Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3355
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
SENTENÇA
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS INSTRUMENTAIS
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
Nº do Documento: SJ200611290033556
Data do Acordão: 11/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1 - A constituição da propriedade horizontal por decisão judicial depende da verificação simultânea, quer dos requisitos civis previstos no art.º 1417º do Código Civil, quer dos requisitos administrativos fixados no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
2 - Uns e outros constituem, não meros pressupostos processuais, mas sim verdadeiras e próprias condições de procedência da acção.
3 - O princípio do inquisitório não vigora entre nós relativamente aos factos da causa que não sejam meramente instrumentais.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Síntese dos termos da causa e do recurso
Em 28 de Janeiro de 2003, no Tribunal da Comarca da Amadora, AA e BB, casados entre si, CC e DD, casados entre si, EE e FF, casados entre si, e GG, viúva, propuseram uma acção de divisão de coisa comum com constituição do regime de propriedade horizontal contra II e JJ, casados entre si.
Pediram que fosse decretada a constituição em propriedade horizontal, autonomizando-se em fracções as diferentes partes do prédio urbano situado na Rua 1º de Maio, nº ...., na Amadora, descrito na 1° Conservatória do Registo Predial da Amadora com o nº 01056, da freguesia de Venteira, com o artigo matricial n.º 750 da Repartição de Finanças da Amadora e com a respectiva licença de utilização emitida pela Câmara Municipal da Amadora com n.º 470 de 16 de Dezembro de 1970 e, fixadas as respectivas quotas, se procedesse à divisão em substância do imóvel e consequente adjudicação.
Alegaram que o prédio em causa está indiviso e que pretendem pôr termo à indivisão, constituindo cada uma das suas oito fracções unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do imóvel.
Os requeridos não apresentaram contestação.
Observada a tramitação legal, a acção foi julgada procedente no despacho saneador, declarando-se, em consequência, que "...nada obsta à divisão do prédio em causa nestes autos (...), podendo constituir-se a propriedade horizontal sobre o mesmo, de acordo com o constante de fls. 103 e 104.".
Por acórdão de fls 192 e seguintes a Relação, dando provimento parcial à apelação, anulou a sentença recorrida e, conhecendo em substituição, nos termos do 715º do CPC, julgou a acção improcedente, absolvendo os requeridos do pedido.
De novo inconformados, os autores recorreram de revista, agora para o STJ, concluindo no essencial e em resumo o seguinte:
1º - O acórdão recorrido viola os art.ºs 1414º, 1415º e 1417º do CC ao decidir que a inexistência de certificação camarária dos requisitos administrativos exigidos pelo RGEU leva à absolvição do pedido;
2º - Mesmo que se considere a certificação camarária essencial à constituição da propriedade horizontal por decisão judicial, a sua falta não deve levar à imediata absolvição do pedido, por isso que não integra uma excepção peremptória; ela implicará, quando muito, a absolvição da instância, por ser impeditiva do conhecimento de mérito;
3º - E é uma falta, de qualquer modo, que deveria ter sido sanada nos termos do art.º 265º, nºs 2 e 3, do CPC; a absolvição dos requeridos do pedido conduziu, assim, a "uma clara denegação de justiça" (fls 219).
Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação
a) Matéria de facto:
1) O prédio urbano sito na Rua 1° de Maio, n ° ..., na Amadora, composto de rés-do-chão, ... andares, lados direito e esquerdo, com área coberta de 170,20 m2 e logradouro de 127,30 m2, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Amadora com o n.° 01056 da freguesia de Venteira, com o artigo matricial n.° 750 da Repartição de Finanças da Amadora e com a respectiva licença de Utilização emitida pela Câmara Municipal da Amadora com n 470 de 16 de Dezembro de 1970;
2) KK, casado com LL, e MM, casado com NN, seus anteriores comproprietários haviam adquirido o mesmo por arrematação, tal como consta da inscrição G-I a fls. 2 da certidão emitida pela 1ª Conservatória do Registo Predial da Amadora;
3) Falecidos MM e esposa NN e efectuada a respectiva partilha foi adjudicado 1/2 do prédio em causa aos primeiros Autora, marido e à Ré e marido, na proporção de 1/ 4 para cada um, conforme inscrição G-2 do doc. nº 1 junto com a petição inicial;
4) KK faleceu em 24.11.1965, deixando como suas herdeiras a mulher LL e a sua filha, a Autora EE, mantendo-se a sua herança indivisa (documento nº. 5);
5) A mulher de KK faleceu em 21.03.1979, deixando como herdeiros os filhos EE, OO, CC, mantendo-se a sua herança indivisa (documentos nºs. 7,3,9 com a petição inicial);
6) Em 12.12.1937 faleceu o OO deixando como herdeira sua mulher GG (documento n.° 10 e 11 junto com a petição inicial);
7) Do relatório apresentado pelo perito nomeado pelo Tribunal constante de fls. 103 a 114 consta, designadamente, que: "Face às características do prédio, com saída das fracções autónomas para uma parte comum, betoneira e caixas de correio individualizadas para cada habitação, acesso às oito habitações através do hall de entrada e escada comum do prédio, contadores de electricidade e água para cada habitação, dir-se-ão reunidas as condições
regulamentares para efeitos de constituição de propriedade horizontal".
