Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7895/05.0TBSTB.E1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: ACTIVIDADES PERIGOSAS
ATIVIDADES PERIGOSAS
PRESUNÇÃO DE CULPA
CAUSA DO ACIDENTE
ÓNUS DA PROVA
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
FACTOS CONCLUSIVOS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil”, II, 3.ª ed., 353 e ss..
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2009, 588.
- Antunes Varela, Direito das Obrigações, I, 2000, 594 e ss..
- Mafalda Miranda Barbosa, Liberdade vs Responsabilidade: A precaução como fundamento da interpretação delitual?, 2006, 377.
- Mascarenhas Ataíde, Responsabilidade civil por violação de deveres de tráfego, 2015, 501, 515.
- Menezes Cordeiro, Tratado do Direito Civil, Vol. VIII – Direito das Obrigações, 2014, 589.
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 2014, 293.
- Pinto Oliveira, “Responsabilidade objectiva”, in Cadernos de Direito Privado, Dez. 2012, 109 e ss..
- Vaz Serra, “Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Julho de 1968”, in RLJ, Ano 102.º, 304.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 491.º, 492.º, 493.º.
CODIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 674.º, N.º3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 13/03/2007 (PROC. N.º 07A96), CONSULTÁVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 25/03/2010 (PROC. N.º 428/1999.P1.S1), DE 30/11/2010 (PROC. N.º 1166/04.6TBLSD.P1.S1), DE 28/06/2012 (PROC. N.º 1894/06.1TBOVR.C1.S1), DE 18/09/2012 (PROC. N.º 498/08.9TBSTS.P1.S), DE 13/02/2014 (PROC. N.º 131/10.9TBPTB.G1.E1), DE 17/06/2014 (PROC. N.º 112/07.0TBCMN.G1.S1) E DE 09/07/2015 (INFRA CIT.), CONSULTÁVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 05/07/2012 (PROC. N.º 1451/07.5TBGRD.C1.S1), DE 28/10/2014 (PROC. N.º 1593/07.7TBPVZ.P1.S1) E DE 09/07/2015 (PROC. N.º 385/2002.E1.S1), CONSULTÁVEIS EM WWW.DGSI.PT .
-DE 29/04/2015 (PROC. N.º 306/12.6TTCVL.C1.S1, CONSULTÁVEL EM WWW.DGSI.PT). NO MESMO SENTIDO, OS ACÓRDÃOS DE 21/06/2012 (PROC. N.º 265/03.6TBRMR.L1.S1), DE 10/09/2015 (PROC. N.º 819/11.7TBPRD.P1.S1) IN WWW.STJ.PT/JURISPRUDENCIA/SUMARIOS , E DE 18/02/2016 (PROC. Nº 1320/05.3TBCRB.C1), NÃO PUBLICADO.
Sumário :
I - A actividade de transporte de uma grua, através de engate da lança do veículo de reboque na frente da grua-automóvel, ficando esta apenas com as rodas traseiras a rodar no asfalto, constitui uma actividade perigosa para efeitos de aplicação da presunção de culpa consagrada no art. 493.º, n.º 2, do CC.

II - Para se exonerar da sua responsabilidade, terá o exercente da actividade perigosa de demonstrar que foram adoptadas todas as providências exigidas pelas circunstâncias a fim de prevenir os danos, não sendo suficiente a prova de terem sido cumpridos os comuns deveres de cuidado que o vinculavam.

III - Não sendo possível provar directamente a observância de todas as cautelas necessárias, só por via indirecta se conseguirá satisfazer o ónus liberatório, demonstrando-se que a causa real do evento lesivo é alheia à esfera de risco do exercício da actividade perigosa.

IV - A inserção na matéria de facto da conclusão de que “O acidente ocorreu por circunstâncias fortuitas estranhas ao condutor do rebocador e respectiva condução” constitui um juízo valorativo que é de censurar, já que, apesar de o STJ conhecer apenas, em regra, de matéria de direito, é-lhe lícito verificar se determinada proposição, retida como facto provado, reflecte uma questão de direito ou um juízo de feição conclusiva.

V - Não tendo sido feita prova da causa real e efectiva do acidente e da danificação da grua, não pode concluir-se, por esta via, pela exoneração da responsabilidade da exercente da actividade perigosa.

