Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
27384/13.8T2SNT-B.L2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CAUSA DE PEDIR
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
NULIDADE PROCESSUAL
EXCEÇÃO DILATÓRIA
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. É adquirida, na acção executiva, a diferenciação e autonomia entre os conceitos de título executivo (documento donde consta – mas não donde nasce - a obrigação cuja prestação se pretende obter por via coactiva) e de causa de pedir (a situação factual donde imana a obrigação exequenda) na acção executiva.

II. Na falta de causa de pedir omite-se a alegação dos factos que integram o núcleo essencial da concreta situação de que emerge a pretensão deduzida, permitindo a sua individualização.

III. Na insuficiência/deficiência da causa de pedir, não obstante resultar individualizada a concreta situação donde emerge a pretensão deduzida, foi omitida a alegação de factos de que depende a procedência da acção.

IV. A falta de causa de pedir, que é, por regra, insuprível, implica a nulidade de todo o processo, é de conhecimento oficioso, até ao saneador ou, se a acção não comportar saneador, até à sentença final. Mas constitui, também, excepção dilatória de conhecimento oficioso.

V. A insuficiência da causa de pedir é suprível através do convite ao aperfeiçoamento e a persistência da insuficiência dá lugar à improcedência da acção (por ausência de factos de que dependia a pretensão deduzida) e não à absolvição da instância.

VI. Como critério de diferenciação entre falta de causa de pedir e deficiência da causa de pedir deve formular-se um juízo de prognose acerca da delimitação do caso julgado, pressupondo uma sentença favorável ao autor:  se for então possível determinar concretamente qual a situação jurídica que foi objecto de apreciação jurisdicional, sem correr riscos de repetição da causa, não se verificará a falta de causa de pedir.

VII. Se no requerimento inicial de execução que tem por título executivo uma confissão de dívida sem indicação da respectiva relação causal, o exequente se limita a alegar que essa dívida provém ‘de diversos negócios celebrados pelos Executados’, ocorre falta de causa de pedir, determinativa da absolvição da instância executiva.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA




NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO MEDIANTE EMBARGOS


ENTRE

AA

E

BB


(aqui patrocinados por CC, adv.)

Executados /Embargantes / Apelados / Recorrentes





CONTRA

IMPROVE PEOPLE, SA


(aqui patrocinada por DD, adv.)

Exequente / Embargada /Apelante / Recorrida



I – Relatório


A Exequente intentou, acção executiva contra os Executados visando a cobrança de 1.500.000,00 € e juros alegando ser cessionária de crédito naquele montante de que os Executados se confessaram, por escritura pública, devedores, originado «por via de diversos negócios celebrados entre os Executados» e os cedentes. Apresentaram como título executivo, ao abrigo da al. uma escritura pública de “confissão de dívida com penhor e procuração” outorgada pelos Executados e cedentes do crédito exequendo.

Os Executados deduziram oposição mediante embargos invocando a nulidade, por falta de forma, do negócio subjacente (que identificam como empréstimo) e a inexigibilidade da dívida (quer porque não existia qualquer dívida, quer porque, a existir, se mostra saldada ou ainda não vencida).

A Exequente apresentou contestação onde alegou, além do mais, que a dívida a que se refere a confissão de dívida constante do título executivo se reporta ao remanescente ainda não pago do preço de aquisição, pelos Executados aos cedentes, de 45% do capital social de duas sociedades.

Na audiência prévia foi proferido despacho saneador tabelar.

A final foi proferida sentença que, considerando não ter o exequente alegado o negócio causal da dívida confessada (sendo irrelevante que o tenha feito na contestação), julgou a oposição procedente.

A Relação, considerando-a ‘decisão surpresa’ por não cumprido o contraditório, anulou tal sentença.

Cumprido o contraditório foi proferida sentença idêntica à que fora anulada pela Relação.

Inconformada, apelou a Exequente tendo a Relação, considerando ser o requerimento executivo inepto por falta de causa de pedir, que tal nulidade não fora sanada (irrelevando, por extemporâneo o alegado na contestação) e não haver lugar a despacho de aperfeiçoamento, absolvido os Executados da instância executiva.

Agora irresignados vieram os Executados interpor recurso de revista nos termos dos artigos 671º, nº 1, e 674º, nº 1, al. a), do CPC, concluindo, em síntese, não ocorrer uma ineptidão do requerimento executivo por falta de causa de pedir determinante de uma absolvição da instância, mas antes uma insuprível insuficiência de alegação de factos essenciais determinante de uma absolvição do pedido.

Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.


II – Da admissibilidade e objecto do recurso


A situação tributária mostra-se regularizada.

O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

 Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

  O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º, 671º e 854º do CPC).

 Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

  Destarte, o recurso merece conhecimento.

  Vejamos se merece provimento.           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

 - se ocorre falta de causa de pedir ou, antes, insuficiência de alegação;

- das consequências da situação verificada.


III – Os factos

A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.        


IV – O direito


É adquirida (na esteira dos ensinamentos de CASTRO MENDES - ‘A Causa de Pedir na Acção Executiva’, Separata da ‘Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa’, 1965 -, ANTUNES VARELA – Anotação na RLJ, Ano 121, pg. 146, ss. -, REMÉDIO MARQUES - ‘Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto’, 2000, pg. 52-53 -, AMÂNCIO FERREIRA - ‘Curso de Processo de Execução’, 4ª ed., revista e actualizada, 2003, pg. 116, ss. - e LEBRE DE FREITAS - ‘A Acção Executiva – Depois da reforma da reforma’ 5ª ed., 2009, pg. 75-76) a diferenciação e autonomia entre os conceitos de título executivo (documento donde consta – mas não donde nasce - a obrigação cuja prestação se pretende obter por via coactiva) e de causa de pedir (a situação factual donde imana a obrigação exequenda) na acção executiva.

E dada aquela autonomia e diferenciação nada impede, pelo contrário é determinada no art.º 551º, nº 1, do CPC, a aplicação subsidiária das disposições do processo de declaração no processo de execução, nomeadamente no que respeita à falta ou insuficiência da causa de pedir.

A causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. Nesse sentido a causa de pedir não se basta com a mera alegação de factos naturalísticos (factos ‘brutos’), mas antes esses factos devem ser alegados por referência a um quadro jurídico-normativo (factos ‘institucionais’) em função do efeito jurídico pretendido. Mas, por outro lado, dada a sua função individualizadora, a causa de pedir tem de ser densificada com uma alegação minimamente circunstanciada dos factos constitutivos da relação material donde imana a obrigação exequenda.

Relativamente à irregularidade da alegação da causa de pedir (cf. artigos 552º, nº 1, al. d) e 724º, nº 1, al. e) do CPC) podem ocorrer duas situações, nem sempre de fácil distinção: a falta da causa de pedir e a insuficiência da causa de pedir (por não estar em causa nos autos desconsideramos, agora, a situação de ininteligibilidade da causa de pedir).

Na primeira – falta – omite-se a alegação dos factos que integram o núcleo essencial da concreta situação de que emerge a pretensão deduzida, permitindo a sua individualização. Na segunda – insuficiência – não obstante resultar individualizada a concreta situação donde emerge a pretensão deduzida foi omitida a alegação de factos de que depende a procedência da acção.

A primeira – falta – implica a nulidade de todo o processo (art.º 186º do CPC), é, por regra, insuprível (cf. GERALDES/PIMENTA/SOUSA, ‘Código de Processo Civil Anotado’, vol. I, 2ª ed., pgs. 234-235, anotação 15 e nº 3 do referido artigo 186º), e de conhecimento oficioso, até ao saneador ou, se a acção não comportar saneador, até à sentença final (art.º 200º, nº 2 do CPC). Mas constitui, também, excepção dilatória de conhecimento oficioso (artigos 278, nº 1, al. b), 577º, al. b), 578º, 726º, nº 2, al.b), do CPC). A segunda – insuficiência – é suprível através do convite ao aperfeiçoamento (art.º 590º, nº 4, do CPC) e a persistência da insuficiência dá lugar à improcedência da acção (por ausência de factos de que dependia a pretensão deduzida) e não à absolvição da instância.

 Como critério de diferenciação entre as situações de falta de causa de pedir e de insuficiência da causa de pedir ABRANTES GERALDES (‘Temas da reforma do Processo Civil’, I vol., 2ª ed., revista e ampliada, 2003, pg. 209, nota 377) indica «um juízo de prognose acerca da delimitação do caso julgado, pressupondo uma sentença favorável ao autor. Desta forma, projectando no futuro a decisão, se for então possível determinar concretamente qual a situação jurídica que foi objecto de apreciação jurisdicional, sem correr riscos de repetição da causa, não se verificará a falta de causa de pedir. Já quando, por falta de invocação de qualquer matéria de facto, de grave deficiência na sua descrição ou por falta de localização no espaço e no tempo, for previsível o risco de repetição da causa ou se tornar impossível a averiguação da relação jurídica anteriormente litigada deverá concluir-se pela ineptidão da petição inicial».


