Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
50/14.0YRGMR.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: DIREITO INTERNACIONAL
PRINCÍPIOS DA ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
RECURSO DE REVISTA
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
TERCEIRO
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
FALTA DE CITAÇÃO
ARGUIÇÃO
TEMPESTIVIDADE
SANAÇÃO
ADMINISTRAÇÃO
PATRIMÓNIO
CURADOR
Data do Acordão: 10/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PARTES / PERSONALIDADE E CAPACIDADE JUDICIÁRIA - TRIBUNAL / COMPETÊNCIA INTERNACIONAL - PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS ( ATOS PROCESSUAIS ) / NULIDADES - PROCESSOS ESPECIAIS / REVISÃO DE SENTENÇAS ESTRANGEIRAS / RECURSOS.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, V, reimpressão, 1981, 270 a 275; Processos Especiais, 1982, II, 167; Processos Especiais, II, reimpressão, 1982, 202, 203.
- Batista Machado, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1965, 106 a 114.
- Estudos sobre o Código de Processo Civil, BMJ nº 123º, 132.
- Ferrer Correia, Aditamentos às Lições de Direito Internacional Privado, Do Reconhecimento e Execução das Sentenças Estrangeiras, 1973, 17 e 18, 106 e 107; Homenagem à Memória do Doutor Álvaro da Costa Machado Vilela, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, XXXVI (1960), 358; Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, 1973, 40, 41 e 559; O Novo Direito Internacional Privado Português (Alguns Princípios Gerais), texto das conferências proferidas na Real Academia de Jurisprudência e Legislação de Madrid e na Sociedade de Legislação Comparada de Paris, em 1972, 11 a 15; Unidade do Estatuto Pessoal, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, XXX (1954), 105.
- Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, Almedina, 663.
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, IV, 2ª edição, revista e actualizada, 2005, 256.
- Wengler, Les principes généreaux du DIP et leurs conflits, Revista Crítica de DIP, 1952, 595 a 622; 1953, 37 a 60.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 20.º, N.ºS 1, 2 E 4, 21.º, N.ºS1 E 3, 62.º, 189.º, 631.º, N.ºS 1 E 2, 671.º, N.º1, 980.º, ALÍNEAS C), E) E F), 981.º, 982.º, 985.º, N.ºS1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 829/96, DE 26-6-1996, DR II, DE 5-3-1998, 2845.

-*-

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 24-10-1969, BMJ Nº 190, 275;
-DE 15-12-2011, Pº 767/06.2TVYVNG.P1.S1, WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - A divergência de fins entre o princípio do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras e o Direito Internacional Privado só seria possível se a confirmação das sentenças estrangeiras não dependesse da aplicação do direito competente, na perspetiva das normas de conflitos do foro do Estado onde se procede à sua revisão.

II - O princípio do interesse ou ordem pública suplanta o princípio da harmonia jurídica internacional quando é preciso, por falta de disposições positivas, determinar o âmbito das regras materiais, em consonância com o interesse político dos Estados.

III - Cabendo recurso de revista para o STJ do acórdão da Relação, proferido sobre sentença de 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou alguns dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos, configurando a revisão de sentença estrangeira uma decisão em 1.ª instância, que não conhece, no caso concreto, do mérito da causa, põe termo ao processo, pelo que deve ser objeto de revista, sob pena de intolerável afronta ao princípio do duplo grau de jurisdição.

IV - Terceiro a quem é reconhecida legitimidade para o recurso é toda a pessoa que, não sendo parte, principal ou acessória, na causa, seja, direta e efetivamente, prejudicada com a decisão, tratando-se de um prejuízo que se repercute, de forma nuclear, no património físico ou moral do recorrente, não se tratando de um prejuízo ou dano, meramente colateral ou reflexo, como o que pode decorrer de uma vaga ameaça de um prejuízo eventual e incerto.

V - Tendo o MP intervindo no processo, em representação da parte principal, aquando da apresentação das alegações, primeiro ato que constitui a sua inicial intervenção, concluindo, então, pelo deferimento do pedido, sem haver arguido a falta da sua citação, determinou que a nulidade verificada decorrente dessa falta da sua citação para assumir a defesa daquela, se deva considerar sanada, sem qualquer repercussão na nulidade de todo o processado posterior ao da citação da curadora especial do requerido, sem embargo da violação do princípio do contraditório, entretanto, neutralizada.

VI - A ordem pública internacional do Estado Português, distinta da ordem pública de direito interno, é constituída por aquele conjunto de normas e conceções sobre a vida em sociedade que servem de base ao nosso sistema ético-jurídico e que devem respaldar a prolação de decisões jurisprudenciais equitativas, independentemente dos fundamentos que as sustentam.

VII - A administração do património do requerido, de que a recorrente é contitular, por parte do requerente, seu curador nomeado, não colide com os valores essenciais básicos do ordenamento jurídico nacional, tido por inderrogável, ou com algum interesse de precípua grandeza da comunidade local e, consequentemente, não viola os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, não se verificando a exceção da ordem pública internacional como limite à eficácia da sentença revidenda e impedimento à aplicação da lei competente, com ressalva das regras de conflito da «lex fori».

Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:

AA, advogado, com escritório em ..., Suíça, veio propor contra BB, viúvo, residente na rua de ..., …, …, ..., Suíça, e último domicílio em Portugal, na …, .., … …, a presente ação declarativa, com processo especial, nos termos do disposto pelo artigo 978.º e seguintes, do Código de Processo Civil (CPC), pedindo a revisão e confirmação da sentença, proferida a 15 de Novembro de 2013, pelo 2.º Juízo do Tribunal de Proteção de Adultos e das Crianças da República e Cantão de ..., Suíça, já transitada em julgado, onde foi, nomeadamente, instituída a curatela, de âmbito geral, do requerido, nomeado curador o requerente e autorizado o curador a tomar conhecimento da correspondência do requerido e, se necessário, penetrar no seu alojamento, conforme cópia certificada da sentença traduzida.

Não tendo sido possível citar o requerido, na sua pessoa, por se encontrar impossibilitado de receber a citação, em virtude de estar em tratamento, no Hospital …, ..., por força de um acidente sofrido, em 13 de Novembro de 2013, foi citada a sua irmã, CC, como consta de folhas 35 a 40, a qual não deduziu oposição.

O Ministério Público, nas suas alegações, concluiu pelo deferimento do pedido.

Por decisão singular do Exº Relator do Tribunal da Relação de Guimarães, foi concedida a requerida revisão, confirmando-se a sentença proferida, em 15 de Novembro de 2013, pelo 2.º Juízo do Tribunal de Proteção de Adultos e das Crianças da República e Cantão de ..., Suíça, já transitada em julgado, para que produza todos os efeitos em Portugal.

A requerente DD, notificada do despacho do Relator, proferido em 26 de Fevereiro de 2015, que indeferiu, liminarmente, o recurso de revista que interpôs, por não ser, legalmente, admissível, veio reclamar para a conferência dessa decisão.

A conferência entendeu que o recurso de revista interposto deveria ter sido convolado para reclamação para a conferência, como veio a acontecer, decidindo, porém, não admitir a reclamação, que foi convolada do recurso de revista, relativamente ao despacho do Relator, por falta de legitimidade da requerente/reclamante, e não conhecer da mesma.

Deste acórdão, a requerente DD interpôs recurso de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça, pedindo que, na sua procedência, o mesmo seja admitido, sendo, a final, o acórdão recorrido substituído por outro que reconheça a sua legitimidade para a apresentação da reclamação da decisão sumária proferida pelo Exº Relator, e, a final, proferido um acórdão que declare nula a decisão que reconheceu a sentença estrangeira, ou, caso assim se não entenda, que a mesma seja revogada, não sendo a sentença proferida pelo tribunal, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem, na sua totalidade:

1ª - O acórdão ora recorrido decidiu não conhecer da reclamação da decisão sumária proferida pelo Exmo. Sr. Juiz Relator do processo com o fundamento da ilegitimidade da ora recorrente para a apresentação da mesma.

2ª - Tal decisão sumária corresponde ao reconhecimento de uma sentença proferida por uma entidade jurisdicional Suíça, nos termos dos arts. 978° e ss. do CPC.

3ª - Tal sentença corresponde à nomeação de um tutor ao requerido, BB, em face da sua incapacidade física para administrar os seus bens e manifestar a sua vontade.

4ª - O referido tutor nomeado foi o requerente da respectiva acção de reconhecimento de sentença estrangeira.

5ª - Requerente esse que pretendia ver estendidos os seus poderes de tutoria também ao território Português.

6ª - A decisão sumária proferida nos autos revestiu um carácter tabelar, desconsiderando toda a factualidade a que o requerente aludiu, e bem, na acção por si interposta.

7ª - Nomeadamente o facto de o requerido ser incapaz, em face de deficiência física e mental de se pronunciar sobre qualquer questão - razão pela qual tem tutor nomeado na Suíça.

8ª - Deficiência física e mental que surgiu em consequência de um atentado selvático em plena via pública, de que o requerido foi alvo em ..., na Suíça, onde residia há vários anos.

9ª - Tal atentado comportou o golpeamento da carótida, no pescoço, tendo aquele ficado inanimado no chão até ser levado para o hospital - facto que atentando contra a sua integridade física, pôs em causa funções vitais e perigado a vida do requerido, pois este ficou sem irrigação sanguínea suficiente, durante algum tempo, no cérebro e outros órgãos vitais.

10ª - Estando o requerido actualmente incapaz de pronunciar mais do que vocábulos simples, comer sem auxílio, andar, no fundo realizar as actividades mais basilares de sobrevivência.

11ª - Razão pela qual jamais o requerido tem capacidade para demandar ou ser demandado em juízo - e disto bem sabia o seu tutor que apresentando-se como requerente ...demandou aquele de quem é tutor !...

12ª - Assim, em face de tal factualidade encontramo-nos perante uma nulidade da citação, nos termos do art. 191 ° do CPC.