VI - A prova do cumprimento de “todas as providências” implica a demonstração de que foram empregues todos os meios para evitar que a circulação de um reboque, com uma grua atrelada, com as rodas suspensas, numa situação de elevada instabilidade, venha a originar um acidente; pelo que, na falta dessa demonstração, não pode, também por esta via, a exercente da actividade perigosa ver excluída a sua responsabilidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. Companhia de Seguros AA, S.A., intentou acção contra BB - Auto Garagem de Savavém, Lda, e Companhia de seguros CC, Lda, pedindo o reembolso da quantia de €37.695,10, que, na qualidade de seguradora da DD (actualmente EE - Comércio e Aluguer de Equipamentos, Lda) pagara a esta pela perda de uma grua em acidente ocorrido enquanto a grua era rebocada por veículo da BB.

A R. BB contestou.

    Por despacho saneador a fls. 337, foi determinada a apensação dos autos nº 3854/07.6TBSTB, relativos ao mesmo acidente. Nesse processo a A. EE - Comércio e Aluguer de Equipamentos, Lda, na qualidade de proprietária da grua danificada no acidente, vem pedir contra os RR. BB, Companhia de Seguros CC, FF (este por ser o condutor do reboque) e Instituto de Seguros de Portugal, a reparação dos prejuízos não abrangidos pela indemnização que lhe foi paga pela Companhia de Seguros AA, prejuízos estes no valor total de €23.168,50, decorrentes, nomeadamente, do remanescente do valor da grua e da privação do respectivo uso.

As RR. BB e Companhia de Seguros CC contestaram nos mesmos termos que na acção principal. O R. FF não contestou.

O ISP contestou e veio a ser considerado parte ilegítima.

Por sentença de fls. 562, as acções foram julgadas improcedentes e os RR. absolvidos dos pedidos.

Inconformada, a A. apelou para o Tribunal da Relação de Évora.

Por acórdão de fls. 755, a apelação foi julgada procedente, revogando-se a sentença recorrida e condenando-se as RR. BB e Companhia de Seguros CC a reembolsar a A. da quantia de €37.695,10, que a segunda pagou à proprietária da grua.


2. A R. Companhia de Seguros CC, S.A, recorre para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pela Relação de Évora que julgou a apelação procedente e veio substituir a sentença de 1ª instância, condenado a ora Recorrente, no pagamento da quantia de 37.695,10 €;

2. Entende a ora Recorrente que o acórdão a quo não poderá manter-se, porquanto tem por base uma incorreta apreciação da matéria de facto dada como provada e do direito aplicável, prendendo-se a questão fundamental do presente recurso com o cumprimento dos deveres de cuidado possíveis por parte da entidade comitente;

3. Em primeiro lugar, entende a Recorrente que o iter cognitivo do douto Tribunal a quo não é o mais correto, porquanto parte de uma leitura parcelar - e não sistemática da sentença proferida em 1ª instância -, resultando numa incorrecta subsunção da matéria factual apurada ao direito material aplicável;

4. Ora, o processo hermenêutico a que a sentença está sujeita não se compadece com uma visão parcelar, segmentada e vocacionada a apenas se extrair dela o quanto se quer;

5. A sentença tem de ser atendida na sua inteira extensão, e com isto quer-se dizer que tem de ser vista com base nos motivos que sustentaram o seu dispositivo, não podendo, sem mais, olhar-se a este último sem antes cuidar dos primeiros;

6. Assim foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão proferido a 05/11/2009 [Proc. 4800/05.TESAMD-A.S1, disponível em www.dgsi.pt.], e pela Relação de Coimbra, em Acórdão proferido a 22/03/2011 [Proc. 243706.3TBFND-B.1C1, disponível em www.dgsi.pt.];

7. Entende a Recorrente que tivesse o Tribunal a quo tomado em consideração não apenas a parte dispositiva da sentença, mas também a respectiva fundamentação, isto é, considerando, nomeadamente, a prova testemunhal produzida e nunca poderia chegar à conclusão de que a entidade empregadora/comitente não demonstrou ter tomado todos os cuidados possíveis para evitar o acidente e, dessa forma, ilidir a presunção de culpa;

8. Por outro lado, ao contrário do defendido pela Recorrida, a que aderiu a Relação a quo, a entidade empregadora e o condutor do reboque não têm o ónus de provar as circunstâncias fortuitas em concreto que estiveram na base do sinistro sub judice;

