Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12213/15.6T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: DANOS FUTUROS
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PERDA DE CHANCE
INCAPACIDADE FUNCIONAL
INCAPACIDADE GERAL DE GANHO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
INCAPACIDADE PARA O EXERCÍCIO DE OUTRA PROFISSÃO
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA PARA O TRABALHO HABITUAL
REFORMA
PRINCÍPIO DA DIFERENÇA
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
JUROS DE MORA
PRINCÍPIO DA ATUALIDADE
CONTAGEM DOS JUROS
Apenso:
Data do Acordão: 02/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Em sede de ressarcimento do dano patrimonial futuro, e tendo o dano repercussão sobre a necessidade de aquisição ou produção de rendimentos, por parte do lesado, deve ser ressarcido atribuindo um capital que se venha a esgotar no final da vida do lesado - “vida do lesado”, e não apenas a respectiva “vida activa”, já que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e actividades que se desenvolvem e que envolverão um esforço necessariamente superior.

II – A indemnização pela perda da capacidade de trabalho atingirá um montante tendencialmente equivalente à respectiva perda total e efectiva, tendo por norte “a medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” – artº 566º nº 2 CCiv, sem prejuízo de um apelo fundamental à equidade – artº 566º nº 3 CCiv.

III – “O juízo prudencial e casuístico em matéria de dano não patrimonial deve ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade”.

IV – A condenação nos juros de mora sobre o montante indemnizatório, na responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, de acordo com a redacção do art.º 805.º n.º 3 CCiv, tem a ver apenas com a depreciação do valor do pedido, face à data da sentença; não sendo esse o caso de ponderação do dano no processo, os juros devem contar-se a partir da data da sentença ou a partir da data do acórdão em 2.ª instância, consoante os casos, por aplicação da doutrina do AUJ n.º 4/2002, de 9/5/2002.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Referências

AA intentou a presente acção com processo de declarativo e forma comum contra Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A., formulando o pedido de condenação da Ré a pagar-lhe a quantia total de € 250 000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde 14/5/2012.

Invoca, para o efeito, o acidente de viação resultante de despiste e embate, em separador, do veículo automóvel, cujo proprietário havia transferido para a Ré a respectiva responsabilidade pelos danos derivados da circulação do veículo, e veículo no qual o Autor seguia como passageiro transportado.

Mais invoca os danos patrimoniais e não patrimoniais para ele Autor decorrentes do evento em causa e que contabilizou nos montantes peticionados.

A Ré contestou fundamentalmente impugnando a forma como o acidente vem descrito pelo Autor e a razoabilidade ou adequação dos montantes peticionados.


As Decisões Judiciais

Na sentença proferida na Comarca, foi julgado o pedido formulado na acção parcialmente procedente e condenada a Ré a pagar ao Autor a quantia global de € 83.000,00, fundada nas seguintes parcelas - € 40 000 (danos não patrimoniais) e € 43 000 (dano patrimonial decorrente da perda de capacidade aquisitiva), quantias acrescidas de juros, à taxa legal, desde 6/5/2015.

A decisão foi alterada na Relação para € 55 000 (dano patrimonial futuro) e € 60 000 (danos não patrimoniais), no total de € 115 000, mantendo-se o mais decidido.

Conclusões da Revista do Autor:

1ª.) – Na atribuição da indemnização a título de danos não patrimoniais o Tribunal a quo não valorou o facto do recorrente ter sido submetido a múltiplas cirurgias – as quais se acham descriminadas no relatório do Instituto Nacional de Medicina Legal – sendo umas de cariz curativo e outras corretivas; ao facto das mesmas envolverem riscos (e risco de vida) e ainda por as mesmas serem incertas quanto ao fracasso ou sucesso;

2ª.) – não foi ainda devidamente valorado o elemento que foi discutido no relatório do Instituto Nacional de Medicina Legal que conduz à conclusão de que o recorrente vai – com enorme previsão – sofrer um agravamento do seu estado de saúde por conta da natureza intra-articular da fratura do punho esquerdo, sendo o dano futuro (patrimonial e não patrimonial) previsível; 

3ª.) – não foi considerado o facto do recorrido se ter submetido a transfusões sanguíneas que nos reconduz para um perigo para a sua vida, o que é facto notório e resulta da experiência comum, não obstante o Tribunal a quo ter dado como facto não provado o alegado quanto ao perigo para a vida;

4ª.) – entende o recorrente terem as consequências do sinistro provocado um perigo e um perigo para a sua vida;

5ª.) – por outra banda, importa atender ainda a que o recorrente se acha em tratamento do foro dentário e maxilo-facial que importa em € 16.064,00 (dezasseis mil e sessenta e quatro euros) (doc. junto ao processo, em sede de recurso, por requerimento de 7 de janeiro, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos);

6ª.) – continua queixoso (doc. 1 a 3 que se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais);

6ª.) – por último, o recorrido em relatório de psicologia de 02/09/2016, revelou “a existência de humor e sintomatologia ansiosa em situações diretamente relacionadas com o acidente em 2012 – condução, alterações físicas similares às sofridas aquando do acidente e perfectivação de incapacidades físicas futuras.”.

7ª.) - Razão pela qual, o recorrente pugna de novo por lhe ser atribuída a esse título a indemnização de € 70.000,00 (setenta mil euros) pois que os critérios da condenação da recorrida foram “(..) lesões sofridas pelo A., às cirurgias a que foi submetido, à data da consolidação médico-legal das lesões, ao quantum doloris, ao dano estético, à repercussão nas atividades desportivas e de lazer e à idade do A. (…).” (sublinhados nossos), o que como se constata, não abarca e não se estende a toda a matéria que criticamos não ter sido apreciada.

8ª.) – Já quanto ao valor a atribuir a título de danos não patrimoniais o recorrente julga ter de se atender ao facto do recorrido – embora não ativo profissionalmente à data do sinistro dos autos – estava, à data, em formação universitária, no curso de gestão hoteleira, numa universidade internacional espanhola;

9ª.) – sendo que o parâmetro de ponderação para este efeito deverá ser um vencimento mensal médio de alguém que aufira rendimento superior ao salário mínimo nacional;

10ª.) – mesmo em sede de 1º emprego ou de estágio;

11ª.) – por outra banda, não foi considerada a eventual progressão de carreira e consequentemente a progressão salarial do recorrido, o que será de espectar atenta a sua formação académica.