13ª - Na medida em que não foi dado provimento pelo Tribunal a quo a qualquer dos normativos legais prescritos para a regulamentação da notificação de pessoas incapazes, nomeadamente os arts. 17°, 20°, 21°, 223° e 234°, todos do CPC.

14ª - Acarretando tal actuação a nulidade de todo o processado posterior ao requerimento inicial, nos termos do art. 187° do CPC.

15ª - Nesse sentido, o requerente, depois de várias diligências e insistências do Tribunal, inclusive junto do Consulado de Portugal em ..., indicou uma irmã do requerido para ser citada para contestar a acção.

16ª - Irmã essa que, assinando o respectivo registo de citação nada mais fez, não zelando pelos interesses do requerido, não se podendo, de forma alguma, considerar que o mesmo foi regularmente citado por essa via.

17ª - Assim, a citação do requerido foi por demais ilegal, violando o art. 980/f) do CPC, e os restantes normativos elencados supra no n.° 12.

18ª - Violando-se consequentemente o direito ao contraditório, constitucionalmente atribuído ao requerido.

19ª - Por outro lado, ao serem reconhecidos poderes de tutoria ao requerente em território Português, está-se a violar gravemente direitos legalmente atribuídos à ora recorrente, irmã do requerido.

20ª - Na medida em que esta é detentora de contas bancárias e outros bens em conjunto com o seu irmão, tendo sempre administrado condignamente todo o património.

21ª - Património esse que apresenta uma linha separadora muito ténue do que pertence efectivamente à ora recorrente e do que pertence ao seu irmão.

22ª - Não se vislumbrando assim como legítima a intromissão de um terceiro no património seu e do seu irmão, sem qualquer razão justificativa para tal e sem ter tido a possibilidade de cabal e legalmente se pronunciar sobre tal facto.

23ª - Correspondendo tal intromissão a uma devassa por demais lesiva dos reais e actuais interesses da ora recorrente.

24ª - Situação essa que consubstancia mesmo uma violação da ordem pública internacional do Estado Português, facto que impossibilita a revisão da sentença estrangeira pelo Tribunal a quo, nos termos do art. 980°/f)-.

25ª - Facto esse que também sustenta a legitimidade da recorrente para interpor o presente recurso, enquanto pessoa directa e efectivemante lesada pelo acórdão recorrido, nos termos do art. 631°/2 do CPC.

26ª - Na medida em que com as actuações lesivas do requerente, curador do seu irmão, a ora recorrente depara-se com um prejuízo real e actual ao seu património pessoal, quer seja patrimonial, quer seja moral.

27ª - Devendo assim o acórdão recorrido ser substituído por um que reconheça a legitimidade da ora recorrente para a apresentação da anterior reclamação.

28ª - E como tal sendo proferido pela conferência do Venerando Tribunal da Relação da Guimarães um acórdão que conheça do mérito da cuasa.

29ª - Sendo a final a decisão que reconheceu a sentença estrangeira ser declarada nula ou ser revogada, jamais se considerando revista a respectiva sentença, e não produzindo esta os seus efeitos em Portugal.

30ª - Declarando-se a final que o requerente não possui qualquer poderes de tutoria do requerido quanto aos bens existentes em Portugal.

Nas suas contra-alegações, o requerente AA sustenta que deve ser mantido o douto acórdão proferido, enquanto que o Ministério Público conclui que a recorrente não alegou qualquer prejuízo direto e efetivo, não tendo, por isso, legitimidade para recorrer, devendo manter-se o acórdão em crise.

                                                               *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objeto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nºs 4 e 5, 639º e 679º, todos do CPC, são as seguintes:

I – A questão do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras.

II – A questão da legitimidade da recorrente.

 III – A questão da nulidade da citação do requerido com a consequente violação do direito ao contraditório.

IV – A questão da violação do princípio da ordem pública internacional do Estado Português.
I. DO RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DAS SENTENÇAS ESTRANGEIRAS

O princípio do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras tem por finalidade a garantia da estabilidade, uniformidade e certeza da regulamentação das situações jurídicas interindividuais da vida internacional, tendendo à realização do mesmo tipo de justiça do Direito Internacional Privado, ou seja, de uma justiça formal, sob pena de adesão a um sistema de justiça material, que implicaria a sujeição sistemática de todas as sentenças estrangeiras a uma revisão de mérito ou de fundo[2].

Por isso, a justificação do princípio do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras não decorre de qualquer norma superior que a tal obrigue o Estado, prosseguindo antes a mesma finalidade do Direito Internacional Privado.

Aliás, a divergência de fins entre o princípio do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras e o Direito Internacional Privado só seria possível se a confirmação das sentenças estrangeiras não dependesse da aplicação do direito competente, na perspetiva das normas de conflitos do foro do Estado onde se procede à sua revisão.

A questão de saber se constitui requisito da confirmação da sentença estrangeira, para além do apuramento da competência internacional do tribunal que proferiu a sentença a rever, a verificação da respectiva competência interna, encontra-se solucionada pelo artigo 980º, c), do CPC, oriundo da versão resultante da Revisão de 1995/96, ao estatuir que, para tanto, importa que a sentença “…provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses”.

