando, deste modo, toda a matéria de facto adquirida e extraiu dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

7. Para formar a sua convicção o Tribunal “ad quo” analisou criticamente a globalidade da prova produzida, designadamente, as regras de experiência comum e da normalidade do acontecer, fez uma ponderação crítica e conjugada do teor da prova documental junta aos autos com as declarações de parte, com os depoimentos prestados pelas testemunhas, em sede de audiência de julgamento, com as provas perícias realizadas, entrecruzados entre si – à luz das regras da experiência comum - buscando-se os seus pontos de concludência, coerência e de consistência.

8. Não vislumbra os Réus onde e quando a Meritíssima juiz ad quo julgou incorrectamente os dos factos provados e ainda os pontos de facto dos factos não provados, os quais deveriam ter sido valorados de forma diferente, face à prova produzida e apresentada, já que esta expressa com rigor o resultado da prova produzida em audiência de julgamento.

9. Em concreto pretende-se alteração, no elenco fáctico, com base numa credibilização preponderante nesta instância da prova traduzida nos depoimentos prestados pelas testemunhas com base apenas, no que lhe possa ser favorável, em detrimento da conjugação de toda a prova produzida, atribuindo-se á decisão recorrida preferência por estes.

10. Trata-se de um modo injusto de caraterizar a fundamentação da matéria de fato, que passou na decisão apelada pela apreciação critica individualizada de todos os depoimentos e de todos os outros elementos de prova.

11. Parafraseando uma decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão em 21/11/2001 proferida no processo 961/2001, a Mmª juiz ad quo que julgou nos termos do artigo 655º do CPC ciente de que o ato de julgar é do tribunal, e tal ato, tem a sua essência na operação intelectual, da formação da convicção.

Tal operação não é pura e simplesmente logico-dedutiva, mas nos próprios termos da Lei, parte de dados objetivos para uma formulação lógico-intuitiva.

12. Estando em causa a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é imperativa a observância do imposto pela norma do pelo art. 640º do CPC, não se podendo olvidar que, no que respeita à apreciação da prova produzida em primeira instância e à decisão da respetiva matéria de facto, o tribunal de recurso não se encontra em plano de total igualdade em relação aos juízes de 1ª instância, uma vez que a prova é realizada perante estes e não perante aqueles.

13. De acordo com o entendimento dos nossos Tribunais Superiores a reapreciação da matéria de facto pela Relação, no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662º do CPC, não pode redundar em novo julgamento, pretensão essa do recorrente.

14. Para que seja alterada a matéria de facto dada como assente é necessário que, de acordo com critérios de razoabilidade, apreciando a prova produzida, “salte à vista” do Tribunal de recurso um “erro grosseiro” da decisão recorrida, aparecendo a convicção formada em 1ª instância como manifestamente infundada.

15. Como decorre do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/12/12, proferido no proc. nº 1238/10.8TVLSB.L1, in www.dgsi.pt: “I - O julgador, ao apreciar a prova por testemunhas, goza de inteira liberdade, já que não está vinculado a quaisquer regras, medidas ou critérios legais de avaliação. II - De tal modo que, no seu critério de livre apreciação, pode dar como provado um facto certificado pelo testemunho duma única pessoa, embora perante ele também tenham deposto, em sentido contrário, várias testemunhas. III – Questão é que tal testemunho não seja apreciado arbitrariamente, mas sim segundo os critérios de valoração racional e lógica do julgador e segundo a sua experiência”.

16. Ora, como resulta da douta sentença recorrida, o tribunal fundamentou a formação da sua convicção de forma coerente e de acordo com as regras da experiência comum, tendo para tanto o tribunal “a quo” procedido a uma análise crítica das provas, especificando os fundamentos relevantes e decisivos em que assentou a sua convicção.

17. O tribunal ad quo, procedeu a análise cuidada, adequada e crítica de toda a prova documental, pericial e testemunhal apresentada.

18. Autora é vidente, exercendo essa actividade já há longos anos e que, pelo menos, até ao ano passado, exercia essa actividade na garagem afecta à sua fracção, na qual construiu uma divisória onde colocou uma instalação sanitária para servir a vasta clientela que atende semanalmente (cfr. facto provado 49), que, em contrapartida da sua actividade de vidente, por vezes, recebe entregas em espécie - como garrafões de azeite e batatas – e, noutras vezes, quantias monetárias que medeiam entre os 5,00€ (cinco euros) e os 30,00€ (trinta euros)

19. a Autora elaborou na garagem, obras de adaptação (a tal divisória e a tal instalação sanitária), com a intenção de utilizá-la para a sua actividade de vidente, ligando a instalação sanitária que construiu na sua garagem ao saneamento principal do prédio e que as obras efectuadas pela Autora foram-no sem autorização dos Réus ou demais condóminos do edifício.

20. Uma vez que uma garagem se destina a guardar veículos automóveis e a fracção de que a garagem é parte integrante se destina a habitação, manifesto se torna concluir que a Autora – aí mantendo uma actividade económica, ainda que de pequena dimensão – afectou essa fracção a fim diverso daquele a que é destinada.

21. Sabendo-se que actividade económica é qualquer prestação de serviços mediante uma qualquer contrapartida.

22. A Autora – que é quem interpôs a acção que ora se julga - na base de uma alegada utilização, pelos Réus, da sua fracção diversa do fim a que a mesma se destina, como na base de uma alegada realização de obras, por parte dos Réus, em partes comuns do prédio, pedir contra eles a protecção da legalidade das normas que ela própria violou com condutas em tudo similares ou idênticas àquelas que imputa aos Réus.

23. Consagra o art. 334.º do CC: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito

24. A Autora deu à sua fracção autónoma uso diverso do fim a que se destina, assim violando o art. 1422.º, n.º 2, al. c) do CC e, mesmo assim, interpõe uma acção judicial contra os Réus acusando-os da violação desse mesmo preceito legal por darem, por seu turno, à sua fracção uso diverso do fim a que se destina.

25. A Autora fez obras nas partes comuns do prédio em que se integra a sua fracção sem autorização dos restantes condóminos e, mesmo assim, interpõe uma acção judicial contra os Réus acusando-os de terem feito obras em partes comuns do mesmo prédio em que também se integra a fracção deles sem autorização dos restantes condóminos, pedindo o seu levantamento.

26. Ora tal comportamento, é manifestamente abusivo, e fere a sensibilidade primária, ética e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir exigir a outrem o seu acatamento.

27. A Autora actuou, assim, com abuso de direito, ao interpor a presente acção judicial nas modalidades de “tu quoque” e de “venire contra factum proprium”

28. Com a aprestação do presente recurso A AA., continua a litigar de má-fé, devendo ser condenada em indemnização em montante não inferior a €3.500,00:

29. Com o presente recurso a recorrente, quer fazer entrar pela janela, o que não conseguiu fazer entrar pela porta, apesar de toda a prova produzida, em audiência de julgamento.

30. Resulta à saciedade que o presente recurso está votado ao fracasso por dele não resultarem razões para alterar o sentido da Douta Sentença proferida, porquanto a mesma procedeu a uma irrepreensível subsunção dos factos provados aos normativos legais aplicáveis, e a uma correta aplicação da lei.

31. Para que seja alterada a matéria de facto dada como assente é necessário que, de acordo com critérios de razoabilidade, apreciando a prova produzida, “salte à vista” do Tribunal de recurso um “erro grosseiro” da decisão recorrida, aparecendo a convicção formada em 1ª instância como manifestamente infundada.

32. A Mm.ª Juiz analisou criticamente as provas e especificou (clara e adequadamente) os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, não se mostrando violados quaisquer normas ou critérios segundo a previsão dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do Código de Processo Civil (CPC), sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

33. A sentença recorrida fez, a nosso ver, correcta interpretação das disposições legais aplicáveis, não tendo infringido, designadamente, as normas que a apelante refere como violadas.

34. Resta, pois, concluir pela total improcedência das “alegações” de recurso, pois que, salvo o devido respeito, não lhe assiste qualquer razão.

Pelo exposto, não merece a decisão qualquer censura,

Termos em que e por tudo o mais que V.Exªs doutamente suprirão, deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Fazendo-se assim, Justiça.

 9. O Tribunal da Relação de Coimbra julgou procedente o recurso.

10. O dispositivo do acórdão recorrido é do seguinte teor:

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, parcialmente, e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, indo os RR condenados a:

A) a cessar de imediato a actividade de restauração na sua fracção autónoma “CD” e afectar a mesma ao fim de comércio a que a mesma se destina, não a utilizando, nem arrendando ou autorizando, por qualquer meio, a sua utilização por terceiros para a actividade de restauração e bebidas;

B) a proceder ao levantamento das condutas de extracção de fumo, do “hot”, do respiradouro e dos aparelhos de ar condicionado instalados no edifício identificado nos autos, repondo as partes comuns do edifício no mesmo estado em que se encontravam anteriormente à sua instalação;

C) a pagar à autora, a título de sanção pecuniária compulsória, o valor diário de 50 €, decorridos 30 dias após a data do trânsito em julgado desta decisão, até que a aludida fracção seja afecta ao fim de comércio e não de restauração e bebidas;

D) Absolver os RR do demais peticionado.

Custas da acção (sobre o valor de 36.000,01 €, atribuído pela A. aos seus pedidos), na proporção do vencimento/decaimento de 1/5 para a A. e 4/5 para os RR.

 11. Inconformados, os Réus interpuseram recurso de revista.

12. Finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

I — Ao revogar a douta sentença proferida em primeira instância, julgando a ação totalmente improcedente, por não provada, e absolvendo a recorrida dos pedidos formulados, o Tribunal a quo errou, desde logo ao decidir, como decidiu, modificar a matéria de facto, incorrendo, neste âmbito, em violação de normas de direito probatório material e ultrapassando mesmo os limites adjetivamente estabelecidos ao exercício de tal poder, mas também, e independentemente dessa operada alteração, na subsunção da matéria de facto provada e não provada ao direito aplicável, adotando um desfecho que, desresponsabilizando a recorrida pelos seus atos.

Assim e no que concerne aos erros de direito na modificação da matéria de facto:

II — Dir-se-á, antes de mais, que os limites previstos nos artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 2 do CPC quanto ao julgamento em revista, não constituirão obstáculo, sob pena de à recorrente ser coartado, nesta parte, o grau de recurso constitucionalmente garantido, a que o Supremo Tribunal exerça também censura sobre a decisão da Relação que, em concreto, modifique a matéria de facto excedendo os poderes que lhe são conferidos nos termos do disposto no artigo 662º, nº 1 do CPC, por forma a que se verifique se, no uso dos seus poderes de anulação, atuou em observância dos limites legalmente impostos, como in casu e ao que entende a recorrente, não sucedeu (neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 320 e ss);

Vejamos, pois,

III — A decisão revidenda eliminou do facto provado em 4.3 o segmento “(regras de experiência comum e sendo um facto notório que obras como aquelas não podiam ser realizadas de forma encoberta) sendo que não indicou qualquer prova produzida ou facto provado que justificasse e impusesse, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 662º do CPC, julgar-se não provado que, ao contrário do que havia sido decidido em primeira instância.

IV. — Alterou o facto provado em 4.6 no segmento (no seguimento de comunicação da autarquia nesse sentido) sendo que não indicou qualquer prova produzida ou facto provado que justificasse e impusesse, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 662º do CPC, julgar-se não provado que, ao contrário do que havia sido decidido em primeira instância.

V. — Alterou o facto provado em 4.12, ao eliminar da matéria de facto provada as expressões “de uma corete independente da corete principal e à semelhança do que sucedia com as restantes frações afetas ao comércio” sendo que não indicou qualquer prova produzida ou facto provado que justificasse e impusesse, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 662º do CPC, julgar-se não provado que, ao contrário do que havia sido decidido em primeira instância.

VI. — Alterou o facto não provado em 4.12, para fato provado com base no facto do depoimento da filha da A., não ter sido desmentido pela testemunha DD, sendo que não indicou qualquer prova produzida ou facto provado que justificasse e impusesse, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 662º do CPC, julgar-se não provado que, ao contrário do que havia sido decidido em primeira instância.

VII. — Assim, uma vez que os factos tidos como assentes e a prova produzida não impunham decisão diversa no tocante à não expectativa da A, aquando da aquisição da sua fração autónoma de que, na fração dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante, sendo que o contrário não ficou por qualquer modo demonstrado, limitando-se a Relação a sustentar o seu entendimento num não desmentimento por parte de uma testemunha, violou, ao decidir como decidiu, o disposto no art.º 662º, nº 1 do CPC;

VIII. — Ao optar por conferir prevalência à livre convicção formada a partir da prova testemunhal em detrimento da prova resultante dos documentos e perícias não impugnados, a decisão revidenda desatendeu e, por isso, incorreu em violação do disposto no, os limites que lhes são impostos pelo nº 1 do artigo 662º do CPC, pelo que e salvo o devido respeito por entendimento diverso, deverá ser alterada a decisão sobre a matéria de facto provada e não provada em 4.12, por forma a respeitar os preceitos violados, repristinando-se a redação que lhe foi conferida em primeira instância.

IX. — Ao privilegiar exclusivamente o depoimento de EE – filha da recorrida em detrimento da matéria de facto provada e demais prova produzida, a decisão a quo errou. Posto isto,

X. — Não logrando demonstrar a A., como lhe incumbia em face do disposto no artigo 342º, nº 1 do CC, a alegada expectativa de que na fração dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante.

XI. — Decidindo diversamente, violou a decisão recorrida o disposto no artigo 342º,n,ºs 1 e nº 2 do CC, pelo que deverá ser reposta a redação dos pontos 4.12 constante da douta decisão proferida em primeira instância;

XII. — À data da aquisição da fração pelos Réus, esta, estava dotada de raiz, desde a construção do edifício, de uma corete independente da corete principal da chaminé do edifício que permitia a evacuação de fumos, vapores e cheiros, à semelhança do que sucedia com as restantes frações afetas ao comércio para permitir que ali funcionasse um estabelecimento de restauração ou outro de natureza similar.