 Nos presentes autos a Exequente pretende a cobrança coerciva de determinada quantia, «originada por via de diversos negócios celebrados pelos Executados» e de que estes se confessaram devedores (por escritura pública sem, contudo, nela referirem a origem dessa dívida).

 Vem indiscutida a necessidade de, em face do título executivo, os Exequentes alegarem, segundo o art.º 458º do CCiv, a relação causal da dívida exequenda.

 O que se discute é se a situação dos autos configura uma situação de falta de causa de pedir ou antes de insuficiência da causa de pedir.

  Relativamente à alegação da relação causal da dívida exequenda os Exequentes limitaram-se a referir, como já apontado, que ela advinha «de diversos negócios celebrados pelos Executados», não se encontrando no requerimento executivo qualquer outra referência à origem da dívida exequenda.

 Ora essa referência, pelo seu carácter vago e genérico, é insusceptível de individualizar a relação causal da dívida exequenda, os factos que integram o núcleo essencial da concreta situação de que emerge a pretensão deduzida, uma vez que sempre se fica sem saber qual o concreto negócio, de entre os diversos que se dizem celebrados pelos Executados, que originou aquela dívida. Estamos, assim, perante uma situação em que não é possível determinar concretamente qual a situação jurídica que originou a dívida exequenda, individualizando-a, criando uma situação de indefesa para os Exequentes, que terão de exercer o contraditório não relativamente a uma individualizada situação, mas a todas as situações que possam ter originado aquela dívida.

 Os termos da petição de embargos deduzida pelos Embargantes evidencia, aliás, essa indeterminação da origem da dívida, levando à invocação de múltiplas circunstâncias tendentes a inviabilizar a pretensão executiva; mas nenhuma delas correspondendo à situação que, na contestação a essa oposição, a Exequente vem indicar como a originária da dívida exequenda.

 Estamos, dessa forma, perante uma manifesta falta de causa de pedir (cf. ABRANTES GERALDES, op. cit., pg. 210).

 Do teor da petição de embargos resulta que os Embargantes não identificaram convenientemente a relação causal intentada pela Exequente (e na contestação aos embargos identificada), assim se afastando a possibilidade de sanação da apontada irregularidade prevista no art.º 186º, nº 3, do CPC.

  Não é caso de aplicação da doutrina estabelecida no Assento 12/94 («A nulidade resultante de simples ininteligibilidade da causa de pedir, se não tiver provocado indeferimento liminar, é sanável através de ampliação fáctica em réplica, se o processo admitir este articulado e respeitado que seja o princípio do contraditório através da possibilidade de tréplica» - DR, I Série – A, 21JUL1994) desde logo porquanto não estamos perante um caso de ininteligibilidade da causa de pedir (a situação factual invocada é descrita de forma confusa, ambígua, obscura, impedindo a sua segura apreensão), mas também porque a lei processual actualmente não admite (como o fazia na altura em que foi proferido o assento) a alteração da causa de pedir na réplica.

 Encontramo-nos perante uma excepção dilatória insusceptível de ser sanada, insuprível.

 De conhecimento oficioso, até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, conforme o disposto no art.º 734º do CPC; conhecimento esse que pode, em nosso modo de ver (não obstante a opinião contrária de REMÉDIO MARQUES – op. cit., pg. 143 – e LEBRE DE FREITAS – op. cit., pgs. 164-165) e por razões de manifesta economia processual, ter lugar, indiferentemente, quer na própria execução quer no apenso de oposição por embargos, ainda que a excepção em causa não integre os fundamentos desta.

 Donde se conclui não ter a Relação errado ao absolver os Executados da instância executiva em função da ineptidão, por falta de causa de pedir, do requerimento inicial da execução.

V – Decisão

Termos em que se nega a revista, confirmando a decisão recorrida.

 Custas (da execução, da oposição, das duas apelações e da revista) pela Exequente.

Fixa-se a taxa de justiça global devida pela execução, pela oposição à execução, pela oposição à penhora, pelas duas apelações e pela revista em 15.000 € (quinze mil euros), dispensando-se o demais remanescente.

                                                                                  

Lisboa, 11NOV2021


Rijo Ferreira (relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista