Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
273/14.1T8VNG-A.P2.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA DOLOSA
CONDENAÇÃO
SOCIEDADE COMERCIAL
SÓCIO GERENTE
Data do Acordão: 04/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – INCIDENTES DE QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / INSOLVÊNCIA CULPOSA / INCIDENTE PLENO DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA / SENTENÇA DE QUALIFICAÇÃO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / SOCIEDADE / NOÇÃO.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª ed., p. 415 e 416.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 186.º, N.º 2, ALÍNEAS B) E D) E 189.º, N.º 2, ALÍNEA E).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 980.º.
Sumário :
I A condenação do gerente da insolvente a indemnizar os credores desta última no montante dos créditos não satisfeitos após o término da liquidação do ativo, até às forças do respetivo património, valor a apurar em liquidação de sentença, justifica-se no seguimento da declaração judicial, transitada, do carácter culposo da insolvência e da extensão dos seus efeitos à sua pessoa, atenta a prova de que, previamente, a administração da insolvente transmitiu-lhe a propriedade do principal bem produtor de receita, uma publicação, que continua a impulsionar e de que é director.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

Tendo sido oportunamente declarada a insolvência de AA, Ld.ª, foi aberto o incidente de qualificação da insolvência.

A Credora BB, S.A., o Administrador da Insolvência e o Ministério Público pronunciaram-se no sentido da insolvência dever ser qualificada como culposa, sendo pessoa afetada o gerente da Insolvente, o sócio CC.

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Citado, deduziu o gerente oposição, concluindo pela qualificação da insolvência como fortuita.

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Seguindo o incidente seus devidos termos, veio, a final, a ser proferida sentença (Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia), onde se decidiu (fls. 286 e seguintes):

“1. Qualificar a insolvência como culposa;

2. Declarar afetado pela qualificação da insolvência como culposa o requerido CC;

3. Decretar a inibição de CC para administrar patrimónios de terceiros pelo período de dois anos;

4. Declarar CC inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de dois anos;

5. Determinar a perda de quaisquer créditos do requerido CC sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-o restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;

6. Condenar o requerido a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos após o término da liquidação do ativo da insolvente, até às forças do respetivo património, valor a apurar em liquidação de sentença.”

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Inconformado com o assim decidido, apelou o afetado CC.

Fê-lo com êxito, pois que a Relação do Porto revogou a sentença e declarou a insolvência fortuita.

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Em sede de recurso de revista, foi o acórdão da Relação revogado, e repristinada a sentença da 1ª instância quanto à qualificação da insolvência.

Mais se determinou neste Supremo a baixa do processo à Relação, a fim de ali ser apreciada a questão, também colocada na apelação mas cujo conhecimento ficara prejudicado, da obrigação de indemnização tal como fixada na sentença da 1ª instância.

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Foi depois produzido novo acórdão na Relação que julgou improcedente a apelação na parte em que o Apelante impugnava a condenação a indemnizar os credores da Insolvente no montante dos créditos não satisfeitos após o término da liquidação do ativo da Insolvente, até às forças do respetivo património, valor a apurar em liquidação de sentença.

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Insatisfeito com o assim decidido, interpõe o afetado e apelante CC novo recurso de revista.

Introduziu o recurso como revista ordinária, e, subsidiariamente, como revista excecional.

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O Ministério Público e a Credora BB, S.A. responderam ao recurso, pronunciando-se pela inadmissibilidade do mesmo como revista ordinária, argumentando que estava constituída uma dupla conformidade decisória das instâncias impeditiva do recurso de revista (art. 671.º, n.º 3 do CPCivil).

