Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12380/17.4T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ROSA TCHING
Descritores: REFORMA DA DECISÃO
FUNDAMENTOS
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 01/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
A reforma da decisão destina-se a corrigir um erro de julgamento resultante de um erro grosseiro, um evidente engano, um desacerto total no regime jurídico aplicável à situação ou na omissão ostensiva de observação dos elementos dos autos, não podendo ser usado para as partes manifestarem discordância do julgado ou tentarem demostrar “error in judicando”, que é fundamento de recurso. 
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




1. AA. e BB., vem, nos termos do disposto no art. 616º, nº 2, alíneas a) e b), ex vi arts. 666º e 685º, todos do CPC, requerer a reforma do Acórdão proferido por este Supremo Tribunal em 16 de dezembro de 2020, no processo nº 12380/17…. e que, julgando improcedente a revista interposta pelos autores e procedente a revista interposta pela ré e, revogou, nesta parte, o acórdão recorrido e decidiu:

1º- Absolver a ré do pedido formulado pelos autores na alínea b) da petição inicial, ou seja, de demolir o murete e caleira construídos ao longo de parte da estrema norte da mesma propriedade, frente à janela existente no imóvel identificado no art.° 1° da petição inicial, virada a sul e deitando diretamente para o prédio da ré.

2º- Condenar os autores no pedido formulado na alínea a) da reconvenção, ou seja, fechar a janela sita na empena sul do corpo edificado sul poente da sua propriedade e que deita sobre a propriedade da ré, erguendo no seu espaço um pano de alvenaria de tijolo e respetivos rebocos, devolvendo à empena sul a condição de empena cega ou oculta.

Alegam, para tanto e em síntese, que esta condenação teve por base  a afirmação  feita a fls. 61 do referido acórdão de que os « porque os autores também não alegaram nem provaram quaisquer factos demonstrativos de uma situação de posse de boa fé, evidente se torna que a  sua posse sobre a dita janela  não pode deixar de ser considerada como sendo  de má fé, pelo que  o prazo que releva para efeitos de constituição da referida servidão de vistas  é o de 20 anos estabelecido no art. 1296º, do C. Civil,  contado a partir da existência da referida janela em infração do que se prescreve no art. 1360º, nº 1, do C. Civil , ou seja, a partir de 25.10.1999», mas que houve  lapso  na apreciação por parte do Coletivo  da questão da posse de boa fé e na imputação de uma ausência de prova da mesma aos autores, porquanto, contrariamente ao decidido no acórdão ora sob censura:

i)  a posse titulada do prédio dos réus, resultante da inscrição em sede de registo predial da aquisição da respetiva propriedade por parte dos autores abrange a posse – de boa fé - da janela, que já existia anteriormente à data dessa aquisição, não sendo exigível aos autores que tomassem diligências no sentido de proceder a um registo separado da posse da janela.

ii) o registo da aquisição do prédio pelos autores, lavrado com base na escritura pública de compra e venda de todo o prédio, já incluindo a janela em questão, é título bastante para comprovar a posse de boa fé da janela pelos autores, sendo, por isso, de presumir a boa fé nos termos do art. 1260, nº 2, 1ª parte do C. Civil.

Mais sustentam que:

iv) havendo, assim, posse com justo título, mesmo que a posse fosse de má fé, o prazo prescricional sempre seria o de 15 anos estabelecido no art. 1294, al. a) do C. Civil.

v) mesmo que se considerasse inexistir posse titulada, a mesma sempre seria de considerar de boa fé posto que os autores agiram sempre na convicção de que não  lesavam direitos de outrem, não lhes sendo exigível a prova dessa convicção, pois até ao levantamento da questão pela ré, em sede de pedido reconvencional, em 2017, nunca ninguém havia reclamado qualquer lesão pelos autores de direitos de outrem ao fazerem uso, sem qualquer violência, da janela já existente  no prédio por eles adquirido.

vi) impõe-se o reconhecimento da constituição de servidão de vistas e, por conseguinte, a condenação da ré a demolir o murete existente em frente da janela sita na empena sul da propriedade dos autores.

Termos em que requerem:

« (i) que o Acórdão seja reformado na parte em que determinou que os AA “não alegaram nem provaram quaisquer factos demonstrativos de uma situação de posse de boa fé”, passando a reconhecer a constituição da servidão de vistas invocada pelos AA, porquanto se demonstrou que beneficiariam da presunção de boa fé aplicável à respectiva posse tutelada da janela em questão, por força do Artigo 1260.º, n.º 2, 1.ª parte do Código Civil, não carecendo por conseguinte de fazer quaisquer alegações ou provas para poder beneficiar dessa presunção, pelo que o prazo prescricional que releva para efeitos da constituição da referida servidão será o de 10 anos estabelecido no Artigo 1294.º, alínea a) do Código Civil, que se encontra mais do que preenchido;

