Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
148/18.5T8VNF.G1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR CRUZ RODRIGUES
Descritores: DECISÃO SURPRESA
ACIDENTE DE TRABALHO
CONTRATO DE SEGURO
FOLHA DE FÉRIAS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I - Decisão-surpresa é apenas aquela que assenta em fundamentos que não foram ponderados pelas partes, isto é, aquela em que se detecte uma total desvinculação da solução adoptada pelo tribunal relativamente ao alegado pelas partes.

III – No contrato de seguro de acidentes de trabalho, na modalidade de prémio variável, a omissão do trabalhador sinistrado nas folhas de férias remetidas mensalmente pela entidade patronal à seguradora determina a não cobertura do trabalhador sinistrado pelo contrato de seguro.

IV – Não tem aplicação a não cobertura do trabalhador sinistrado pelo contrato de seguro, referida em III, quando a omissão do nome desse trabalhador for devida a circunstâncias juridicamente relevantes, face aos princípios gerais do direito, nomeadamente ao princípio geral da boa fé que deve presidir à formação e execução dos contratos.

V - Para efeitos da (não) aplicação da doutrina do AUJ nº 10/2001 o envio tardio à seguradora da cópia da declaração de remunerações remetida à Segurança Social não é equiparável a omissão ou inexactidão da mesma, nem justifica que se considere o sinistrado excluído da cobertura do contrato de seguro em vigor à data da sua admissão e à data do sinistro por si sofrido, ainda que dela conste pela primeira vez, se for acompanhada de cópia da comunicação à Segurança Social, em dia anterior do mesmo mês, da admissão do sinistrado.

Decisão Texto Integral:


Proc.º nº 148/18.5T8VNF.G1.S1

4ª Secção

…./…./…..

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1 - Relatório 

1. No Juízo do Trabalho ………….. AA instaurou acção declarativa com processo especial emergente de acidente de trabalho contra “FARMACONCRET – ENGENHARIA E CONSTRUÇÃO, LDA” e “AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, pedindo a condenação das Rés a reconhecer que sofreu um acidente de trabalho na sequência do que padece de uma IPP de 50% com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH), e a pagarem-lhe, solidariamente: a pensão anual e vitalícia, actualizável,  no montante mínimo de  € 6 174,90, desde 28.4.2018, uma indemnização por incapacidades temporárias no montante mínimo de € 6 782,36;  subsídio de elevada incapacidade no montante de € 4 727,19;  despesas de transporte, consultas e medicamentos no valor de € 320,00, tudo acrescido dos juros de mora; e as despesas médicas e medicamentosas que necessite na sequência do acidente.

2. As Rés contestaram, tendo a Ré empregadora “FARMACONCRET – ENGENHARIA E CONSTRUÇÃO, LDA” aceite a existência do contrato de trabalho invocado, a ocorrência do acidente e as suas consequências, mas declinando a sua responsabilidade, sustentando que a responsabilidade pelo pagamento das quantias peticionadas é da ré seguradora, por força do contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho, prémio variável, entre elas celebrado em 1.01.16, alegando que o autor foi admitido ao serviço da ré no dia 5.06.17, tendo comunicado tal admissão à segurança social no dia 3.06.2017, e que as quantias pagas pela ré ao autor foram comunicadas à Segurança Social e à 2ª Ré.

Por seu turno, na sua contestação a Ré “AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A” aceitou o invocado contrato de seguro, mas rejeitou qualquer responsabilidade na reparação do acidente, por o autor não estar incluído nas folhas de remunerações remetidas pela 1ª Ré, por não aceitar o acidente, quer por desconhecer a sua ocorrência, quer porque o autor caiu porque sofreu uma convulsão na sequência de ter consumido opiáceos ou composto relacionados.

Subsidiariamente invocou que o autor se encontra curado desde 27.9.2017 e que a incapacidade permanente para o trabalho habitual não decorre do alegado acidente, não aceitando, ainda, as despesas reclamadas.

3. Após resposta de ambas as Rés foi proferido despacho saneador, com a fixação dos factos assentes e da factualidade controvertida, e ordenado o desdobramento do processo com vista à determinação da IPP de que padece o sinistrado e resposta aos quesitos formulados.

4. Realizada a audiência de discussão e julgamento, em 28.7.2020 foi proferida sentença que finalizou com o seguinte dispositivo:

“Nestes termos e, pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente por provada, considerando que o autor sofreu um acidente de trabalho no dia 15/06/2017, quando se encontrava ao serviço da sua empregadora, aqui 1ª ré e, consequentemente:

I) Condeno a 1ª ré a pagar ao sinistrado:

a) a título da incapacidade parcial permanente (IPP), a pensão anual e vitalícia no montante de 6.764,37€, devida desde o dia a seguir à data da alta, ou seja, 28/04/18, actualizada em 01/01/2019, para o valor de 6.872,60€, a ser paga adiantada e mensalmente até ao 3º dia do mês a que respeitar, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual e sendo os subsídios de férias e de Natal pagos, respectivamente, nos meses de Junho e Novembro, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data de vencimento de cada mensalidade da pensão até efectivo e integral pagamento;

b) a título de indemnização por incapacidade temporária, o montante de 6.782,36€, acrescida de juros de mora desde a data do vencimento de cada uma das prestações e até efectivo e integral pagamento;

c) a título de subsídio por elevada incapacidade o montante de 4.740,32€, acrescido de juros de mora desde o dia seguinte ao do acidente até efectivo e integral pagamento; ed) a título de despesas de deslocação, a quantia de 240€, acrescida de juros desde a data da tentativa da conciliação até efectivo e integral pagamento.

II) Absolvo as rés do restante pedido.

III) Fixo o valor da acção definitivamente em 108.370,28€.

Custas pelo autor (sem prejuízo do apoio judiciário concedido) e pela responsável, na proporção do decaimento (que será quanto ao autor apenas na quanto às despesas reclamadas no valor de 320€, relativamente às quais obteve vencimento em apenas 240€)”.

5. Inconformada com a decisão dela apelou a Ré “FARMACONCRET – ENGENHARIA E CONSTRUÇÃO, LDA”, impugnando a decisão em matéria de facto e de direito.

6. Conhecendo do recurso o Tribunal da Relação, por acórdão de 18.3.2021, tendo procedido à alteração da matéria de facto provada, julgou o recurso procedente condenando, em consequência, a Ré “AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A” a pagar ao autor as prestações que na sentença de 1ª instância se considerou serem-lhe devidas, absolvendo do pedido a Ré “FARMACONCRET – ENGENHARIA E CONSTRUÇÃO, LDA”.

7. É agora a Ré seguradora “AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.” que, inconformada, interpõe o presente recurso de revista, cuja alegação remata com as seguintes conclusões:

“A. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão em duas questões que não foram suscitadas pela apelante e sobre as quais, precisamente por força dessa circunstância, a Recorrente se não pronunciou: a alegada existência de circunstâncias juridicamente relevantes que afastavam as obrigações que impendiam sobre a apelante neste domínio e uma suposta violação do princípio da boa-fé por parte da Recorrente, eventualmente susceptível de consubstanciar uma situação de abuso de direito.