8) Desse relatório consta ainda, com relevo para a decisão, o seguinte:
"A constituição em regime de Propriedade Horizontal do prédio carece de aprovação da Câmara Municipal da Amadora, mediante Requerimento dirigido ao Exmo Sr. Presidente da Câmara Municipal da Amadora (minutas em anexo fornecidas pela C.M. da Amadora)
Após vistoria ao prédio a C.M. da Amadora defere o pedido ou estabelece as condições necessárias para esse efeito.
Com o deferimento será estabelecida a Permilagem de cada fracção, considerando as áreas comuns e privadas de cada uma, sendo que às 2 fracções do r/c caberá percentagem idêntica, pois são simétricas em planta com a mesma área; de igual modo às fracções do 1°, 2° e 3° andares direitos, com idêntica tipologia (tipo T2) e áreas, caberá outra percentagem igual para as 3 fracções e para os andares 1 °, 2° e 3° esquerdos, com idêntica tipologia (tipo T3) e áreas, caberá outra percentagem igual, totalizando 100% para as 8 fracções que compõem o prédio."
b) Matéria de Direito
A Relação começou por considerar que a sentença era nula na medida em que ao decidir como decidiu não chegou a conhecer do objecto do pedido, consistente na divisão de coisa comum por via da constituição em propriedade horizontal do prédio a dividir; e isto porque, sem apreciar a questão que lhe foi colocada, - sem, verdadeiramente, proferir uma decisão sobre a qual pudesse formar-se caso julgado material, - se ficou pelo segmento fundamentador ao limitar-se a dizer que "nada obsta obsta à divisão do prédio em causa nestes autos", afirmação esta que, além de não corresponder ao pedido formulado na acção, nenhum efeito jurídico útil acarreta para as partes.
Depois, apreciando o fundo da causa, ponderou o seguinte, na parte que agora interessa (os sublinhados são da nossa responsabilidade):
" ....
A constituição de propriedade horizontal, mediante decisão judicial proferida em acção de divisão de coisa comum, é um dos modos possíveis de cessação da compropriedade, relativamente a prédio urbano, e pode ter lugar, de acordo com o que estabelece o artigo 1417º do Código Civil, a requerimento de qualquer consorte desde que se verifiquem os requisitos exigidos pelo artigo 1415º do mesmo compêndio substantivo.
Assim, podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.
Estes são, segundo afirma Luís Carvalho Fernandes (1), os requisitos civis do prédio para ser possível a constituição de propriedade horizontal. Mas, além destes, existem outros, a que o mesmo autor chama requisitos administrativos, impostos pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas, decorrentes de exigências de segurança, salubridade, arquitectónica, estética, urbanística e que têm de ser igualmente asseguradas, por condicionarem a construção de edifícios e a sua utilização.
E o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação aprovado pelo DL nº 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo DL nº 177/2001, de 4 de Junho, é expresso relativamente à exigência de certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em propriedade horizontal (artigos 62º a 66º).
Também o Código do Notariado é expresso, no caso de constituição negocial da propriedade horizontal, na exigência de documento emitido pela Câmara Municipal respectiva comprovativo da verificação dos requisitos legais (artigo 59º nºs 1 e 2), exigência que é de generalizar (2), designadamente, ao caso dos autos.
Efectivamente, não é possível conceber a constituição da propriedade horizontal por decisão judicial sem a observância de todos os requisitos legais, incluindo os de natureza administrativa.
Sendo essa a pretensão dos recorrentes ao intentarem a presente acção de divisão de coisa comum, ou seja, pôr termo à indivisão mediante a constituição em propriedade horizontal, uma vez que, com os recorridos, são comproprietários de um imóvel cuja constituição em propriedade horizontal não foi posta em crise quer pelas partes, quer pelo perito nomeado pelo tribunal, tudo indicando obedecer ao estipulado no referido artigo 1415º, impunha-se que tivessem demonstrado a verificação em concreto daqueles requisitos de índole administrativa, mediante a certificação dos mesmos pela respectiva câmara municipal, os quais constituem uma verdadeira condição de procedência da acção.