                                                           +

Da respetiva alegação extrai o Recorrente as seguintes conclusões:

a. O presente recurso versa apenas sobre um dos segmentos decisórios constantes da sentença, que veio a ser confirmado por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto: “6. Condenar o requerido a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos após o término da liquidação do ativo da insolvente, até às forças do respetivo património, valor a apurar em liquidação de sentença.”

b. Foi julgado que o Recorrente praticou um facto ilícito, sendo relevante jurídica e socialmente porquanto: o dano resultante da prática desse acto limita o valor da indemnização, nos termos do disposto no art.º 483 n.º 1 do Código Civil que trata-se de princípio fundamental de direito, que impede que alguém possa enriquecer à custa de ter sofrido um dano pela prática de um acto ilícito, dai o disposto nos artigos 562º e 563º do Código Civil, sendo claro, à luz destes preceitos que existe uma limitação da responsabilidade de quem praticou o acto ilícito ao montante do dano praticado.

c. A decisão sub judice altera significativamente este paradigma, porque aceita que, tendo o Recorrente retirado um título de uma empresa, e sendo isso, na sua perspetiva, um acto ilícito, este deve indemnizar os credores em montante superior ao valor do referido titulo, o que altera o paradigma da obrigação de indemnização prevista no Direito Português.

d. Por outro lado, o efeito inibidor do cidadão para que não pratique um facto ilícito é a consequência do seu comportamento, ou seja, é aquilo que porque terá que pagar, pelo que a aplicação do direito no presente caso concreto influi na perceção do que são as consequências negativas dos comportamentos dos cidadãos, impondo-se uma clarificação do que é a obrigação de indemnização e da sua extensão e limites, impondo-se, assim, que deve o presente recurso, subsidiariamente, ser admitido como de Revista Excecional, nos termos do disposto no art.º 672.º n.º 1 a) e b) do CPC.

e. O presente recurso é interposto do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, nos autos em epígrafe, que, julgando a apelação improcedente confirmou a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância que condenou o Recorrente, sendo que o presente recurso, versa, somente, quanto ao segmento decisório que decidiu: “6. Condenar o requerido a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos após o término da liquidação do ativo da insolvente, até às forças do respetivo património, valor a apurar em liquidação de sentença.”

f. Verifica-se dos autos que o bem cuja alegada subtração ao património da insolvente ora é designado por marca ora é designado por título, e marca não é com certeza, pois esta como se sabe é um sinal que identifica e diferencia produtos ou serviços, tratando-se, na verdade, apenas de um título de uma publicação periódica que se traduz num licenciamento junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, o que é relevante, pois mesmo que se tivesse mantido na esfera da insolvente teria, com a declaração da insolvência, a sua inscrição sido cancelada, porquanto não poderia subsistir por falta de publicação, como o impõe o n.º 2 do art.º 23.º do Decreto Regulamentar de 8/99, de 09/06, com as alterações introduzidas pelo Decreto Regulamentar n.º 2/2009.

g. A publicação, como ficou demonstrado, dependia essencialmente da actividade jornalística do sócio gerente CC - seu real impulsionador, como consta do elenco dos factos provados (vd. facto 16), o que reforça a inexistência de valor económico objectivo de tal título e a conclusão de que a saída deste título da esfera da insolvente não poderia ter prejudicado, como não prejudicou, os credores.

h. Uma licença de publicação não é um activo, não sendo, por isso, passível de apreensão para a massa insolvente, e nunca poderia servir como garantia patrimonial dos direitos de créditos dos credores.

i. O Tribunal a quo aplicou ao Recorrente todas as sanções previstas no disposto no art. 189.º n.º 2 alíneas b), c), d) e e) do CIRE, sendo as sanções aplicadas desproporcionais ao caso concreto, tendo presente que, conforme apurado, e acima referido, mesmo que o título da revista fosse considerado um activo, é manifesto que o mesmo é de valor diminuto, o que é expressamente admitido na sentença da primeira instância.

j. O dano causado pelo Recorrente, a existir, limita-se ao valor comercial que o título teria na esfera da Devedora Insolvente, e, só nessa medida, poderia satisfazer os direitos dos credores.

k. O presente processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da Massa Insolvente, desde logo não se verificando qualquer liquidação, tendo, o Tribunal a quo, condenado o Recorrente em indemnização superior ao dano.

l. O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 483.º n.º 2, 562.º e 563.º do Código Civil, uma vez que não limita o montante da indemnização ao dano causado, que, no caso, só pode ser o valor do título e não o montante dos créditos não satisfeitos, como refere o Acórdão recorrido (pág. 16).