12ª.) – Por conseguinte, o recorrido considera que o montante a título de danos patrimoniais com valoração acrescida destes dois fatores ter-se-ia de elevar para € 80.000,00 (oitenta mil euros).

13ª.) Termos em que se deverá dar provimento ao recurso aqui interposto e condenar a recorrida no pagamento do montante de € 70.000,00 (setenta mil euros) a título de danos não patrimoniais e no montante de € 80.000,00 (oitenta mil euros) a título de danos patrimoniais, de onde resulta um valor indemnizatório global a atribuir ao recorrente no montante de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), acrescido dos juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.


Conclusões da Revista da Ré:

1 - O presente Recurso vem do Acórdão proferido nos Autos em referência pela Conferência do Tribunal da Relação ..., que decidiu julgar, parcialmente procedente, a Apelação e consequentemente, condenou a R. a pagar ao A., a título de indemnização, a quantia total de cento e quinze mil euros (115.000,00 €), correspondendo cinquenta e cinco mil euros (55.000,00 €) aos danos patrimoniais e sessenta mil euros aos danos não patrimoniais (60.000,00 €), a que acrescem os legais juros de mora devidos, desde a citação até integral pagamento;

2 - O presente Recurso é interposto nos termos do art. 671º e 674º do Cód. Processo Civil;

3 - No caso de entendimento diferente de Vossa Excelência, que determinará oficiosamente os termos processuais adequados, em alternativa e nos termos dos arts. 641º nº 1 e 193º nº 3 do Cód. Processo Civil, o Recurso será interposto nos termos do art. 672º nº 1 als. a) e b) e nº 2 als. a) e b) do Cód. Processo Civil;

4 - A Avaliação do Dano Corporal é um tema frequente, que justifica a apreciação da questão com vista a melhor apreciação do Direito e é esta a razão que está subjacente à aplicação do art. 672º nº 2 al. a) do C.P.C.

5 - A prolação de Decisões divergentes, distantes e nada concordantes relativamente aos valores arbitrados neste âmbito, são razões que assumem particular relevância social porque podem causar alarme social, estão previstas e foram incluídas na norma do art. 672º nº 2 al. b) do C.P.C;

6 - O Acórdão em crise enferma da nulidade prevista no art. 615º nº 1 al. d) do C.P.C., não devendo / podendo produzir nenhum efeito do ponto de vista jurídico e processual;

7 - Houve erro de interpretação e de aplicação dos arts. 562º, 563º, 564º e 566º nº 3 do Cód. Civil;

8 - Houve erro de interpretação e de aplicação dos arts. 483º, 496º e 494º do Cód. Civil;

9 - Houve erro de interpretação e de aplicação do art. 805º nº 3 do Cód. Civil e do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2002 de 27/06/2002;

10 - A Decisão recorrida violou o art. 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa;

11 - A não se verificarem as deficiências e as invocadas nulidades, a pretensão do Autor / Recorrido devia ter sido declarada improcedente e a Ré / Recorrente absolvida dos pedidos com melhor aferição que a este caso coubesse;

12 - Os Princípios da Livre Convicção e da Avaliação segundo a Equidade por parte do Julgador, têm que ser aplicados em conformidade racional e estão sempre delimitados pelo Princípio da Proporcionalidade. Por isso mesmo, a interpretação não pode ser imprópria e a qualificação dos factos tem que ser feita com parcimónia;

13 - O teor da Decisão recorrida, simples e sem utilização de adequada e expectável fundamentação dos valores arbitrados, não cumpre o estipulado na nossa Constituição nem na Lei. Como tal, viola o art. 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, e é incompatível com os Princípios da Confiança, da Segurança Jurídica, das Garantias de Defesa e da Tutela Jurisdicional efectiva, consagrados no já referido art. 205º da Constituição e também no art. 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a aplicação e a interpretação normativa dos factos feita pelo Tribuna a quo na Decisão em análise, pela qual, sem a devida fundamentação de Direito, condenou a ora Recorrente a pagar valores inusitados ao Recorrido;

14 - Constata-se que há enorme dificuldade de interpretação das sequelas sofridas pelo sinistrado, que é potenciada pela acrescida subjetividade que envolve a avaliação das lesões que afetaram o sinistrado, vítima de sinistro automóvel. Há também uma crescente diferença dos parâmetros que urge harmonizar, relativamente à forma e ao quantum indemnizatório na Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil: a maior ou menor valorização do Défice Funcional Permanente;

15 - Este problema é tão relevante, que tem levado a Decisões da 1ª Instância e a Acórdãos das Relações tão díspares, tão distantes e tão discricionários que, ao contrário do que sustentou a Relação de Lisboa, fica a ideia que a determinação das prestações tem ficado, efetivamente, na dependência de um liberum arbitrium indifferantiae;

16 - Para estabelecer a indemnização a título de danos patrimoniais futuros, o Tribunal a quo recorre, conforme seria de esperar, aos critérios de equidade. Mas, não respeitou o sentido e o limite razoável imposto pelos arts. 562º, 563º, 564º e 566º nº 3 do CC, que foram violados;

17 - Ao invés, o Tribunal a quo devia ter levado em conta os seguintes aspetos:

- Na data do sinistro o Recorrido era estudante e não auferia rendimentos;

- Não exercia nenhuma acitividade profissional;

- Terminou com sucesso o curso de .... Teve aproveitamento e concluiu a sua formação académica;

- Apesar da complexidade e do grau de dificuldade que é exigido aos alunos, concluiu o seu bacharelato com êxito e até há informação nos Autos que o fez com grande alarido;

- Sem prejuízo dos transtornos causados pelo acidente, está confirmado que o sinistro não afetou a sua capacidade estudantil e atingiu os seus objetivos académicos;