Efetivamente, este pressuposto mais não é do que a consagração das regras constantes do artigo 62º, do CPC, que enumeram os vários factores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses.

Se a sentença confirmanda, proveniente de tribunal estrangeiro, não pode versar sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, tal significa que se trata de uma questão de competência internacional e não de um problema de competência interna.

E a sentença confirmanda provém de um tribunal estrangeiro competente quando um tribunal português, colocado na situação daquele, se acharia, internacionalmente, competente, ou seja, o tribunal de origem é, internacionalmente, competente se, em relação ao mesmo, se tiver verificado qualquer um dos pressupostos que, de acordo com o disposto pelo artigo 62º, do CPC, decidem da competência internacional dos tribunais portugueses[3].

A conexão entre a norma de conflitos e o reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras é um facto incontestável, sendo certo que o dever imposto aos juízes, pela lei que vigora no país, de reconhecer e executar as sentenças estrangeiras, pode operar como uma regra de conflitos suplementar disfarçada, que determinará a lei que rege as relações inter-subjectivas[4].

Os princípios da ordem pública, da harmonia interna e da consideração do fim legislativo das leis nacionais apresentam a particularidade de fazer depender a solução dos problemas dos conflitos de leis do conteúdo das soluções possíveis e, consequentemente, do conteúdo e do fim das regras materiais em presença, contrariamente ao que acontece com o princípio da harmonia jurídica internacional, para o qual é indiferente o resultado concreto do processo de aplicação das regras materiais que apresentam conexão com os factos[5].

 O princípio da harmonia jurídica internacional limita-se a afirmar que o direito aplicável deve ser definido, por forma a que a solução a encontrar seja, tanto quanto possível, idêntica à assumida pelos outros Estados, em especial, por aqueles que, em relação ao mesmo litígio, reclamam a competência dos seus Tribunais, não assumindo, portanto, o conteúdo da decisão qualquer importância na determinação da lei aplicável.

O conteúdo da decisão a proferir não releva, em particular, para a finalidade das regras materiais em causa, logo que se tenha atingido o desígnio fundamental de atenuar, na medida do possível, a proliferação de conflitos com outros Estados.

O princípio da harmonia jurídica internacional, que mais não é do que um princípio do mínimo de conflitos, propicia uma oportunidade singular de evitar decisões discordantes entre o Estado do foro e o Estado cujo direito material é aplicável à questão principal[6].

É, sobretudo, com base no reenvio, segundo o qual o Estado que não apresente conexão com o litígio, justificando a aplicação da sua própria lei, deve, mesmo contra o estabelecido pelas suas regras de conflitos, aplicar o direito que os Estados interessados estão de acordo em designar como elegível, que o princípio da harmonia jurídica internacional assume a sua importância, e isto sem esquecer que, mesmo nesta hipótese, o princípio em apreço não chega, por si só, para designar a lei aplicável.

Importa, além disso, que uma determinada norma da «lex fori» preceitue sobre a necessidade da referência ao Estado da naturalidade ou do domicílio de uma das partes, para, só em seguida, se aderir às normas de conflitos desse Estado que favoreçam, mais do que a aplicação estrita das suas regras materiais, a unidade de soluções dos espaços territoriais envolvidos.

A definição do direito aplicável, na perspetiva da prossecução do princípio da harmonia material, em conformidade com anteriores decisões do juiz nacional sobre questões equivalentes, não corresponde, necessariamente, ao resultado alcançado, através da determinação do direito elegível, com referência ao princípio da harmonia jurídica internacional.

A regra material obtida, tomando como referência o princípio da harmonia jurídica internacional, por se tratar de um princípio aceite pela maioria dos Estados, corresponde a uma solução que não é, forçosamente, aquela que o interesse político do Estado mais forte considera aplicável, em especial, por obediência ao âmbito de aplicação do direito nacional ou estrangeiro.

O princípio da harmonia jurídica internacional exige, no mínimo, mesmo que se não tomem em consideração as normas de conflitos estrangeiras, uma repartição paritária das questões jurídicas entre os direitos dos diferentes Estados, mediante um factor de conexão escolhido pela «lex fori» e válido, indistintamente, para a aplicação desta e da lei estrangeira.

E se as distintas conexões dos diversos elementos de uma só causa, aumentando, embora, consideravelmente, a probabilidade de decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, nos diversos países, constituem uma violação grave do princípio da harmonia jurídica internacional, tal não justifica, contudo, a sua renúncia completa.

Por outro lado, para que sejam elegíveis as disposições imperativas do direito estrangeiro, importa atender ao campo de aplicação que o mesmo atribui a si próprio, de tal modo que a «lex fori» considera o âmbito de aplicação determinado pela norma estrangeira, com a extensão máxima que o Direito Internacional Privado do foro lhe pode atribuir, restringindo, assim, o grau de probabilidade de decisões contraditórias, nos diversos Estados cujos tribunais disputam a competência do caso concreto.