B. Se em relação à primeira destas questões ainda se pode admitir que a mesma estava, de certo modo implícita, nas alegações da apelante, atendendo ao que esta afirma quanto a uma suposta impossibilidade de cumprir as suas obrigações neste domínio em data anterior àquela em que, alegadamente, procedeu a esse cumprimento, o mesmo já não se pode dizer da segunda destas questões.

C. Na verdade, tratando-se de matéria nova, apenas poderia ser apreciada em sede de recurso se tivesse sido suscitada pela apelante ou se o Tribunal a quo, antes de proferir uma decisão parcialmente baseada no instituto do abuso de direito, tivesse dado às partes a oportunidade de se pronunciar sobre ela.

D. Isso mesmo é o que resulta do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC que, como é sabido, consagra o princípio da proibição das “decisões-surpresa”, por violador do princípio do contraditório que é uma emanação do direito à justiça que tem consagração constitucional.

E. A violação do estatuído no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, por ser susceptível de afectar a decisão a dar à causa, consubstancia uma nulidade processual que gera a nulidade da decisão.

F. Estatui o n.º 1 do artigo 640.º do CPC que o apelante que pretenda impugnar a decisão tomada sobre a matéria de facto deve indicar, sob pena de rejeição do recurso: i) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; ii) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; iii) a decisão que, no seu entender, deveria ter sido tomada sobre as questões de facto impugnadas.

G. Esclarecendo a alínea a), do n.º 2 da mesma disposição legal que incumbe ao apelante indicar, com exactidão e sob pena de rejeição do recurso na respectiva parte, as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.

H. Como se acentuou e referiu, devidamente, em sede de contra-alegações, a apelante não indicou, como lhe competia, as exactas passagens dos depoimentos prestados em juízo que, na sua perspectiva, implicavam que tivesse sido tomada uma decisão diversa da que foi proferida pelo Tribunal de 1.ª instância quanto à matéria de facto, limitando-se a indicar as datas de início e de fim dos depoimentos prestados pelas testemunhas ou a concluir sem mais e de forma genérica o que no seu entendimento resultava dos depoimentos prestados por aquelas.

I.    Sucede que, não obstante ter constatado e concluído que, como salientado pela ora Recorrente em sede de contra-alegações, a Apelante não tinha cumprido o ónus que sobre si impendia, o Tribunal a quo prosseguiu e procedeu à apreciação e julgamento da requerida modificação da matéria de facto.

J.  Ao conhecer o recurso sobre a matéria de facto o Tribunal a quo violou o disposto na alínea a), do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, devendo, em consequência, ser alterada a decisão pelo mesmo tomada, revogando-se a alteração da matéria de facto introduzida por aquele Tribunal e permanecendo inalterada a decisão sobre a matéria de facto tomada pelo Tribunal de 1.ª Instância.

K.  Concluindo-se, como não poderá deixar de se concluir, que a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de 1.ª Instância deve manter-se inalterada, dúvidas não podem existir que também a decisão de direito tomada por aquele tribunal se deve manter inalterada, revogando-se, na íntegra, o acórdão de que agora se recorre.

Na verdade, mantendo-se tal decisão inalterada concluir-se-á que a Famaconcret não remeteu à Recorrente as ditas cópia das declarações de remunerações do seu pessoal remetidas à Segurança Social, tendo apenas enviado as folhas de remunerações que sempre enviou, como resulta sobejamente provado.

L.  Nestes termos, a Famaconcret, para além de não ter cumprido o disposto na alínea a) do n.º 1 da Cláusula 24.ª da Apólice Uniforme de Acidentes de Trabalho, enviou à Recorrente documento do qual não consta referência ao Trabalhador/Sinistrado, o que determina que não foi transferida para a Recorrente a responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho relativamente àquele.

M. Não se encontrando a responsabilidade decorrente de acidente de trabalho transferida, a Famaconcret responde pela reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho que tenha sofrido o Trabalhador/Sinistrado, nos termos e para os efeitos do artigo 79.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.

N. Por assim não ter entendido, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 79.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.

O. Atento o teor da legislação aplicável é inegável o intuito do legislador de limitar a cobertura do seguro de acidentes de trabalho aos sinistros ocorridos relativamente a trabalhadores ao serviço do tomador do seguro que se encontrem mencionados nas declarações de remunerações enviadas periodicamente à entidade seguradora.

P. Assim, a comunicação de remunerações que o tomador do seguro se encontra obrigado, nos termos legais, a efectuar até ao dia 15 de cada mês refere-se aos trabalhadores ao seu serviço no mês anterior ao da referida comunicação, pelo que incluirá qualquer trabalhador que seja admitido no tomador do seguro no mês antecedente ao da comunicação e que venha nesta mencionado.

Q. Pelo contrário, sempre que as comunicações de remunerações não mencionem algum trabalhador, não existirá transferência do risco de sinistro para a entidade empregadora, mantendo-se este na esfera da entidade empregadora.

R.

S. O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 4 de Abril de 2019 (Proc. n.º 1257/15.8T8VRL.G1) em que o Tribunal a quo se baseou, discutia um caso em que existiu um atraso no envio da comunicação de remunerações por parte do tomador do seguro – um envio tardio da comunicação relativamente a todos os trabalhadores do tomador do seguro.

T. Ora, no caso concreto, a comunicação de remunerações relativa ao mês de Junho de 2017 – mês em que o sinistrado iniciou as suas funções na Famaconcret e também o mês em que ocorreu o sinistro -, foi efectuada pela Famaconcret em Julho de 2017, verificando-se que a mesma era inexacta, na medida em que não existia qualquer referência ao trabalhador sinistrado.

U. Desta forma, é o próprio acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 4 de Abril de 2019 que assinala que «verificando-se que o tomador do seguro nas “folhas de férias” dos meses imediatos ao da contratação de um novo trabalhador, o não inclui, tal (…) significa que o novo trabalhador não se encontra coberto pelo contrato de seguro, não estando assim relativamente a esse trabalhador transferida a responsabilidade do empregador.»

V.

W. A jurisprudência tem entendido como “circunstâncias juridicamente relevantes” situações associadas a uma prática reiterada da entidade empregadora (tomador do seguro), a qual é conhecida e aceite pela entidade seguradora – vindo esta apenas invocar o incumprimento das obrigações declarativas que cabem ao tomador do seguro na circunstância de ocorrência de um acidente de trabalho relativamente ao qual pretende ver excluída a sua responsabilidade. Veja-se, a título exemplificativo, o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Julho de 2012, citado pelo Tribunal a quo, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 3 de Dezembro de 2020 (Proc. n.º 1680/17.3T8VRL.G1).

X. As referidas situações não têm qualquer similitude com o caso concreto. Na verdade, a Recorrente sempre considerou cobertos pelo seguro de acidentes de trabalho celebrado com a Famaconcret todos os trabalhadores por esta última identificados nas declarações de remunerações enviadas até ao dia 15 de cada mês relativas ao mês imediatamente a esse antecedente - sendo, aliás, esta a prática reiterada entre as contraentes.