- Tem tido projectos no mundo empresarial e já foi titular de Empresa;

- O Recorrido tem hoje 29 anos de idade e o défice funcional permanente não implicou nenhuma perda de rendimentos - nem sequer fez qualquer alegação nesse sentido nos Autos;

- Na data do Julgamento as sequelas estavam consolidadas. Esta consolidação ocorreu em 24/10/2013. Ou seja, 17 meses após o acidente e 18 meses antes da entrada da Acção. Se demorou tanto tempo, foi também por culpa sua;

- Pode e sempre pôde trabalhar;

- Pode e sempre pôde praticar desporto;

- Eventual referência a “salário”, terá que ser remetida para a remuneração mínima mensal garantida, que em 2012 (data do sinistro) era de 485,00 €/mês (DL 143/2010 de 31/12/2010);

18 - O montante de 55.000,00 € arbitrado para indemnização do dano patrimonial futuro é inaceitável, é um valor aleatório, é incerto e este tipo de raciocínio conduz ao locupletamento à custa dos responsáveis;

19 - O valor fixado pelo Tribunal é excessivo, não procedeu ao desconto de 1/3 de modo a evitar vantagens patrimoniais ilícitas do sinistrado e não respeitou a equidade. Por isso se defendeu, que houve erro de interpretação e de aplicação dos arts. 483º, 562º, 563º, 564º e 566º do Cód. Civil;

20 - Deve ser revogada a quantia arbitrada a título de danos patrimoniais pelos danos futuros porque os pressupostos usados na Decisão em crise estão incorretos, devendo ser substituída por outra fixando o montante de 43.000,00 €, após introdução de necessário desconto em função do imediato pagamento, que se apresenta conforme a equidade e justo;

21 - O montante de 60.000,00 €, como compensação pelos danos não patrimoniais, não cabe na normalidade da equidade e do bom senso que se exige a cada caso, que devem ser praticados por todos os operadores judiciários e não está de acordo com a legislação nem com jurisprudência aplicável;

22 - Fazendo a comparação entre o valor atribuído a título de danos não patrimoniais ao Recorrido (vítima de acidente de viação), com o valor habitualmente atribuído pelos Tribunais aos herdeiros de uma vítima mortal de acidente de viação, resulta claro que aquele valor toca o absurdo e não tem cabimento;

23 - Havendo erro de interpretação e de aplicação dos arts. 496º nºs 1 e 4 e 494º do Cód. Civil, deve ser revogada a indemnização pelo dano não patrimonial porque os pressupostos usados no Acórdão a quo estão incorretos e substituída por outra fixando o montante de 40.000,00 €, que se apresenta mais adequado, justo e respeita a equidade e os danos que devem ser tutelados pelo Direito;

24 - Para determinar a data a partir da qual serão calculados juros, seja pelos danos patrimoniais, seja pelos danos não patrimoniais, os Tribunais têm que aplicar o disposto no art. 805º nº 3 do C. Civil e a Jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 4/2002 de 27/06/2002;

25 - O Recorrido pediu a condenação da Recorrente a pagar-lhe um valor ilíquido. Por isso mesmo, ao analisar, apreciar e decidir o quantum indemnizatório das quantias devidas ao sinistrado, o Tribunal a quo fez uma operação de actualização dos valores peticionados;

26 - Todavia, violou o art. 805º nº 3 e o identificado Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2002, porque os juros moratórios legais só podem ser contados a partir da Decisão actualizadora;

27 - Deve ser revogada a Decisão recorrida, no segmento em que determinou o pagamento de legais juros de mora desde a citação e substituída por outra fixando que eventuais juros têm que ser contados a partir da data da prolação do Acórdão que vier a ser proferido por este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, por se tratar de valores que serão actualizados nesta data; ou subsidiariamente,

Declare que eventuais juros legais têm que ser contados a partir da data em que foi proferida a Decisão da 1ª Instância porque todos os valores foram actualizados nessa ocasião: ou seja, a partir de 08/11/2018;

28 - O uso da equidade, justificado quase cegamente pela aplicação do Princípio da livre Convicção, faz com que alguns lesados sejam favorecidos em relação a outros, perante o uso das mesmas normas do Cód. Civil: arts. 496º, 494º, 562º, 563º, 564º e 566º;

29 - Nestes Autos, as Decisões já proferidas estão em colisão com valores sócio-económicos dominantes e a sua ofensa pode suscitar alarme social, determinante de profundos sentimentos de inquietação que minam a tranquilidade de uma generalidade de pessoas e a posição das Empresas;

30 - Mas a reparação das lesões sofridas pelo lesado não pode ser encarada de forma isolada, porque se os Tribunais inflacionarem as quantias indemnizatórias estão a criar desigualdades sociais e a colocar em causa o próprio Sistema Segurador.


Por contra-alegações, o Autor pugna pela negação da revista da Ré.

Factos Apurados

1 - Pela ..., BB transferiu para a R. a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ...-GS-..., pelo prazo de um ano prorrogável por seguintes, com início em data anterior a 14 de maio de 2012, mediante o pagamento de um prémio anual.

2 - No dia 14 de maio de 2012, cerca das 2H00, em ..., ..., ..., ocorreu um acidente no qual foi interveniente o veículo de matrícula ...-GS-..., pertencente a BB e conduzido por CC.

3 - O A. seguia no veículo GS no assento dianteiro do passageiro.

4 - O A. nasceu a .../.../1991.

5 - O A. foi transportado para o Hospital ....

6 - Em consequência do acidente, o A. sofreu traumatismo craniano, traumatismo mandibular, traumatismo do ombro, do úmero, da clavícula e do antebraço esquerdo e traumatismo pélvico, sendo de destacar:

- luxação do punho e fratura do 1/3 distal do cúbito;

- fratura do corpo da clavícula esquerda;

- contusão hemorrágica do parênquima pulmonar bilateralmente, com derrame pleural;

- fratura com luxação de ramo ilíaco esquerdo;

- fraturas das apófises transversas direitas desde L1 a L4, com fratura do corpo vertebral e L3, L4;

- fratura das apófises posteriores de L3 e L4;

- contusão do parênquima cerebral do lobo frontal direito;

- fratura dos ossos próprios do nariz;

- fratura com luxação e cavalgamento de fragmentos a nível do ramo esquerdo da mandibula e a nível do corpo no lado direito da mandíbula;

- fratura da parede lateral externa da órbita esquerda.