m. O Tribunal a quo, ilegalmente, está a condenar o Recorrente em indeminização muitíssimo superior ao dano.

n. O valor do título de publicação seria “diminuto” e, até, o Recorrente se dispôs a entregar à massa insolvente tal título, e a reconstituição natural é o primeiro critério da indemnização, só, na impossibilidade desta, sendo possível a indemnização em dinheiro, nos termos do art. 566.º, n.º 1 do Código Civil.

o. Violou, assim, o Acórdão recorrido o disposto nos art.s 483.º n.º 1, 562.º, 563.º e 566.º, n.º 1 do Código Civil, e ainda o art. 8.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que no mesmo se integra a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e esta no seu art. 6.º garante um processo equitativo.

p. É, assim, inconstitucional a interpretação que o Tribunal a quo faz da do disposto no art.º 189.º, n.º 2 e) do CIRE, no sentido em que pode ser interpretado que a indeminização da responsabilidade pelo afectado pela qualificação de insolvência pode ser superior ao dano por si causado.

q. O único valor determinado pela perícia realizada posterior ao primeiro Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, foi o valor contabilístico mínimo que o título DD teve para a insolvente, ou seja de 2.616,77, tal valor, sem que, como se vê fosse por qualquer meio ou forma que fosse levado ao elenco factual da sentença da primeira instância, foi, porém, aparentemente considerado pela Mma Juiz a quo como equivalente a seu valor comercial, conforme antepenúltimo e penúltimo parágrafo da fundamentação de facto, donde, das duas uma, ou efectivamente e ao contrário da aparência assim não é, e haverá ainda que apurar o valor comercial do título.

r. Se assim é, sabemos já o valor do património da insolvente, que só pode ser os dos referidos 2.616.77 € somados ao de 922,05 €, que é o valor contabilístico do equipamento administrativo não apreendido.

S. Na estrita cena de raciocínio da Mma Juiz a quo a condenação do ponto 6 da decisão apenas poderia ser: condenar o requerido a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos após o término da liquidação do activo da insolvente, até ao limite de 3.538,82 €.

t. Estaríamos necessariamente em face da presunção da insuficiência da Massa para satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da Massa Insolvente, decorrente do art.º 39.º, n.ºs 1 e 9 do CIRE, sendo que, não fará qualquer sentido que se utilize essa presunção apenas para esse especifico fim e não para quaisquer outros do CIRE.

u. Ainda que tal titulo tivesse sido apreendido e pelo valor agora supostamente determinado, por aplicação agora directa daquele preceito legal, nunca teria havido liquidação e, logo nunca teria havido pagamento a qualquer credor, o que o mesmo, necessariamente, é dizer que nunca poderiam estes ter qualquer prejuízo pelo facto de um suposto negócio que, afinal, já há muito se demonstrou não ter existido.

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A Credora BB, S.A. contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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Da questão prévia da inadmissibilidade do recurso

Tal como apontam o Ministério Público e a Credora BB, S.A., a sentença da 1ª instância foi confirmada pelo acórdão ora recorrido.

Contudo, há que ver que o tribunal recorrido pronunciou-se em parte sobre uma questão que não foi (nem podia ter sido, visto que nasceu precisamente com a própria sentença) abordada na sentença da 1ª instância, e daqui que, segundo nos parece, não poderá falar-se numa verdadeira dupla conformidade decisória das instâncias. Na verdade, o acórdão recorrido foi chamado a pronunciar-se (e pronunciou-se) ex novo sobre a arguida inconstitucionalidade do art. 189.º, n.º 2, alínea e) do CIRE “enquanto interpretado no sentido de que a responsabilidade do afetado pode ser superior ao dano por si causado”, questão esta que não foi (nem, repete-se, podia ter sido) objeto de decisão por parte da 1ª instância.

Afigura-se assim que é admissível a revista ordinária interposta por via principal, pelo que haverá que conhecer do recurso.