Y. Desta forma, contrariamente aos casos invocados nos arestos supramencionados, nos quais se verificava uma prática reiterada conhecida e admitida pela entidade seguradora, a omissão da identificação de um trabalhador nas referidas folhas de remunerações enviadas à seguradora originária num esquecimento, lapso ou falta de diligência – ainda que pontual - por parte da entidade empregadora não se poderá configurar como sendo uma “circunstância juridicamente relevante”.

Z. Por assim não ter entendido, o Tribunal a quo violou o disposto nas cláusulas 5.ª, alínea b) e 24.ª, n.º 1, alínea a) das Condições Gerais, e no n.º 1 da Condição Especial 01, todas da Apólice Uniforme de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, publicada em anexo à Portaria n.º 256/2011, de 5 de Julho.

AA.

BB. Entende o Tribunal a quo que a Recorrente, ao enviar uma comunicação à Famaconcret informando-a de que declinava a sua responsabilidade no acidente de trabalho ocorrido, pelo facto do trabalhador sinistrado não se encontrar abrangido pelo seguro de acidentes de trabalho acordado, pelo seu nome não constar da declaração de remunerações enviada à primeira, agiu em abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, mais uma vez não podendo a Recorrente concordar com tal entendimento.

CC. A Recorrente não age em abuso de direito ao declinar a sua responsabilidade no sinistro ocorrido, na medida em que tal conclusão é o que decorre da aplicação conjugada das cláusulas 5.ª, alínea b) e 24.ª, n.º 1, alínea a), das Condições Gerais, e do n.º 1 da Condição Especial 01, da Apólice Uniforme de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem.

DD. A ratio daqueles preceitos é a de conferir um equilíbrio contratual entre as posições das partes no contrato de seguro de acidentes de trabalho – o cálculo do prémio e, bem assim, a cobertura em caso de sinistros têm por base as declarações de remunerações que a entidade empregadora tem obrigação de enviar até dia 15 de cada mês para a entidade seguradora; apenas se verificando a assunção de responsabilidade pela entidade seguradora quando tal responsabilidade tenha sido para si validamente transferida através da correcta e atempada comunicação legalmente devida.

EE. Ora, no caso, ficou provado que a Recorrida não incluiu o trabalhador sinistrado na declaração de remunerações enviada à Recorrente – conforme era seu dever legal -, pelo que não se mostra contrária aos fins do direito ou sequer aos bons costumes, a posterior actuação da Recorrente.

FF. Ademais, a Recorrente não viola qualquer limite imposto pela boa fé, na medida em que se encontra estabelecido na lei, sendo, ainda, prática entre as contraentes – e, portanto, não havendo qualquer violação da confiança da Recorrida -, que o documento apto a indicar as pessoas cobertas pelo seguro de acidentes de trabalho é a referida declaração que a Recorrida enviava todos os meses à Recorrente, e a qual a Recorrente aceitava de boa fé, acreditando na verdade das informações que lhe eram transmitidas pela Recorrida.

GG. De facto, atento o disposto na cláusula 24.ª das Condições Gerais da Apólice Uniforme de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, em que sob a epígrafe «Obrigações do tomador do seguro quanto a informação relativa ao risco» se atribui relevância às declarações efectuadas pelo tomador do seguro, verifica-se que a obrigação de actuar com diligência relativamente a essas declarações cabe à entidade empregadora.

HH. Sendo as declarações de remunerações os documentos aptos a definir o decurso da execução do contrato de seguro – em particular, dos trabalhadores efectivamente abrangidos –, se a Recorrida tivesse incluído o trabalhador sinistrado na declaração que enviou à Recorrente, o mesmo encontrar-se-ia coberto pelo seguro acordado.

II. Bem se vê que é à entidade empregadora que cabe ter o cuidado, a atenção e a diligência de comunicar correcta e atempadamente os trabalhadores que a todo o momento se encontrem ao seu serviço.

JJ. Não o fazendo, inexiste qualquer obrigação para a entidade seguradora de aceitar o cumprimento dessa obrigação intempestivamente, ou de se responsabilizar por sinistros relativos a pessoas não cobertas pela apólice do seguro.

KK. Contrariamente ao que pressupõe a fundamentação do Tribunal a quo, não resulta da lei nem se encontra estabelecida qualquer obrigação contratual entre a Recorrente e a Famaconcret que imponha que a Recorrente deva indagar a informação que lhe foi transmitida por aquela na declaração de remunerações e na qual de boa fé confia, e, bem assim, inexiste qualquer obrigação de comunicar com a Segurança Social para cruzar os dados que eventualmente tenham sido comunicados a esta entidade.

LL. A imposição de um especial ónus de diligência à entidade seguradora sob as vestes da boa fé contratual (conforme resulta do acórdão recorrido) seria, não só impraticável do ponto de vista prático – atenta a quantidade de contratos de seguros celebrados por uma entidade que se dedica ao ramo segurador -, como eliminaria a relevância que a lei atribui às obrigações declarativas do tomador do seguro, de tal forma que a falta de diligência do tomador do seguro seria sempre perdoada e metamorfoseada em falta de diligência da entidade seguradora, a qual, mais uma vez, não tem qualquer correspondência com o texto legal.

MM. Para além do referido, a solução propugnada pelo Tribunal a quo favorece o desequilíbrio contratual, de tal forma que o tomador do seguro não teria qualquer consequência pelo incumprimento dos deveres a que está adstrito por força da lei e do contrato de seguro, enquanto a entidade seguradora teria um especial dever de diligência que não resulta da lei nem do contrato.
NN. Por assim não ter entendido, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 334.º do Código Civil”.

8. A recorrida “FAMACONCRET – ENGENHARIA E CONSTRUÇÃO, LDA” apresentou resposta às alegações sustentando a improcedência do recurso.

9. Cumprido o disposto no artº 87º, nº 3, do C.P.T., o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido de ser negada a revista e confirmado o acórdão recorrido, parecer que, tendo sido notificado às partes, não foi objeto de resposta.

II

2 - Regime jurídico aplicável e delimitação objectiva do recurso

Os presentes autos respeitam a ação emergente de acidente de trabalho.

O sinistro ocorreu em 15.6.2017, tendo sido participado em 8.1.2018.

O acórdão recorrido foi proferido em 18.3.2021.

Assim sendo, são aplicáveis:

- O Código de Processo Civil (CPC) na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho;

- O Código de Processo do Trabalho (CPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de Novembro, e alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de Dezembro, 38/2003, de 8 de Março, 295/2009, de 13 de Outubro, que o republicou, e pelas Leis nºs 63/2013, de 27 de Agosto, 55/2017, de 17 de Julho e 107/2019, de 9 de Setembro.

- A Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT).

- A Apólice Uniforme de Seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, aprovada pela Portaria nº 256/2011, de 5 de Julho.

- o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2001, de 21.11.2001, publicado no Diário da República, 1ª Série, de 27.12.01

Delimitado o objecto do recurso pelas questões suscitadas pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação das que são de conhecimento oficioso, (artigo 608º, nº 2, do CPC), está em causa na presente revista:
i) a nulidade do acórdão recorrido, por violação do princípio da proibição das decisões-surpresa;

ii) a violação pelo acórdão recorrido do disposto na alínea a), do n.º 2 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, ao conhecer do recurso sobre a matéria de facto;

iii)  a responsabilidade da R. Seguradora pela reparação do acidente de trabalho sofrido pelo A.

iv) saber se a Recorrente (não) agiu em abuso de direito.