7 - Efetuou 4 transfusões sanguíneas.

8 - A 21 de maio de 2012, o A. foi submetido a intervenção cirúrgica da coluna lombar e do punho esquerdo: artrodese L2-S1 e redução aberta e osteossíntese com placa do cúbito e do rádio distal.

9 - No dia 31 de maio de 2012, o A. foi transferido para Portugal, para o Hospital ..., com indicação para permanecer em repouso no leito com o membro inferior esquerdo em flexão; usar cinta dorso lombar; e não deambular.

10 - A 1 de junho de 2012, o A. autor foi submetido a cirurgia do foro ortopédico e maxilo-facial: redução cruenta e osteossíntese com placa anatómica LCP da clavícula esquerda; e redução e osteossíntese com placas e parafusos de foco sinfisario por fratura da mandíbula (sinfisaria e subcondiliana esquerda).

11 - A 8 de junho de 2012, teve alta hospitalar.

12 - Esteve internado no Centro de Reabilitação ... de 4 a 16 de julho de 2012.

13 - A 25 de julho de 2012, foi internado no Hospital ....

14 - A 26 de julho de 2012, foi submetido a nova cirurgia mandibular: exploração cirúrgica com remoção de material de OTS, desbridamento dos bordos, reconstrução com placa e excerto de osso sintético.

15 - A 27 de julho de 2012, o A. teve alta.

16 - A 16 de outubro de 2012, foi submetido a operação cirúrgica ao nariz: rinoplastia.

17 - A 6 de fevereiro de 2015, foi operado à coluna lombar, à clavícula esquerda e ao antebraço esquerdo para extração do material de osteossíntese.

18 - Mantém necessidade de tratamento médico do foro dentário e maxilo-facial.

19 - O A. apresenta humor e sintomatologia ansiosa em situações diretamente relacionadas com o acidente, tais como condução, alterações físicas similares às sofridas aquando do acidente e perspetivação de incapacidades físicas futuras.

20 - O A. ficou com cicatriz ténue na pálpebra superior do olho direito; mancha cicatricial com cerca de 1,5 cm de comprimento, na face lateral esquerda da região dos ossos próprios do nariz; cicatriz com cerca de 2,5 cm de comprimento, na região inframandibular esquerda; cicatriz lombar, com vestígios de pontos de sutura, com 24 cm de comprimento e 2 cm de largura; deformação/ assimetria aparente do terço médio da clavícula esquerda; cicatriz com vestígios de pontos de sutura, com 13 cm de comprimento e 1,5 cm de largura, ao longo do bordo supraclavicular esquerdo e até à face superior do ombro; cicatriz com vestígios de pontos de sutura, com 6 cm de comprimento e 1 cm de largura, sobre a anca direita; cicatriz com vestígios de pontos de sutura, com 9 cm de comprimento e 1 cm de largura, no terço distal da face anterior do antebraço; complexo cicatricial com 5 cm de diâmetro, no terço distal da face medial do punho esquerdo; complexo cicatricial composto por 2 cicatrizes, com vestígios de pontos de sutura, a mais proximal com 4 cm de comprimento e a mais distal com 2 cm de comprimento, no terço distal da face dorsal do antebraço; cicatriz com vestígios de pontos de sutura, com 9,5 cm de comprimento, desde a face dorsal do punho até à face dorsal da região metacárpica do 2º dedo da mão; e dor e limitação nos movimentos de flexão/ extensão do punho.

21 - 24 de outubro de 2013 é a data da consolidação médico-legal das lesões.

22 - O A. ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14 pontos, sendo de admitir o agravamento futuro das sequelas, atenta a natureza intra-articular da fratura do punho esquerdo.

23 - O sofrimento físico e psíquico vivenciado pelo A. entre a data do acidente e a data da consolidação das lesões é de grau 7 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

24 - A afetação da imagem do A. quer em relação a si próprio quer perante os outros é de grau 5 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

25 - O A. praticava ..., tendo estado inscrito na ... entre 2007 e 2011 e tendo, nesse período, participado em diversos circuitos nacionais de ... júnior e open.

26 - A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer que representavam para o A. um espaço de realização e gratificação pessoal é de grau 5 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

27 - À data do acidente, o A. frequentava a Escola ..., ..., tendo terminado o programa de estudos do bacharelato de ... com seis meses de atraso em consequência do acidente, tendo pendentes exames para se graduar oficialmente.

28 - O pai do A. deslocou-se a ... a fim de auxiliar o filho, tendo tratado de formalidades relacionadas com o transporte do A. para Portugal.

29 - O A. despendeu, a 5 de junho de 2012, € 9,90 na aquisição de um reabilitador de mãos; a 9 de junho de 2012, € 6,25 em fármacos; a 21 de junho de 2012, € 20,00 de taxa moderadora no Centro Hospitalar ...; a 22 de junho de 2012, € 22,37 em fármacos; a 25 de junho de 2012, € 15,00 de taxas moderadoras no Centro Hospitalar ...; a 27 de junho de 2012, € 150,00 em aparelho de contenção maxilar; a 9 de julho de 2012, € 7,50 de taxa moderadora no Centro Hospitalar ...; a 10 de julho de 2012, € 43,95 em fármacos; a 16 de julho de 2012, € 21, 30 de taxas moderadoras no Centro Hospitalar ...; e, a 28 de agosto de 2012, € 100,00 na ....

30 - A R. já reembolsou o A. das despesas referidas no ponto 29.


Matéria de facto não provada:

1 - Porque o condutor adormeceu, perdeu o controlo do veículo, indo este embater na vala que separa fisicamente as faixas de rodagem de sentido oposto.

2 - As lesões sofridas pelo A. em consequência do acidente colocaram-no em risco de vida.