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

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É questão a conhecer:

- Obrigação de indemnização do recorrente.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes (com as alterações feitas operar pelo tribunal recorrido):

1. AA, Ld.ª foi constituída em Março de 2010 para o exercício da atividade económica de edição de revistas, livros, publicações periódicas e design de comunicação, possuindo capital social no valor de € 5.000,00.

2. Em Setembro de 2014 a AA, Ld.ª apresentou-se à insolvência.

3. Por sentença proferida em 25 de Setembro de 2014, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da AA, Ld.ª.

4. Nos três anos antecedentes à apresentação da AA, Ld.ª à insolvência o único responsável pela mesma foi CC, que era sócio e também gerente da sociedade.

5. À data de 18.9.2014 a AA, Ld.ª tinha um passivo de, pelo menos, € 69.594,65.

6. No decurso da insolvência não foram localizados, nem apreendidos quaisquer bens na posse da devedora.

7. A principal fonte de receitas da insolvente era proveniente da venda de exemplares em banca ou por assinatura da revista automóvel designada por “DD”, bem como de publicidade nessa revista.

8. Previamente à apresentação aos credores, a respetiva administração, representada pelo seu sócio-gerente, transmitiu a propriedade do título da publicação “DD – ...” para o requerido CC.

9. O requerido tem morada na Avenida ..., n.º …, …, que é também a morada de EE.

10. O referido EE é filho do requerido.

11. E é sócio da FF, Ld.ª

12. A FF, Ld.ª, tem por objecto social a edição de revistas e outras publicações periódicas, edição de livros, design de comunicação e realização de eventos.

13. Pelo menos desde a edição n.º 38 referente ao mês de Dezembro de 2013 consta como proprietária da “DD” a FF, Ld.ª.

14. A “DD” possui como fontes de receita o preço de venda ao público de cada exemplar - € 4,95 – e a publicidade inscrita no seu interior. 

15. A tiragem típica dessa revista é de 12.500 exemplares.

16. O requerido continua a ser o real impulsionador da revista.

17. No editorial da revista “DD” aparece como diretor de publicações e redator do editorial o requerido.

18. O título “DD” nunca integrou o imobilizado da insolvente.

19. No registo da publicação periódica “DD - …” consta com a inscrição ... como seu proprietário, desde a sua inscrição a 21.4.2010 e até 26.11.2013 a aqui insolvente.

20. Em 27.11.2013 passou a constar desse registo como proprietário o requerido.

De direito

Como resulta expresso das conclusões a. e e., insurge-se o Recorrente contra a condenação que lhe foi imposta de indemnizar os credores da Insolvente no montante dos créditos não satisfeitos após o término da liquidação do ativo da Insolvente, até às forças do respetivo património, valor a apurar em liquidação de sentença.

Sustenta que havia de ter sido condenado a ressarcir os credores “pelo montante pecuniário atribuído ao título”.

Mas, a nosso ver, não lhe assiste qualquer razão.

Como já ficou dito no anterior acórdão deste Supremo proferido nos presentes autos (fls. 416 a 422), e repete-se, “[d]os factos provados decorre que a Insolvente fazia editar e comercializar uma publicação (ou revista, ou título, é uma questão de palavras) periódica, denominada “DD, ...”. Tal atividade gerava receita (emergente da venda da revista e da publicidade inscrita no seu interior), aliás a principal fonte de receita da Insolvente. A publicação era vendida ao preço de €4,95 por exemplar e a tiragem típica era de 12.500 exemplares. A publicação era propriedade da Insolvente (pese embora essa propriedade não fosse feita constar do respetivo ativo imobilizado) e como tal estava registada junto da competente entidade reguladora. Tinha assim a Insolvente direito ao uso ou exploração do dito título, tudo conforme decorre do Decreto Regulamentar n.º 8/99, de 9 de Junho.

Dos factos provados mais se retira que a administração da Insolvente, representada pelo sócio e gerente CC, transmitiu a propriedade desse título “DD - ...” para o Requerido CC, transmissão essa que foi registada em 27 de Novembro de 2013. Decorre ainda dos factos provados que FF, Ld.ª, sociedade cujo sócio é filho do Requerido, passou a constar no referido título como proprietária do mesmo, mas sendo que o Requerido continua a ser o impulsionador do título.

