Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
09S0232
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
Nº do Documento: SJ200905140002324
Data do Acordão: 05/14/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
1. As questões referidas nas alíneas c) e d) do art.º 85.º da LOFTJ (na versão dada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) são questões que, directa ou indirectamente, emergem de acidentes de trabalho, o que significa que a existência do próprio acidente há-de integrar a causa de pedir das acções em que as mesmas sejam discutidas.

2. O tribunal do trabalho não é competente para conhecer da acção em que a autora/companhia de seguros – invocando o direito de regresso previsto no art.º 19.º das Condições Gerais da Apólice Uniforme dos Seguros de Acidentes de Trabalho dos trabalhadores por conta de outrem e, subsidiariamente, o enriquecimento se causa –, pede que a ré, sua segurada, seja condenada a pagar-lhe as indemnizações e demais despesas que teve de suportar com o sinistrado, convencida que o acidente que lhe tinha sido participado pela ré era de trabalho, o que mais tarde veio a descobrir não ser verdade.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1.Relatório
A I... B..., Companhia de S..., S. A. propôs, no Tribunal Judicial de Felgueiras, a presente acção declarativa contra M... S... C..., L.da, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 2.308,97, acrescida de juros de mora desde a citação, por ela paga a AA, e a reembolsá-la das demais importâncias que vier a despender no decurso da acção.

Em resumo, a autora alegou o seguinte:
- em 1996, a ré celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a Companhia de S... O..., nos termos do qual transferiu para esta a sua responsabilidade relativamente aos acidentes de trabalho que os trabalhadores ao serviço da sua unidade produtiva de fabrico de calçado viessem a sofrer;
- por autorização publicada na III Série do Diário da República, de 13 de Fevereiro de 2002, a O... transferiu a sua carteira de seguros do ramo não vida para a ICI – Companhia de S... de C... e I..., S. A.;
- entretanto, por escritura pública outorgada em 22 de Junho de 2004, foi declarada a fusão, por incorporação da ICI – Companhia de S... de C... e I..., S. A. na I.... B... – Companhia de S..., S. A., a aqui autora;
- a ré participou à autora um acidente de trabalho de que teria sido vítima AA, no dia 28 de Julho de 2004, pelas 17h00;
- face à descrição do acidente e confiando na boa-fé das declarações da ré, a autora começou a prodigalizar tratamento médico ao sinistrado e indemnizou-o pelos períodos de incapacidade temporária de que ficou afectado;
- e, por via disso, a autora pagou ao sinistrado € 1.207,20 de indemnizações, suportou despesas com tratamentos médicos, hospitalares e auxiliares de diagnóstico, no valor de € 573,14, indemnizou o sinistrado das suas despesas com transportes a tratamentos e arcou, ainda, com as despesas administrativas para averiguação das circunstâncias em que o acidente tinha ocorrido e das suas consequências danosas, no montante de € 246,88, sendo provável que, no decurso da acção, tenha de pagar outras importâncias decorrentes de compromissos que assumira, nomeadamente com instituições de saúde, antes de declinar a responsabilidade pelo sinistro;
- mais tarde, porém, a autora veio a apurar que o acidente tinha ocorrido em circunstâncias bem diversas das que tinham sido relatadas pela ré, uma vez que o sinistrado não se encontrava ao serviço da ré, mas sim quando trabalhava na “Quinta de C...”, sita em Cestais, Varziela, Felgueiras, propriedade agrícola essa pertencente a BB e que não estava de forma alguma afecta ao processo produtivo da ré;
- embora o aludido BB fosse, então, sócio-gerente da ré, a verdade é que, quando o acidente se deu, os trabalhos que decorriam na referida Quinta de C... estavam relacionados com a plantação de oliveiras e consistiam na abertura de valas e adubação, por estrume, das terras;
- o sinistrado acompanhava então os trabalhos do tractor que era manobrado por CC, seguindo, a pé, ao lado do tractor, quando foi colhido e era o referido BB quem dava as ordens e quem beneficiava pessoalmente da actividade desenvolvida pelo sinistrado e pelo CC;
- deste modo, o acidente em questão não se encontrava coberto pelo contrato de seguro que tinha sido celebrado entre a Companhia de S... O...;
- ora, nos termos do art.º 19.º, n.º 2, da Apólice Uniforme de Seguro de Acidentes de Trabalho para trabalhadores por conta de outrem, aprovado pelo Regulamento 27/99, publicado na II Série do DR de 30 de Novembro, “o pagamento de indemnizações ou outras despesas não impedirá a seguradora de, posteriormente, vir a recusar a responsabilidade relativa ao acidente quando circunstâncias supervenientemente reconhecidas a autora tem direito de regresso contra a ré, sendo que, subsidiariamente reconhecidas o justificarem. Assistirá ainda à seguradora, neste caso, o direito de reaver tudo o que houver pago”;
- o direito de regresso que a autora pretende fazer valer deriva assim do próprio contrato e, mesmo que assim não fosse, tal direito sempre emerge, por via subsidiária, do instituto do enriquecimento sem causa, uma vez que a autora agiu com a intenção de cumprir uma obrigação que agora, por indevida, deverá ser repetida, nos termos dos artigos 473.º e 476.º do Código Civil.

Na contestação, a ré excepcionou a incompetência material do tribunal, alegando que a mesma pertencia aos tribunais do trabalho.

No despacho saneador, o M.mo Juiz do Tribunal Judicial de Felgueiras julgou procedente a excepção e absolveu a ré da instância.

Notificada daquela decisão, a autora veio requerer a remessa dos autos para o Tribunal do Trabalho de Guimarães, o que foi deferido, mas, no despacho liminar, o M.mo Juiz daquele tribunal também declarou o mesmo incompetente em razão da matéria.