3 - Os males corporais e os efeitos dos tratamentos diminuíram a esperança de vida do A.

4 - O A. nunca será capaz de desempenhar cabalmente as normais tarefas domésticas, como a limpeza da casa, a culinária e o tratamento de roupa, pelo que terá sempre de depender de uma empregada doméstica.

5 - O A. suportou despesas de deslocação, de alojamento e de estadia do pai.

6 - Em vestuário, o A. gastou € 69,85, a 15 de maio de 2012; € 38,97, a 16 de maio de 2012; e € 30,00, a 23 de maio de 2012.

7 - O A. teve a noção do risco de sonolência de CC durante a condução e aceitou esse risco.

8 - Em finais de Janeiro de 2018, o A. teve hipertensão arterial severa e contusão/ laceração renal associadas às lesões decorrentes do acidente.

Conhecendo:

Em primeiro lugar, e porque questão pendente do adrede recebimento dos recursos de revista, interpostos por Autor e Ré, neste Supremo Tribunal de Justiça, cumpre conhecer da possibilidade de revista a cargo do Autor.

Como é sabido, não é admitida revista “do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância”, salvo nos casos de revista excepcional – como consta do disposto no art.º 671.º n.º 3 CPCiv.

Tradicionalmente, no âmbito da norma do anterior art.º 721.º n.º 3 CPCiv, proveniente da reforma de 2007, entendia-se maioritariamente, ao menos a nível jurisprudencial, que a dupla conformidade implicava a confirmação unânime e irrestrita do julgado em 1.ª instância – veja-se em A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, pg.287.

Este entendimento passou a ser lido com alguma restrição, em função de um elemento não estritamente literal, mas racional ou teleológico, na esteira da posição de M. Teixeira de Sousa, Dupla Conforme: Critério e Âmbito de Conformidade, CDP, 21/24 – entendia-se ser de equiparar à situação de dupla conforme aquela em que a Relação profere uma decisão que, embora não seja rigorosamente coincidente com a da 1.ª instância, se revele mais favorável à parte que recorre.

Formulou o Autor a seguinte conclusão – “sempre que o apelante obtenha uma procedência parcial do recurso na Relação, isto é, sempre que a Relação pronuncie uma decisão que é mais favorável – tanto no aspecto quantitativo, como no aspecto qualitativo – para esse recorrente do que a decisão proferida pela 1.ª instância, está-se perante duas decisões conformes”, que impedem a interposição de revista ordinária.

Em matéria de sucumbência do recorrente, seguiu-se como válido o princípio de que, quando se proíbe o mais (na sucumbência maior) se proíbe o menos (na sucumbência menor), por esta proibição estar logicamente contida na primeira.

Esta orientação encontra-se largamente consolidada na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça.

Por via de tal, na constatação de existência de dupla conforme favorecendo o Autor, não cabe admitir o respectivo recurso de revista.

Passaremos a apreciar a revista da Ré, na medida em que a decisão recorrida (da Relação) não conduziu a uma decisão coincidente com a decisão de 1.ª instância (pelo critério formal, inexistiu dupla conforme).



I


A Recorrente inicia por imputar ao acórdão recorrido o vício da omissão de pronúncia, do art.º 615.º n.º 1 al. d) CPCiv.

Na exegese da norma, diga-se, porém, que não nos encontramos perante nulidade, se a decisão em crise conheceu de todas as matérias que lhe foram colocadas à apreciação, apenas nesse âmbito se devendo entender a omissão de pronúncia, como resulta do normativo citado – neste sentido, Antunes Varela, José Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual, 1ªed., §222.

A fim de não incorrer na citada nulidade, ao tribunal cumprirá apreciar os problemas fundamentais e necessários à decisão da causa (Teixeira de Sousa, Estudos, pg. 220).

Diga-se que o acórdão, é certo que assaz conclusivo, não deixou de apreciar todas as questões que lhe eram colocadas, e que vêm por igual agora igualmente colocadas nesta sede de revista

Mesmo nos termos dos arts.º 615.º n.º 1 al.b) e 154.º n.º 1 CPCiv, sendo nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, igualmente a doutrina (ut Antunes Varela, José Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual, §222) vem salientando que, para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta ou não convincente; é preciso que exista falta absoluta de fundamentação, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.

As nulidades da sentença devem ser encaradas à semelhança das nulidades insanáveis do petitório (art.º 186.º nº 1 CPCiv) – são nulidades de tal forma graves que tornam imprestável, imperceptível a peça a que se reportam.

Da mesma forma, se a petição é omissa quanto à indicação da causa de pedir, a petição é inepta – art.º 193.º n.º 2 al. a) CPCiv.

Note-se que, seja na Relação, seja em 1.ª instância, foi decisivo o juízo prudencial e casuístico ali evidenciado, pelo que as conclusões constantes das referidas decisões poderão ser lacunares, erradas – não são porém inexistentes.

À luz da doutrina assim exposta, resulta também claro que inexiste violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, decorrente da norma do art.º 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Passaremos assim à apreciação do bem fundado dos montantes indemnizatórios achados no acórdão.



II

Como visto, a 1ª instância fixou à Autora uma quantia decorrente dos danos patrimoniais futuros, designadamente do dano patrimonial da perda de capacidade aquisitiva, no valor de € 43 000, quantia essa ampliada na Relação para € 55 000.

A sentença, para o efeito, levou em conta o défice funcional permanente da integridade psicofísica de que o Autor ficou a padecer, o tempo provável de vida activa da vítima (44 anos até perfazer a idade da reforma), um rendimento anual de € 12 600, que se considerou equivaler à média do salário nacional, reduzido em função do défice citado de 14 pontos, e uma taxa de juro de 3%.

O acórdão ponderou os mesmos elementos, acrescentando-lhes o défice do ponto de vista desportivo e de lazer, avaliado no grau 5, de 7 graus de gravidade crescente.

O rendimento anual ponderado levou em conta o que a sentença de 1.ª instância classificou como o rendimento médio anual, em Portugal, líquido, no valor de € 900, posto que o Autor ainda se não encontrava, à data, inserido no mercado de trabalho.