9. O que a nossa lei exige, concretamente no artigo 493.º, n.º2 do Código Civil é que «Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir» (realce nosso);

10. E tal ónus probatório, atenta a matéria de facto dada como provada, bem como a fundamentação expendida pelo Tribunal de 1ª instância no seu segmento decisório, foi cumprido;

11. Conforme reconhecido em Acórdão proferido pela Relação do Porto [Proc. 0834104, disponível em www.dgsi.pt.], em 14.07.2008, e pela Relação de Coimbra, em Acórdão proferido a 05.03.2013 [Proc. 2831/06.9TBGRD.C1, disponível em www.dgsi.pt.], o critério atendível para determinar o conceito de condutor normalmente diligente é o do bom pai de família;

12. Ao contrário do que julgou a Relação a quo, resulta patente - não só com base na matéria de facto dada como provada, nomeadamente o ponto n.º 19, como também na fundamentação de que se socorreu o Tribunal de 1ª instância - que comitente e comissário empreenderam os necessários esforços de forma a evitar a ocorrência do sinistro;

13. Concretamente, que o condutor do reboque tomou todos os procedimentos que lhe eram legal e prudencialmente exigíveis, de acordo com uma bitola de homem médio, nomeadamente, i) acondicionar a grua no reboque de acordo com o procedimento habitualmente seguido, ii) seguir a baixa velocidade e iii) praticar uma condução atenta!;

14. Por tudo o exposto, deve ser revogada a decisão sub judice e substituída pela decisão tomada pelo Tribunal de lª instância, concluindo pela absolvição dos Réus.


A R. BB - Auto Garagem de Savavém, Lda, interpôs também recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

1. O Douto acórdão posto em crise fez errada aplicação do Artigo 493.º / 2.º do Código Civil ao presente caso,

2. Com efeito, se é verdade que o reboque de uma grua com as características da grua dos presentes autos constitui uma atividade perigosa, e nessa medida, está preenchida a primeira parte do Artigo 493.º / 2.º do Código Civil,

3. Também é verdade que a Recorrente logrou demostrar "... que empregou todas as providências exigidas peias circunstâncias..." para que o acidente não se verificasse, assim ilidindo de forma cabal a presunção do Artigo 493.º / 2.º do Código Civil.

4. Na verdade, ficou demonstrado à saciedade que o condutor do reboque, o R. FF, engatou a grua ao reboque de forma diligente e segundo as boas regras de arte,

5. E tanto assim é que a grua, depois do acidente, continuava ligada ao reboque pelo cabo de aço.

6. Também resultou provado que o condutor do reboque circulou a uma velocidade média inferior a 30 km / hora e de forma atenta.

7. Resultando assim, à saciedade que o R. FF agiu de forma diligente, como um bom pai de família, e nessa medida nada podia fazer para evitar o acidente.

8. E, é com base na conjugação destes factos que o tribunal de primeira instância concluiu que o acidente se deu por circunstâncias fortuitas estranhas ao condutor do rebocador e respetiva condução, não se podendo dissociar este facto da sua fundamentação.

9. Pelo que ao condenar a Recorrente violou o douto acórdão posto em crise o Artigo 493.º / 2.º do Código Civil.

Termos em que deve o douto acórdão recorrido ser revogado, substituindo-se por outro que absolva a Recorrente e os demais RR. do pedido formulado nos presentes autos.

As Recorridas não contra-alegaram.

Cumpre decidir.


3. Vem provado o seguinte:

1. A GG, SA de quem a A., Companhia de Seguros AA é sucessora, celebrou com a DD – Sociedade Portuguesa de Aluguer e Venda de Equipamentos, Lda, contrato de seguro titulado pela apólice nº …65, tendo como objecto a grua móvel PPM … ATT.

2. Tratava-se de um contrato de seguro de máquinas-cascos, pelo qual a A., Companhia de Seguros AA, se obrigou, até ao limite legal do contrato, a ressarcir a segurada pelos danos sofridos nos bens indicados em consequência do sinistro ocorrido dentro do período de vigência da apólice, qualquer que seja a causa.