Porém, o princípio do interesse ou ordem pública suplanta o princípio da harmonia jurídica internacional quando é preciso, por falta de disposições positivas, determinar o âmbito das regras materiais, em consonância com o interesse político dos Estados.

A concorrência entre o princípio da harmonia jurídica internacional e o princípio da harmonia material resolve-se, na generalidade das situações, com a aplicação do primeiro, embora, excecionalmente, desde que os efeitos do princípio da harmonia jurídica internacional impliquem a destruição do princípio da harmonia material interna do Estado do foro, deva ser este último o prevalecente.

Com efeito, o princípio da determinação do direito aplicável, na ótica do fim das regras materiais, suplanta o princípio da harmonia jurídica internacional e o princípio da ordem pública, quando em concorrência com estes[7].

É que o valor da estabilidade internacional das situações jurídicas individuais está ao serviço de cada homem e da sua personalidade, sendo certo que as suas características “não devem ser coisas que o seu portador corra o risco de ver confiscadas numa fronteira, como artigos de contrabando”, mas antes constituir “algo de permanente, um foro inviolável”[8].

Afinal, “o homem é o mesmo em toda a parte”[9], e ao Direito Internacional Privado compete “garantir a cada homem, em qualquer latitude, a segurança do seu direito”[10].

Muito embora o princípio da harmonia jurídica internacional e o princípio da ordem pública mais forte estejam regulados, em bases paralelas, é, sem dúvida, o primeiro, que se poderia, igualmente, designar como o princípio da uniformidade de julgados, que constitui a via jurisdicional normal para a aplicação dos sistemas de Direito Internacional Privado, incompletamente, formulados.

Mas, nem sempre, contudo, é necessário sujeitar a revisão e confirmação o reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras, qualquer que seja a lei que o Tribunal tenha aplicado ao fundo da causa, após a realização do julgamento, sob pena de a probabilidade de decisões divergentes conduzir a uma oposição com o princípio da harmonia jurídica internacional.

Esta crítica não tem em conta que o problema do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras apresenta, em conexão com o Direito Internacional Privado, traços distintivos que lhe conferem autonomia.

Em primeiro lugar, não se deve esquecer que, se o Direito Internacional Privado procura a lei competente para reger as diferentes situações internacionais, a ideia fundamental, em matéria de reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras, consiste na indagação da jurisdição, internacionalmente, competente.

É inquestionável que as razões subjacentes às normas aplicáveis à determinação da jurisdição competente não se identificam com as que presidem à definição das normas de conflitos.

 Mas, se o Direito Internacional Privado, tal como o princípio da harmonia jurídica internacional, se inspiram em razões idênticas às do princípio do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras, ou seja, a proteção das expetativas dos indivíduos, da certeza e da estabilidade das situações jurídicas, ou seja, a segurança jurídica, não é concebível estabelecer entre eles uma alternativa substancial.

É possível que o Tribunal de origem solucione o litígio, aplicando uma lei diferente daquela que seria competente, do ponto de vista do Direito Internacional Privado da «lex fori».

Se as normas do Direito Internacional Privado do foro sofrerem um desvio, este obedece ainda aos princípios do mesmo ordenamento jurídico – ao valor da estabilidade e uniformidade da regulamentação das situações jurídicas -, essencial à natureza intrínseca do princípio da harmonia jurídica internacional.

No estrito âmbito do princípio da harmonia jurídica internacional, dir-se-á que o Direito Internacional Privado é um conjunto de normas que tem por fim a resolução das questões emergentes das relações privadas internacionais, para que, através do seu reconhecimento, em qualquer latitude, se possa obter a desejada estabilidade e uniformidade.

A aplicação, «in foro», do direito estrangeiro deve-se a um princípio de coordenação com as restantes ordens jurídicas, porquanto se cada Estado aceita a interligação do seu ordenamento jurídico com o dos outros, significa que tem como referência o princípio da harmonia jurídica internacional, ideal supremo da harmonia internacional de julgados.

                 II. DA LEGITIMIDADE DA RECORRENTE

II. 1. O acórdão recorrido decidiu não admitir a reclamação que foi convolada do recurso de revista, relativamente ao despacho do Relator, por falta de legitimidade da requerente/reclamante, e não conhecer da mesma.

Dispõe o artigo 985º, nº 1, do CPC/2013, que mantém, sem alterações, o regime constante do artigo 1102º, nº 1, do CPC/2008, que “da decisão da Relação sobre o mérito da causa cabe recurso de revista”.

Esta redação do artigo 1102º, nº 1, do CPC/2008, já fora importada da antecedente redacção do CPC, anterior à introduzida pelo DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, quando ainda subsistia, no ordenamento jurídico-processual civilista português, o regime dualista do recurso de apelação/revista e do recurso de agravo, desaparecido com o regime monista dos recursos, oriundo do CPC/2008.