Sufraga-se tal critério – veja-se neste sentido, afastando a ponderação de um “salário mínimo”, também o Ac.S.T.J. 22/6/2017 Col.II/131 (Abrantes Geraldes).

A globalidade dos elementos citados são, de facto, fundamentadores do dano de capacidade aquisitiva, o qual não depende, como é sabido, da efectiva perda dessa capacidade, mas antes da maior dificuldade do lesado para atingir determinados padrões de rendimento, que até poderão ser os mesmos ou superiores aos que auferia, à data do acidente.

Considerando pois o dano de “perda de capacidade aquisitiva” como fundamentadora da avaliação do dano biológico, impugnado por esta via de recurso, assumem relevância os seguintes considerandos:

- idade considerada do Autor, à data da consolidação das lesões – 21 anos; 

- défice funcional permanente de integridade físico-psíquica – 14 pontos;

- esperança média de vida de 79 anos para o sexo masculino (dados de 2012, no sítio www.ine.pt); 

- perspectiva de aumento de rendimentos por valorização académica;

- a existência de inflação, anulando, ao menos tendencialmente, a remuneração do juro de uma aplicação bancária.

Frise-se também que tem sido este Supremo Tribunal de Justiça do entendimento que, tendo o dano repercussão sobre a necessidade de aquisição ou produção de rendimentos, por parte do lesado, deve ser ressarcido atribuindo um capital que se venha a esgotar no final da vida do lesado - “vida do lesado”, e não apenas a respectiva “vida activa”, pois que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e actividades que se desenvolvem e que envolverão um esforço necessariamente superior.

Foi o que se discorreu, em reflexão e resumo sobre outra jurisprudência, no Ac.S.T.J. 8/5/2012, pº 3492/07.3TBVFR.P1 (Nuno Cameira) e expressa e desenvolvidamente se aludiu no Ac.S.T.J. 25/6/02 Col.II/133 (Garcia Marques) ou no Ac.S.T.J. 4/12/07, pº 07A3836 (Mário Cruz).

De um outro ângulo, significativamente se escreveu no Ac.S.T.J. 4/5/2010, pº 1288/03.0TBLSD.P1.S1 (Paulo Sá): “Em tese geral, as perdas salariais resultantes de acidentes de viação continuarão a ter reflexos, uma vez concluída a vida activa, com a passagem à “reforma”, em consequência da sua antecipação e/ou menor valor da respectiva pensão, se comparada com aquela a que teria direito se as expectativas de progressão na carreira não tivessem sido abruptamente interrompidas”.

Também a jurisprudência continuou a apontar para que existe uma expectativa de vida provável (não apenas de “vida activa”, ou produtora de rendimento) afectada pela incapacidade funcional, que sempre forçará a maior onerosidade (penosidade, esforço) no exercício de quaisquer tarefas da actividade diária e corrente – vejam-se os Acs. S.T.J. 10/10/2012, pº 632/2001.G1.S1 (Lopes do Rego), S.T.J. 28/3/2019, pº 1120/12.4TBPTL.G1.S1 (Tomé Gomes), S.T.J. 11/4/2019 Col.II/34 (Bernardo Domingos) ou S.T.J. 10/12/2019, pº 32/14.1TBMTR.G1.S1 (Maria do Rosário Morgado).

Acentua-se igualmente que as “fórmulas matemáticas” têm vindo a perder relevância com o tempo e a alteração das conjunturas sociais e económicas, hoje por hoje estabilizadas, ao menos na chamada “zona euro”, acentuando-se o facto de os juros das aplicações bancárias serem, a esta data, praticamente inexistentes e não sendo lícito formular a esse respeito qualquer tipo de hipóteses de alteração do circunstancialismo da remuneração bancária.

Portanto, a indemnização pela perda da capacidade de trabalho poderá atingir um montante tendencialmente equivalente à respectiva perda “bruta”, total, todavia uma reconstituição apegada à realidade, como a matéria é enquadrada na nossa lei civil, tendo por norte “a medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” – artº 566º nº 2 CCiv, sem prejuízo de um apelo geral (e fundamental) à equidade – artº 566º nº 3 CCiv.

Todos estes considerandos justificam plenamente o valor encontrado na Relação, de € 55 000, mais adequado à fundamentação supra que o valor encontrado em 1.ª instância.



III

Quanto ao valor achado para os danos não patrimoniais, igualmente pugna a Recorrente pelo valor arbitrado em 1ª instância, de € 40 000 – como visto, a Relação majorou esse valor para um total de € 60 000.

Como é sabido, o controlo da fixação equitativa da indemnização é admitido, no recurso de revista, por este Supremo Tribunal de Justiça, cabendo-lhe averiguar “se estavam preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade; se foram considerados as categorias ou os tipos de danos cuja relevância é admitida e reconhecida; se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram considerados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, deveriam ser considerados; e se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram respeitados os limites que, de acordo com a legislação e com a jurisprudência, deveriam ser respeitados” (Ac.S.T.J. 14/1/2021, pº 644/12.8TBCTX.L1.S1 – Nuno Pinto Oliveira).

Sem prejuízo, “vem sendo reiteradamente sublinhado pelo STJ, o juízo de equidade de que se socorrem as instâncias na fixação de indemnização, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade (arts. 566.º, n.º 3, do CC, e 674.º, e 682.º, do CPC)” – cf. Ac.S.T.J. 17/5/2018, pº 952/12.8TVPRT.P1.S1 – Távora Victor.

Ou ainda, em suma:

“Quando o cálculo da indemnização haja assentado decisivamente em juízos de equidade, ao Supremo não compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, já que a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto sub juditio” – Ac.S.T.J. 28/10/2010, pº 272/06.7TBMTR.P1.S1 – Lopes do Rego.



IV


As instâncias consideraram, nesta matéria, sobre o mais, o dano estético e o quantum doloris, a repercussão nas actividades desportivas e de lazer e a idade do Autor.