3. No dia 27/7/2004, a grua PPM … ATT, todo o terreno de lança telescópica, com capacidade máxima de elevação de 40 T, fabricada no ano de 1986, referência interna G045, chassis nº …54, circulava, por seus próprios meios, pela A2, quando por avaria mecânica a nível do motor ficou subitamente imobilizada e incapacitada de seguir o seu trajecto.

4. Dada a impossibilidade de remover a grua do local, sito na A2 entre Marateca e Setúbal, a DD, atualmente EE contratou com a R. BB, empresa especializada em reboques de veículos pesados, a remoção do veículo pra as instalações da EE em Vil Figueiras, Porto Alto.

5. Para efectuar o serviço de remoção da grua a 1ª R., BB, enviou ao local o veículo de matrícula UA-…-…, marca DAF, modelo 2800, conduzido pelo R. FF, propriedade da R. BB.

6. Entre a R. Companhia de Seguros CC e a R. DD foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice nº …60, cuja apólice se encontra junta a fls. 228 a 258, tendo como objecto o veículo identificado na alínea anterior.

7. Entre a R. CC e a R. DD foi ainda celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil de exploração, titulado pela apólice …73 que se encontra a fls. 259 a 268.

8. Entre a R. BB e a R. CC foi celebrado um contrato de seguro ramo automóvel, titulado pela apólice …60, cuja cópia foi junta como documento nº 2 a fls. 46 e 47, e documento nº 3 a fls. 52 a 80, tendo por objecto o veículo comercial de reboque de matrícula UA-…-….

9. Entre a R. BB e a R. CC foi celebrado um contrato de seguro, responsabilidade civil de exploração, titulado pela apólice …73, cuja cópia foi junta como documento nº 2 a fls. 48 e 49 e documento nº 4 a fls. 81 a 85.

10. A A. EE, antes DD, era dona da grua identificada em 3, à data do acidente em causa nos autos.

11. O condutor do reboque, o R. FF, é trabalhador da BB, tendo, a mando e no interesse da mesma, procedido ao engate da lança do veículo de reboque na frente da grua-automóvel, de forma a que esta ficasse apenas com as rodas traseiras a rodar no asfalto.

12. Tendo o eixo dianteiro da grua automóvel ficado suspenso na lança do rebocador.

13. Cerca das 16h30m do dia 27/7/2004, ao Km 39,9, quando o veículo de reboque se deslocava no sentido sul-norte o seu condutor FF perdeu o controlo do mesmo, despistou-se e foi embater no separador central ali existente, que separa os sentidos de tráfego Sul-Norte e Norte-Sul, tendo o veículo e reboque ficado imobilizados junto ao separador central.

14. A A2 tem duas faixas de rodagem, a via no local do acidente permite boa visibilidade, o traçado tem uma recta com cerca de 1km.

15. Em consequência do despiste referido em 13, a grua capotou, rodando sobre a sua parte lateral esquerda.

16. Do despiste resultou a destruição total das duas cabines, bem como do jib e dos contra-pesos da grua.

17. A torreta e diversos elementos do cabrestante ficaram com deformações e fracturas.

18. Não sendo economicamente viável a reparação da grua.

19. O acidente ocorreu por circunstâncias fortuitas estranhas ao condutor do rebocador e respectiva condução.

20. À data do acidente a grua acima identificada valia, cerca de €43.080,50.

21. Valor que a autor pagou à sua segurada no âmbito do contrato de seguro referido acima referido, deduzida a franquia de 4.308,05 e 2.500,00€ relativos aos salvados.

22. A autora teve ainda de despender €1.442,65, em custos de peritagem.

23. Desde o local de início do reboque até ao local do acidente a grua circulou mais de uma hora e cerca de 30km.

24. A A. EE ficou privada da utilização da grua automóvel na sua actividade desde o dia 27/7/2004 até pelo menos 24/5/2005, data em que recebeu a indemnização referida em 21.

25. A grua, na data do acidente apresentava uma avaria no motor.

26. A grua trabalhava habitualmente, pelo menos, cinco dias por semana e 8h por dia.

27. Por cada dia de trabalho a A. EE cobrava à data o valor ilíquido de cerca de €400,00.


4. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, em ambos os recursos está em causa a seguinte questão:

Responsabilidade da BB, Lda, pela danificação da grua acidentada, ao abrigo do regime da responsabilidade civil por actividades perigosas.