Ora, quando a Relação não decidia do mérito da causa, relativamente à revisão/confirmação de sentença estrangeira, o recurso próprio para o Supremo Tribunal de Justiça era o de agravo, e isto, repita-se, até à entrada em vigor do CPC/2008.

Posteriormente a esta data, incluindo, como é óbvio, no âmbito do CPC/2013, quando a Relação não aprecia o mérito da causa, como acontece, na hipótese em presença, em que decidiu não conhecer da reclamação, por falta de legitimidade da recorrente, inexistindo já o instrumento processual do recurso de agravo, dir-se-ia não ser admissível o recurso de revista.

Aliás, já no âmbito da versão originária do actual CPC, se dizia que “se a Relação deixa de conhecer do objecto da acção ou profere qualquer acórdão interlocutório, cabe, então, segundo as regras gerais, recurso de agravo para o Supremo”[11].

Porém, o Ministério Público, ainda que não seja parte principal, pode recorrer com fundamento na violação das alíneas c), e) e f), do artigo 980º, nos termos do nº 2, do artigo 985º, ambos do CPC, obviamente, de revista, em situações que não contendem, propriamente, com o mérito da causa, como seja, designadamente, em matéria de regularidade da citação, a que se reporta a referida alínea c).           

Cabendo recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou alguns dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos, em conformidade com o disposto pelo artigo 671º, nº 1, do CPC, e configurando a revisão de sentença estrangeira uma decisão em 1ª instância[12], porque, na hipótese em apreço, não conhecendo do mérito da causa, pôs termo ao processo, deve ser objecto de recurso de revista, sob pena de intolerável afronta ao princípio do duplo grau de jurisdição.

Na verdade, por duplo grau de jurisdição entende-se, no seu sentido mais restrito, a possibilidade de obter o reexame de uma decisão jurisdicional, em sede de mérito, por um outro juiz, pertencente a um grau de jurisdição superior (“instância de segundo grau”)[13].

II. 2. Preceitua o artigo 631º, nº 1, do CPC, que “sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido”, acrescentando o seu nº 2 que “as pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias”.

Excluída que está a qualidade de parte principal ou, sequer, de parte acessória na causa da requerente, importa indagar se a mesma se reconduz ao conceito de “pessoa direta e efetivamente prejudicada pela decisão”, para efeito de admissibilidade do presente recurso de revista por ela interposto.

A expressão “pessoa direta e efetivamente prejudicada pela decisão”, adotada pelo legislador, veio “consagrar expressamente a doutrina de que não basta um prejuízo directo para legitimar a interposição de recurso por quem não pode considerar-se parte principal vencida. Há casos em que o prejuízo proveniente da decisão, embora seja directo (no sentido de que não é simplesmente mediato ou reflexo) é, todavia, eventual, longínquo, incerto, apenas provável ou possível. A nova reacção dada ao nº 2 significa que um prejuízo dessa natureza não basta para legitimar a posição do recorrente”[14].

A circunstância de a pessoa prejudicada pela decisão ter tido ou não ter tido intervenção no processo, parece, à face da letra e do espírito da norma, indiferente para a aplicação desta[15].

Deste modo, encontram-se, automaticamente, excluídas do conceito “pessoa direta e efetivamente prejudicada pela decisão”, em primeiro lugar, as pessoas a quem a decisão cause um prejuízo indirecto ou reflexo e, em segundo lugar, as pessoas a quem a decisão seja susceptível de produzir um prejuízo eventual, longínquo e incerto, porquanto, apenas, têm legitimidade para recorrer os terceiros que sofram um prejuízo actual e positivo com a decisão que pretendam impugnar[16].

Assim sendo, o terceiro a quem é reconhecida legitimidade para o recurso é toda a pessoa que, não sendo parte, principal ou acessória, na causa, seja direta e efetivamente prejudicado com a decisão, porquanto “o prejuízo tem que ser real e jurídico, não podendo ser meramente factual”[17], exigindo-se para assegurar o reconhecimento da legitimidade «ad recursum» do terceiro um “prejuízo que se repercuta, de forma nuclear, no património físico ou moral do recorrente, não se tratando de um prejuízo ou dano meramente colateral ou relexo[18].

II. 3. Revertendo ao caso em apreço, a recorrente DD invoca, como fundamento da admissibilidade do presente recurso, onde não é parte principal ou acessória, que, ao serem reconhecidos poderes de tutoria ao requerente, em território português, estão-se a violar, gravemente, direitos, legalmente, atribuídos à mesma, irmã do requerido, causando-lhe prejuízo, real e actual, ao seu património pessoal, quer seja material, quer seja moral, na medida em que esta é detentora de contas bancárias e outros bens, em conjunto com o seu irmão, apresentando o respetivo património que a cada um pertence uma linha separadora muito ténue.

Deste modo, invocando a recorrente uma vaga ameaça de um prejuízo eventual e incerto, aliás, não, suficientemente, caraterizado, em consequência do julgado, não resulta do mesmo qualquer lesão para aquela, susceptível de configurar a sua legitimidade para a interposição do presente recurso de revista.