Na verdade, a demonstração da verificação destes requisitos não pode deixar de condicionar a elaboração do correspondente título de constituição da propriedade horizontal, no caso a sentença, e, por conseguinte, a procedência da acção".
Subscrevemos por inteiro, fazendo-a nossa, a decisão adoptada pela Relação, assim como os fundamentos em que se baseou, sem prejuízo do que adiante se refere.
Os art.ºs 62º a 66º do DL 555/99, de 16/12, na redacção que lhes foi conferida pelo DL 177/2001, em especial o nº 3 do art.º 66º, evidenciam à saciedade que a certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal é um elemento que não pode deixar de estar à disposição do juiz no momento em que, por via da sentença a proferir na acção de divisão de coisa comum, dá forma (e substância) a este direito real; mas é um elemento que, por isso mesmo, representa muito mais do que um mero pressuposto processual, cuja falta possa ser suprida por intervenção oficiosa do magistrado, ao abrigo do art.º 265º, nº 2, do CPC; trata-se, verdadeiramente, como observa o acórdão recorrido, duma condição de procedência da acção, cuja ausência implica a rejeição do pedido. Neste mesmo sentido depõe ainda a norma do artº 1418º, nº 3, do CC, que sanciona o título constitutivo da propriedade horizontal com a nulidade quando lhe falte a especificação exigida pelo nº 1 ou revele a não coincidência entre o fim a que se destina cada fracção ou parte comum e o que foi fixado no projecto aprovado pela autoridade pública competente. Na sua actual redacção (conferida pelo DL 267/94, de 25/10), este preceito representa a consagração legislativa da doutrina do assento do STJ de 10.5.89, segundo a qual nos termos do art.º 294º do Código Civil o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir à parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela câmara municipal. Acontece que na origem do assento esteve a necessidade que se fez sentir de definir claramente a interpretação a dar à norma do art.º 1416º, nº 1, do CC, isto é, saber o que está abrangido na expressão "falta de requisitos legalmente exigidos": somente os enunciados no art.º 1415º ou, além destes, ainda "os concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas"? Ora, não há dúvida de que este Tribunal optou pela segunda alternativa, como resulta, quer da formulação do assento, quer dos fundamentos que sustentam a decisão adoptada; acolheu-se explicitamente, com efeito, a ideia de que subjacente à disciplina imposta pelo RGEU está o interesse público prosseguido pelas câmaras municipais; e este facto, se por um lado justifica a sanção da nulidade imposta para as faltas apontadas, pois as normas violadas são de interesse e ordem pública, por outro lado impede que a sentença constitutiva da propriedade horizontal possa ignorar, no momento em que é proferida, a comprovação documental de que aquela autoridade administrativa aprovou o projecto, por este satisfazer todos os requisitos de natureza administrativa.
As coisas, decreto, poderiam ser diferentes se, tendo alegado na altura apropriada (petição inicial) que pediram à autarquia a licença ou autorização de utilização, ou mesmo só a certificação atrás indicada, e que esta fora concedida, os recorrentes tivessem alegado também a existência de qualquer dificuldade (de natureza burocrática ou outra) na obtenção do documento e na sua junção ao processo; nesse caso poderia defender-se consistentemente a aplicação do nº 3 do referido art.º 265º, que diz incumbir ao juiz ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer. Ora, por isso que representa, como se disse, não um mero pressuposto processual (ou condição do processo), mas uma tal ou qual condição do pedido, a existência da dita certificação teria que ser invocada em tempo útil pela parte interessada como facto condicionante da procedência daquele, se não mesmo, mais precisamente, como facto constitutivo do direito alegado e integrado na causa de pedir (art.ºs 342º, nº 1, do CC e 264º, nº 1, do CPC); não o tendo sido, não se tornou, logicamente, um facto de que ao julgador fosse lícito conhecer e tomar em consideração na sentença por sua iniciativa, já que o princípio do inquisitório não vigora entre nós relativamente aos factos da causa que não sejam meramente instrumentais (art.ºs 264º, nº 2 e 664º)
Improcedem, portanto, ou mostram-se deslocadas todas as conclusões da minuta.

III. Decisão
Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 29 de Novembro de 2006

Nuno Cameira
Sousa Leite
Salreta Pereira
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(1) Lições de Direitos Reais, 3ª ed., Quid Júris, pág. 351.
(2) Cfr. autor e obra citados, pág. 357