Para o efeito, contribuíram os seguintes, e relevantes, dados de facto:

- em consequência do acidente, o Autor sofreu traumatismo e fracturas, ao nível craniano, da face, mandibular, orbital, do ombro, úmero, clavícula, antebraço esquerdo e estrutura pélvica;

- efectuou 4 transfusões sanguíneas;

- foi submetido a duas operações cirúrgicas do foro ortopédico e maxilo-facial;

- teve alta cerca de 1 mês após o acidente, mas registou outros internamentos hospitalares;

- foi submetido a mais 3 operações cirúrgicas (à mandíbula, ao nariz e à coluna vertebral, clavícula e antebraço);

- por via de sequelas permanentes, deverá manter o tratamento maxilo-facial e do foro dentário;

- após o acidente, passou a registar humor e sintomatologia ansiosa, relacionada com a condução automóvel;

- regista diversas cicatrizes visíveis, a nível facial, bem como variados vestígios de suturas, ao nível do tronco, braços e mãos;

- possui dor e limitação nos movimentos de flexão/extensão do punho;

- possui igualmente um défice funcional permanente de integridade psico-física de 14 pontos, mas é expectável o agravamento futuro das sequelas, sobretudo ao nível do punho esquerdo;

- o quantum doloris, grau de sofrimento físico e psíquico vivenciado pelo Autor entre a data do acidente e a data da consolidação das lesões, atingiu o grau 7 de 7;

- a afectação da imagem do Autor, em relação a si próprio e perante os outros, atinge o grau 5 de 7;

- a repercussão nas actividades desportivas e de lazer (espaço de realização e gratificação pessoal comprovadas do Autor) atingiu um grau 5 de 7.



V


Poderemos dizer que, ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “fattispecie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, cabe avaliar pela equidade, devendo evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.

Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para este raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto.

Não poderão todavia deixar de ser equacionados os factores de ponderação do dano levados em conta na sentença e no acórdão, pela gravidade que assumiram.

Ou seja, seguindo uma classificação doutrinal, meramente auxiliar de um raciocínio sobre os padecimentos morais, os autos patenteiam um avultado e notório “dano moral” propriamente dito, desde logo com base na notória incapacidade permanente (14% de incapacidade geral), agravada pelo notório dano estético (as cicatrizes na face, nariz, mandíbula, órbitas, a dentição afectada e as cicatrizes das diversas suturas de cirurgia), conferindo um assinalável grau 5 em 7, e também na vertente do elevado “pretium doloris” (ressarcimento da dor física sofrida – um notável grau 7, em 7) e na vertente do dano existencial e psíquico (o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de “coping”, ou seja, do grau de dificuldade para suportar existencialmente a incapacidade), traduzido na maior penosidade das relações sociais e na ansiedade sentida em relação a básicos actos da vida de relação, como tripular ou ser conduzido em veículo automóvel.

Tais danos vieram para acompanhar o Autor ao longo da sua vida, na idade ainda jovem de 21 anos.

Tudo ponderado, considerando o apelo à equidade (artº 496º nºs 1 e 3 CCiv), a quantia indemnizatória ascendeu ao montante de € 60 000,00 (sessenta mil euros), quantia essa que se tem por equitativa e da qual não existe, em termos globais, razão para divergir.

Veja-se, em apoio aproximativo do montante da indemnização em causa (considerando as circunstâncias mais relevantes dos casos, incapacidades, danos estéticos e quanta doloris, que não absolutas particularidades, não repetíveis nos casos concretos), os Acs.S.T.J. 25/5/2017, pº 868/10.2TBALR.E1.S1 – Lopes do Rego, S.T.J. 21/1/2016, pº 1021/11.3TBABT.E1.S1 – Lopes do Rego, S.T.J. 28/1/2016, pº 7793/09.8T2SNT.L1.S1 – Maria da Graça Trigo, S.T.J. 7/4/2016, pº 237/13.2TCGMR.G1.S1 – Maria da Graça Trigo, S.T.J. 12/7/2018 Col.II/183 – Maria Rosa Oliveira Tching, S.T.J. 10/12/2019, pº 32714.1TBMTR.G1.S1 - Maria do Rosário Morgado, S.T.J. 5/2/2020, pº 10529/17 (ECLI) – Oliveira Abreu, S.T.J. 29/10/2020, pº 2631/17.0T8LRA.C1.S1 – Nuno Oliveira, S.T.J. 14/1/2021, pº 644/12.8TBCTX.L1.S1 – Nuno Oliveira, e S.T.J. 12/1/2021, pº 1307/14.5T8PDL.L1.S1 - Maria João Vaz Tomé.



VI


Vejamos agora qual a interpretação adequada da norma do art.º 805.º n.º3 CCiv, levando em conta a jurisprudência do AUJ n.º 4/2002.

Em aplicação da norma legal em causa, as instâncias fizeram acrescer à indemnização os juros, a contar da citação.

A respeito do montante relativo a juros de mora, o AUJ em causa, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça com data de 9/5/2002 e publicado no D.R. Is.-A, nº 146, de 27/6/2002, estabeleceu que, “sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do art.º 566.º CCiv, vence juros de mora, por efeito do disposto nos art.ºs 805.º n.º 3 (interpretado restritivamente) e 806.º n,º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.

Como se exprime Calvão da Silva, Revista Decana, 134º/127, se o juiz não puder, e na medida em que não puder, condenar em quantia superior à do pedido (art.º 615.º n.º 1 al.e) CPCiv), e portanto se o tribunal não procedeu à actualização devida nos termos do n.º 2 do art.º 566.º CCiv, então justificar-se-á a aplicação irrestrita da 2.ª parte do n.º 3 do art.º 805.º CCiv, para permitir a reparação integral do dano e respeitar o crédito de valor – critério de coordenação interpretativa das citadas normas, em completo respeito da doutrina do AUJ n.º 4/2002.

Assim, sempre que seja concedida “a reparação integral dos danos in itinere até à definitiva decisão actualizadora, como é regra segundo ao critério da diferença canonizado no n.º 2 do art.º 566.º, a 2.ª parte do n.º 3 do art.º 805.º não pode ser aplicada à letra, devendo corrigir-se o termo a quo”.