III

3 - Fundamentação de facto

A matéria de facto provada é a seguinte:

A) O autor nasceu no dia 13/04/1971.

B) Para ter início no dia 1 de Janeiro de 2016, a 1.ª ré celebrou com a 2.ª ré um contrato de seguro do Ramo “Acidentes de Trabalho – Conta de Outrem”, “Prémio Variável”, titulado pela “Apólice n.º 0010………..”.

C) Por força da celebração do referido contrato, a 2.ª ré assumiu, perante a 1.ª ré, a obrigação de suportar todos os encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho em relação às pessoas identificadas na apólice.

D) De acordo com as condições particulares acordadas entre as rés, ficariam abrangidos pelo mencionado contrato de seguro os trabalhadores ao serviço da 1.ª ré que constassem das folhas de remunerações enviadas por esta à 2.ª ré até ao dia 15 de cada mês.

E) A 1.ª ré admitiu o autor ao seu serviço no dia 5 de Junho de 2017.

F) O autor auferia a retribuição anual ilíquida de 11.191.50€ (700€ x 14 + 126,50€ x 11, respectivamente salário base e subsídio de alimentação).

G) No dia 15 de Junho de 2017, cerca das 15 horas, no local designado pela 1.ª ré, em ………, ……….., o autor procedia à elaboração de roços numa parede no âmbito da empreitada de remodelação pré-escolar da Santa Casa da Misericórdia …….., tendo caído no solo.

H) Em consequência daquela queda, o autor foi transportado para o ULS ………, E.P.E., Hospital ………… S.A., ………., onde veio a ser atendido e onde lhe foram prestados os primeiros socorros, realizados exames médicos e ministrados medicamentos.

I) Posteriormente, foi o autor transferido para o Hospital ………., Centro Hospitalar …….., E.P.E., onde ficou internado 15 dias, tendo ido de seguida para o Centro Hospitalar ………, E.P.E., onde foi sujeito a tratamento conservador, sendo transferido novamente para o Hospital de ………, onde permaneceu internado até 10 de Julho de 2017, continuando tratamento conservador, tendo finalmente sido transferido para o Hospital da área de residência em ………, onde esteve internado três dias.

J) Em consequência directa e necessária do descrito acidente, sofreu o autor uma lesão que se traduz num “traumatismo cranioencefálico do qual resultaram focos de contusão vários e hematoma parieto-occipital extenso”.

K) Como consequência do acidente em causa, o autor padece de:

a. Incapacidade Temporária Absoluta de 16/06/2017 até 27/04/2018, fixável num período de 316 dias,

b. Incapacidade Permanente Parcial fixável em 52,21%,

c. Incapacidade permanente absoluta para a actividade profissional habitual.

L) O autor despendeu em transportes para se deslocar a consultas a quantia de 240€.

M) A 1.ª ré enviava mensalmente à mediadora “SUSTENTAPREMIO – MEDIAÇÃO DE SEGUROS UNIPESSOAL, LDA.”, mais precisamente ao cuidado do Sr. BB, as declarações de remunerações mensais dos trabalhadores ao seu serviço que constam a fls. 165-167, que as enviava à 2.ª ré.

N) O que aconteceu com as folhas de remuneração relativas ao mês de Junho de 2017.

O) A 2.ª ré calculava os acertos do prémio a pagar pela 1.ª ré.

P) A 1.ª ré comunicou a admissão do autor à Segurança Social no dia 3/06/2017, sendo que as remunerações que pagou ao autor foram comunicadas à Segurança Social.

Q) Em resposta a carta da ré seguradora à ré empregadora recebida por esta em 3/10/2017, em que aquela declinava a responsabilidade por, à data do acidente, o sinistrado não constar da relação do pessoal seguro, a ré empregadora enviou-lhe, em 6/10/2017, cópias da comunicação da admissão do autor à Segurança Social no dia 3/06/2017 e da declaração de remunerações dos trabalhadores ao seu serviço remetida à Segurança Social em 7/07/2017, onde constava o nome e remunerações do autor em Junho de 2017. (aditado pelo Tribunal da Relação).

R) Na participação do acidente de trabalho à ré seguradora pela ré empregadora, estava mencionado que o sinistrado iniciara a prestação do trabalho para a segunda em 5/06/2017, com as remunerações mencionadas na alínea F). (aditado pelo Tribunal da Relação)

4 - Fundamentação de direito

Constituindo o acervo factual a base necessária para a decisão de mérito, seguindo a ordem lógica de conhecimento, será esta a primeira questão a apreciar:

a) Violação do disposto no artigo 640º, nº 2, al. a), do Código de Processo Civil

Invoca a recorrente que estava vedado ao tribunal a quo conhecer do recurso da ré empregadora sobre a matéria de facto por incumprimento pela recorrente do ónus que sobre si impendia de indicar com exactidão, e sob pena de rejeição do recurso na respectiva parte, as passagens da gravação em que funda o seu recurso, pelo que, ao conhecer do recurso o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 640º, nº 2, al. a), do Código de Processo Civil.

No recurso de apelação interposto a ré empregadora impugnou a decisão relativa a matéria de facto, sustentando que o facto dado como provado sob a letra M) não poderia ter sido dado provado com o teor que foi dado provado, e que deveria ter sido dado como provado o facto não provado sob o número 8, invocando para o efeito os depoimentos de diversas testemunhas e prova documental produzida nos autos.

A impugnação da decisão relativa à matéria de facto não se fundou exclusivamente em depoimentos prestados nos autos, e no correspondente suporte magnético, mas também em prova documental, relativamente à qual não têm aplicação os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 2, a), do C.P.C., respeitantes à gravação da prova.

Contrariamente, pois, ao invocado pela recorrente inexistia fundamento para a rejeição do recurso em matéria de facto, sendo de registar que a impugnação da decisão relativa à matéria de facto pela apelante soçobrou por completo, e que o aditamento, de dois novos factos à matéria de facto provada, foi efectuado pelo Tribunal da Relação invocando os poderes que lhe são conferidos pelos artigos 607º, nº 4, e 662º, nº 1, do Código de Processo Civil, por os considerar relevantes para a decisão da causa, estando assentes por acordo das partes nos articulados e também através de documentos cuja existência e teor não foram impugnados, o que não vem questionado.

É, assim, infundada a alegação da Recorrente de que ao Tribunal da Relação estava vedado conhecer do recurso da ré empregadora sobre a matéria de facto.

b) Nulidade – decisão surpresa

Alegando que a decisão proferida se fundamentou em duas questões - a alegada existência de circunstâncias juridicamente relevantes que afastavam as obrigações que sobre si impendiam neste domínio e uma suposta violação do princípio da boa-fé por parte da recorrente, eventualmente susceptível de consubstanciar uma situação de abuso de direito - que não foram suscitadas pela apelante e sobre as quais não lhe foi dada a possibilidade de exercer o contraditório, vem a recorrente arguir a nulidade do acórdão recorrido, por violação do princípio da proibição das decisões-surpresa, decorrente do princípio do contraditório consagrado no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil.