A autora agravou do despacho, mas o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso, atribuindo aos tribunais comuns a competência para conhecer do litígio.

Inconformada, a autora interpôs, então, recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo as suas alegações do seguinte modo:

1. Nos presentes autos, suscita-se a apreciação do direito da autora a obter o recobro de importâncias referentes a serviços e prestações que efectuou e pagou em benefício de um sinistrado.
2. Dependendo a sorte da acção da verificação de inexistência dos elementos caracterizadores de um acidente de trabalho, dado que o sinistro terá ocorrido quando a vítima, afinal, não estava nem no local nem no tempo de trabalho, nem, por qualquer forma, a prestá-lo ao tomador de seguro de acidentes de trabalho.
3. Assim, para se conhecer do direito da recorrente há que apurar das circunstâncias de tempo lugar e modo em que o mesmo acidente ocorreu.
4. E nuclear à sorte da acção é a determinação e qualificação (ou não) do acidente ali descrito, como de trabalho.
5. Sendo que nenhuma Instituição será mais competente para dela conhecer do que o Tribunal do Trabalho.
6. É o FORUM CONEXITATIS.
7. Assim, por ter considerado o Tribunal do Trabalho incompetente em razão da matéria para conhecer deste pleito, as instâncias violaram expressa e frontalmente as alíneas c) e d) do art.º 85.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.

A ré não contra-alegou e, neste Supremo Tribunal, a Ex.ma magistrada do M.º P.º, pronunciou-se pelo não provimento do recurso, em parecer a que as partes não reagiram.

Corridos os vistos dos adjuntos, cumpre apreciar e decidir.


2. O direito
Como é sabido e resulta do art.º 78.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – na versão que estava em vigor à data em que a acção foi proposta (27.7.2007) e que era a dada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 105/2003, de 10 de Dezembro –, os tribunais do trabalho são tribunais de competência especializada e a sua competência material restringe-se às questões que a lei expressa e taxativamente lhe atribui.

Concretamente, em matéria cível, os tribunais só têm competência para conhecer das questões elencadas no art.º 85.º da referida LOFTJ.

Por outro lado, e como também é sabido, a competência material do tribunal constitui um pressuposto processual e afere-se pela forma como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir, ou seja, determina-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que, para se determinar a competência material do tribunal, haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.

De facto, como se disse no acórdão desta Secção, proferido em 10.7.2008, no processo n.º 1166/08, de que foram relator e adjuntos os mesmos juízes que subscrevem este, a competência material é um pressuposto processual, cuja apreciação deve necessariamente preceder a apreciação do fundo da causa, e é por essa razão que, pacificamente, se tem entendido que deve ser aferida pelos termos em que o autor configura a acção, ou seja, pela forma como este estrutura o pedido e os respectivos fundamentos, embora o tribunal não esteja vinculado às qualificações jurídicas adiantadas pelo autor.

Na verdade, como também se reafirmou no acórdão hoje mesmo proferido nesta secção (processo n.º 626/09), a competência material, por ser um pressuposto processual, não pode ser aferida em função dos termos que, a final, a causa vier a revestir – já que isso implicaria uma prévia decisão sobre o mérito da mesma –, mas sim em função dos termos em que a acção é configurada pelo autor.

Ora, como decorre do já relatado em 1., a pretensão formulada pela autora radica no direito de regresso que alegadamente lhe é conferido pelo art.º 19.º, n.º 2, da Apólice Uniforme de Seguro de Acidentes de Trabalho para trabalhadores por conta de outrem, e, subsidiariamente, no instituto do enriquecimento sem causa.

A relação jurídica assim configurada, como bem disse a Relação, tem natureza cível e não laboral, uma vez que o pedido não emerge do acidente referenciado nos autos, mas sim do direito de crédito emergente da relação de sub-rogação que constitui uma relação jurídica de natureza cível, autónoma à do acidente de trabalho e com este não conexionada, e não é, por isso, subsumível nas alíneas c) e d) do art.º 85.º da LOFTJ, como defendia, e continua a defender, a recorrente.

Na verdade, nos termos das referidas alíneas, os tribunais do trabalho são competentes para conhecer, respectivamente, “[d]as questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais” e “[d]as questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efectuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou de doenças profissionais”.

E, como do teor literal daqueles normativos decorre, a competência que aí é atribuída aos tribunais do trabalho diz respeito a questões que, directa ou indirectamente, emergem de acidentes de trabalho, o que significa que a existência do próprio acidente há-de integrar a causa de pedir das acções em que as mesmas sejam discutidas.

E, como é fácil de ver, não é esse o caso dos autos, uma vez que a causa de pedir aduzida pela autora é precisamente a de que o acidente participado não pode ser considerado acidente de trabalho, para efeitos do contrato de seguro de acidentes de trabalho que mantinha com a ré.

A recorrente/autora alega, e bem, que a definição da responsabilidade da recorrida/ré passa pelo escrutínio das circunstâncias de tempo, lugar e modo em que o acidente ocorreu, para saber se o mesmo ocorreu e se pode, ou não, ser qualificado como tal.

Todavia, daí não resulta que o tribunal do trabalho seja o competente para julgar a presente acção, dado que, como já foi dito, a competência material afere-se pelos termos em que a acção foi configurada pelo autor, sendo que, no caso em apreço, essa configuração tem precisamente por base a inexistência do acidente de trabalho que foi participado pela ré, pois é esse o fundamento em que assenta a pretensão formulada pela autora, ora agravante.

3. Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar provimento ao agravo e confirmar a douta decisão recorrida.
Custas pela recorrente.


LISBOA, 14 de Maio de 2009

Sousa Peixoto
Sousa Grandão
Pinto Hespanhol