O título em causa pertencia à Insolvente, que gozava assim do direito ao respetivo uso ou exploração no âmbito da sua atividade económica, que era, e nomeadamente, de edição de revistas. Atividade essa que a Insolvente exercia efetivamente e que se direcionava necessariamente à obtenção de vantagens económicas (rendimentos), na medida em que é uma sociedade (comercial), e as sociedades são constituídas precisamente para gerar vantagens económicas (v. art. 980.º do CCivil). (…)

E está provado que a Insolvente fazia produzir (aliás a expensas da ora Recorrente) e vendia as edições do título em questão, o que, somado à publicidade nele inserta, constituía (como também está provado) uma fonte de receita (aliás, a principal) para a Insolvente.

Temos assim que o título em causa era um bem patrimonial que integrava o acervo que a Insolvente punha ao serviço dos seus fins sócio-económicos, sendo absolutamente irrelevante para o que aqui se discute o facto de tal bem não constar do respetivo ativo imobilizado. (…)

[N]ão há que reconduzir a discussão aqui em causa ao valor intrínseco do título, sendo por isso desinteressante conhecer esse valor. (…) [O] que importa é que o título fazia parte do acervo patrimonial e da organização da Insolvente, e que era ao abrigo dele ou a partir dele que a Insolvente obtinha depois rendimentos, entretanto suprimidos com a cedência do título e sem contrapartida (cedência gratuita). A questão deve centrar-se, pois, nas consequências que a saída do título era apta a provocar na esfera da Insolvente, e essas consequências foram a supressão de um meio potencialmente suscetível de permitir o giro da sociedade e de gerar vantagens económicas. E essas vantagens (conquanto, naturalmente, brutas) são razoavelmente conhecidas, pois que correspondem, dentro do que está provado, ao produto resultante do preço da venda de cada exemplar (€4,95) pela respetiva tiragem típica (12.500 exemplares). O que nos leva a valores que estão longe de poderem ser havidos como insignificantes.

Ora, o título foi cedido gratuitamente ao Requerido, passando depois a constar como sendo propriedade de FF, Ldª, uma sociedade cujo sócio e gerente é o filho do Requerido, mas sendo que o Requerido continua a ser o verdadeiro impulsionador da publicação. Consequentemente, o rendimento potencial decorrente da exploração do título foi suprimido na esfera da Insolvente, passando, ao invés, a estar dirigido para a esfera do Requerido e da referida sociedade do filho.

E tudo isto (…) não se resolve em ocorrências irrelevantes ou inconsequentes, antes implica prejuízo potencial para os credores da Insolvente. Aliás, o Requerido como que confessa esse prejuízo quando, na sua oposição (artigos 17 e 25), refere que a cedência do título foi motivada pela existência da dívida à ora Recorrente, a credora Lidergraf. E não pela irrelevância económica do título.

Ou seja, e concluindo: retirou-se o título, sem contrapartida, da esfera da Insolvente, cerceando-se-lhe assim qualquer possibilidade de rendimento à sombra dele, para ir realizar os seus fins na esfera do Requerido e da sociedade do filho. Ao invés de procurar manter o título no património da Insolvente e de o fazer de algum modo prosperar em ordem a gerar rendimentos para pagar as dívidas já existentes da sociedade, o Requerido optou por afastar o título da esfera da sociedade, desassociando-o das dívidas desta, e indo integrá-lo na sua (dele Requerido) esfera e na do filho. Lugar onde, como se infere da factualidade provada, o título continuou a funcionar normalmente como meio de realizar resultados económicos, mas que, sintomaticamente, não consta terem sido postos depois ao serviço do pagamento da dívida que justificou a transferência.

Deste modo (…) estamos perante uma situação subsumível às alíneas b) (celebração de negócio ruinoso em proveito do representante, por isso que sem contrapartida e necessariamente redutor de rendimentos) e d) (disposição de um bem da Insolvente em proveito pessoal do representante), todas do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.”