5. O acórdão recorrido entendeu, e as Recorrentes aceitaram, que a actividade de transporte de uma grua, através de “engate da lança do veículo de reboque na frente da grua-automóvel, de forma a que esta ficasse apenas com as rodas traseiras a rodar no asfalto”, constitui uma actividade perigosa para efeitos de aplicação do regime do nº 2, do art. 493º, do Código Civil, no qual se estabelece: “Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

Trata-se de uma das situações, em conjugação com as dos regimes dos arts. 491º, 492º, e 493º, nº 1, do CC, de consagração dos denominados deveres de segurança no tráfego (Verkehrssicherungspflicten) ou deveres de prevenção do perigo, que permitem concretizar a responsabilidade civil por omissões, na medida em que neles se consubstancia a exigência do art. 486º do CC, no sentido de que, para além dos requisitos gerais da responsabilidade civil por facto ilícito e culposo, exista o dever de praticar o acto omitido.

A responsabilidade civil por violação dos deveres de tráfego em geral, e a responsabilidade civil por actividades perigosas em particular, têm conhecido um enorme desenvolvimento dogmático no direito português (cfr., em especial, a recente obra de Mascarenhas Ataíde, Responsabilidade civil por violação de deveres de tráfego, 2015).

Tradicionalmente, tanto a doutrina (cfr. Antunes Varela, Direito das Obrigações, I, 2000, págs. 594 e seg.; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2009, pág. 588) como a jurisprudência nacionais (cfr., por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2012 (proc. nº 1451/07.5TBGRD.C1.S1), de 28/10/2014 (proc. nº 1593/07.7TBPVZ.P1.S1) e de 09/07/2015 (proc. nº 385/2002.E1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt) entendem que o regime do art. 493º, nº 2, do CC, consagra uma presunção de culpa do titular da actividade, sendo que se vem também afirmando (cfr. Mafalda Miranda Barbosa, Liberdade vs Responsabilidade: A precaução como fundamento da interpretação delitual?, 2006, pág. 377; Menezes Cordeiro, Tratado do Direito Civil, Vol. VIII – Direito das Obrigações, 2014, pág. 589) que essa presunção é, simultaneamente, uma presunção de ilicitude (da conduta). Neste sentido se pronunciou igualmente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/03/2007 (proc. nº 07A96).

Independentemente da qualificação da presunção, exige a lei que o exercente da actividade faça prova de que “empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim” de prevenir os danos. Sabe-se que o regime do art. 493º, nº 2, do CC, é mais gravoso para o lesante do que o das previsões dos arts. 491º, 492º e 493º, nº 1, do CC, na medida em que, por um lado, não prevê a possibilidade de desoneração pela prova de que os danos se teriam produzido ainda que não houvesse culpa sua; e, por outro lado, “a prova liberatória imposta ao exercente de actividades perigosas requer a demonstração de que foram adotadas todas as providências exigidas pelas circunstâncias a fim de prevenir os danos, não se satisfazendo literalmente com a prova de terem sido cumpridos os comuns deveres de cuidado que vinculavam o exercente” (Mascarenhas Ataíde, cit., pág. 501).

Compreende-se, por isso, que se declare que o regime da responsabilidade pelo exercício de actividades perigosas se situa num ponto intermédio entre a responsabilidade civil por facto ilícito e culposo e a responsabilidade pelo risco (cfr. Pinto Oliveira, “Responsabilidade objectiva”, in Cadernos de Direito Privado, Dez. 2012, págs. 109 e segs.). Esta percepção revela-se precisamente no plano das exigências probatórias julgadas necessárias para que o exercente da actividade se exonere de responsabilidade.

A orientação tradicional da jurisprudência deste Supremo Tribunal é no sentido de exigir a prova da conduta diligente por parte do exercente da actividade perigosa (cfr. os acórdãos de 25/03/2010 (proc. nº 428/1999.P1.S1), de 30/11/2010 (proc. nº 1166/04.6TBLSD.P1.S1), de 28/06/2012 (proc. nº 1894/06.1TBOVR.C1.S1), de 18/09/2012 (proc. nº 498/08.9TBSTS.P1.S), de 13/02/2014 (proc. nº 131/10.9TBPTB.G1.E1), de 17/06/2014 (proc. nº 112/07.0TBCMN.G1.S1) e de 09/0//2015 (cit.), consultáveis em www.dgsi.pt).

