Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3454/15.7T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
ALCOOLEMIA
NEXO DE CAUSALIDADE
DEFESA POR IMPUGNAÇÃO
SANEADOR-SENTENÇA
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 12/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO, DETERMINADA A BAIXA DOS AUTOS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALÍNEA B), 635.º, N.º 4, 637.º, N.º 2 E 639.º, N.ºS 1 E 2.
Sumário :

A sentença que conhece do mérito da acção – intentada pela seguradora para exercício do direito de regresso contra o condutor sob efeito do álcool – na fase do saneador, sem conceder ao réu fazer prova de que a causa do acidente não foi o estado de alcoolemia, como alegado na contestação, viola o direito de defesa do réu e determina a revogação do acórdão recorrido e prosseguimento dos autos para julgamento.


Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. AA, SA,  à qual veio a suceder "BB, SA",  intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC, alegando, em síntese, que por força de contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo automóvel com a matricula ...-UH a autora efectuou o pagamento de indemnização, no valor total de € 63.503,00, aos herdeiros de DD, ocupante do veículo seguro que veio a falecer devido a acidente de viação por cuja produção foi responsável o réu, condutor do veículo seguro, que o conduzia sob o efeito do álcool, em taxa superior à permitida, e em desrespeito pelos deveres gerais de cuidado que se lhe impunham, conduzindo de forma desatenta e imprudente não adequando a velocidade às especificidades da via em que circulava.
Concluiu a autora pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a referida quantia de 63.503,00 euros, acrescida de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Na contestação, o réu começou por arguir a excepção da prescrição do direito da autora, tendo ainda impugnado que o facto de então conduzir sujeito a uma taxa de álcool no sangue superior à permitida tenha sido causal do acidente. Tudo para concluir pela improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido.

2. Oportunamente foram saneados os autos e decidida a excepção de prescrição, que foi julgada improcedente (cfr. fls. 123 ss.). Realizou-se a audiência prévia como consta da acta de fls. 171 e seguintes, na qual foram debatidas com os mandatários das partes as questões jurídicas que nos autos se levantam.
Foi então apreciado o mérito da causa, por sentença que julgou a acção totalmente procedente e, em consequência, condenou o réu a pagar à autora a quantia de € 63.503,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até efectivo e integral pagamento.

3. Não se conformando, o réu apresentou recurso de apelação, em que pediu fosse revogada a sentença, com a sua absolvição do pedido por se não verificarem os pressupostos do exercício do direito de regresso da autora.

4. A Relação veio a conhecer da apelação, julgando-a improcedente e mantendo a decisão recorrida, embora com fundamentação jurídica diversa e com um voto de vencido.

5. Não se conformando com o acórdão, dele apresentou revista, na qual formula as seguintes conclusões (transcrição):
A) O Tribunal "ad quo" fez uma errada interpretação e aplicação da Lei processual, uma vez que ainda que entenda que a alteração da legislatura (sic) que trouxe o DL 291/2007 dispensa a Seguradora de provar o nexo causal entre a etilização do condutor e qualquer falha cometida por este na condução que produziu o acidente: ou seja que existe uma presunção a favor da Seguradora que a simples etilização é causa do acidente.
Ainda assim, esta presunção legal é sempre susceptível de ser ilidida pelo condutor, se quiser afastar a sua responsabilidade (cfr. Acórdão do STJ de 6/4/2017, no Proc.º16581l4.9TBVLG.P1.Sl. Isto é,
B) O Tribunal "ad quo" ao não sindicar tal facto tendo em conta essa circunstância e atento o facto de que a decisão da 1.ª Instância foi proferida em sede de Audiência Prévia, sem produção de prova em Julgamento, não cumpriu igualmente o disposto no art.°662.°, n.° 2, alínea g) C.P.Civ, o que se traduz da mesma forma na nulidade do Acórdão nos termos do art°615.°, d) do C.P.Civ ..
Ou seja,

C) Tendo em conta as Alegações do R. em sede de Contestação e do Recurso para a Relação, de factos susceptíveis de ilidir qualquer responsabilidade sua no acidente, designadamente, qualquer presunção de culpa ou responsabilidade, tais como o piso que se encontrava molhado, o facto de não conduzir em excesso de velocidade, dado que ficou provado que não conduzia a velocidade superior a 50 Km/h , o estado dos pneus e o facto de a lesada não levar cinto de segurança, tal como resulta da própria Sentença do Proc.º n.° 11/10.8GCALQ, no qual se baseou o direito de regresso do A. o Tribunal "ad quo" deveria ter dado ao R. o seu direito de produzir prova que lhe foi negado pela 1ª Instância, mandando anular a decisão e ampliar a matéria de facto.
Tendo deste modo o Tribunal "ad quo", violado as regras processuais estabelecidas no art° 662.°, n.º 1 e n.º 2, a) C.P.Civ .
Tanto, mais que,
D) Para além de todo o supra exposto, acresce que o próprio Acórdão da Relação ao decidir no sentido em que decidiu, corroborou com uma Sentença conclusiva da 1.ª Instância, ferida de absoluta falta de fundamento e de factos concretos que levam à decisão, o que constitui uma nulidade (art.°615.°, n.°1, b) C.P.Civ.), nulidade essa em que incorre igualmente o Acórdão de que ora se recorre.
E) Acresce que, o facto de se concluir que o veículo entra em despiste e não considerou que o piso estava molhado e os pneus desgastados como deveria ter feito, apenas tendo considerado que a visibilidade era boa e o piso estava em bom estado de conservação, ora, o facto de piso estar molhado pode ter contribuído para o despiste e não foi dado ao R. como deveria ter sido de acordo com a Lei processual, possibilidade de provar neste processo que não teve qualquer responsabilidade no acidente, ou seja ilidindo qualquer presunção a seu desfavor, como lhe possibilita o art.° 662.°, n.º 2, g) C.P.Civ. e o art.° 350.°, n.º 2 C.Civ ..
Termos em que se requer seja dado provimento ao presente Recurso, atenta a sua fundamentação e conclusões e consequentemente seja o Acórdão da Relação considerado ferido de nulidade, nos termos do art.° 615.°, d) conjugado com o art.° 662.°, n.º2 c) parte final C.P.Civ. Absolvendo o R. do pedido.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar.