Dispõe este preceito que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Nas palavras de LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, este preceito consagra «uma conceção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior à sua introdução no nosso ordenamento», comportando este princípio um «direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo (…) hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como parcialmente relevantes para a decisão»[1].

Esta dimensão do contraditório manifesta-se na proibição das decisões surpresa, referindo o primeiro daqueles autores que, nesse plano, o das questões de direito, «o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie» e que tal «proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz (…) que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito, seja no plano meramente processual, deve previamente convidar as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade».[2]

Como tem sido entendimento deste Supremo Tribunal o elemento surpresa que pode informar uma decisão judicial não se situa no plano argumentativo das razões que justificam uma decisão à luz dos factos e do direito no âmbito de uma questão suscitada nos autos e nele discutida desde a primeira hora[3], ou seja, a decisão surpresa que a lei pretende afastar contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram previsíveis[4].

Como a propósito se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal de 12.1.2021, Procº nº 3325/17.2T8LSB-B.L1.S1:
“Vem sendo uniformemente entendido na doutrina e na jurisprudência que as decisões-surpresa são apenas aquelas que assentam em fundamentos que não foram ponderados pelas partes, isto é, aquelas em que se detecte uma total desvinculação da solução adoptada pelo tribunal relativamente ao alegado pelas partes, sendo que o campo privilegiado de valência desta proibição são as questões de conhecimento oficioso.
Assim sendo, só se justificará a audição prévia das partes quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes haviam preconizado ser aplicável de forma que não possam razoavelmente contar com a sua aplicação ao caso”.

Neste sentido refere Lopes do Rego, que a audição excepcional e complementar das partes (…) só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo (Comentários ao Código de Processo Civil, volume I, 2.ª edição, Almedina, p. 33)-, entendimento que este Tribunal vem afirmando repetidamente decidindo no sentido de que só há decisão surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e sem alicerce na matéria factual ou jurídica, enveredar por uma solução que os sujeitos processuais não tinham a obrigação de prever (cfr. entre outros Acórdãos de 03-05-2018, Incidente n.º 2377/12.6TBABF.E1.S2, acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/civel2018-1.pdf), de 12-07-2018, Revista n.º 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ, de 11-07-2019, Incidente n.º 622/08.1TVPRT.P2.S1, disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/10/sum_acor_civel_julho.pdf).

Por conseguinte, a proibição das decisões surpresa não pode significar mais do que a obrigação do juiz facultar às partes a possibilidade de aduzirem as suas razões perante uma situação e/ou enquadramento legal com que não tivessem podido razoavelmente contar”.

Entendimento que se inscreve na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem segundo a qual o princípio do contraditório impõe que os tribunais não fundamentem as suas decisões em elementos de facto ou de direito que não tenham sido debatidos durante o processo e que confiram ao litígio uma direção que mesmo uma parte diligente não estaria em condição de antecipar (cf. nesse sentido acórdão de 17.5.2016, proferido na queixa nº 4687/11, Liga Portuguesa de Futebol Profissional c. Portugal, § 59).

No caso vertente, para o que ora releva, assente que foi a existência de um acidente de trabalho de que foi vítima trabalhador ao serviço da Ré empregadora, a qual tinha a sua responsabilidade infortunística transferida mediante contrato de segura de acidentes de trabalho, na modalidade de folha de férias, para a Ré Seguradora ora recorrente, a questão que se discutiu nos autos, decidida na sentença de 1ª instancia, foi a da responsabilidade pela reparação dos danos emergentes do acidente, à luz da jurisprudência fixada no AUJ nº 2/2001, publicado no Diário da República, 1ª Série, de 27.12.01, no sentido de que “no contrato de seguro de acidentes de trabalho de prémio variável, a omissão do trabalhador sinistrado nas folhas de férias, remetidas mensalmente pela entidade patronal à seguradora, não gera a nulidade do contrato nos termos do artigo 429º do Código Comercial, antes determina a não cobertura do trabalhador sinistrado pelo contrato de seguro”.

Jurisprudência que veio solucionar o conflito jurisprudencial que, no caso de contrato de seguro de acidentes de trabalho na modalidade de prémio variável, se verificava quanto às consequências da omissão do nome do sinistrado na folha de férias que o empregador, de conformidade com o regime jurídico da apólice uniforme de acidentes de trabalho que remonta à Portaria nº 633/71, de 19.11. (clª 5ª, nº 4), regime que, nesse particular, não sofreu alteração substancial com as alterações introduzidas pelos diplomas que se sucederam, e actualmente com o disposto no artigo 24º, n 1, al. a), das Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de acidentes de trabalho, aprovada pela Portaria nº 256/2011, de 5.7.,  está obrigado a enviar ao segurador, até ao dia 15 de cada mês, relativas às retribuições pagas no mês anterior aos seus trabalhadores, sufragando, nos termos enunciados, o entendimento de uma das correntes jurisprudenciais em oposição segundo a qual, como se refere na fundamentação do AUJ em questão, a omissão do nome do nome do trabalhador na folha de férias não gera a nulidade do contrato: quem não constar das folhas de férias não se pode considerar abrangido pelo contrato de seguro, salvo qualquer lapso que possa ser relevado pela boa fé contratual.

Na linha de tal entendimento e em consonância com a jurisprudência qualificada que dimana do AUJ, de que decorre uma regra interpretativa orientadora em todas as lides futuras em que se discutam o mesmo instituto, a jurisprudência subsequente deste Supremo Tribunal tem sufragado a posição de que a orientação firmada no AUJ não é extensível às situações em que a omissão do nome do trabalhador na folha de férias se deve a circunstâncias juridicamente relevantes, face aos princípios gerais de direito, nomeadamente ao princípio da geral boa fé, consagrado no artigo 762º, nº 2, do C. Civil, que deve presidir à formação e execução dos contratos (cf. acórdãos de 11.7.2012, Procº nº 443/06.6TTGDM.P21.S1, e 3.12.2008, Procº nº 08S2323).

O conceito de boa fé a que o  artigo 672º, nº 2, do C. Civil se reporta é um conceito jurídico, ou ético jurídico, a que não corresponde um conteúdo rígido e uniforme, antes apresentando contornos variáveis e flexíveis, determinados em função das circunstâncias de cada tipo de situações, e que aponta para o dever social de agir com a lealdade, a correcção, a diligência e a lisura exigíveis das pessoas, conforme as circunstâncias de cada acto jurídico (P. Lima/A. Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. II, 4ª ed., págs.4/5), sendo este um imperativo que envolve não só o devedor, o sujeito do dever de prestar, como também o credor no que concerne ao exercício das faculdades contidas no respectivo direito de crédito.

Em contraponto, consagra-se no artigo 334º do C. Civil um princípio fundamental da ordem jurídica, qual seja o de que o exercício dos direitos tem limites, pela que a titularidade de um direito não confere um complexo de poderes absolutos inerentes ao seu exercício, estando o exercício de direitos limitado pela boa fé e pelos bons costumes, por um lado, e pelas finalidades de natureza económica e social subjacentes à conformação desse direito, por outro.