Considera-se habitualmente que esta especial exigência “não parece significar que não se trate, afinal, da diligência do bom pai de família [do art. 487º, nº 2, do CC], adaptada ao caso da actividade perigosa, já que, sendo perigosa essa actividade, um bom pai de família deve adoptar medidas ou providências especialmente adequadas a prevenir os danos(Vaz Serra, Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Julho de 1968, in RLJ, Ano 102º, pág. 304). Mas há também uma orientação segundo a qual o regime do art. 493º, nº 2, do CC, “parece apontar para um critério mais rigoroso de apreciação da culpa, ou seja, para o critério da culpa levíssima (Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 2014, pág. 293).

Contudo – e com particular incidência no caso dos autos –, vai fazendo caminho o entendimento de que, tendo-se verificado o dano, a não ser que o réu prove não ser o exercente ou a falta de perigosidade da atividade, a prova liberatória tem por conteúdo a demonstração da causa estranha à esfera do vinculado que, interferindo com o curso normal das coisas, desencadeou o processo causal conducente à lesão danosa. Quer dizer que, Não sendo, assim, possível, provar directamente a observância de “todas” as cautelas necessárias, só por via indirecta se consegue satisfazer o ónus liberatório, comprovando positivamente que a causa real do evento lesivo se reportou a um facto alheio ao complexo de meios que consubstancia o exercício da actividade perigosa” (Mascarenhas Ataíde, cit., pág. 515).

É este o enquadramento teórico a que importa subsumir o caso dos autos.

        

6. Para efeito da averiguação da prova exigida pelo nº 2, do art. 493º, do CC, são relevantes os seguintes factos dados como provados pelas instâncias:

- O condutor do reboque, o R. FF, é trabalhador da BB, tendo a mando e no interesse da mesma procedido ao engate da lança do veículo de reboque na frente da grua-automóvel, de forma a que esta ficasse apenas com as rodas traseiras a rodar no asfalto.

- Tendo o eixo dianteiro da grua automóvel ficado suspenso na lança do rebocador.

- Cerca das 16h30m do dia 27/7/2004, ao Km 39,9, quando o veículo de reboque se deslocava no sentido sul-norte o seu condutor FF perdeu o controlo do mesmo, despistou-se e foi embater no separador central ali existente, que separa os sentidos de tráfego Sul-Norte e Norte-Sul, tendo o veículo e reboque ficado imobilizados junto ao separador central.

- A A2 tem duas faixas de rodagem, a via no local do acidente permite boa visibilidade, o traçado tem uma recta com cerca de 1km.

- Em consequência do despiste referido em 13, a grua capotou, rodando sobre a sua parte lateral esquerda.

- O acidente ocorreu por circunstâncias fortuitas estranhas ao condutor do rebocador e respectiva condução.

- Desde o local de início do reboque até ao local do acidente a grua circulou mais de uma hora e cerca de 30km.


Tendo por base esta mesma matéria de facto provada, a sentença de 1ª instância concluiu pela absolvição das RR., aqui Recorrentes, e o acórdão da Relação concluiu pela sua condenação. Fê-lo nos seguintes termos:

“Entende a sentença que o acidente ocorreu por circunstâncias fortuitas estranhas ao condutor do rebocador.

Certamente baseou-se no facto provado (que no fundo não é um facto mas uma conclusão) de que «19 – O acidente ocorreu por circunstâncias fortuitas estranhas ao condutor do rebocador e respetiva condução.»

Ora, como diz a recorrente “O conceito de circunstâncias fortuitas é vago e difuso”. 

O conceito de caso fortuito ou de força maior encontram-se associados a situações não imputáveis àquele que se encontra obrigado, por revestirem as características da imprevisibilidade e e da inevitabilidade. – neste sentido Ac. RL de 9.06.2005, CJ 2005, 3º p. 101.

Nada ficou demonstrado de concreto neste sentido.

E sendo uma actividade perigosa a proprietária responderá pelos danos causados se não se provar ter usado de todas as providências exigidas pelas circunstâncias para prevenir o sinistro. 

A culpa presumida, no plano civilista, incide sobre a entidade comitente, proprietária do UA-…- …, já que o veículo circulava no seu interesse e direcção efectiva.