                      III. DA NULIDADE DA CITAÇÃO

Alega a recorrente DD que é nula a citação do requerido, com a consequente nulidade de todo o processado posterior ao requerimento inicial e a violação do direito ao contraditório.

Dispõe o artigo 981º, do CPC, que “apresentado com a petição o documento de que conste a decisão a rever, é a parte contrária citada para, no prazo de 15 dias, deduzir a sua oposição; o requerente pode responder nos 10 dias seguintes à notificação da apresentação da oposição”.

Por seu turno, estipula o artigo 20º, do CPC, que “as pessoas que, por anomalia psíquica ou outro motivo grave, estejam impossibilitadas de receber a citação para a causa são representadas nela por um curador especial” [nº 1], “a representação do curador cessa quando for julgada desnecessária, ou quando se juntar documento que mostre ter sido declarada a interdição ou a inabilitação e nomeado representante ao incapaz” [nº 2], e “o representante nomeado na ação de interdição ou de inabilitação é citado para ocupar no processo o lugar de curador” [nº 4].

Estipula ainda o artigo 21º, do CPC, que “se o ausente ou o incapaz, ou os seus representantes, não deduzirem oposição, ou se o ausente não comparecer a tempo de a deduzir, incumbe ao Ministério Público a defesa deles, para o que é citado, preferencialmente por transmissão eletrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 132.º, correndo novamente o prazo para a contestação” [nº 1], cessando “a representação do Ministério Público ou do defensor oficioso logo que o ausente ou o seu procurador compareça ou logo que seja constituído mandatário judicial do ausente ou do incapaz” [nº 3].

A isto acresce que o artigo 189º, do CPC, prescreve que “se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade”.

O requerido BB, a favor de quem tinha sido instituída a curatela, de âmbito geral, pelo Tribunal, tendo o requerente AA sido nomeado seu curador, não foi citado, na presente ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira, pelo Consulado Geral de Portugal em ..., que emitiu certidão negativa, por não ter sido possível a respetiva citação pessoal.

Seguidamente, o requerido foi citado, por carta registada com AR, na pessoa de sua irmã, CC, nomeada pelo Tribunal da Relação, para o efeito de receber a citação, que não deduziu oposição, prosseguindo o processo para discussão e julgamento, em conformidade com o disposto pelo artigo 982º, do CPC.

Porém, o Ministério Público apresentou as alegações, em conformidade com o disposto pelo artigo 982º, nº 1, do CPC, concluindo pelo deferimento do pedido, mas sem ter arguido a falta da sua citação.

Com efeito, não tendo o requerido sido citado, para os termos da presente ação, devido à impossibilidade de a receber, foi o mesmo citado para a causa, na pessoa de um curador especial, curador «ad litem», nomeado pelo Tribunal, sua irmã, que o representa em juízo, com óbvia exclusão do requerente, seu curador, designado na ação de curatela, mas que não deduziu oposição, sem que o Tribunal «a quo» tivesse citado o Ministério Público para a sua defesa, em conformidade com o disposto pelo artigo 21º, nº 1, do CPC, e cuja representação só cessaria, logo que fosse constituído mandatário judicial do requerido, ainda de acordo com o correspondente nº 3.

Contudo, tendo o Ministério Público intervindo no processo, aquando da apresentação das alegações, a que se reporta o artigo 982º, nº 1, do CPC, no primeiro ato em que teve intervenção no processo, concluiu pelo deferimento do pedido, sem haver arguido a falta da sua citação, nos termos do disposto pelo artigo 21º, nº 1, o que determinou que a nulidade verificada se deva considerar sanada, atento o preceituado pelo artigo 189º, ambos do CPC.

Assim sendo, não tendo o Ministério Público, ao intervir no processo pela primeira vez, arguido logo a falta da sua citação, numa situação em que representaria a parte principal, deve considerar-se sanada a nulidade decorrente da falta da sua citação para assumir a defesa do requerido, sem qualquer repercussão na nulidade de todo o processado posterior ao da citação da curadora especial do requerido, sem embargo da violação do princípio do contraditório, entretanto, ultrapassada.

     IV. DA VIOLAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL DO ESTADO PORTUGUÊS

Alega ainda a recorrente que a intromissão do requerente no património daquela e do requerido corresponde a uma devassa lesiva dos seus reais e actuais interesses, o que consubstancia uma violação da ordem pública internacional do Estado Português, impossibilitando a revisão da sentença estrangeira pelo Tribunal a quo.

Dispõe o artigo 980º, f), do CPC, que “para que a sentença seja confirmada é necessário que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português”.

A recorrente traz à colação a violação do princípio da ordem pública internacional do Estado Português, a propósito de uma invocada intromissão do requerente na administração do património do requerido, em contitularidade com o património daquela.

A ordem pública internacional funciona como um impedimento à aplicação da lei competente, como exceção às regras de conflito da «lex fori».

A ordem pública internacional do Estado Português, distinta da ordem pública de direito interno, é constituída por aquele conjunto de normas e conceções sobre a vida em sociedade que servem de base ao nosso sistema ético-jurídico e que devem respaldar a prolação de decisões jurisprudenciais equitativas, independentemente dos fundamentos que as sustentam[19].