Os dois preceitos, aparentemente contraditórios, fixam, no fim de contas, duas diferentes formas de actualização da indemnização – se fossem simultaneamente aplicados conduziriam a uma duplicação da actualização, o que não pode ser consentido – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, II, 4.ª ed., pg.65, e o Ac.R.P. 15/6/89 Col.III/124 (Silva Paixão), citado por aqueles autores.

Para avaliar se o tribunal actualizou a indemnização, quanto aos danos patrimoniais futuros, não importa o facto de o dano calculado ter sido reportado à data da consolidação da lesão: essa data interessa somente para a determinação do tempo de vida activa a ter em conta, em termos de incapacidade ou défice funcional permanente.

Porém, para o referido cálculo indemnizatório, pode assumir relevância a data a que se reporta o valor nominal do rendimento perdido.

E assim, se a base de cálculo for um rendimento no valor nominal à data da sentença, como aqui se assumiu, por comparação com o decidido em 1.ª instância (€ 900 mensais), a aplicação de taxa de juro moratória desde a citação poderá fazer incorrer em duplicação indemnizatória.

Mas, se o cálculo constante do acórdão recorrido foi feito puramente na base da equidade (pese embora na presente fundamentação, em II, termos assumido, como base de cálculo, o rendimento assumido em 1.ª instância, o acórdão recorrido nenhuma referência faz a tal rendimento mensal), poder-se-ia dizer que o dano patrimonial em causa foi fixado, no acórdão, em montante sensivelmente inferior ao que resultaria de uma aplicação completa do critério que expusemos, com base no rendimento perdido.

O critério que seguimos, para mais, não implicou redução no valor total dos rendimentos a auferir até ao fim da vida expectável, por ponderação de uma taxa de juro sobre o rendimento a produzir pela quantia global de imediato atribuída.

A diferença entre o critério que propusemos e o seguido na Relação poderia então ser minorada ou compensada a nível dos juros de mora devidos a contar da citação.

Tal viria a ser, porém, distorção da finalidade da condenação em juros de mora.

Como se exarou no AUJ 4/2002, “não é defensável a cumulatividade de juros de mora desde a citação, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 805.º com a actualização da indemnização, na medida em que ambas as providências influenciadoras do cálculo da indemnização devida obedecem à mesma finalidade, que consiste em fazer face à erosão do valor da moeda no período compreendido entre a localização no tempo do evento danoso e o da satisfação da obrigação indemnizatória”.

A condenação nos juros de mora tem a ver apenas com o atraso na prestação, que o legislador de 1983, na redacção do art.º 805.º n.º 3 CCiv, tentou obviar na medida em que, por força da previsão do art.º 566.º n.º 2 CCiv, o valor do pedido se depreciava manifestamente, face à data da sentença (podendo conduzir a uma decisão ultra petitum).

Não é esse o caso da ponderação do pedido pelo dano patrimonial futuro nos presentes autos, formulado em tempos de estabilização do valor da moeda.

Uma aplicação literal da norma do art.º 805.º n.º 3 parte final CCiv não colhe, ainda de forma mais flagrante, em matéria de indemnização pelo dano não patrimonial, dado que aí nos encontrámos perante uma compensação arbitrada por equidade, atentos os padrões de vida correntes à data da sentença e do acórdão recorrido. E foi efectivamente assim que as instâncias avaliaram o dano, inexistindo, na fundamentação, qualquer reporte a valores arbitrados “à data da citação” – e mais sendo de salientar a já apontada irrelevância do fenómeno inflacionário entre as datas da propositura da acção e a data da sentença.

Finalmente, uma vez que o acórdão se reportou à apreciação dos montantes indemnizatórios feita na sentença, é à data desta que se deverá reportar o vencimento de juros de mora, por aplicação da doutrina do acórdão uniformizador.

Em sentido sensivelmente idêntico, veja-se o recente Ac.S.T.J. 4/11/2021, pº 590/13.8TVLSB.L1.S1 (Maria João Vaz Tomé).

Procede assim a revista, no que concerne apenas à condenação em juros de mora, que agora se devem considerar apenas como os contados a partir da data da sentença proferida em 1.ª instância.


Concluindo:

I – Em sede de ressarcimento do dano patrimonial futuro, e tendo o dano repercussão sobre a necessidade de aquisição ou produção de rendimentos, por parte do lesado, deve ser ressarcido atribuindo um capital que se venha a esgotar no final da vida do lesado - “vida do lesado”, e não apenas a respectiva “vida activa”, já que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e actividades que se desenvolvem e que envolverão um esforço necessariamente superior.

II – A indemnização pela perda da capacidade de trabalho atingirá um montante tendencialmente equivalente à respectiva perda total e efectiva, tendo por norte “a medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” – artº 566º nº 2 CCiv, sem prejuízo de um apelo fundamental à equidade – artº 566º nº 3 CCiv.

III – “O juízo prudencial e casuístico em matéria de dano não patrimonial deve ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade”.

IV – A condenação nos juros de mora sobre o montante indemnizatório, na responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, de acordo com a redacção do art.º 805.º n.º 3 CCiv, tem a ver apenas com a depreciação do valor do pedido, face à data da sentença; não sendo esse o caso de ponderação do dano no processo, os juros devem contar-se a partir da data da sentença ou a partir da data do acórdão em 2.ª instância, consoante os casos, por aplicação da doutrina do AUJ n.º 4/2002, de 9/5/2002.


Decisão:

Não se admite a revista do Autor.

Procede, em parte, a revista da Ré, e revoga-se, também em parte, o acórdão recorrido, determinando agora que, sobre as quantias fixadas a título de indemnização, acresçam juros de mora, contados desde a data da sentença proferida em 1.ª instância.

No mais, nega-se a revista da Ré.

Custas do recurso rejeitado a cargo do Autor.

Custas do recurso admitido a cargo da Recorrente e do Recorrido, na proporção de vencido.



STJ, 10/2/2022


Vieira e Cunha (relator)

Abrantes Geraldes

Manuel Tomé Soares Gomes