(ii) subsidiariamente, que o Acórdão seja reformado na parte em que determinou que “o prazo que releva para efeitos de constituição da referida servidão de vistas é o de 20 anos estabelecido no Artigo 1296.º, do Código Civil, contado a partir da existência da referida janela em infracção do que se prescreve no Artigo 1360.º do Código Civil”, passando a reconhecer a constituição da servidão de vistas invocada pelos AA, porquanto se demonstrou que havia posse com justo título pelo que, mesmo em caso de má fé, o prazo prescricional que releva para efeitos da constituição da referida servidão será o de 15 anos estabelecido no Artigo 1294.º, alínea a) do Código Civil, que se encontra mais do que preenchido;

(iii) subsidiariamente, que o Acórdão seja reformado na parte em que determinou que os AA “não alegaram nem provaram quaisquer factos demonstrativos de uma situação de posse de boa fé”, passando a reconhecer a constituição da servidão de vistas invocada pelos AA, porquanto os AA lograram ilidir a presunção legal de má fé estabelecida no Artigo 1260.º, n.º 2, 2.ª parte do Código Civil, e a concluir que a questionada posse dos AA deve ser considerada de boa fé, por ignorarem, ao adquiri-la, que lesavam sem culpa, qualquer eventual direito da R, pelo que o prazo prescricional que releva para efeitos da constituição da referida servidão será o de 15 anos estabelecido no Artigo 1296.º, 1.ª parte do Código Civil, que se encontra mais do que preenchido;

e

(iv) que, por força da constituição de servidão de vistas a favor dos autores resultante de (i), (ii) ou (iii) supra, o Acórdão seja reformado na parte em que decide absolver a ré do pedido formulado pelos autores na alínea b) da petição inicial, ou seja de demolir o murete e caleira construídos ao longo de parte da estrema norte da mesma propriedade, frente à janela existente no imóvel identificado no art.º 1.º da petição inicial, virada a sul e deitando directamente para o prédio da ré.”, em violação dessa servidão de vistas, mantendo-se, por conseguinte, o Acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação … na parte em que não concede provimento às pretensões deduzidas pela R em sede de pedido reconvencional».


2. A ré respondeu, sustentando inexistir fundamento para a reforma do Acórdão e pugnando pelo indeferimento liminar do pedido de reforma.


3. Dados os vistos, cumpre decidir.


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II. Do mérito do pedido de reforma


Sobre a Reforma do acórdão e na parte que aqui interessa analisar, dispõe o nº 2 do art. 616º, nº 2, ex vi arts. 666º e 685º, todos do CPC, que é lícito «a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:

a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;

b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, por si só, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida».


Trata-se, no dizer do Acórdão do STJ, de 12.02.2009 (processo nº 08A2680), de uma  faculdade excecional que «deve conter-se  nos apertados limites definidos pela expressão “manifesto lapso”, reportada à determinação da norma aplicável, à qualificação jurídica dos factos ou à desconsideração de elementos de prova conducentes a solução diversa», não devendo, por isso, o incidente da reforma «ser usado para manifestar discordância do julgado  ou tentar demonstrar “error in judicando” (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou “aberratio legis”, causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal».  

No mesmo sentido, afirma o Acórdão do STJ, de 04.05.2010 (processo nº 361/04.4TBPVC.C1.S1), que « a reforma da decisão não é, nem pode coincidir, com um recurso, pelo que não poderá servir para manifestar discordância do julgado, mas apenas tentar suprir uma eficiência notória ou clara».

«É uma forma de se corrigir, no fundo, um erro de julgamento, correcção que só será possível se ocorrer um erro resultante de um “lapso manifesto”. E lapso manifesto será o erro grosseiro, um evidente engano, um desacerto total no regime jurídico aplicável à situação ou na omissão ostensiva de observação dos elementos dos autos».


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Vejamos, então, se, à luz desta orientação, existe fundamento para se proceder à reforma do acórdão proferido nos presentes autos.

E a este respeito diremos, desde logo, que, contrariamente ao alegado pelos requerentes, não se vê que o acórdão agora impugnado padeça de algum erro ou lapso manifesto causado por desconhecimento ou má compressão do regime legal, sendo certo que os argumentos ora avançados pelos requerentes mais não são do que uma manifestação de discordância relativamente à decisão proferida por este Tribunal.

Assim sendo e porque, tal como já se deixou expresso, o incidente de reforma da decisão não se destina a ser usado para as partes  manifestarem  discordância do julgado  ou tentarem demostrar “error in judicando”,  impõe-se indeferir o pedido de reforma formulado pelos requerentes.


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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em indeferir o pedido de reforma.

Custas da reclamação ficam a cargo dos requerentes, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça.


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Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Bernardo Domingos que compõem este coletivo.

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Supremo Tribunal de Justiça, 28 de janeiro, de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching

Catarina Serra

José Manuel Bernardo Domingos