XIII. — Na verdade, o tribunal da Relação, credibilizou o depoimento comprometido, da filha da AA., unicamente por este não ter sido desmentido!

XIV. — Desconsiderando por completo que a testemunha DD afirmou que “sabe que uma das duas frações compradas pelos RR era para restaurante. A fração vendida aos RR ficou preparada para tal fim, a nível de condutas, e os RR compraram tal fração para esse efeito de restaurante.” Matéria essa que não foi impugnada.

XV. — Não logrando demonstrar, a A., como lhe incumbia em face do disposto no artigo 342º, nº 1 do CC, a alegada expectativa de que na fração dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante.

XVI. — Pese embora, desde 2009 a AA., pudesse demandar os Réus para procederem ao encerramento do restaurante, por violação do título constitutivo da propriedade horizontal, esta só veio a fazê-lo decorrido 8 anos!

XVII. — Comportamento esse, que ao longo desses anos gerou nos Réus a confiança que a AA., não viria pedir o encerramento do restaurante, que à data está há 11 anos no local!.

XVIII. — No caso em apreço, o funcionamento do restaurante não ofende os direitos de personalidade da AA., ou de qualquer outro condomínio, por resultar das perícias realizadas que nenhum dano advém do funcionamento do restaurante.

XIX. — Não havendo em consequência violação do direito ao repouso, ao descanso, ao sossego, à vida privada, à vida familiar e à qualidade de vida quer da A. quer de terceiros.

XX. — Resultou provado, que a Autora apresentou queixa junto da Provedoria da Justiça, queixa essa que foi arquivada por se considerar que a queixosa “se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade”,. Arquivamento esse, comunicado à Autora em julho de 2011, que o aceitou (cfr. factos provados 36 a 38 e acordo das partes nos termos dos arts. 51.º da contestação e art.º. 20.º da réplica).

XXI. — Resulta da normalidade do acontecer que não é credível, que se assim não fosse, a AA., não tivesse impugnado o teor do documento por este, não corresponder à sua vontade. Como diz o velho ditado quem cala consente.

XXII. — Essa anuência ao longo 8 anos, conjugada com a aceitação do arquivamento da queixa pelo Provedor de justiça e com a informação prestada à AA., em assembleia de condomínios (que face ao tempo decorrido, à data três anos sobre a abertura do restaurante, sem nada terem solicitado em sentido contrário, este comportamento podia consubstanciar uma aceitação tácita da abertura do restaurante) foi geradora de confiança nos Réus os quais confiaram que, tanto tempo depois de o restaurante estar a funcionar, a Autora nunca iria requerer o seu encerramento.

XXIII. — O comportamento da AA. integra assim, o venire contra factum proprium.

XXIV. — Embora a AA. tenha o direito, o seu exercício nestes termos é manifestamente abusivo.

XXV. — Dispõe o art. 334." do CC que é ilegítimo o exercício do direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé.

XXVI. — A situação em apreço é integrável nesta norma, como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, exige-se que o excesso cometido seja manifesto, por os tribunais só poderem fiscalizar a moralidade dos atos praticados no exercício de direitos se houver manifesto abuso.

XXVII. — De resto, a decisão sob exame encontra-se em completa oposição com o doutamente decidido pelo Acórdão proferido em 02.06.2011, já transitado em julgado, pelo Tribunal da Relação do Porto, no processo 427/08.Otbchv.p1, da 3ª Secção Cível.

XXVIII. — Para situações idênticas não pode haver decisões diferentes.

XXIX. — No direito, não podem existir dois pesos e duas medidas.

XXX. — As queixas apresentadas pela A., junto da câmara municipal, da ASAE, e da Unidade local de Saúde (docs. 6, 12, 13 e 14, juntos com a p.i.,) tinham como objetivo único reportar questões de ruído, cheiros e insalubridade.

XXXI. — A A., quis., com essas participações que fosse averiguado se o restaurante cumpria as normas legais exigíveis para a atividade de restauração.

XXXII. — E em momento algum nas queixas apresentadas a A., pediu o encerramento do restaurante.

XXXIII. — Ao decidir como decidiu o Acórdão recorrido, menosprezando a decisão inicial que concluiu que Autora actuou, com abuso de direito, ao interpor a presente ação judicial nas modalidades de “tu quoque” e de “venire contra factum proprium”.

XXXIV. — Porém, ainda que a tese que vem de se defender quanto à alteração da matéria defacto não venha a ser acolhida por esse Supremo Tribunal, ou seja, mesmo com base, apenas, na matéria de facto julgada provada pela Relação, cuidam os recorrentes que a solução jurídica não poderá ser outra que não a determinada em primeira instância, sob pena de ser premiada a má-fé.

XXXV. — Nesta conformidade, mal andou a Relação ao considerar que os recorrentes não lograram produzir a prova que lhe competia, no que concerne à ao abuso de direito da A., violando, por errada interpretação e aplicação, o disposto no artigo 342º, nº 1 do CC;

XXXVI. — Ao decidir como decidiu, interpretando em prejuízo dos recorrentes as regras de distribuição do ónus da prova, sem valorar a conduta e o silêncio da recorrida e, por outro lado desonerando-a da prova dos factos impeditivos, modificativos e extintivos que alega, incorreu a Relação em violação das normas substantivas previstas nos artigos 342º, nº 1 e 2 do CC.

XXXVII. — Em consequência do que e à luz de tudo o que antecede, a decisão revidenda operou errada subsunção dos factos ao direito, incorrendo em erro de interpretação e aplicação da norma prevista no artigo 334º do CC.

Pelo que e na procedência do presente recurso, deverá o acórdão a quo ser revogado, confirmando esse Venerando Tribunal a matéria de facto provada e o regime jurídico aplicado na douta sentença de primeira instância, a qual procedeu de forma adequada ao enquadramento e qualificação jurídica dos factos apurados, não merecendo qualquer reparo, com o que se fará JUSTIÇA!

 13. A Autora CC contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

 14. Finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:

I – Salvo o devido respeito, que é muito, os Recorrentes carecem de toda e qualquer razão que lhes valha.

II – O douto e bem elaborado acórdão sob apreciação não merece qualquer reparo ou censura, antes pelo contrário, apresenta-se bem discorrido e fundamentado, mais não demonstrando do que um manifesto e louvável brio profissional.

III – Houvessem os Recorrentes lido atentamente o conteúdo do mesmo, não haveriam certamente interposto o presente recurso.

IV – Os Recorrentes sustentam a integralidade da impugnação da matéria de facto na pretensa violação pelo Tribunal a quo do disposto no artigo 662.º do C.P.C. e no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, essencialmente, por discordarem daquele Venerando Tribunal no que concerne à prova produzida “impor” decisão diversa.

V – Os Recorrentes não só pretendem que este Venerando Tribunal, sindique, agora, em sede de revista, a prova fixada em apelação, como nem, sequer, indicam, para o efeito, a prova que especificamente determina tal alteração, nos termos previstos no artigo 640.º, n.º 1, alínea b), ou seja, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa, devendo, aparentemente, Vossas Excelências realizar uma “ponderação global e concatenada de todas as declarações e depoimentos prestados” ao contrário do Tribunal a quo que, alegadamente, se terá cingido aos “depoimentos de tais testemunhas, gravados em CD”.

VI – O entendimento de que toda e qualquer alteração da matéria de facto em sede de apelação com a qual as partes não se conformem, por mera discordância na apreciação da prova produzida, implica violação da lei e, assim, abre portas ao regime excepcional previsto no n.º 2 do artigo 682.º do C.P.C. é abusivo e carece de suporte legal para o efeito, mais não pretendendo os Recorrentes do que um novo e processualmente inadmissível julgamento da matéria de facto, a realizar pelo Supremo Tribunal de Justiça, na esperança de que, desta vez, lhes possa ser favorável.

VII – Contrariamente ao sustentado pelos Recorrentes, o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, não concede às partes o direito de recorrer de todas e quaisquer decisões que lhes sejam desfavoráveis, em sede de primeira instância ou, até, dos Tribunais Superiores, sem qualquer limite, sob pena dos processos serem eternos.

VIII – O direito das partes a verem a matéria de facto reapreciada em sede de apelação, havendo alçada para o efeito, já prenche o tutelado pelo artigo 20.º da C.R.P., configurando uma deturpação de tal direito a interpretação de que “há sempre recurso das decisões proferidas”, como aparentemente, sustentam os Recorrentes.

IX – Os Recorrentes não sustentam uma única alteração à matéria de facto assente na violação de uma disposição expressa na lei que exija certa espécia de prova para a existência do facto ou que fixe a força a determinado meio de prova, não obstante pugnarem por nova alteração da matéria de facto nos moldes excepcionalmente previstos no artigo 674.º, n.º 3, a contrario sensu, devendo, enquanto tal, a impugnação da matéria de facto efectuada pelos Recorrentes ser liminarmente rejeitada porquanto processualmente inadmissível em sede de revista, conforme o preceituado no n.º 2 do artigo 682.º do C.P.C..

X – Contrariamente ao invocado pelos Recorrentes, o Tribunal a quo não se bastou com a audição dos depoimentos das testemunhas gravados em CD, reapreciando toda a prova produzida e, consequentemente, a decisão do Tribunal de 1.ª instância.

XI – Os Recorrentes não indicam, sequer, qualquer motivo para a discordância com o Tribunal a quo no que concerne à modificação dos factos provados em 4.1, 4.2, 4.5 e 4.9, apenas reproduzindo o teor da decisão proferida, não se alcançando o fundamento para qualquer alteração ao doutamente decidido que, assim, deverá ser mantido.

XII – Os Recorrentes não indicam qualquer motivo para a discordância com o Tribunal a quo no que concerne ao facto provado 4.3 e/ou 4.4, pretendendo, contudo, aparentemente, que este Venerando Tribunal ali inclua - porque lhes convém - que tal conhecimento configura uma aceitação da realização das obras e que as mesmas nunc foram constestadas ao longo de oito anos, o que é inadmissível e até intelectualmente desleal, não cabendo ao Tribunal ad quem, em sede de revista, inserir factos novos, não provados e nem sequer invocados nos articulados.

XIII – Nunca houve um momento em que a Autora concordasse com as obras e/ou a instalação de um restaurante legitimando qualquer confiança dos Recorrentes nesse sentido, não apresentando quaisquer comportamentos contraditórios, tal como decorre da extensa factualidade assente, mais não fazendo do que queixar-se junto dos próprios Réus e de diversas entidades, não logrando que fosse resposta a legalidade, outra alternativa lhe não restando do que recorrer aos Tribunais.

XIV – Não resulta de nenhum facto provado, acordo das partes ou elemento de prova que “ao longo de oito anos” as obras nunca foram contestadas, como agora gratuitamente invocado pelos Recorrentes, mas sim que as obras realizadas pelos Recorrentes não tiveram autorização da Autora ou demais condóminos do edifício em questão, ou, sequer, da administração do condomínio que, por diversas vezes, directa e indirectamente, a Autora tentou alertar os Réus, participando esta situação a entidades fiscalizadoras, apresentando queixa à Provedoria de Justiça, à Câmara Municipal, aos serviços de saúde e até à A.S.A.E. - factos provados n.ºs 17, 36, 39 e 57 e documentos 6, 12, 13 e 14 juntos com a Petição Inicial - e, bem assim que a Autora propôs à votação “apresentar uma acção judicial contra os proprietários da fracção CD, correspondente ao ao r/c direito, com vista ao encerramento da actividade de restaurante”, não tendo sido aprovada a proposta de encerramento do resturante mas tendo a Autora votado a favor - factos provados n.ºs 10 e 29.

XV – Não se pode concluir, como fazem abusivamente os Recorrentes, que a aceitação de um arquivamento da Provedoria da Justiça, órgão meramente consultivo, e/ou ser informada em sede de assembleia de condóminos de que face ao tempo decorrido sem avançar judicialmente o seu comportamento poderia consubstanciar aceitação tácita com o funcionamento do restaurante em causa, estamos perante uma “anuência” da Autora, susceptível de gerar confiança legítima dos Réus, quando tal acção foi efectivamente instaurada, após recurso às mais diversas entidades no intuito de que a ilegalidade cessasse.

XVI – Não se lobriga de quais factos ou elementos de prova depreendem os Recorrentes a aceitação/anuência da Autora - a qual jamais sucedeu - não se alcançando o fundamento para a inclusão de tal facto ou de qualquer alteração ao doutamente decidido na modificação do facto provado em 4.3 e 4.4 que, assim, deverá ser mantido, ipisis verbis.

XVII – Em 06/01/2011, em ofício remetido ao Presidente da Câmara Municipal no qual é indicado como referência “Vossa comunicação de 30 Junho de 2010”, informa-se que o processo junto da Provedoria da Justiça foi arquivado considerando que a queixosa se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade – Documento n.º 7 junto com a Contestação e fls. 182 do apenso junto pela Câmara Municipal; e, por sua vez, a comunicação de 30 de Junho de 2010 remetida pela Câmara Municipal aos serviços da Provedoria de Justiça indica que “… a reclamante já aceitou o licenciamento efectuado, por este cumprir com a legislação em vigor, nomeadamente, higiene, segurança, e salubridade” – vide ofício de fls. 178 do apenso junto pela Câmara Municipal (processo administrativo).

XVIII – Entender abusivo e puramente conclusivo o aditado pelo Tribunal a quo na modificação do facto provado em 4.6, assim como desprovido de suporte probatório, é descabido e apenas demonstra o quão afastada da realidade está a perspectiva dos Recorrentes.

XIX – Não resulta de qualquer facto provado, até porque jamais sucedeu, que a Autora se tivesse efectivamente conformado com o funcionamento do restaurante mas, tão-só, que o processo foi arquivado pela Provedoria de Justiça com base em tal entendimento, o qual, claramente, lhe foi transmitido pela Câmara Municipal.