Ora, sabemos que o acidente ocorreu no decurso da deslocação do reboque a que a grua estava atrelada.

Mas, como já referimos, só se provou que:

«19 – O acidente ocorreu por circunstâncias fortuitas estranhas ao condutor do rebocador e respetiva condução.»

Assim, entendemos que a recorrente tem razão ao concluir que a ré não demonstrou que fez tudo o que de acordo com a experiência comum, seria adequado a evitar o perigo.

Não demonstrou que tomou os cuidados possíveis para evitar o acidente, pelo que a culpa presumida não foi ilidida.”


Verifica-se que a divergência entre a sentença e o acórdão recorrido assenta na diversa decisão quanto à relevância do ponto 19. da “matéria de facto”: “O acidente ocorreu por circunstâncias fortuitas estranhas ao condutor do rebocador e respectiva condução.” Na verdade, como se viu supra, o afastamento da responsabilidade do exercente de actividade perigosa opera-se, indubitavelmente, “comprovando positivamente que a causa real do evento lesivo se reportou a um facto alheio ao complexo de meios que consubstancia o exercício da actividade perigosa” (Mascarenhas Ataíde, cit., pág. 515).

O acórdão recorrido entendeu que este ponto 19. da “matéria de facto” não basta para dar como provada a causa concreta do acidente. Nas palavras do autor que vimos citando, é necessária a prova de “que a causa real do evento lesivo se reportou a um facto alheio ao complexo de meios que consubstancia o exercício da actividade perigosa”.

Pretendem os Recorrentes que a conclusão do ponto 19. tem de ser vista tendo em conta a fundamentação da sentença que o acórdão recorrido parece, efectivamente, ter ignorado.

A fundamentação é a seguinte:

“Sobre as circunstâncias do acidente, tanto relativamente aos factos que resultaram provados como aos não provados, teve-se em conta o depoimento da testemunha HH, que trabalhou para a DD/EE durante mais de 20 anos e até há 5/6 anos, não tendo atualmente qualquer relação com as partes, nem qualquer interesse no desfecho do processo e que conduzia a grua no dia em que a mesma foi rebocada e circulava no reboque na altura do acidente. Esta testemunha disse que na altura do acidente o reboque circulava na AE, já [há] algum tempo, pois saíram de Montemor e que circulavam a cerca de 40/50 km/h, que o condutor do reboque ia com atenção e que circulavam “normalmente” quando, de repente, o reboque e a grua começaram a andar aos “ss”, que o condutor do reboque tentou controlar o veículo mas a grua a cerca [certa] altura tombou. Que quando se imobilizaram a testemunha verificou que a grua continuava presa ao reboque pelas correntes ou pelo cabo, não se desengatou. O R. FF, embora tenha interesse na causa, depôs de forma credível relatando as circunstâncias do acidente de forma essencialmente idêntica ao depoimento da testemunha HH. Apenas referindo que imediatamente antes de sentir o reboque e a grua aos “ss” sentiu “um barulho estranho”, barulho este que a testemunha acima mencionada diz não ter ouvido. O facto de a estrada tem [ter] um traçado reto no local do acidente, de a velocidade de circulação ser baixa, de o condutor vir atento à condução e de já circularem há cerca de 30km (desde perto de Montemor-o-Novo) e há mais de uma hora, quando se deu o acidente fazem concluir que o acidente ocorreu em virtude de circunstâncias estranhas ao condutor do reboque e respetiva condição [condução], fazendo também concluir que a grua não vinha mal presa ao reboque, pois se tal ocorresse dado o grande peso da grua e o facto de a mesma circular apenas com as rodas de trás na estrada e, portanto, em situação mais instável, se não estivesse bem presa o despiste teria de ocorrer bastante mais cedo, acresce que, a testemunha José Mendes referiu que a grua, após o acidente continuava ligada ao reboque pelo cabo de aço.”

Verifica-se que nada nesta fundamentação permite afirmar qual a causa real e efectiva do acidente, de modo a concluir que foi estranha à esfera de risco da Recorrente BB, Lda.