Deste excerto, que vale inteiramente para o que se está agora a discutir, resulta a improcedência total dos argumentos do Recorrente.

Decorre dos factos apontados que, contrariamente ao que pretende o Recorrente, o prejuízo causado aos credores não se reconduz ao valor contabilístico de €2.616,77 (a somar ao de €922,05, suposto valor contabilístico do equipamento administrativo não apreendido) a que alude a perícia que foi feita. Repare-se, inclusivamente, que, como reconhece o próprio Recorrente, tal valor (o decorrente da perícia) nem sequer consta assumido como facto provado, pelo que, não competindo a este Supremo apreciar provas submetidas ao princípio da livre apreciação, nenhuma relevância se lhe poderia atribuir.

Ao invés, o dano causado aos credores tem como correlato a supressão do título da esfera da Insolvente, o que lhes cerceou a possibilidade de se fazem pagar através da submissão desse bem e dos seus rendimentos aos fins da insolvência. Ou seja, o Recorrente deu azo ao surgimento do prejuízo aos credores que foi objeto da condenação contra que se insurge.

Donde, a afirmação do Recorrente de que foi condenado em valor superior ao dano por si causado não tem, quanto a nós, sustentação. E se, como indica o Recorrente, nada se logrou apreender para a massa insolvente, isso mais não representa que uma das bases da justeza jurídica da sua responsabilização indemnizatória tal como mantida no acórdão recorrido. Pois que se não tivesse passado o título para a sua esfera e depois para a esfera da sociedade do filho, onde continuou a funcionar como meio de realizar resultados económicos, teriam os credores a possibilidade de ver satisfeitos os seus créditos à custa da adjudicação ou da alienação desse bem ou à custa dos rendimentos da sua exploração. A nosso ver, da matéria de facto provada (factos dos pontos 15 e 14) e do que se conhece do montante (apesar de tudo não muito elevado) dos créditos, não fora a distração do bem da esfera da Insolvente, os créditos obteriam satisfação, pelo que se apresenta juridicamente adequada a condenação em indemnização nos termos em que foi proferida.

O que vem de ser dito significa que improcede a afirmação do Recorrente de que o acórdão recorrido procedeu a uma interpretação do disposto no art. 189.º, n.º 2, alínea e) do CIRE que vai no sentido de que a responsabilidade do Recorrente pode ser superior ao dano por si causado. A interpretação que foi dada a tal normativo é precisamente a inversa, qual seja, que a norma implica apenas a obrigação de reparação do prejuízo que o Recorrente causou efetivamente aos credores, só que esse prejuízo tem uma latitude superior (correspondente ao montante não satisfeito dos créditos) àquela que o Recorrente gostaria de ver assumida.

E a afirmação do Recorrente no sentido de que foi violado “o art. 8.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que no mesmo se integra a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e esta no seu art. 6.º garante um processo equitativo”, é pouco menos que incompreensível. Pois que se do que se queixa no presente recurso é apenas de uma pretensa desadequação do decidido ao que dispõe a lei substantiva (CIRE e Código Civil), não se entende a alusão à figura do processo equitativo. É que tal figura (art. 20.º, n.º 4 da Constituição e art. 6.º da CEDH) nada tem a ver com supostos erros de decisão, mas sim com a conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efetiva, nomeadamente em termos de direito de defesa e de contraditório, de direito a prazos razoáveis de ação ou de recurso, de direito à fundamentação das decisões, de direito à decisão em tempo razoável, de direito ao conhecimento dos dados processuais, de direito à prova, de direito a um processo orientado para a justiça material, e assim por diante (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª ed., pp. 415 e 416). Nada o Recorrente aduz que caia neste âmbito.

Improcedem assim as conclusões do recurso, não tendo o acórdão recorrido violado, mas sim respeitado, as normas legais e constitucionais que o Recorrente cita.

                                                           +

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

O Recorrente é condenado nas custas da presente revista.

                                                           ++


 

Lisboa, 30 de abril de 2019

José Rainho

Graça Amaral

Henrique Araújo