XX – Pretender agora, como pretendem os Recorrentes, que este Venerando Tribunal ad quem dê por provado que a Autora efectivamente se satisfez com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade, configura algo não considerado provado em momento processual algum - nem pela 1.ª nem pela 2.ª instância - desprovido de suporte probatório, muito menos com base no depoimento da testemunha EE, que, aparentemente, pretendem que Vossas Excelências ouçam para assim concluir, devendo, assim, ser mantida a redacção conferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra no que concerne à modificação do facto provado em 4.6, por configurar aquela que melhor reflecte a realidade documentalmente demonstrada nos autos.

XXI – A alteração efectuada pelo Tribunal a quo quanto à modificação do facto provado em 4.12 (facto provado n.º 48) é coincidente com o facto provado n.º 6 e 25 no que respeita à (in)existência de “corete” independente e ao diâmetro da tubagem existente e seu destino, sustentando-se, amplamente, o Tribunal a quo para o efeito no Doc. 6 junto com a Petição Inicial (fotos 7 e 8), daquele junto com o Requerimento complementar à Contestação apresentado como Doc. 14, e, bem assim, com o teor do relatório pericial de 29/01/2019, com as respostas aos artigos 5.º a 7.º da P.I. e 17.º e 18.º da Réplica e esclarecimentos do perito de 13/04/2018, assim como com o que emerge de fls. 97 e seguintes, designadamente, fls. 105 e seguintes, fls. 123 e seguintes e fl. 153 do apenso camarário e, ainda, fls. 99 de tal apenso.

XXII – Afirmar categoricamente inexistir tal fundamentação probatória apenas porquanto não repetida posteriormente, mais não é do que desprestigiar um acórdão fruto de extenso e louvável trabalho com base numa minudência desnecessária, teimando os Recorrentes na impugnação da matéria de facto apenas porquanto a prova produzida lhes não agrada, devendo, assim, ser mantida a redacção conferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que concerne à modificação do facto provado em 4.12, por configurar aquela que melhor reflecte a realidade documentalmente demonstrada nos autos, com recurso a prova pericial.

XXIII – Os Recorrentes, de forma intelectualmente desonesta, invocam que o Venerando Tribunal da Relação “sem qualquer fundamentação credível” alterou o facto não provado em 4.12, não se coibindo de invocar fantasiosamente que a Autora ao queixar-se às mais diversas entidades (Unidade Local de Saúde, A.S.A.E., Câmara Municipal, Provedoria de Justiça, assembleia de condóminos…) “o fez por causa do ruído, cheiros e insalubridade” e não em virtude do funcionamento do restaurante que em nada a prejudicava – Pasme-se !!

XXIV – É evidente que os Docs. 6, 12, 13 e 14 juntos com a Petição Inicial atestam que a Autora participou à Câmara Municipal de ...., A.S.A.E. e Ministério da Saúde a sua insastifação e desacordo com a abertura e existência no seu prédio do restaurante dos Recorrentes, como bem concluiu o Tribunal a quo, sendo incindíveis o cheiro, o ruído e insalubridade provenientes daquele com o seu próprio funcionamento.

XXV – Decorre, cristalinamente, do título constitutivo de propriedade horizontal do prédio em apreço que a fracção propriedade dos Réus se destina a “comércio” - vide Docs. 1, 4 e 5, juntos com a Petição Inicial – devendo tal expressão ser interpretada conforme o uso corrente da expressão de mediação e troca de bens e serviços, com exclusão das actividades transformadoras, de cariz industrial, normalmente dotadas de um acrescido impacto ambiental negativo, designadamente a actividade de restauração, a qual envolve a preparação e confecção de refeições para um número significativo de clientes, geradora de relevante emissão de cheiros e ruídos, perceptíveis nas demais fracções habitacionais, outra não podendo ser a interpretação para um declaratário normal, tal como vem sendo unanimemente decidido pelos nossos Tribunais Superiores - vide, aliás, nesse sentido, a título meramente exemplificativo, os doutos Acórdãos emanados deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça, de 18/05/1999, 04/12/2008, 13/02/2014, 28/01/2016 e do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 04/03/2004 e 03/02/2009.

XXVI – Outra expectativa não podia haver da Autora que não fosse a de que ali não poderia ser instalado um restaurante, o que, aliás, é compatível com as sucessivas reclamações efectuadas pela própria junto de diversas entidades nesse sentido - vide Docs. 6, 12, 13 e 14, juntos com a Petição Inicial.

XXVII – Nenhuma prova foi produzida no sentido de afastar a normal interpretação da Autora do quanto ficou vertido em sede de título constitutivo da propriedade horizontal e foi reiterado pelo vendedor da fracção sua propriedade aquando da sua aquisição, ou seja, de que não poderia ser instalado um restaurante na fracção propriedade dos Recorrentes o que motivou a decisão de facto pelo Tribunal a quo.

XXVIII – A Autora é totalmente alheia às conversas mantidas entre Réus e vendedores da fracção adquirida pelos mesmos assim como a quaisquer obras realizadas no interior da sua fracção tendo em mente a possibilidade de ali ser instalado um restaurante, em violação do vertido no título constitutivo, sendo tal insusceptível de afastar as suas legítimas expectativas.

XXIX – A aplicação da figura do abuso de direito, prevista no artigo 334.º do C.C., de criação jurisprudencial francesa, exige que o excesso dos limites enunciados seja manifesto, ou seja, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”; estando reservada às hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico – vide, nesse sentido, Manuel de Andrade, in “Direito Civil – Obrigações”, policopiado, 1964, págs. 63-64, e Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Volume I, páginas 298 e 299, convindo não olvidar o caráter excepcional deste norma, na medida em que permite afastar um direito legalmente previsto e reconhecido à parte em questão tendo por base um particular circunstancialismo apresentado no caso concreto.

XXX – Inexiste qualquer proporcionalidade entre a pseudo-actividade desempenhada pela Autora, com carácter bissemanal, no período da tarde, na sua garagem, sem oposição dos Réus, e a instalação de um restaurante, com funcionamento diário, numa fracção destinada a comércio, com reiterada oposição da Autora e determinante da apresentação de sucessivas queixas junto das mais diversas entidades públicas e privadas, pelo que jamais seria aplicável na situação vertente a figura do abuso de direito para impedir que a Autora reivindique a cessação do comportamento ilícito dos Réus.

XXXI – De igual modo, a ideia de que a Ré, ao colocar uma pequena instalação sanitária na sua garagem, ligada ao saneamento geral do edifício, legitima que os Réus rasguem a fachada do prédio, instalando um sistema de extracção de fumos pela mesma assim como aparelhos de ar condicionado e diversos dispositivos no telhado do prédio em regime de propriedade horizontal, é, s.m.o., no mínimo, abusiva.

XXXII – A completa desproporcionalidade entre as obras realizadas pelos Réus, as quais ocorreram não só no interior da sua fracção mas nas próprias partes comuns do edifício, e a obra realizada no interior da garagem da Autora, s.m.o., afasta, per se, a aplicação da figura do abuso de direito, na modalidade de tu quoque, até porque, com base no abuso do direito, o lesado pode requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito que a lei confere a outrem, o que não pode é, com base no instituto, requerer que o direito não seja recohecido ao titular, que este seja inteiramente despojado dele – vide nesse sentido Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Volume I, página 300.

XXXIII – Tal como realça o Tribunal a quo, o abuso de direito na modalidade de tu quoque exige que se esteja perante a mesma situação jurídica concreta violada pelo próprio que exige o respeito por terceiro - nesse sentido e conforme indicado no douto aresto em crise, vide Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo IV, 2007, páginas 327/337 - ou seja, contrariamente à interpretação do Tribunal de 1.ª instância deste instituto, convenientemente comungada pelos Recorrentes, não é toda e qualquer violação que legitima toda e qualquer violação dos demais sem possibilidade de reclamação do primeiro violador, não pretendendo tal figura funcionar como uma espécie de “guarda-chuva” que elimina todas as ilegalidades, legitimando o caos, não podendo ser essa a melhor interpretação da pretensão do legislador face ao vertido no artigo 334.º do Código Civil.

XXXIV – Entendemos com o Tribunal a quo que a Autora ao demandar os Réus, ora Recorrentes, por estes explorarem a sua fracção como um restaurante e com as obras que aí fizeram, sem que o possam legalmente fazer de acordo com o fim a que estava afecta tal fracção, não está a pretender prevalecer-se da situação jurídica decorrente de querer usar a sua garagem para outro fim ou impor a instalação sanitária realizada na mesma, ou a exercer tal posição jurídica ou a exigir que aqueles acatem essa sua situação jurídica, movendo-se noutro plano, reclamando do uso indevido da respectiva fracção para fim não legalmente admissível, inexistindo, assim, equivalência da condição jurídica concreta entre ambas as partes que permita paralisar a demanda da Autora contra os Réus, ora Recorrentes, com base em abuso de direito, s.m.o., inexistente no caso em apreço, inquinando a teoria jurídica sustentada por estes últimos.

XXXV – Salvo o devido respeito, contrariamente ao sustentado pelos Recorrentes, o arquivamento pelo Provedor de Justiça do processo decorrente da queixa apresentada pela Autora, no seguimento de comunicação da Câmara Municipal, a deliberação da assembleia de condóminos de não avançar com acção judicial contra os Réus, com voto contrário da Autora, ou a explicação aos condóminos, em sede de assembleia, de que exigir o encerramento do restaurante em causa poderá configurar uma situação de abuso de direito por jurista, não configuram actos próprios da Autora mas sim de terceiros e, enquanto tal, são insusceptíveis de determinar a verificação de uma situação de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

XXXVI – Conformar-se com o arquivamento de um processo por parte de um órgão consultivo como a Provedoria de Justiça não significa, nem pode significar, aceitar tacitamente a legalidade da situação reportada junto da mesma, até porque não se compreende como poderia a Autora impugnar tal decisão de arquivamento da Provedoria da Justiça como pretendido pelos Recorrentes.

XXXVII – Permanece por concretizar o que configuram “prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade” e muito menos ficou provado que todas as obras materializadas pelos Réus, cuidadosamente discriminadas nos autos, se destinam a promover a segurança e salubridade do estabelecimento de restauração em causa.

XXXVIII – É abusivo invocar o decurso de vários anos até à instauração de acção judicial para cessação do comportamento ilícito dos Réus, quando, conforme demonstrado e resulta dos factos provados, no decurso desse período a Autora foi-se sempre queixando do funcionamento do restaurante e suas consequências, nomeadamente, junto dos Réus, jamais se conformando com o seu funcionamento - vide factos provados n.ºs 17, 36, 39, 40 43 e 57 - não se alcançando como tal comportamento, globalmente considerado, possa ser interpretado como susceptível de criar naqueles a legítima convicção de que aquela concordaria com o funcionamento do estabelecimento em questão e a realização das obras ilegalmente realizadas.

XXXIX – S.m.o., não deverá ser reconhecida a existência no caso vertente de qualquer situação de abuso de direito, na modalidade de tu quoque e/ou de venire contra factum proprium, porquanto tal não se verifica.

XL – Deste modo, ao contrário do que sustentam os Recorrentes, não foram violadas quaisquer normas jurídicas e muito menos as por si invocadas, devendo ser mantida, ipisis verbis, a factualidade assente pelo Tribunal a quo e confirmada a mui douta decisão proferida pelo mesmo, sem qualquer reparo.

Termos em que deve ser:

a) Rejeitada liminarmente, a impugnação da matéria de facto; e

Sempre e em todo o caso,

b) Negado provimento ao recurso sob juízo, mantendo-se ipsis verbis o douto ácordão recorrido.

Assim se fazendo sã e inteira JUSTIÇA.

 15. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos Recorrentes (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir in casu são as seguintes:

    I. — se o acórdão recorrido, ao alterar a decisão de facto, infringiu o art. 342.º do Código Civil ou o art. 662.º do Código de Processo Civil (conclusões I a XXI);

    II. — se a Autora, agora Recorrida, violou o art. 334.º do Código Civil, ao exigir a cessação da actividade do restaurante instalado na fracção dos Réus (conclusões XX a XXVII).

II. — FUNDAMENTAÇÃO

       OS FACTOS

  16. O Tribunal da 1.ª instância deu como provados os factos seguintes:

1. A Autora é proprietária e legítima possuidora do imóvel correspondente à fracção autónoma, identificada pelas letras “CC”, do edifício sito na Avenida ..., n.ºs 29, 31 e 35 e na Quinta ..., ...., localizada no 2.º Andar Esquerdo, com entrada pelo n.º 29 do mesmo (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 1.º da petição inicial [doravante designada p.i.] e 1.º da contestação, bem como dos docs. n.ºs 1 e 2 juntos com a p.i.).

2. Os Réus são proprietários e legítimos possuidores do imóvel correspondente à fracção autónoma, identificada pelas letras “CD”, do edifício sito na Avenida …, n.ºs 29, 31 e 35 e na Quinta …, …, localizada no Rés-do-chão Direito, com entrada pelo n.º 31 do mesmo (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 1.º da p.i. e 1.º da contestação, bem como dos docs. n.ºs 1 e 3 juntos com a p.i.).

3. O edifício em causa encontra-se constituído em regime de propriedade horizontal, sendo a sobredita fracção propriedade da Autora destinada a habitação e a fracção supra identificada propriedade dos Réus destinada a comércio (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 1.º da p.i. e 1.º da contestação, bem como dos docs. n.ºs 4 e 5 juntos com a p.i.).

4. No ano de 2009, os Réus fizeram obras de adaptação com vista a utilizar a sua fracção para a actividade de restauração e bebidas (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 1.º e 4.º da p.i. e 11.º, 14.º e 16.º da contestação).

5. Entre outras obras, os Réus procederam à colocação de condutas de extracção de fumos, cuja saída da fracção propriedade daqueles se encontra ligada à parede de separação da mesma à fracção contígua, porquanto ali inexistia qualquer sistema de extracção de fumo (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 5.º da p.i. e 17.º da contestação).