7. Ainda que o Supremo Tribunal de Justiça conheça apenas de matéria de direito – com as excepções, não verificáveis no caso dos autos, da segunda parte do nº 3, do art. 674º, do CPC –, entende-se que lhe cabe ainda avaliar do respeito pelo princípio da substanciação (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, II, 3ª ed., págs. 353 e segs,) do qual decorre também a necessidade de especificação factual nas sentenças. Deste modo, “Não podendo o Supremo Tribunal de Justiça apreciar a bondade da decisão de facto, proprio sensu, é-lhe lícito contudo – por se tratar já de matéria jurídica – verificar se determinada proposição, retida como facto provado, reflecte (…indevidamente e em que medida) uma questão de direito ou um juízo de feição conclusiva ou valorativa.” (acórdão de 29/04/2015 (proc. nº 306/12.6TTCVL.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt). No mesmo sentido, ver os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21/06/2012 (proc. nº 265/03.6TBRMR.L1.S1), de 10/09/2015 (proc. nº 819/11.7TBPRD.P1.S1) in sumarios.stj.pt, e de 18/02/2016 (proc. nº 1320/05.3TBCRB.C1), ainda não publicado.

Ora, a inserção na matéria de facto da conclusão de que “O acidente ocorreu por circunstâncias fortuitas estranhas ao condutor do rebocador e respectiva condução”, sem fundamentação que permita sustentá-la, constitui um juízo valorativo que deve ser censurado por este Supremo Tribunal.

Deste modo, considera-se que não foi feita prova da causa real e efectiva do acidente e da danificação da grua, que permita, por esta via, exonerar de responsabilidade a Recorrente BB, Lda.


8. Relativamente à possível exoneração da Recorrente BB, Lda, através da prova do cumprimento dos deveres de diligência impostos pela perigosidade da actividade – via que, como se referiu, tem sido seguida tradicionalmente pela jurisprudência deste Supremo Tribunal –, aquela Recorrente formula as seguintes pretensões: “4. Na verdade, ficou demonstrado à saciedade que o condutor do reboque, o R. FF, engatou a grua ao reboque de forma diligente e segundo as boas regras de arte,” “5. E tanto assim é que a grua, depois do acidente, continuava ligada ao reboque pelo cabo de aço.” “6. Também resultou provado que o condutor do reboque circulou a uma velocidade média inferior a 30 km/hora e de forma atenta.” “7. Resultando assim, à saciedade que o R. FF agiu de forma diligente, como um bom pai de família, e nessa medida nada podia fazer para evitar o acidente.”. E nas conclusões da revista da Recorrente CC declara-se: “(…) o condutor do reboque tomou todos os procedimentos que lhe eram legal e prudencialmente exigíveis, de acordo com uma bitola de homem médio, nomeadamente, i) acondicionar a grua no reboque de acordo com o procedimento habitualmente seguido, ii) seguir a baixa velocidade e iii) praticar uma condução atenta!”.

Tais conclusões recursórias quanto ao emprego de “todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim” de prevenir os danos não podem ser aceites. Dos factos provados apenas consta: Que o condutor do reboque engatou a “lança do veículo de reboque na frente da grua-automóvel” e que “Desde o local de início do reboque até ao local do acidente a grua circulou mais de uma hora e cerca de 30km.” O que é manifestamente insuficiente para fazer prova de que a Recorrente BB satisfez todas as providências exigidas para evitar os danos. Saliente-se que o sujeito da obrigação é o “titular” da actividade perigosa, a BB, Lda, e não o seu empregado. Mesmo que fosse feita prova, que não foi, da diligência do condutor do reboque, tal não é bastante para fazer prova de cumprimento de “todas as providências” necessárias por parte da Recorrente BB. Que implica colocar todos os meios para que a circulação de um reboque com uma grua atrelada com as rodas suspensas, numa situação de elevada instabilidade, não viesse a originar um acidente. O que está longe de ter sido provado, tanto pelo critério da diligência do bonus pater familias do art. 487º, nº 2, do CC, como pelo critério da culpa levíssima.

Em síntese, quer a exigência da prova liberatória da exercente da actividade, BB, Lda, consista na prova de que a causa real e efectiva do acidente e dos danos é alheia à sua esfera de risco, quer tal exigência consista na prova do cumprimento cabal de todos os deveres de cuidado adequados às circunstâncias, não lograram as Recorrentes alcançá-la.


9. Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas pelas Recorrentes.


Lisboa, 7 de Abril de 2016


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Bettencourt de Faria

João Bernardo