Foi neste enquadramento e à luz da referida jurisprudência que a sentença de 1ª instância concluiu, por um lado, pela aplicação do AUJ à situação dos autos, uma vez que à data do acidente (15.6.17) o nome do autor sinistrado, que havia iniciado funções em 5.6.17, com a consequente comunicação à Segurança Social, não constava das folhas de férias remetidas à seguradora, e, por outro, esse facto, a inscrição do autor na segurança social, por si só, não é bastante para se poder afirmar que o incumprimento da obrigação da Ré empregadora de inclusão do nome do autor na folha de férias ocorreu devido a circunstâncias juridicamente relevantes, i.e., não permite concluir que a falta de cumprimento daquela obrigação da ré empregadora – de, nos termos da cláusula 24ª, nº 1, a), da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho, aprovada pela Portaria nº 256/2011, de 5.7., enviar à seguradora, até ao dia 15 de cada mês, cópia das declarações de remunerações do seu pessoal remetidas à segurança social, relativas às retribuições pagas no mês anterior - não procede de culpa sua.

No recurso de apelação interposto contra a sentença de 1ª instância a Ré empregadora ora recorrida impugnou a decisão relativa à matéria de facto, pugnando designadamente para que fosse dado como provado que enviava mensalmente à seguradora, por intermédio da mediadora, os extractos das remunerações mensais dos trabalhadores ao seu serviço remetidas à Segurança Social, o que aconteceu com as remunerações referentes ao mês de Junho de 2017,  e insurgiu-se contra a decisão de direito, sustentando também que, mesmo com a matéria de facto dada como provada a mesma incorreu em errada interpretação e aplicação das disposições dos artigos 5º e 24º da  Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho, alegando para tanto, em síntese e substância, que o sinistrado tendo prestado actividade laboral de 5 a 15 de Junho de 2017 não podia ter sido mencionado noutras folhas de ferias que não na apresentada na segurança social no mês de Julho de 2017 e relativo ao mês de Junho de 2017, e que o caso vertente não é similar à situação tratada na jurisprudência citada na sentença recorrida de trabalhador que, sendo omisso em anteriores folhas de retribuições, relativas a períodos em que já se encontrava ao serviço do empregador, só após o acidente é incluído nas folhas de retribuições remetidas à seguradora.

Essa, a existência de “circunstâncias juridicamente relevantes” para a omissão do nome do sinistrado nas folhas de remunerações enviadas pelo empregador à seguradora, com as consequências jurídicas anteriormente referidas de se considerar o sinistrado abrangido pelo contrato de seguro e a consequente responsabilidade da seguradora pela reparação dos danos emergentes do acidente, era, portanto, questão, uma das questões, para além da impugnação da decisão em matéria de facto, submetida à apreciação e decisão do Tribunal da Relação, sobre a qual a recorrente teve ocasião e oportunidade de se pronunciar.

E foi essa a questão que, no quadro do mesmo enquadramento legal e da mesma factualidade a que aditou factos relevantes assentes por acordo das partes nos articulados e também através de documentos juntos aos autos cuja existência e teor não foram contraditados, o acórdão recorrido decidiu concluindo a final que “resulta objectivamente da factualidade provada que a ré empregadora não teve qualquer intuito fraudulento e, se a ré seguradora a tivesse procedido com o dever de cuidado imposto pela boa-fé que deve presidir à execução dos contratos, teria chegado a essa mesma conclusão. Neste contexto, é ilegítima, porque resultante dessa omissão da diligência por si devida, a invocação pela ré seguradora da não cobertura do sinistro dos autos pelo contrato de seguro que a ligava validamente à ré empregadora”.

A referência, na fundamentação do acórdão, à figura do abuso de direito, além de acessória e de genericamente efectuada, pois não foi esse mas a existência de circunstâncias juridicamente relevantes, apreciadas à luz do princípio da boa fé na execução dos contratos, excludentes do efeito  da omissão do nome do trabalhador nas folhas de remunerações que o empregador está obrigado a enviar à seguradora da não cobertura do trabalhador sinistrado pelo contrato de seguro, o fundamento principal e decisivo para a decisão proferida, decorre, em recorte negativo, daquele mesmo princípio, nada tendo surpreendente e em nada contendendo, de forma relevante e inovatória, com solução jurídica que a recorrente não tivesse obrigação de prever, apenas se situando, nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 15.2.2017, anteriormente referenciado, no “plano argumentativo das razões que justificam uma decisão à luz dos factos e do direito no âmbito de uma questão suscitada nos autos e nele discutida desde a primeira hora”.

Não incorreu, pois, o acórdão na invocada nulidade pois não tratou de questão nova, não tendo sido desrespeitado o princípio do contraditório, não constituindo a decisão proferida nenhuma decisão surpresa.


c) Responsabilidade da R. Seguradora pela reparação do acidente de trabalho sofrido pelo A.

No caso vertente, como anteriormente referido, as instâncias convergiram no entendimento de que é aplicável na situação em apreço a doutrina do AUJ nº 10/2011, e bem assim no entendimento, seguindo a jurisprudência deste Supremo Tribunal na matéria, de que o AUJ não é aplicável quando a omissão do nome do trabalhador nas folhas de férias remetidas à Seguradora resultar de circunstâncias juridicamente relevantes, sendo que enquanto a sentença de 1ª instância considerou inexistirem in casu circunstâncias juridicamente relevantes para a omissão do nome do trabalhador nas folhas de férias, o acórdão recorrido, face à factualidade provada, concluiu pela existência de circunstâncias juridicamente relevantes, e daí pela cobertura do sinistrado pelo contrato de seguro de acidentes de trabalho celebrado entre o empregador e a seguradora e a responsabilidade desta última pela reparação dos danos emergentes do acidente.

Insurgindo-se contra a decisão sustenta a recorrente, em substância, que tem sido entendido na jurisprudência como “circunstâncias juridicamente relevantes” situações associadas a uma prática reiterada da entidade empregadora (tomador do seguro) relativamente ao (in)cumprimento das suas obrigações declarativas, a qual é conhecida e aceite pela entidade seguradora, e que, no caso, a omissão da identificação de um trabalhador nas referidas folhas de férias enviadas à seguradora originada num esquecimento, lapso ou falta de diligência, ainda que pontual, por parte da entidade empregadora não poderá configurar  “circunstância juridicamente relevante”.

O acórdão recorrido apreciou a questão nos seguintes termos:

“Na situação a que se reportam os presentes autos, resulta da factualidade provada que o autor foi admitido ao serviço da ré empregadora em 5/06/2017, tendo esta comunicado a admissão do autor à Segurança Social no dia 3/06/2017.

O acidente de trabalho ocorreu logo no dia 15/06/2017 e na participação do acidente de trabalho à ré seguradora, pela ré empregadora, estava mencionado que o sinistrado iniciara a prestação do trabalho para a segunda em 5/06/2017, com as remunerações mencionadas na alínea F).