6. Essas condutas têm saída última pela chaminé do edifício em corete independente (cfr. doc. n.º 6 junto com a p.i.).

7. Procedeu-se à acoplação de uma “hot” à aludida chaminé (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 8.º da p.i. e 24.º da contestação, bem como do doc. n.º 6 junto com a p.i. e o relatório pericial junto aos autos em 29.01.2018).

8. Instalando-se ainda um respiradouro na fachada posterior do edifício em apreço e dois aparelhos de ar condicionado, após materialização da abertura necessária para o efeito (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 9.º da p.i. e 23.º da contestação, bem como do relatório pericial junto aos autos em 29.01.2018).

9. Permitiram os Réus a instalação na fracção em apreço de, pelo menos, dois restaurantes, arrendando-a para tal efeito (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 10.º da p.i. e 63.º da contestação).

10. Nenhuma das obras acima elencadas foi autorizada pela Autora ou demais condóminos do edifício em questão ou, sequer, pela administração do seu condomínio (cfr. confissão ficta dos Réus nos termos dos arts. 25.º a 29.º da contestação).

11. Não se procedeu, até ao presente, à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal no sentido de alterar a afectação da fracção autónoma propriedade dos Réus (por falta da junção por parte dos Réus de qualquer documento comprovativo da aludida alteração).

12. A Autora sofre de rinite e faringite alérgicas (cfr. doc. nº 7 junto com a p. i.).

13. Os Réus instalaram uma esplanada diante do edifício em questão, sem qualquer autorização dos demais condóminos para o efeito (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 24.º da p.i. e 61.º da contestação, salientando-se que não era necessária qualquer autorização dos condóminos uma vez que se trata de espaço público, pelo que a autorização necessária é da CM, a quem foi requerida).

14. Mais do que uma vez houve entupimentos da caixa de esgoto existente na garagem da Autora (cfr. prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018).

15. Esses entupimentos impedem a Autora de utilizar esse espaço, sempre receosa de ver os seus bens ali depositados danificados, nomeadamente, qualquer veículo automóvel (cfr. prova pericial junta aos autos em 29.01.2018).

16. A Autora vive com intranquilidade e angústia (cfr. depoimentos das testemunhas LL e MM).

17. Por diversas vezes, directa e indirectamente, a Autora tentou alertar os Réus, participando esta situação a entidades fiscalizadoras (cfr. docs. 12, 13 e 14 juntos com a p.i.).

18. Os Réus adquiriram, no ano de 1996, a fracção autónoma identificada pelas letras “CD” (cfr. doc. n.º 1 junto com a contestação).

19. No verão de 2009, os Réus decidiram afectar a sua fracção à actividade de restauração e bebidas (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 1.º e 4.º da p.i. e 11.º da contestação).

20. Para tanto, os Réus dirigiram-se à Secção de Obras Particulares da Câmara Municipal para obterem informações sobre o procedimento necessário ao seu licenciamento (cfr. fl. 99 do apenso junto pela CM).

21. Foram informados pela responsável da Secção de Obras Particulares, Engenheira FF, que, por constar do Alvará de Licença de utilização da fração n.º ../…., o uso genérico de comércio, era necessário apresentar um projecto de alteração ao uso de comércio, para comércio de restauração e bebidas, por este tipo de estabelecimentos obedecer a requisitos próprios para o seu funcionamento (cfr. fl. 99 do apenso junto pela CM).

22. Bem como para procederem à realização de todas as obras necessárias para o cumprimento das exigências legais para este tipo de estabelecimento (cfr. fl. 99 do apenso junto pela CM).

23. Informou ainda a técnica, que, por haver divergência de entendimento sobre este tipo de licenciamento específico, com a Chefe de Divisão de Planeamento e Urbanismo, engenheira QQ, seria solicitado à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR) a emissão de um parecer sobre esta questão (cfr. fl. 99 do apenso junto pela CM e depoimento da testemunha QQ).

24. Para darem cumprimento às exigências legais dos requisitos exigidos para a actividade de restauração e bebidas, os Réus procederem à execução das obras necessárias para o efeito na sua fracção (cfr. fls. 97 e ss e, designadamente, fls. 105 e ss e, sobretudo, fls. 123 e ss e fl.153 do apenso junto pela CM e depoimento da testemunha GG).

25. Os Réus colocaram condutas de extracção de fumos cuja saída é efectuada por uma corete interna, que existe de raiz, desde a construção do edifício, na sua fracção, independente da corete principal da chaminé do edifício (cfr. doc. de fl. 135 conjugado com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018, os esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018, o depoimento da testemunha GG e o depoimento da testemunha DD).

26. Situa-se junto à parede de separação com o bloco habitacional designado por “lote D” e prossegue até ao telhado do edifício de cinco andares (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 5.º da p.i. e 17.º da contestação).

27. Sem qualquer tipo de contacto com a corete das instalações sanitárias da fracção da Autora (cfr. esclarecimentos do perito de 13.04.2018).

28. As obras mencionadas foram à vista de todos os condóminos (regras de experiência comum, sendo um facto notório que obras como aquelas não podiam ser realizadas de forma encoberta).

29. As obras mencionadas não foram objecto de reclamações em reunião de Assembleias de Condóminos ao longo destes últimos 8 anos (cfr. actas de fls. 105 a 120 e 184 a 224)

30. Em 4 de dezembro de 2009, foi emitido o parecer pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR) com o n.º DSAJAL 194/09 que concluiu que “o uso pretendido para a fracção em causa - restauração e bebidas - enquadra-se no sector mais genérico do comércio, tendo apenas um regime de licenciamento próprio, que visa acautelar determinados interesses públicos nos domínios da funcionalidade, segurança e salubridade” (cfr. doc. n.º 2 junto com a contestação e fl. 112 do apenso junto pela CM).

31. Os Réus apresentaram na Câmara Municipal o projecto de alteração ao uso da fracção de comércio para comércio de restauração e bebidas, instruído com todos os pareceres obrigatórios (parecer sanitário, ficha de segurança contra incêndio e termo de responsabilidade) (cfr. doc. n.ºs 3 a 5 junto com a contestação e fls. 97 e ss. do apenso junto pela CM).

32. Vindo este a ser aprovado, em 28 de dezembro de 2009, e efectuada a alteração à Licença de Utilização n.º 5/2006 de comércio para comércio de restauração e bebidas (cfr. doc. n.º 6 junto com a contestação e fls. 153 e ss. do apenso junto pela CM).

33. O local onde se situa o estabelecimento de restauração é pacato e sossegado (cfr. facto notório num meio pequeno como ...).

34. Não existe no local onde se situa o restaurante em apreço cheiros, odores, vapores, barulhos, trânsito ou movimentações de veículos afectos ao restaurante que possam perturbar o sossego e bem-estar, de quem ali reside, nomeadamente, da Autora, nem tão pouco fumos ou gases oriundos do sistema de extração de fumos da fracção dos Réus (prova pericial junta aos autos em 29.01.2018, estudo de avaliação da qualidade de ar interior, verificação de requisitos acústicos dos edifícios e medição dos níveis de pressão sonora juntos aos autos em 29.10.2018).

35. A fracção da Autora situa-se no segundo andar esquerdo do lado oposto ao restaurante (cfr. doc. n.º 1 junto com a p.i. e prova pericial junta aos autos em 29.01.2018).

36. A Autora apresentou queixa junto da Provedoria de Justiça (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 48.º da contestação e arts. 19.º e 20.º da réplica conjugado com o doc. n.º 7 junto com a contestação e com a fl. 182 do apenso junto pela CM).

37. A queixa apresentada foi arquivada, junto da Provedoria da Justiça, por se considerar que a queixosa “se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade” (cfr. doc. n.º 7 junto com a contestação e fl. 182 do apenso junto pela CM).

38. Arquivamento comunicado à Autora que o aceitou (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 51.º da contestação e art. 20.º da réplica).

39. Bem como à Câmara Municipal (cfr. doc. n.º 7 junto com a contestação e fl. 182 do apenso junto pela CM).

40. Dois anos após o início do funcionamento do restaurante, em reunião extraordinária da Assembleia de condóminos de 22 de Julho de 2011, foi deliberado consultar um advogado para questionar se o licenciamento da fracção CD- - r/c direito permitia a abertura de um restaurante/café (cfr. doc. n.º 8 junto com a contestação).

41. Em Assembleia de condóminos de 20 de Janeiro de 2012 foram prestados presencialmente os esclarecimentos solicitados e anexa a informação escrita à respectiva acta (cfr. doc n.º 9 junto com a contestação).

42. E informados os condóminos, nomeadamente, a Autora, que face ao tempo decorrido, à data três anos sobre a abertura do restaurante, sem nada terem solicitado em sentido contrário, este comportamento podia consubstanciar uma aceitação tácita da abertura do restaurante (cfr. doc. n.º 10 junto com a contestação).

43. Em Assembleia de condóminos de 25 de Janeiro de 2015 (mas que se reporta ao ano de 2016 por constar da respectiva Acta que a convocatória foi remetida em 6 de Janeiro de 2016 e atendendo ao teor do ponto 1 e 2 em discussão), a Autora propôs à votação “apresentar uma acção judicial contra os proprietários da fracção CD, correspondente ao r/c direito, com vista ao encerramento da actividade de restaurante”, não tendo sido aprovada a proposta de encerramento do restaurante mas tendo a Autora votado a favor (cfr. doc. n.º 11 junto com a contestação).

44. Da vistoria efectuada à fracção dos Réus em 20.06.2014 pela Delegada de Saúde da Unidade de Saúde Local de ..... foi verificado que o estabelecimento de restauração “O Cantinho dos ....” cumpria as exigências de salubridade e saúde pública (cfr. doc. n.º 12 junto com a contestação).

45. A esplanada aberta com estrado está instalada em espaço público, em frente à fracção dos Réus (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 24.º da p.i., 61.º da contestação e 27.º da réplica e doc. n.º 13 junto a esta).

46. Foi ali colocada em 2014, sendo que, à data, o seu licenciamento foi requerido pela então arrendatária da fracção “O Cantinho dos ....” (cfr. doc n.º 13 junto com a contestação).

47. Tais obras decorreram com total conhecimento da Autora e dos demais condóminos (regras de experiência comum, sendo um facto notório que obras como aquelas não podiam ser realizadas de forma encoberta).

48. À data da aquisição da fracção pelos Réus, esta estava dotada de raiz, desde a construção do edifício, de uma corete independente da corete principal da chaminé do edifício que permitia a evacuação de fumos, vapores e cheiros, à semelhança do que sucedia com as restantes fracções afectas ao comércio para permitir que ali funcionasse um estabelecimento de restauração ou outro de natureza similar (cfr. doc. de fl. 135 conjugado com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018, os esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018, o depoimento da testemunha GG e o depoimento da testemunha DD).

49. A Autora é conhecida no concelho como vidente, exercendo essa actividade ao longo dos anos, pelo menos, num dia indeterminado da semana e aos sábados, sendo que, até ao ano passado, exercia essa actividade na garagem afecta à sua fracção, na qual construiu uma divisória onde colocou uma instalação sanitária para servir a vasta clientela que atende semanalmente (cfr. em parte, acordo das partes nos termos dos arts. 73.º e 74.º da contestação e 34.º, 35.º e 59.º da réplica e depoimentos das testemunhas HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, conjugados com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018).

50. A afectação que a Autora deu à sua garagem e, depois, habitação propriamente dita, foi levada a cabo sem autorização dos demais condóminos (cfr. actas de fls. 105 a 120 e 184 a 224).

51. Essa afectação provoca um afluxo de pessoas e veículos, na parte posterior do edifício (cfr. depoimentos das testemunhas HH, II, LL e MM).

52. A totalidade das fracções existentes no prédio em apreço é de seis e a Autora representa uma delas (cfr. docs. n.ºs 1 e 5 junto com a p.i.).

53. A autora é proprietária da fracção correspondente ao segundo andar esquerdo destinado a habitação do tipo T- três, composta por um corredor, três quartos, duas instalações sanitárias, sala, cozinha, varanda, arrecadação no sótão, designada por CC-três e na cave garagem, designada por CC-Um e arrumos designado por CC-dois (cfr. docs. n.ºs 1 e 5 junto com a p.i.).

54. A Autora elaborou na garagem, obras de adaptação, com a intenção de utilizá-la para a sua actividade de vidente (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 74.º da contestação e 35.º da réplica e depoimentos das testemunhas HH, JJ, LL, OO e PP, conjugados com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018).

55. A Autora ligou a instalação sanitária que construiu na sua garagem ao saneamento principal do prédio (cfr. prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018).

56. As obras efectuadas pela Autora foram-no sem autorização dos Réus ou demais condóminos do edifício (cfr. actas de fls. 105 a 120 e 184 a 224).

57. A Autora queixou-se da instalação de um restaurante na fracção propriedade dos Réus junto da Câmara Municipal, dos Serviços de Saúde e do Provedor de Justiça (cfr. docs. n.ºs 12 e 14 junto com a p.i. e doc. n.º 7 junto com a contestação).

58. O condómino da fracção CE (1.º Direito) disse, na Assembleia de Condóminos de 22.07.2011: “em princípio, permite apenas para utilizar a loja para fins comerciais, ou seja, comércio e não para café ou restauração.” Disse também que quando chegou dos E.U.A., as janelas/persianas estavam “coladas, com gordura e os cheiros são intensos” (cfr. acta n.º 14 que constitui o doc. n.º 8 junto com a Contestação).

59. Desde, pelo menos, há dez anos é do conhecimento dos Réus que a Autora é vidente e ajuda diversas pessoas enquanto tal na fracção que é sua habitação, nomeadamente, na zona da garagem (cfr. depoimentos de parte dos Réus e assentada constante da respectiva acta).

60. Jamais os Réus se manifestaram contra tal comportamento da Autora ou instalação (cfr. depoimentos de parte dos Réus e assentada constante da respectiva acta).