II. Fundamentação

6. Com relevo para a decisão da causa resultou provado que:

1 - A A. celebrou com EE um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice ..., segurando a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo com a matricula ...-UH; Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte Juizo Central Civel de Loures - Juiz ........., Rua Professor ........2674-502 Loures Telef: 219825200/219838430 Fax: 211987049 Mail: loures.centralcivel@tribunais.org.pt Processo N.º 3454/15.7T8LRS
2 - No dia 24/01/2010, pelas 09h00m, na Rua ..., ocorreu um acidente de viação no qual foi interveniente o veículo ligeiro com a matrícula ...-UH, conduzido pelo R. CC e onde seguia como passageira DD.
3 - O local onde o acidente ocorreu caracteriza-se por apresentar uma via com uma curva à esquerda, na qual converge um entroncamento à direita, atento o sentido de marcha do veículo ...-UH, seguida de uma pequena ponte.
4 - O acidente ocorreu quando o R. perdeu o controlo do veículo ao realizar a curva à esquerda, entrando em despiste para a direita, vindo a colidir com a frente do veículo no pilar da referida ponte.
5 - A visibilidade no local era boa e o piso encontrava-se em bom estado de conservação.
6 - Em resultado do acidente a passageira DD faleceu.
7 - Submetido a teste quantitativo de álcool no sangue o R. acusou uma TAS (taxa de álcool no sangue) de 1,96 gramas/litro.
8 - O acidente deu origem ao processo-crime n° 11/10.8GCALQ e nele foi o ora R. constituído arguido.
9 - Por sentença de 15/06/2011, proferida no âmbito daquele processo, foi o arguido, ora R., condenado pela prática, em 24/01/2010, do crime de homicídio por negligência na pena de dois anos de prisão, e pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez na pena de oito meses de prisão, e em cúmulo jurídico na pena única de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
10 - A A. efectuou o pagamento de indemnização, no valor total de C 63.503,00, aos herdeiros de DD.

Nada mais resultou provado com relevância para a decisão da causa.

7. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1ª parte e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.

Questões suscitadas no recurso:
a) Saber se o acórdão é nulo por falta de fundamentação - art.°615.°, n.°1, b) C.P.Civ.;
b) Saber se o acórdão decidiu com violação da lei, ao não ter permitido ao Réu o exercício do direito a produzir prova no sentido de demnostrar que apesar de conduzir com taxa de alccolemia superior ao limite legal não foi esse facto que deu causa ao acidente.


8.  A falta de fundamentação que determina a nulidade a que se refere a al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC apenas se verifica quando é totalmente omitida a sustentação do julgado. Não é essa a situação do acórdão recorrido, que responde às questões colocadas no recurso, indicando os motivos de facto e de direito que sustentam a posição adoptada.
Improcede o argumento do recorrente.

9. Na decisão recorrida, conforme se sustenta no voto de vencido, não se permitiu ao R. que fizesse prova dos factos alegados em sua defesa, tomando-se uma decisão que conhece do objecto da acção imediatamente após a audiência prévia.
Com a prolação da sentença foram apenas tidos em consideração os meios de prova que já constavam do processo e que são de natureza documental.
Tendo o Réu o direito de procurar demonstrar os factos que alegou na contestação através de outros meios de prova que só poderiam ser atendidos se a causa não fosse imediatamente decidida após a audiência prévia, não lhe foi possível, em termos materiais, exercer o direito à defesa que lhe assiste.
Deve, por isso, revogar-se o acórdão recorrido e determinar que os autos baixem à 1ª instância para produção de prova, nos termos legais, como se a sentença não tivesse sido imediatamente proferida.

III. Decisão
Pelos fundamentos indicados, revoga-se o acórdão recorrido, determinando-se a baixa dos autos e o seu prosseguimento, com admissão da produção de prova pela Réu, dos factos invocados na sua defesa.

Sem custas

Lisboa, 19 de Dezembro de 2018


Fátima Gomes


Acácio Neves


Maria João Vaz Tomé