A ré empregadora comunicou à Segurança Social, em 7/07/2017, a declaração de remunerações pagas ao autor no mês antecedente, e tinha legítimo interesse em enviar idêntica declaração à ré seguradora até ao dia 15/07/2017, assim como para a seguradora, em face do teor da participação, era expectável que o autor constasse pela primeira vez na “folha de férias” que recebesse da ré empregadora até tal data.

Assim, quando, surpreendentemente, recebeu da 1.ª ré, por intermédio da mediadora, as declarações de remunerações mensais dos trabalhadores ao seu serviço que constam a fls. 165-167, que – note-se – não são cópia das enviadas à Segurança Social, nem o foram por meio informático, como dispõe a Cláusula 24.ª, n.º 1, al. a) e n.º 2, sem que delas constasse o nome e remunerações do autor, impunha-se que a ré seguradora esclarecesse junto da ré empregadora se esta não incorrera nalgum lapso, designadamente solicitando o envio das declarações de remunerações de Junho de 2017 enviadas à Segurança Social.

Com efeito, assim como é censurável que a entidade empregadora inclua um seu trabalhador nas “folhas de férias” apenas depois de ocorrido o acidente, indicando falsamente que o mesmo foi admitido no respectivo mês, e se justifique plenamente que a seguradora averigúe se o mesmo estava já ao serviço em meses anteriores, também é censurável que, na situação inversa, isto é, de a entidade empregadora indicar que o sinistrado foi admitido no mês em que ocorreu o acidente mas não o incluir na correspondente “folha de férias” enviada posteriormente à seguradora, esta não averigúe se tal omissão resultou de algum lapso.

Da factualidade provada não decorre que a 2.ª ré o tenha feito, mas, pelo contrário, que se aproveitou da omissão para enviar carta à ré empregadora, recebida por esta em 3/10/2017, a declinar a responsabilidade por, à data do acidente, o sinistrado não constar da relação do pessoal seguro, tendo a ré empregadora lhe enviado, em 6/10/2017, cópias da comunicação da admissão do autor à Segurança Social no dia 3/06/2017 e da declaração de remunerações dos trabalhadores ao seu serviço remetida à Segurança Social em 7/07/2017, onde constava o nome e remunerações do autor em Junho de 2017.

(…)

Atentas as circunstâncias acima referidas, e tendo ainda em conta que a falta de inclusão do sinistrado na “folha de férias” se verificava já desde 15/07/2017, sem que a ré seguradora tivesse tido a iniciativa de esclarecer a situação, como o impunha o princípio da boa-fé, ou tivesse imediatamente declinado a responsabilidade – levando a ré empregadora a crer que nenhuma controvérsia existia –, o mesmo princípio da boa-fé impunha que, ao menos, a ré seguradora aceitasse o envio tardio da cópia da declaração de remunerações dos trabalhadores remetida à Segurança Social em 7/07/2017, onde constava o nome e remunerações do autor em Junho de 2017, como suficiente para esclarecer a situação.

Relembra-se que no próprio Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2001 se mencionou que quem não constar das “folhas de férias” não se pode considerar abrangido pelo contrato de seguro de prémio variável, “salvo qualquer lapso que possa ser relevado ao abrigo da boa-fé contratual.”

Por outro lado, em termos semelhantes aos referenciados no citado Acórdão desta Relação de Guimarães de 4 de Abril de 2019, pode dizer-se, para efeitos da não aplicação da doutrina daquele Acórdão de Uniformização, que o envio tardio à seguradora, em 6/10/2017, da cópia da declaração de remunerações remetida à Segurança Social, não é equiparável a omissão ou inexactidão da mesma, nem justifica que se considere o sinistrado excluído da cobertura do contrato de seguro em vigor à data da sua admissão e à data do sinistro por si sofrido, ainda que dela constasse pela primeira vez, já que foi acompanhada de cópia da comunicação à Segurança Social, em dia anterior do mesmo mês, da admissão do sinistrado.

Resulta objectivamente da factualidade provada que a ré empregadora não teve qualquer intuito fraudulento e, se a ré seguradora tivesse procedido com o dever de cuidado imposto pela boa-fé que deve presidir à execução dos contratos, teria chegado a essa mesma conclusão. Neste contexto, é ilegítima, porque resultante dessa omissão da diligência por si devida, a invocação pela ré seguradora da não cobertura do sinistro dos autos pelo contrato de seguro que a ligava validamente à ré empregadora”.    

Quid juris?

A boa-fé exigida no cumprimento dos contratos traduz-se no dever de agir segundo um comportamento de lealdade e correcção, que visa contribuir para a realização dos interesses legítimos que as partes pretendem obter com a celebração do contrato.

No contrato de seguro a prémio variável, contemplado na alª 5, a), Apólice Uniforme de Seguro de Acidentes de Trabalho para trabalhadores por conta de outrém, aprovada pela Portaria nº 256/2011, de 5.7., a apólice cobre um número variável de trabalhadores, com retribuições seguras também variáveis, sendo consideradas pela seguradora as pessoas e as retribuições identificadas nas folhas de vencimentos que lhe são enviadas periodicamente pelo tomador do seguro.

Nos termos da cláusula 24ª, nº 1, a), da Apólice Uniforme do Seguro o tomador do seguro está obrigado “a enviar ao segurador, até ao dia 15 de cada mês, cópia das declarações de remunerações do seu pessoal remetidas à segurança social, relativas às retribuições pagas no mês anterior”.

Tendo sido muito debatido nos autos é ponto assente que o Autor sinistrado não constava das folhas de remunerações relativas ao mês de Junho de 2017 que a Ré empregadora estava obrigada a enviar à seguradora recorrente até ao dia 15 de Julho de 2017.

A questão, apreciada no acórdão recorrido, é agora a de saber se esse facto, em conformidade com a orientação jurisprudencial que resulta do AUJ nº 10/2001, determina a “não cobertura do trabalhador sinistrado pelo contrato de seguro”.

Dito de outo modo, o que está em causa é saber se tal omissão resultou de “circunstância juridicamente relevante”, ou se, inversamente, como sustenta a recorrente, cabia à entidade empregadora ter o cuidado a atenção e a diligência de comunicar correcta e atempadamente os trabalhadores que a todo o momento se encontrem ao seu serviço, tendo a omissão desse dever e obrigação declarativa do tomador do seguro como consequência a não abrangência do sinistrado pelo contrato de seguro.

Como tem sido sublinhado na jurisprudência, citando José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1997, p. 110, «da maior importância é a classificação do contrato de seguro como de boa fé: porque se baseia nas declarações prestadas pelo segurado, referindo-se alguns autores a uma uberrimae bona fidei, máxima boa fé, considerando-o elemento peculiar do contrato de seguro», pretendendo sublinhar-se a «necessidade de absoluta lealdade do segurado para manter a equidade da relação contratual, uma vez que a seguradora é normalmente obrigada a confiar nas suas declarações, sem poder verificá-las aquando da subscrição».