61. Os Réus procederam à instalação de duas casas-de-banho na garagem designada “CD 1”, respeitante à fracção autónoma identificada pelas letras “CD”, sua propriedade, utilizando, igualmente, aquele espaço como armazém comercial e arrecadação (cfr. depoimentos de parte dos Réus e assentada constante da respectiva acta).

62. A Autora, em contrapartida da sua actividade de vidente, por vezes, recebe entregas em espécie - como garrafões de azeite e batatas - e noutras vezes quantias monetárias que medeiam entre os 5,00€ (cinco euros) e os 30,00€ (trinta euros) (cfr. depoimentos das testemunhas HH, II, JJ, KK, OO e PP).

63. Hodiernamente, a Autora apenas recebe os seus clientes na sua habitação, localizada no segundo andar esquerdo do edifício em apreço (cfr. depoimentos das testemunhas II, JJ, KK e OO).

  17. Em contrapartida, o Tribunal de 1.ª instância deu como não provados os factos seguintes:

1. A Autora, aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante.

2. As condutas mencionadas no ponto 5 têm passagem pela corete das instalações sanitárias das fracções habitacionais, como aquela propriedade da Autora (esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018 de onde resulta o contrário).

3. A Autora vê a sua fracção diariamente poluída com fumos e gases oriundos do aludido sistema de extracção propriedade dos Réus (prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e estudo de avaliação da qualidade de ar interior junta aos autos em 29.10.2018 de onde resulta o contrário).

4. O que lhe causa inflamação do nariz e garganta e faz com que a Autora padeça, hodiernamente e desde 2009, de rinite e faringite alérgicas em virtude da constante inalacção dos gases poluídos provenientes dos sucessivos restaurantes que ali vão sendo instalados desde aquela data (estudo de avaliação da qualidade de ar interior junto aos autos em 29.10.2018, relatório do INML de 1.02.2018 e esclarecimentos do INML junto aos autos em 22.03.2018 que abalam a credibilidade do doc. n.º 7 junto com a p.i, quanto às causas das atestadas rinite e faringite alérgicas).

5. De igual modo, a Autora vê hoje a sua fracção constantemente invadida de maus cheiros, o que não sucedia em momento anterior à materialização das obras acima mencionadas e à indevida afectação da fracção propriedade dos Réus à actividade de “restauração e bebidas” (estudo de avaliação da qualidade de ar interior junto aos autos em 29.10.2018 de onde resulta o contrário).

6. A passagem das condutas de extracção de fumos pela corete das instalações sanitárias das fracções habitacionais cominou a contaminação das águas sanitárias utilizadas na fracção da Autora pelo que, por inúmeras vezes, a Autora e os seus familiares se viram e vêem impossibilitados de utilizar as suas próprias instalações sanitárias e respectivas águas, sob pena de inflamação cutânea e vaginal (prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 de onde resulta o contrário).

7. O restaurante actualmente instalado na fracção propriedade dos Réus mantém-se aberto em dias de festa, até, pelo menos, à 00h30 do dia subsequente, sendo que aumenta o afluxo de clientes nos fins-de-semanas, feriados, dias festivos e no período estival.

8. Em consequência, desde que a fracção propriedade dos Réus foi afecta à actividade de restauração, a Autora vê a sua tranquilidade perturbada com ruído efectuado pelos clientes e funcionários dos sucessivos restaurantes ali instalados, no período diurno e nocturno, designadamente, aquando da limpeza e arrumação do estabelecimento no final da jornada de trabalho (verificação de requisitos acústicos dos edifícios e medição dos níveis de pressão sonora juntos aos autos em 29.10.2018 de onde resulta o contrário).

9. O afluxo de clientela, inerente à actividade de restauração, determinou uma maior utilização das instalações sanitárias da fracção propriedade dos Réus não previsível aquando da construção do edifício em causa, utilização para a qual as respectivas instalações não se encontram estruturalmente equipadas (prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 de onde resulta o contrário).

10. Consequentemente, desde que foi alterada a afectação da fracção propriedade dos Réus que as instalações de saneamento gerais do prédio em questão se entopem frequentemente -a última das quais em Agosto de 2016 - enchendo as respectivas caixas de saneamento e transbordando, acabando por inundar a garagem da Autora e de outros condóminos com águas pútridas (prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 de onde resulta o contrário).

11. Ocorrem frequentes infiltrações de água pelo tecto e paredes da garagem da Autora, a última das quais em Agosto de 2016 (os docs. 8 a 11 juntos com a p.i. não são suficientes para demonstrar tal circunstância, em primeiro lugar, por serem concernentes ao chão, em segundo lugar, por serem contraditórios com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e, em terceiro lugar, porque tais docs. não se encontram datados).

12. Causando, inevitavelmente, o levantamento da tinta ali aplicada e do estuque e o enegrecimento de tais estruturas, carecendo, para a sua reparação de ser efectuada a sua pintura, com duas de mão, com tinta plástica de igual qualidade à ali existente, com custo nunca inferior a € 1000,00 (mil euros) (os docs. 8 a 11 juntos com a p.i. não são suficientes para demonstrar tal circunstância, além de que contrariado pelos esclarecimentos juntos aos autos em 13.04.2018).

13. A Autora é uma pessoa pacata, simples e humilde, educada e estimada por quantos a conhecem e que com ela lidam, dotada de grande autoridade moral, excelente educação e fino trato.

14. Era ainda, anteriormente aos factos, uma pessoa feliz, sempre bem-disposta e cheia de alegria de viver.

15. A Autora tem dificuldade em dormir uma única noite de sono descansada, desde que os Réus concretizaram as obras acima referidas, ou seja, desde 2009.

16. Ficando a Autora deprimida e entristecida em consequência do comportamento dos Réus, deixando de apresentar a força de viver a que habituara os seus parentes e amigos, vendo prejudicados o seu bem-estar e conforto na sua própria habitação.

17. Desde 2006 que os Réus deram de arrendamento a sua fracção.

18. As obras executadas pelos Réus não tiveram qualquer oposição pessoal dos condóminos, nomeadamente, da Autora ou da administração do condomínio.

19. As obras foram aprovadas e licenciadas pela Câmara Municipal (cfr. fls. 99 e 115 do apenso junto pela CM de onde resulta não ser necessária tal aprovação).

20. Desde então (28.12.2009) que, na fracção dos Réus, funciona continuamente um estabelecimento de restauração e bebidas do tipo familiar, o qual, na maior parte dos dias, à hora do almoço, funciona a menos de 50% da sua capacidade, sendo praticamente inexistente a clientela à noite, nos dias de semana.

21. Apesar de lhe ter sido atribuído um horário de funcionamento mais alargado, o estabelecimento funciona essencialmente das 9H30 às 15H00 e das 19H30 às 23H00.

22. Ao longo de 8 anos, nenhum outro condómino se queixou para além da Autora.

23. Informada pela Câmara Municipal que a actividade de restauração instalada na fracção dos Réus cumpria todas as exigências legais, a Autora aceitou o licenciamento e consequentemente a laboração do restaurante na fracção dos Réus.

24. Das vistorias efectuadas à fracção dos Réus pela Câmara Municipal e/ou pela Delegada de Saúde da Unidade de Saúde Local de ..., a pedido da Autora nada resultou no sentido de que a instalação do restaurante provoca com frequência entupimento das instalações de saneamento e inundação das garagens desta e dos outros condóminos.

25. O licenciamento da esplanada mencionado no ponto 44 dos factos provados foi aprovado pela Câmara Municipal.

26. A Autora construiu clandestinamente duas caixas de esgoto doméstico no pavimento na garagem afecta à sua habitação.

27. O afluxo de pessoas e a maior utilização da instalação sanitária sita na garagem da Autora, que não estava comtemplada no projecto aquando da construção do edifício, provavelmente, provoca o entupimento do saneamento e aparecimento de humidades na garagem da Autora.

28. A afectação que a Autora dava à garagem não foi dada a conhecer aos condóminos aquando da aquisição das respectivas fracções.

29. E perturba o descanso, tranquilidade e privacidade de quem ali reside.

30. Foi no ano de 2011 que a Autora concordou com o arquivamento da queixa apresentada no Provedor de Justiça.

31. Passados 8 anos, os Réus confiaram que, tanto tempo depois de o restaurante estar a funcionar, a Autora não iria requerer o seu encerramento.

32. É a instalação sanitária que a Autora construiu na garagem que entope frequentemente as instalações do saneamento geral do prédio (cfr. prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 que demonstra o seu contrário).

33. As obras efectuadas pela Autora foram sem autorização da administração do condomínio.

34. A esplanada do restaurante em apreço é acessível através de uma zona comum a todos os condóminos.

35. A Ré recorreu, por diversas vezes, à ajuda da Autora, ao longo da última década, conforme é do pleno conhecimento do seu marido Réu, na qualidade de vidente, para o efeito se deslocando, inclusivamente, à garagem da segunda, local onde lhe foi prestado o auxílio solicitado, encontrando-se ao seu dispor o vaso sanitário ali colocado por ordem da Autora (uma vez que as únicas testemunhas que a isso se referiram – a testemunha II que apenas o diz incidentalmente e a testemunha OO, filha da Autora – se revelaram pouco credíveis por serem os seus depoimentos flagrantemente contrariados pelas perícias realizadas e não consentâneos, na sua maior parte, com as regras de experiência comum, mencionando-se, só a título de exemplo, a insistência peremptória dessa testemunha EE no sentido de ver fumo a sair do “buraquinho da fechadura” da garagem dos Réus e que a Autora, devido ao restaurante, ficou com “língua com verdete” três dias após a abertura do mesmo).

36. Desde, pelo menos, 1996, é do conhecimento dos Réus e de todos os demais condóminos que se encontra instalado na garagem da Autora um vaso sanitário.

37. Nenhum prejuízo algum dia ocorreu para os Réus decorrente da actividade da Autora ou daquela instalação.

38. Os Réus chegaram a permitir que se proceda à confecção de carnes na garagem integrante da sua fracção, conforme é prática do seu arrendatário.

39. A Autora, desde, pelo menos, 1991, é vidente, sem remuneração certa, recebendo, apenas, o que as pessoas lhe queiram dar.

40. A Autora, em contrapartida da sua actividade de vidente, por vezes, recebe entregas em espécie - como flores, bibelôs - e noutras raras vezes gratificações monetárias como €5,00 (cinco euros) ou €10,00 (dez euros).

 18. O Tribunal da Relação de Coimbra alterou a decisão de facto, nos seguintes termos:

 I. — alterou a redacção do facto dado como provado sob o n.º 6, para:

6. Essas condutas têm saída última pela chaminé do edifício, passando pelo interior da corete do mesmo, por uma tubagem dedicada exclusivamente à fracção dos Réus, e pela fachada posterior do edifício.

 II. — alterou a redacção do facto dado como provado sob o n.º 24, para:

24. Para darem cumprimento às exigências legais dos requisitos exigidos pelo Município para a actividade de restauração e bebidas, os Réus procederam à execução das obras tidas por necessárias para o efeito na sua fracção, objecto de projecto, e ainda à instalação de um sistema de extracção de fumos na garagem, com saída pela fachada posterior do edifício, mediante prévio recurso à alteração do projecto em sede de “loteamento”.

 III. — alterou a redacção do facto dado como provado sob o n.º 25, para:

25. Os Réus colocaram condutas de extracção de fumos cuja saída é efectuada por uma tubagem interna, que existe desde raiz, desde a construção do edifício, na sua fracção, independente da tubagem principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125mm, inferior ao de 180mm verificado no interior da fracção.

 IV. — alterou a redacção do facto dado como provado sob o n.º 28, para:

28. As obras mencionadas foram à vista de condóminos.

 V. — alterou a redacção do facto dado como provado sob o n.º 37, para:

37. A queixa apresentada foi arquivada, junto da Provedoria da Justiça, por se considerar que a queixosa “se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade”, no seguimento de comunicação da autarquia nesse sentido.

 VI. — alterou a redacção do facto dado como provado sob o n.º 47, para:

47. Tais obras decorreram com total conhecimento da Autora e outros condóminos.

 VII. — alterou a redacção do facto dado como provado sob o n.º 48, para:

48. À data da aquisição da fracção pelos Réus, esta estava dotada de raiz, desde a construção do edifício, de uma tubagem independente da principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125 mm, inferior ao de 180 mm verificado no interior da fracção, que permitia a evacuação de fumos, vapores e cheiros, para permitir que ali funcionasse um estabelecimento de restauração ou outro de natureza similar.

 VIII. — deu como provado — sob o n.º 64 — o facto que o Tribunal de 1.ª instãncia tinha dado como não provado sob o n.º 34:

64. A esplanada do restaurante em apreço é acessível através de uma zona comum a todos os condóminos.

 IX. — deu como provado — sob o n.º 65 — o facto que o Tribunal de 1.ª instância tinha dado como não provado sob o n.º 1:

65. A Autora, aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante.

  19. Em consequência da alteração da matéria de facto, o acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:

1. A Autora é proprietária e legítima possuidora do imóvel correspondente à fracção autónoma, identificada pelas letras “CC”, do edifício sito na Avenida …, n.ºs 29, 31 e 35 e na Quinta …, …, localizada no 2.º Andar Esquerdo, com entrada pelo n.º 29 do mesmo.

2. Os Réus são proprietários e legítimos possuidores do imóvel correspondente à fracção autónoma, identificada pelas letras “CD”, do edifício sito na Avenida …, n.ºs 29, 31 e 35 e na Quinta …, …, localizada no Rés-do-chão Direito, com entrada pelo n.º 31 do mesmo.

3. O edifício em causa encontra-se constituído em regime de propriedade horizontal, sendo a sobredita fracção propriedade da Autora destinada a habitação e a fracção supra identificada propriedade dos Réus destinada a comércio.

4. No ano de 2009, os Réus fizeram obras de adaptação com vista a utilizar a sua fracção para a actividade de restauração e bebidas.

5. Entre outras obras, os Réus procederam à colocação de condutas de extracção de fumos, cuja saída da fracção propriedade daqueles se encontra ligada à parede de separação da mesma à fracção contígua, porquanto ali inexistia qualquer sistema de extracção de fumo.

6. Essas condutas têm saída última pela chaminé do edifício, passando pelo interior da corete do mesmo, por uma tubagem dedicada exclusivamente à fracção dos Réus, e pela fachada posterior do edifício.

7. Procedeu-se à acoplação de uma “hot” à aludida chaminé.

8. Instalando-se ainda um respiradouro na fachada posterior do edifício em apreço e dois aparelhos de ar condicionado, após materialização da abertura necessária para o efeito.

9. Permitiram os Réus a instalação na fracção em apreço de, pelo menos, dois restaurantes, arrendando-a para tal efeito.

10. Nenhuma das obras acima elencadas foi autorizada pela Autora ou demais condóminos do edifício em questão ou, sequer, pela administração do seu condomínio.

11. Não se procedeu, até ao presente, à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal no sentido de alterar a afectação da fracção autónoma propriedade dos Réus.

12. A Autora sofre de rinite e faringite alérgicas.

13. Os Réus instalaram uma esplanada diante do edifício em questão, sem qualquer autorização dos demais condóminos para o efeito.

14. Mais do que uma vez houve entupimentos da caixa de esgoto existente na garagem da Autora.

15. Esses entupimentos impedem a Autora de utilizar esse espaço, sempre receosa de ver os seus bens ali depositados danificados, nomeadamente, qualquer veículo automóvel.

16. A Autora vive com intranquilidade e angústia.

17. Por diversas vezes, directa e indirectamente, a Autora tentou alertar os Réus, participando esta situação a entidades fiscalizadoras.

18. Os Réus adquiriram, no ano de 1996, a fracção autónoma identificada pelas letras “CD”.

19. No verão de 2009, os Réus decidiram afectar a sua fracção à actividade de restauração e bebidas.

20. Para tanto, os Réus dirigiram-se à Secção de Obras Particulares da Câmara Municipal para obterem informações sobre o procedimento necessário ao seu licenciamento.

21. Foram informados pela responsável da Secção de Obras Particulares, Engenheira FF, que, por constar do Alvará de Licença de utilização da fração n.º …, o uso genérico de comércio, era necessário apresentar um projecto de alteração ao uso de comércio, para comércio de restauração e bebidas, por este tipo de estabelecimentos obedecer a requisitos próprios para o seu funcionamento.

22. Bem como para procederem à realização de todas as obras necessárias para o cumprimento das exigências legais para este tipo de estabelecimento.

23. Informou ainda a técnica, que, por haver divergência de entendimento sobre este tipo de licenciamento específico, com a Chefe de Divisão de Planeamento e Urbanismo, engenheira QQ, seria solicitado à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR) a emissão de um parecer sobre esta questão.

24. Para darem cumprimento às exigências legais dos requisitos exigidos pelo Município para a actividade de restauração e bebidas, os Réus procederam à execução das obras tidas por necessárias para o efeito na sua fracção, objecto de projecto, e ainda à instalação de um sistema de extracção de fumos na garagem, com saída pela fachada posterior do edifício, mediante prévio recurso à alteração do projecto em sede de “loteamento”.

25. Os Réus colocaram condutas de extracção de fumos cuja saída é efectuada por uma tubagem interna, que existe desde raiz, desde a construção do edifício, na sua fracção, independente da tubagem principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125mm, inferior ao de 180mm verificado no interior da fracção.

26. Situa-se junto à parede de separação com o bloco habitacional designado por “lote ..” e prossegue até ao telhado do edifício de cinco andares.

27. Sem qualquer tipo de contacto com a corete das instalações sanitárias da fracção da Autora.

28. As obras mencionadas foram à vista de condóminos.

29.As obras mencionadas não foram objecto de reclamações em reunião de Assembleias de Condóminos ao longo destes últimos 8 anos (cfr. actas de fls. 105 a 120 e 184 a 224)

30. Em 4 de dezembro de 2009, foi emitido o parecer pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR) com o n.º DSAJAL 194/09 que concluiu que “o uso pretendido para a fracção em causa - restauração e bebidas - enquadra-se no sector mais genérico do comércio, tendo apenas um regime de licenciamento próprio, que visa acautelar determinados interesses públicos nos domínios da funcionalidade, segurança e salubridade”.

31. Os Réus apresentaram na Câmara Municipal o projecto de alteração ao uso da fracção de comércio para comércio de restauração e bebidas, instruído com todos os pareceres obrigatórios (parecer sanitário, ficha de segurança contra incêndio e termo de responsabilidade).

32. Vindo este a ser aprovado, em 28 de dezembro de 2009, e efectuada a alteração à Licença de Utilização n.º 5/2006 de comércio para comércio de restauração e bebidas.

33. O local onde se situa o estabelecimento de restauração é pacato e sossegado.

34. Não existe no local onde se situa o restaurante em apreço cheiros, odores, vapores, barulhos, trânsito ou movimentações de veículos afectos ao restaurante que possam perturbar o sossego e bem-estar, de quem ali reside, nomeadamente, da Autora, nem tão pouco fumos ou gases oriundos do sistema de extração de fumos da fracção dos Réus (prova pericial junta aos autos em 29.01.2018, estudo de avaliação da qualidade de ar interior, verificação de requisitos acústicos dos edifícios e medição dos níveis de pressão sonora juntos aos autos em 29.10.2018).

35. A fracção da Autora situa-se no segundo andar esquerdo do lado oposto ao restaurante.

36. A Autora apresentou queixa junto da Provedoria de Justiça.

37. A queixa apresentada foi arquivada, junto da Provedoria da Justiça, por se considerar que a queixosa “se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade”, no seguimento de comunicação da autarquia nesse sentido.

38. Arquivamento comunicado à Autora que o aceitou.

39. Bem como à Câmara Municipal.

40. Dois anos após o início do funcionamento do restaurante, em reunião extraordinária da Assembleia de condóminos de 22 de Julho de 2011, foi deliberado consultar um advogado para questionar se o licenciamento da fracção CD- r/c direito permitia a abertura de um restaurante/café.

41. Em Assembleia de condóminos de 20 de Janeiro de 2012 foram prestados presencialmente os esclarecimentos solicitados e anexa a informação escrita à respectiva acta.

42. E informados os condóminos, nomeadamente, a Autora, que face ao tempo decorrido, à data três anos sobre a abertura do restaurante, sem nada terem solicitado em sentido contrário, este comportamento podia consubstanciar uma aceitação tácita da abertura do restaurante.

43. Em Assembleia de condóminos de 25 de Janeiro de 2015 (mas que se reporta ao ano de 2016 por constar da respectiva Acta que a convocatória foi remetida em 6 de Janeiro de 2016 e atendendo ao teor do ponto 1 e 2 em discussão), a Autora propôs à votação “apresentar uma acção judicial contra os proprietários da fracção CD, correspondente ao ……., com vista ao encerramento da actividade de restaurante”, não tendo sido aprovada a proposta de encerramento do restaurante mas tendo a Autora votado a favor.

44. Da vistoria efectuada à fracção dos Réus em 20.06.2014 pela Delegada de Saúde da Unidade de Saúde Local de .... foi verificado que o estabelecimento de restauração “O Cantinho dos ......” cumpria as exigências de salubridade e saúde pública.

45. A esplanada aberta com estrado está instalada em espaço público, em frente à fracção dos Réus.

46. Foi ali colocada em 2014, sendo que, à data, o seu licenciamento foi requerido pela então arrendatária da fracção “O Cantinho dos ......”.

47. Tais obras decorreram com total conhecimento da Autora e outros condóminos.

48. À data da aquisição da fracção pelos Réus, esta estava dotada de raiz, desde a construção do edifício, de uma tubagem independente da principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125 mm, inferior ao de 180 mm verificado no interior da fracção, que permitia a evacuação de fumos, vapores e cheiros, para permitir que ali funcionasse um estabelecimento de restauração ou outro de natureza similar.

49. A Autora é conhecida no concelho como vidente, exercendo essa actividade ao longo dos anos, pelo menos, num dia indeterminado da semana e aos sábados, sendo que, até ao ano passado, exercia essa actividade na garagem afecta à sua fracção, na qual construiu uma divisória onde colocou uma instalação sanitária para servir a “vasta” clientela que atende semanalmente (cfr. em parte, acordo das partes nos termos dos arts. 73.º e 74.º da contestação e 34.º, 35.º e 59.º da réplica e depoimentos das testemunhas HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, conjugados com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018).

50. A afectação que a Autora deu à sua garagem e, depois, habitação propriamente dita, foi levada a cabo sem autorização dos demais condóminos (cfr. actas de fls. 105 a 120 e 184 a 224).

51. Essa afectação provoca um afluxo de pessoas e veículos, na parte posterior do edifício.

52. A totalidade das fracções existentes no prédio em apreço é de seis e a Autora representa uma delas.

53. A autora é proprietária da fracção correspondente ao segundo andar esquerdo destinado a habitação do tipo T- três, composta por um corredor, três quartos, duas instalações sanitárias, sala, cozinha, varanda, arrecadação no sótão, designada por CC-três e na cave garagem, designada por CC-Um e arrumos designado por CC-dois.

54. A Autora elaborou na garagem, obras de adaptação, com a intenção de utilizá-la para a sua actividade de vidente (cfr. acordo das partes nos termos dos arts. 74.º da contestação e 35.º da réplica e depoimentos das testemunhas HH, JJ, LL, OO e PP, conjugados com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e esclarecimentos do Sr. Perito de 13.04.2018).

55. A Autora ligou a instalação sanitária que construiu na sua garagem ao saneamento principal do prédio.

56. As obras efectuadas pela Autora foram-no sem autorização dos Réus ou demais condóminos do edifício (cfr. actas de fls. 105 a 120 e 184 a 224).

57. A Autora queixou-se da instalação de um restaurante na fracção propriedade dos Réus junto da Câmara Municipal, dos Serviços de Saúde e do Provedor de Justiça. 58. O condómino da fracção CE (…) disse, na Assembleia de Condóminos de 22.07.2011: “em princípio, permite apenas para utilizar a loja para fins comerciais, ou seja, comércio e não para café ou restauração.” Disse também que quando chegou dos E.U.A., as janelas/persianas estavam “coladas, com gordura e os cheiros são intensos”.

59. Desde, pelo menos, há dez anos é do conhecimento dos Réus que a Autora é vidente e ajuda diversas pessoas enquanto tal na fracção que é sua habitação, nomeadamente, na zona da garagem.

60. Jamais os Réus se manifestaram contra tal comportamento da Autora ou instalação.

61. Os Réus procederam à instalação de duas casas-de-banho na garagem designada “CD 1”, respeitante à fracção autónoma identificada pelas letras “CD”, sua propriedade, utilizando, igualmente, aquele espaço como armazém comercial e arrecadação.

62. A Autora, em contrapartida da sua actividade de vidente, por vezes, recebe entregas em espécie - como garrafões de azeite e batatas - e noutras vezes quantias monetárias que medeiam entre os 5,00€ (cinco euros) e os 30,00€ (trinta euros) (cfr. depoimentos das testemunhas HH, II, JJ, KK, OO e PP).

63. Hodiernamente, a Autora apenas recebe os seus clientes na sua habitação, localizada no segundo andar esquerdo do edifício em apreço

64. A esplanada do restaurante em apreço é acessível através de uma zona comum a todos os condóminos.

65. A Autora, aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante.

20. Em contrapartida, o acórdão recorrido deu como não provados os factos seguintes:

2. As condutas mencionadas no ponto 5 têm passagem pela corete das instalações sanitárias das fracções habitacionais, como aquela propriedade da Autora.

3. A Autora vê a sua fracção diariamente poluída com fumos e gases oriundos do aludido sistema de extracção propriedade dos Réus.

4. O que lhe causa inflamação do nariz e garganta e faz com que a Autora padeça, hodiernamente e desde 2009, de rinite e faringite alérgicas em virtude da constante inalacção dos gases poluídos provenientes dos sucessivos restaurantes que ali vão sendo instalados desde aquela data.

5. De igual modo, a Autora vê hoje a sua fracção constantemente invadida de maus cheiros, o que não sucedia em momento anterior à materialização das obras acima mencionadas e à indevida afectação da fracção propriedade dos Réus à actividade de “restauração e bebidas” (estudo de avaliação da qualidade de ar interior junto aos autos em 29.10.2018 de onde resulta o contrário).

6. A passagem das condutas de extracção de fumos pela corete das instalações sanitárias das fracções habitacionais cominou a contaminação das águas sanitárias utilizadas na fracção da Autora pelo que, por inúmeras vezes, a Autora e os seus familiares se viram e vêem impossibilitados de utilizar as suas próprias instalações sanitárias e respectivas águas, sob pena de inflamação cutânea e vaginal.

7. O restaurante actualmente instalado na fracção propriedade dos Réus mantém-se aberto em dias de festa, até, pelo menos, à 00h30 do dia subsequente, sendo que aumenta o afluxo de clientes nos fins-de-semanas, feriados, dias festivos e no período estival.

8. Em consequência, desde que a fracção propriedade dos Réus foi afecta à actividade de restauração, a Autora vê a sua tranquilidade perturbada com ruído efectuado pelos clientes e funcionários dos sucessivos restaurantes ali instalados, no período diurno e nocturno, designadamente, aquando da limpeza e arrumação do estabelecimento no final da jornada de trabalho (verificação de requisitos acústicos dos edifícios e medição dos níveis de pressão sonora juntos aos autos em 29.10.2018 de onde resulta o contrário).

9. O afluxo de clientela, inerente à actividade de restauração, determinou uma maior utilização das instalações sanitárias da fracção propriedade dos Réus não previsível aquando da construção do edifício em causa, utilização para a qual as respectivas instalações não se encontram estruturalmente equipadas.

10. Consequentemente, desde que foi alterada a afectação da fracção propriedade dos Réus que as instalações de saneamento gerais do prédio em questão se entopem frequentemente - a última das quais em Agosto de 2016 - enchendo as respectivas caixas de saneamento e transbordando, acabando por inundar a garagem da Autora e de outros condóminos com águas pútridas.

11. Ocorrem frequentes infiltrações de água pelo tecto e paredes da garagem da Autora, a última das quais em Agosto de 2016 (os docs. 8 a 11 juntos com a p.i. não são suficientes para demonstrar tal circunstância, em primeiro lugar, por serem concernentes ao chão, em segundo lugar, por serem contraditórios com a prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 e, em terceiro lugar, porque tais docs. não se encontram datados).

12. Causando, inevitavelmente, o levantamento da tinta ali aplicada e do estuque e o enegrecimento de tais estruturas, carecendo, para a sua reparação de ser efectuada a sua pintura, com duas de mão, com tinta plástica de igual qualidade à ali existente, com custo nunca inferior a € 1000,00 (mil euros) (os docs. 8 a 11 juntos com a p.i. não são suficientes para demonstrar tal circunstância, além de que contrariado pelos esclarecimentos juntos aos autos em 13.04.2018).

13. A Autora é uma pessoa pacata, simples e humilde, educada e estimada por quantos a conhecem e que com ela lidam, dotada de grande autoridade moral, excelente educação e fino trato.

14. Era ainda, anteriormente aos factos, uma pessoa feliz, sempre bem-disposta e cheia de alegria de viver.

15. A Autora tem dificuldade em dormir uma única noite de sono descansada, desde que os Réus concretizaram as obras acima referidas, ou seja, desde 2009.

16. Ficando a Autora deprimida e entristecida em consequência do comportamento dos Réus, deixando de apresentar a força de viver a que habituara os seus parentes e amigos, vendo prejudicados o seu bem-estar e conforto na sua própria habitação. 17. Desde 2006 que os Réus deram de arrendamento a sua fracção.

18. As obras executadas pelos Réus não tiveram qualquer oposição pessoal dos condóminos, nomeadamente, da Autora ou da administração do condomínio.

19. As obras foram aprovadas e licenciadas pela Câmara Municipal.

20. Desde então (28.12.2009) que, na fracção dos Réus, funciona continuamente um estabelecimento de restauração e bebidas do tipo familiar, o qual, na maior parte dos dias, à hora do almoço, funciona a menos de 50% da sua capacidade, sendo praticamente inexistente a clientela à noite, nos dias de semana.

21. Apesar de lhe ter sido atribuído um horário de funcionamento mais alargado, o estabelecimento funciona essencialmente das 9H30 às 15H00 e das 19H30 às 23H00.

22. Ao longo de 8 anos, nenhum outro condómino se queixou para além da Autora. 23. Informada pela Câmara Municipal que a actividade de restauração instalada na fracção dos Réus cumpria todas as exigências legais, a Autora aceitou o licenciamento e consequentemente a laboração do restaurante na fracção dos Réus. 24. Das vistorias efectuadas à fracção dos Réus pela Câmara Municipal e/ou pela Delegada de Saúde da Unidade de Saúde Local de ..., a pedido da Autora nada resultou no sentido de que a instalação do restaurante provoca com frequência entupimento das instalações de saneamento e inundação das garagens desta e dos outros condóminos.

25. O licenciamento da esplanada mencionado no ponto 44 dos factos provados foi aprovado pela Câmara Municipal.

26. A Autora construiu clandestinamente duas caixas de esgoto doméstico no pavimento na garagem afecta à sua habitação.

27. O afluxo de pessoas e a maior utilização da instalação sanitária sita na garagem da Autora, que não estava comtemplada no projecto aquando da construção do edifício, provavelmente, provoca o entupimento do saneamento e aparecimento de humidades na garagem da Autora.

28. A afectação que a Autora dava à garagem não foi dada a conhecer aos condóminos aquando da aquisição das respectivas fracções.

29. E perturba o descanso, tranquilidade e privacidade de quem ali reside.

30. Foi no ano de 2011 que a Autora concordou com o arquivamento da queixa apresentada no Provedor de Justiça.

31. Passados 8 anos, os Réus confiaram que, tanto tempo depois de o restaurante estar a funcionar, a Autora não iria requerer o seu encerramento.

32. É a instalação sanitária que a Autora construiu na garagem que entope frequentemente as instalações do saneamento geral do prédio (cfr. prova pericial junta aos autos em 29.01.2018 que demonstra o seu contrário).

33. As obras efectuadas pela Autora foram sem autorização da administração do condomínio.

35. A Ré recorreu, por diversas vezes, à ajuda da Autora, ao longo da última década, conforme é do pleno conhecimento do seu marido Réu, na qualidade de vidente, para o efeito se deslocando, inclusivamente, à garagem da segunda, local onde lhe foi prestado o auxílio solicitado, encontrando-se ao seu dispor o vaso sanitário ali colocado por ordem da Autora (uma vez que as únicas testemunhas que a isso se referiram – a testemunha II que apenas o diz incidentalmente e a testemunha OO, filha da Autora – se revelaram pouco credíveis por serem os seus depoimentos flagrantemente contrariados pelas perícias realizadas e não consentâneos, na sua maior parte, com as regras de experiência comum, mencionando-se, só a título de exemplo, a insistência peremptória dessa testemunha EE no sentido de ver fumo a sair do “buraquinho da fechadura” da garagem dos Réus e que a Autora, devido ao restaurante, ficou com “língua com verdete” três dias após a abertura do mesmo).

36. Desde, pelo menos, 1996, é do conhecimento dos Réus e de todos os demais condóminos que se encontra instalado na garagem da Autora um vaso sanitário.

37. Nenhum prejuízo algum dia ocorreu para os Réus decorrente da actividade da Autora ou daquela instalação.

38. Os Réus chegaram a permitir que se proceda à confecção de carnes na garagem integrante da sua fracção, conforme é prática do seu arrendatário.

39. A Autora, desde, pelo menos, 1991, é vidente, sem remuneração certa, recebendo, apenas, o que as pessoas lhe queiram dar.

40. A Autora, em contrapartida da sua actividade de vidente, por vezes, recebe entregas em espécie - como flores, bibelôs - e noutras raras vezes gratificações monetárias como €5,00 (cinco euros) ou €10,00 (dez euros).

      O DIREITO

  21. A primeira questão suscitada pelos Réus, agora Recorrentes, consiste em determinar se o acórdão recorrido, ao alterar a decisão de facto, infringiu o art. 342.º do Código Civil ou o art. 662.º do Código de Processo Civil.

  22. O art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil determina que o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa — e, em consonância com o art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação deve “formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” [1].

   23. Os Réus, agora Recorrentes, imputam ao acórdão recorrido a falta de fundamentação de algumas alterações formais, de todo em todo irrelevantes para a decisão [2], e, sobretudo, a decisão de dar como provados, sob os n.º 65, o facto que o Tribunal de 1.ª instâncias tinha dado como não provados sob o n.º 1 [3].

   24. O acórdão recorrido fundamentou a alteração nos seguintes termos:

“Ouvimos o depoimento de tais testemunhas, gravados em CD, sobre tal matéria.

A testemunha OO, filha da A., disse que a mãe comprou a sua fracção em 1997. Na altura, o vendedor da empresa, a testemunha DD, disse que as lojas eram só para comércio.

A testemunha DD, conhecido de ambas as partes, declarou que era dono de metade da empresa que construiu o edifício. Tem dificuldades de memória, por problemas de saúde. O edifício era para habitação e lojas (4). Já não se recorda de pormenores, mas sabe que uma das duas fracções compradas pelos RR era para restaurante. A fracção vendida aos RR ficou preparada para tal fim, a nível de condutas, e os RR compraram tal fracção para esse efeito de restaurante. Conversas com a A. na altura da aquisição da fracção da mesma já não se recorda. O que a testemunha A. Pereia transmitiu, sobre o que o vendedor referiu na altura da venda da fracção à A. não é desmentido pelo mesmo, o M. Silva, que refere não se lembrar das conversas com a A. Por outro lado, os docs. 6, 12, 13 e 14, juntos com a p.i., atestam que a A. participou à CM ...., ASAE e ao M. da Saúde, a sua insatisfação e desacordo com a abertura e existência no seu prédio do restaurante dos RR. Assim, devidamente conjugados tais meios de prova, ficamos convencidos e temos por assente o que consta actualmente do facto não provado 1., que deve passar a provado.

[…] há que conjugar o que deriva da procedência da impugnação aos factos provados 6. e 25. com o estabelecido no actual facto 48., compatibilizando as redações do teor de tais factos, o que se fará em seguida. Por fim, não é de aceitar a supressão do fim da fracção dos RR a restauração, pois a testemunha declarou exactamente isso.

Consequentemente, a impugnação da A. procede, parcialmente, ficando o 48. com a redacção que segue e o não provado passa a provado, sob 65. (a negrito e os anteriores em minúsculo):

48. À data da aquisição da fracção pelos Réus, esta estava dotada de raiz, desde a construção do edifício, de uma tubagem independente da principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125 mm, inferior ao de 180 mm verificado no interior da fracção, que permitia a evacuação de fumos, vapores e cheiros, para permitir que ali funcionasse um estabelecimento de restauração ou outro de natureza similar.

65. A Autora, aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante.

 25. Ora a fundamentação do acórdão recorrido é adequada e suficiente para que se possa concluir que o Tribunal da Relação reavaliou os meios de prova disponíveis, reponderou todas as questões de facto suscitadas, para formar uma convicção própria, e respondeu a todas as questões de facto suscitadas, fundamentando a sua resposta.

  26. Excluída a violação do art. 662.º do Código de Processo Civil, deverá dizer-se o seguinte:

  27. O art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil determina que

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

   Como se escreve, p. ex., nos acórdãos de 14 de Dezembro de 2016 — proferido no processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1 —, de 12 de Julho de 2018 — proferido no processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1 — e de 12 de Fevereiro de 2019 — proferido no processo n.º 882/14.9TJVNF-H.G1.A1 —,

“… o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674º nº 3 e 682º nº 2 do Código de Processo Civil), estando-lhe interdito sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador. Só relativamente à designada prova vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige certa espécie de prova para a demonstração do facto ou fixa a força de determinado meio de prova, poderá exercer os seus poderes de controlo em sede de recurso de revista” [4].

“… está vedado ao STJ conhecer de eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas lhe sendo permitido sindicar a actuação da Relação nos casos da designada prova vinculada ou tarifada, ou seja quando está em causa um erro de direito (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, nº 2)” [5].

   28. Em todo o caso, Réus, agora Recorridos, imputam ao acórdão recorrido a violação das regras sobre o ónus da prova.

  29. O problema do ónus da prova consiste "na atribuição dos resultados da incerteza da prova; noutros termos, trata-se de decidir qual é a parte que perderá o processo se o juiz — que deve pronunciar uma decisão — não pôde formar a sua convicção por não dispor de provas suficientes” [6]. O sentido de uma teoria da atribuição / da distribuição do ónus da prova é, por isso, o sentido de uma "teoria das consequências jurídicas da falta de prova” [7].

    Os critérios de atribuição / distribuição do ónus da prova dizem-nos qual a parte que corre o risco de perder o processo quando o juiz não possa formar a sua convicção [8].

   30. Ora, o Tribunal da Relação formou a sua convicção, própria e autónoma, sobre os facto alegados — logo, em lugar de um problema de ónus da prova, està em causa tão-só um problema de eventual erro na apreciação das provas, ou de um eventual erro na fixação dos factos materiais da causa. O Supremo Tribunal de Justiça não pode e não deve conhecê-lo.

  31. Em resposta à primeira questão, deverá dizer-se que o o acórdão recorrido, ao alterar a decisão de facto, não infringiu nem o art. 342.º do Código Civil nem o art. 662.º do Código de Processo Civil.

  32. A segunda questão suscitada pelos Réus, agora Recorrentes, consiste em determinar se a Autora, agora Recorrida, violou o art. 334.º do Código Civil, ao exigir a cessação da actividade do restaurante instalado na fracção dos Réus.

  33. O Tribunal de 1.ª instância chamou ao caso duas modalidades de abuso do direito — a proibição do tu quoque e a proibição do venire contra factum proprium.

 I. — Em primeiro lugar, a proibição do tu quoque — a Autora, agora Recorrida, tinha feito obras nas partes comuns do edifício, sem autorização do demais condóminos, e pretendia que os Réus, agora Recorrentes, demolissem as obras que tinham feito.

 II. — Em segundo lugar, a proibição do venire contra factum proprium — a Autora, agora Recorrida, tinha apresentado queixa à Provedora de Justiça e a queixa foi arquivada, com a explicação de que a queixosa se satisfaz com o conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade”.

 34. O Tribunal da Relação de Coimbra considerou que não havia nem uma coisa nem outra. A proibição do tu quoque foi desatendida, por se considerar que não havia “uma equivalência de condição jurídica concreta entre ambas as partes”, que permitisse paralisar a pretensão da Autora contra os Réus ou, reciprocamente, a pretensão dos Réus contra a Autora e a proibição do venire contra factum proprium foi desatendida, por se considerar que não havia uma situação de confiança justificada imputável à Autora, agora Recorrida.: — por um lado, a proibição do venire contra factum proprium deve atender ao comportamento global da Autora, agora Recorrida; — por outro lado, o comportamento global da Autora, agora Recorrida, não era contraditório com o pedido formulado.

35. O princípio da proibição do tu quoque determina que é uma pessoa que actua ilicitamente, em desconformidade com o direito, não possa prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma actuação ilícita da contraparte [9] — e, embora em concreto haja uma actuação ilícita da Autora, agora Recorrida, e uma actuação ilícita dos Réus, agora Recorrentes, entre as duas actuações ilícitas não há conexão alguma.