Quanto a saber o que, no âmbito do contrato de seguro de acidentes de trabalho na modalidade a prémio variável,  sejam  “circunstâncias juridicamente relevantes” excludentes das consequências de omissões ou declarações inexactas nas folhas de férias por parte do empregador, importa ter presente que a jurisprudência fixada pelo AUJ, no valor que atribui às declarações do tomador do seguro e às consequências que da mesma derivam em caso de declarações inexactas, traduzidas na omissão do nome do sinistrado da folha de férias, tem subjacente a intenção e finalidade de prevenção das eventuais tentativas de fraude por parte de empregadores menos escrupulosos, como da respectiva fundamentação resulta.

Nesta perspectiva “circunstâncias juridicamente relevantes” serão todas aquelas em que a factualidade provada aponte inequivocamente e sem margem razoável de dúvida no sentido de que ao incumprir obrigação declarativa o empregador/tomador do seguro não agiu de modo fraudulento, visando induzir em erro a seguradora, mas devido a “lapso que possa ser relevado pela boa fé contratual”.

Por outro lado, importa igualmente ter presente que sobre o segurador impende também, por foça da cláusula 27ª da Apólice Uniforme, a obrigação de, com a adequada prontidão e diligência, proceder às averiguações necessárias ao reconhecimento do sinistro

Regressando ao caso dos autos, resulta do quadro factual provado que o trabalhador sinistrado foi admitido ao serviço da ré empregadora em 5.6.2017, tendo a sua admissão sido comunicada pela empregadora à Segurança Social no dia 3.6.2017, o acidente de trabalho ocorreu no dia 15.6.2017, tendo sido participado pela empregadora à seguradora, mencionando a participação que o sinistrado iniciara a prestação de trabalho a 5.6.2017, com as remunerações indicadas na alínea F) da matéria de facto provada.

Resulta, também, do quadro factual provado que o acidente ocorreu em 15.6.2017, dez dias após a admissão do sinistrado, e que em 7.7.2017 a ré empregadora enviou à Segurança Social, a declaração de remunerações pagas aos seus trabalhadores no mês de Junho de 2017, na qual constava o nome e a remuneração do autor sinistrado, e ainda, que em resposta à carta da seguradora, recebida em 3.10.2017, em que esta declinava a sua responsabilidade, a empregadora enviou-lhe cópia dos documentos da admissão do trabalhador, comunicação á segurança social e da referida declaração de remunerações enviada à segurança social em Julho de 2017 incluindo o nome do sinistrado.

Provou-se, igualmente, que a empregadora enviava mensalmente à mediadora, que as enviava depois à seguradora, as declarações mensais dos trabalhadores ao seu serviço que constam de fls. 165-167, o que aconteceu com as folhas de remunerações relativas ao mês de Junho de 2017.

Sendo esta a factualidade provada, tendo o acidente dos autos ocorrido apenas 10 dias após a admissão do trabalhador, admissão essa que foi devidamente comunicada pela empregadora à Segurança Social, e expressamente mencionada na participação do sinistro que efectuou à seguradora, estando o trabalhador incluído na folha de remunerações respeitante ao mês de Junho entregue à Segurança Social a 7.7.2017, a qual deveria ter sido enviada, e não foi, à seguradora até ao dia 15 seguinte, isto é, 15.7.2017, dela resulta que, por um lado, que a seguradora tinha conhecimento de que o sinistrado havia sido admitido no mês do acidente, Junho de 2017, não podendo, por conseguinte, constar de outra “folha de férias” que não a que deveria ser-lhe enviada até 15 de Junho de 2017, e, por outro, que a empregadora, tendo devidamente participado o acidente com a menção da data da admissão do trabalhador e o respectivo vencimento, não tinha qualquer interesse em omitir o nome do trabalhador nas folhas de remunerações enviadas à seguradora relativas ao mês de Junho de 2017, pois que daí não retiraria para si qualquer benefício ou vantagem, bem pelo contrário, como se observa no acórdão recorrido, tinha todo o interesse em enviar à seguradora a declaração de remunerações entregue em Julho, em data anterior ao prazo no qual devia fazer o envio desta à seguradora, à Segurança Social na qual constava o nome do trabalhador.

Nestas circunstâncias, como judiciosamente refere o Ministério Público no seu parecer, em sintonia com o acórdão recorrido, impunha-se que a ré seguradora esclarecesse junto da ré empregadora se esta não incorrera nalgum lapso.

Como no aludido parecer se afirma, “Na verdade, sendo compreensível que a ré seguradora diligencie, nas situações em que o trabalhador vítima de acidente, apenas é mencionado na folha de férias referente ao mês em que o acidente ocorre, no sentido de averiguar se aquele trabalhador já laborava anteriormente para determinada empregadora, afigura-se-nos, do mesmo modo, que in casu, a seguradora, atento o princípio da boa fé no cumprimento dos contratos, deveria ter diligenciado com vista a apurar  a razão pela qual o autor não foi mencionado na folha de férias apresentada pela empregadora, relativa ao mês  de Junho, tanto mais que recebeu a participação do acidente.

Como flui da facticidade assente, a ré seguradora limitou-se a deixar correr o tempo, e apenas em Outubro seguinte comunicou á empregadora, através de carta, não assumir a responsabilidade pela reparação dos danos sofridos pelo autor, uma vez que aquele não constava da folha de férias onde se encontrava indicado o pessoal seguro, no mês em que o evento infortunístico ocorreu.

Ora, o princípio da boa fé no cumprimento dos contratos, impunha que a ré seguradora esclarecesse a situação, nos termos acima expostos, averiguando junto da ré empregadora, qual era a situação do autor, enquanto trabalhador, perante esta, ou, pelo menos, aceitar, quando declinou a sua responsabilidade pela reparação do acidente – Outubro72017 – cópia da documentação remetida pela “Famaconcref à  Segurança Social em 7/07/2017, na qual era feita a menção do nome do trabalhador e bem assim da remuneração laboral feita àquele”

É, assim, e pelo exposto, de acompanhar o entendimento do acórdão recorrido ao concluir que a ré empregadora não teve qualquer intuito fraudulento e que, nas circunstâncias dos autos, o envio tardio à seguradora da cópia da declaração de remunerações remetida à Segurança Social não é equiparável, para efeitos de aplicação do AUJ, a omissão ou inexactidão da mesma, nem justifica que se considere o sinistrado excluído da cobertura do seguro.

Deste modo, concluindo-se pela cobertura do sinistrado pelo contrato de seguro celebrado entre a empregadora e a seguradora recorrente, e não assistindo a esta o direito a declinar a sua responsabilidade e contraprestação respectiva emergente do contrato, está prejudicado, por inútil, o conhecimento sobre a questão do abuso de direito integrada pela recorrente nas conclusões AA a NN.

Improcede, em consequência o recurso.

IV - Decisão

Termos em que se acorda em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 27 de Outubro de 2021

Leonor Cruz Rodrigues (Relatora)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Joaquim António Chambel Mourisco

__________________________________________________


[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2014, p. 7.
[2] Introdução ao Processo Civil, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2013, p. 133.
[3] Cf. acórdão STJ de 15.2.2017, Procº nº 1176/11.5VLSB.L1.S1.
[4] Cf. acórdão STJ de 12.7.2018, Procº nº 177/15.0T8CPV-A.P1.S1., e acórdãos do Tribunal Constitucional