  36. Excluída a violação do princípio da proibição do tu quoque, deverá determinar-se se há, ou não, violação do princípio da proibição do venire contra factum proprium.

 37. O anteprojecto de Código Civil consagrava a proibição do venire contra factum proprium, formulando-a nos termos seguintes — é ilegítimo

“que uma pessoa exerça um direito em contradição com uma conduta anterior, quando a sua conduta, objectivamente interpretada, de acordo com a lei, os bons costumes ou a boa fé, justificava a convicção de que não faria valer o direito” [10].

   38. Ora a proibição do venire contra factum proprium é um afloramento do princípio da protecção ou da tutela da confiança [11]e, em consequência, o preenchimento dos requisitos específicos da proibição do venire contra factum proprium depende do preenchimento dos requisitos gerais da protecção ou da tutela da confiança.

        Em primeiro lugar, depende de que haja uma situação objectiva de confiança; em segundo lugar, de que a situação objectiva de confiança seja justificada; e, em terceiro lugar, de que a situação de confiança justificada seja imputável àquele em quem se confia [12].

   39. Os factos provados sob os n.ºs 4, 5, 7, 8 e 9 são suficientes para se sustentar que havia uma situação objectiva de confiança e os factos provados sob os n.ºs 21, 29, 30, 31, 32, 40, 41, 42 e 48 são suficientes para se sustentar que a situação de confiança era justificada.

 I. — Os Réus, agora Recorrentes foram informados de que “o uso pretendido para a fracção em causa — restauração e bebidas — se enquadra no sector mais genérico do comércio, tendo apenas um regime de licenciamento próprio, que visa acautelar determinados interesses públicos nos domínios da funcionalidade, segurança e salubridade” (factos provados sob os n.ºs 21 e 30).

  II. — “À data da aquisição da fracção pelos Réus, esta estava dotada de raiz, desde a construção do edifício, de uma tubagem independente da principal da chaminé do edifício, a qual passa pelo interior da corete do mesmo, e tem um diâmetro de 125 mm, inferior ao de 180 mm verificado no interior da fracção, que permitia a evacuação de fumos, vapores e cheiros, para permitir que ali funcionasse um estabelecimento de restauração ou outro de natureza similar” (facto provado sob o n.º 48).

 III. — Informados de que o uso específico de restauração enquadrava no uso genérico do comércio, desenvolveram as diligências e fizeram, “à vista de condóminos” (facto provado sob o n.º 28), as obras necessárias para que o restaurante fosse licenciado (factos provados sob os n.ºs 28, 31 e 32), sem que fossem suscitadas reservas sobre a licitude da afectação da fracção ao uso específico em causa (cf. factos provados sob os n.ºs 29, 40 e 41).

  40. O problema está sobretudo em averiguar se a situação (objectiva) de confiança justificada dos Réus, agora Recorrentes, será imputável à Autora, agora Recorrida.

  41. Ora “o requisito de que a situação de confiança seja imputável àquele em que se confia deve ter-se por preenchido sempre que a situação (objectiva) de confiança seja conscientemente causada por uma pessoa. Ou porque lhe deu início, através de uma acção ou de uma omissão, ou porque deixou que continuasse. Ora, uma situação (objectiva) de confiança deve ter-se por conscientemente causada por uma pessoa quando ela sabe (ou deve saber) que a causou” [13]:

“[C]ausar confiança é 'imputável' quando a pessoa que a causa sabe ou deve saber que outra pessoa vai confiar” [14].

  42. O acórdão recorrido considera que a situação de confiança não é imputável à Autora, agora Recorrida, pelas razões seguintes:

“… resulta do facto provado 37. que a queixa apresentada foi arquivada, junto da Provedoria da Justiça, por se ter considerado que a queixosa ‘se satisfaz como conhecimento de estarem observadas as prescrições legais e regulamentares em matéria de segurança e salubridade’, […] porque foi essa a comunicação da autarquia nesse sentido. O que é coisa diferente, não tendo o pendor significativo que a decisão recorrida lhe quis dar. Ademais tal entidade é órgão meramente consultivo e sem força decisória. Depois, a A. nunca manifestou, ao longo do tempo, aquiescência a essa realidade, da abertura e funcionamento do restaurante, o que faz todo o sentido pois ela aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos RR não viesse a ser instalado um restaurante (facto provado 65.). Na realidade, a A. por diversas vezes reclamou contra os RR e participou a situação a entidades fiscalizadoras (CM ..., ASAE e ao M. da Saúde), e à Provedoria de Justiça, o assunto foi colocado em assembleia de Condóminos, com consulta de advogado e posteriormente em nova assembleia a A. propôs à votação a apresentação de uma acção judicial para encerramento da actividade de restaurante (factos 17., 36., 39., 40., 43. e 57.).

Ora, este conjunto de factos demonstra que inexistiu ‘factum proprium’ da A., que incutisse confiança nos RR, e por isso não se verifica qualquer conduta contraditória por parte daquela”.

  43. O facto dado como provado sob o n.º 65 — “A Autora, aquando da aquisição da sua fracção autónoma tinha a expectativa de que na fracção dos Réus não viesse a ser instalado um restaurante” — deve relativizar-se, atendendo a que não há um dever geral de correspondência às expectativas alheias [15].

   44. Com a relativização do facto dado como provado sob o n.º 65, deve averiguar-se se a Autora, agora Recorrida, deixou que continuasse a situação objectiva de confiança dos Réus, agora Recorrentes.

  45. Os factos provados sob os n.ºs 17, 36, 37, 40, 43 e 57 devem confrontar-se com os factos dados como provados sob os n.ºs 29, 33, 34, 38, 41, 42, 43 e 44.

  46. Ou seja: ainda que os factos dados como provados sob o n.º 17 e 57 digam que, “directa e indirectamente, a Autora tentou alertar os Réus, participando esta situação a entidades fiscalizadoras”; ainda que o facto dado como provado sob o n.º 36 diga que “[a] Autora apresentou queixa junto da Provedoria de Justiça”; ainda que o facto dado como provado sob o n.º 40 diga que, em 2011, foi deliberado em assembleia de condóminos consultar um advogado “para questionar se o licenciamento da fracção CD- r/c direito permitia a abertura de um restaurante/café”; ainda que o facto provado sob o n.º 43 dig que, em 2016, foi proposta em assembleia de condóminios uma deliberação no sentido de se propor uma acção judicial para encerramento do restaurantes dos Réus, agora Recorrentes, deverá chamar-se a atenção para que:

I. — os factos dados como provados sob os n.ºs 33, 37 e 44 dizem-nos que as queixas  às autoridades fiscalizadoras foram sistematicamente arquivadas;

  II. — o facto dado como provado sob o n.º 38 diz-nos que a Autora, agora Recorrida, aceitou o arquivamento da queixa junto da Provedoria de Justiça;

III. — o facto dado como provado sob o n.º 29 diz-nos que a Autora, agora Recorrida, nunca reclamou das obras realizadas pelos Réus, agora Recorrentes, o facto dado como provado sob o n.º 40 diz-nos que só dois ou três anos depois da realização das obras foi deliberado consultar um advogado para “questionar se o licenciamento da fracção CD-…… permitia a abertura de um restaurante/café” e os factos dados como provados sob os n.ºs 41 e 42 dizem-nos que a consulta a um advogado teve como consequência o esclarecimento de que, “face ao tempo decorrido, à data três anos sobre a abertura do restaurante, sem nada terem solicitado em sentido contrário, este comportamento podia consubstanciar uma aceitação tácita da abertura do restaurante”;

 IV. — o facto dado como provado sob o n.º 43 diz-nos que só quatro anos depois do esclarecimento descrito sob os n.ºs 41 e 42 a Autora propôs à votação “apresentar uma acção judicial contra os proprietários da fracção CD, correspondente ao r/c direito, com vista ao encerramento da actividade de restaurante”, e que a proposta foi rejeitada.

 47. Finalmente, deverá chamar-se a atenção para que todas as queixas às entidades fiscalizadoras descritas sob os n.ºs 17, 36, 37, 38 e 57 se relacionavam com a segurança e com a salubridade, e que os factos dados como provados sob os n.ºs 34 e 44 são do seguinte teor:

34. Não existe no local onde se situa o restaurante em apreço cheiros, odores, vapores, barulhos, trânsito ou movimentações de veículos afectos ao restaurante que possam perturbar o sossego e bem-estar, de quem ali reside, nomeadamente, da Autora, nem tão pouco fumos ou gases oriundos do sistema de extração de fumos da fracção dos Réus (prova pericial junta aos autos em 29.01.2018, estudo de avaliação da qualidade de ar interior, verificação de requisitos acústicos dos edifícios e medição dos níveis de pressão sonora juntos aos autos em 29.10.2018).

44. Da vistoria efectuada à fracção dos Réus em 20.06.2014 pela Delegada de Saúde da Unidade de Saúde Local de ... foi verificado que o estabelecimento de restauração “O Cantinho dos ......” cumpria as exigências de salubridade e saúde pública.

 48. Em consequência, deverá concluir-se que a Autora, agora Recorrida, deixou que continuasse a situação objectiva de confiança dos Réus, agora Recorrentes; que há uma conduta contraditória da Autora, agora Recorrida, e que há uma necessidade ético-jurídica de prevenir ou de reprimir a conduta contraditória,

“designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigência de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo[16].

 49 O raciocínio desenvolvido só poderá ser reforçado pela circunstâncias de estarem preenchidos os requisitos da proibição do desequilíbrio no exercício jurídico [17] — a Autora, agora Recorrida, pretende actuar ou exercer o direito sem tirar daí nenhuma vantagem, para causar aos Réus, agora Recorrentes, uma desvantagem (dano ou prejuízo) ou, em todo o caso, para tirar daí uma vantagem mínima e causar aos Réus, agora Recorrentes, uma desvantagem máxima, de todo em todo desequilibrada, desproporcionada ou excessiva [18].

 50. Em resposta à segunda questão, deverá dizer-se que a Autora, agora Recorrida, violou o art. 334.º do Código Civil, ao exigir a cessação da actividade do restaurante instalado na fracção dos Réus.

III. — DECISÃO

   Face ao exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença do Tribunal de 1.ª instância na parte em que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus de todos os pedidos formulados na petição inicial.

    Custas pela Recorrida CC.

Lisboa, 10 de Dezembro de 2020

Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

José Maria Ferreira Lopes

Manuel Pires Capelo

   Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos Exmos. Senhores Conselheiros José Maria Ferreira Lopes e Manuel Pires Capelo.

__________

[1] António dos Santos Abrantes Geraldes, anotação ao art. 636.º, in: Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.`ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 287-288.

[2] Cf. conclusões III, IV e V

[3] Cf. conclusões VI a XXI.

[4] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016 — processo n.º 2604/13.2TBBCL.G1.S1.

[5] Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Julho de 2018  — processo n.º 701/14.6TVLSB.L1.S1.

[6] Walther J. Habscheid, Droit judiciaire privé suisse, 2.ª ed., Georg — Librairie de l'Université, Genebra, 1981, pág. 425.

[7] Leonardo Prieto-Castro y Ferrándiz, Derecho procesal civil, vol. I, 3ª ed., Tecnos, Madrid, 1975, pág. 138.

[8] Cf. José Alberto dos Reis, anotação ao art. 519.º, in: Código de processo civil anotado, vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 1981 (reimpressão), págs. 272-274; Manuel de Andrade (com a colaboração de João de Matos Antunes Varela), Noções elementares de proesso civil (nova edição, revista e actualizada pelo Dr. Herculano Esteves), Coimbra Editora, Coimbra, 1979, págs. 203-204; ou João de Matos Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 461-463; Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Ónus da prova e não cumprimento das obrigações”, in: Scientia Juridica, tomo 49 (2000), págs. 173-207 = in: Estudos sobre o não cumprimentos das obrigações, 2.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2009, págs. 109-148.

[9] Cf. designadamente acórdãos do STJ de 10 de Janeiro de 2008 — processo n.º 07B3972 —, de 18 de Setembro de 2018 — processo n.º 4051/10.9TBPTM.E1.S1 — e de 14 de Março de 2019 — processo n.º 4051/10.9TBPTM.E1.S1.

[10] Cf. Adriano vaz Serra, “Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil)”, in: Boletim do Ministério da Justiça, n.º 85 — Abril de 1959, págs. 243-343 (342).

[11] Sobre o princípio da proibição do venire contra factum proprium, vide Claus-Wilhelm Canaris, Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht, C. H. Beck, München, 1971;págs. 287-372; João Baptista Machado, “Tutela da confiança e venire contra factum proprium”, in: João Baptista Machado, Obra dispersa, vol. I, Scientia Juridica, Braga, 1991, págs. 345-423; António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Livraria Almedina, Coimbra, 1997 (reimpressão), págs. 742-770; Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2004, esp. nas págs. 402-430; Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil”, in: Boletim da Faculdade de Direito [da Universidade de Coimbra] – Volume comemorativo do 75.º tomo, Coimbra, 2003, págs. 269-322; Manuel Carneiro da Frada, “A responsabilidade pela confiança nos 35 anos do Código Civil. Balanço e perspectivas”, in: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. III – Direito das obrigações, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs. 285-307; António Menezes Cordeiro, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, in: Ars judicandi. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, vol. II — Direito privado, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra / Coimbra Editora, Coimbra, 2008, págs. 125-176; Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora, Coimbra, págs. 176-182

[12] Cf. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, cit., pág. 178.

[13] Cf. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, cit., pág. 178.
[14] Karl Larenz, Derecho justo. Fundamentos de ética jurídica (título original: Richtiges Recht. Grundzüge einer Rechtsethik), Editorial Civitas, Madrid, 1985, pág. pág. 96.
[15] Cf. desenvolvidamente Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, cit., págs. 395-430.
[16] Paulo Mota Pinto, “Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil”, cit., págs. 302 e 304-305.
[17] Cf. António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, cit., págs. 853-860.
[18] Cf. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, cit., págs. 191-192.