Ora, a administração do património do requerido, de que a recorrente é contitular, por parte do requerente, seu curador nomeado, não colide com os valores essenciais básicos do ordenamento jurídico nacional, tido por inderrogável, ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local[20] e, consequentemente, não viola os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Como assim, não se verifica a exceção da ordem pública internacional, como limite à eficácia da sentença revidenda.

CONCLUSÕES:

I - A divergência de fins entre o princípio do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras e o Direito Internacional Privado só seria possível se a confirmação das sentenças estrangeiras não dependesse da aplicação do direito competente, na perspetiva das normas de conflitos do foro do Estado onde se procede à sua revisão.

II - O princípio do interesse ou ordem pública suplanta o princípio da harmonia jurídica internacional quando é preciso, por falta de disposições positivas, determinar o âmbito das regras materiais, em consonância com o interesse político dos Estados.

III - Cabendo recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou alguns dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos, configurando a revisão de sentença estrangeira uma decisão em 1ª instância, que não conhece, no caso concreto, do mérito da causa, põe termo ao processo, pelo que deve ser objecto de recurso de revista, sob pena de intolerável afronta ao princípio do duplo grau de jurisdição.

IV – Terceiro a quem é reconhecida legitimidade para o recurso é toda a pessoa que, não sendo parte, principal ou acessória, na causa, seja, direta e efectivamente, prejudicada com a decisão, tratando-se de um prejuízo que se repercute, de forma nuclear, no património físico ou moral do recorrente, não se tratando de um prejuízo ou dano, meramente colateral ou reflexo, como o que pode decorrer de uma vaga ameaça de um prejuízo eventual e incerto.

V - Tendo o Ministério Público intervindo no processo, em representação da parte principal, aquando da apresentação das alegações, primeiro ato que constituiu a sua inicial intervenção, concluindo, então, pelo deferimento do pedido, sem haver arguido a falta da sua citação, determinou que a nulidade verificada decorrente dessa falta da sua citação para assumir a defesa daquela, se deva considerar sanada, sem qualquer repercussão na nulidade de todo o processado posterior ao da citação da curadora especial do requerido, sem embargo da violação do princípio do contraditório, entretanto, neutralizada.

VI – A ordem pública internacional do Estado Português, distinta da ordem pública de direito interno, é constituída por aquele conjunto de normas e conceções sobre a vida em sociedade que servem de base ao nosso sistema ético-jurídico e que devem respaldar a prolação de decisões jurisprudenciais equitativas, independentemente dos fundamentos que a sustentam.

VII - A administração do património do requerido, de que a recorrente é contitular, por parte do requerente, seu curador nomeado, não colide com os valores essenciais básicos do ordenamento jurídico nacional, tido por inderrogável, ou com algum interesse de precípua grandeza da comunidade local e, consequentemente, não viola os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, não se verificando a exceção da ordem pública internacional como limite à eficácia da sentença revidenda e impedimento à aplicação da lei competente, como ressalva das regras de conflito da «lex fori».

DECISÃO[21]:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista da recorrente DD e, em consequência, confirmam o douto acórdão recorrido.

                                                     *

Custas da revista, a cargo da recorrente DD.

                                                     *

Notifique.

Lisboa, 20 de Outubro de 2015

Helder Roque (Relator)

Gregório Silva Jesus

Martins de Sousa

_______________________
[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.
[2] Ferrer Correia, Aditamentos às Lições de Direito Internacional Privado, Do Reconhecimento e Execução das Sentenças Estrangeiras, 1973, 17 e 18.
[3] Ferrer Correia, Aditamentos às Lições de Direito Internacional Privado, Do Reconhecimento e Execução das Sentenças Estrangeiras, 1973, 106 e 107; Batista Machado, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1965, 106 a 114; Alberto dos Reis, Processos Especiais, 1982, II, 167.
[4] Wengler, Les principes généreaux du DIP et leurs conflits, Revista Crítica de DIP, 1952, 595 a 622; 1953, 37 a 60.
[5] Ferrer Correia, O Novo Direito Internacional Privado Português (Alguns Princípios Gerais), texto das conferências proferidas na Real Academia de Jurisprudência e Legislação de Madrid e na Sociedade de Legislação Comparada de Paris, em 1972, 11 a 15.
[6] Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, 1973, 40 e 41.
[7] Wengler, Les principes généreaux du DIP et leurs conflits, Revista Crítica de DIP, 1952, 595 a 622, 1953, 37 a 60. 
[8] Ferrer Correia, Unidade do Estatuto Pessoal, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, XXX (1954), 105.
[9] Ferrer Correia, Unidade do Estatuto Pessoal, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, XXX (1954), 105.
[10] Ferrer Correia, Homenagem à Memória do Doutor Álvaro da Costa Machado Vilela, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, XXXVI (1960), 358.
[11] Alberto dos Reis, Processos Especiais, II, reimpressão, 1982, 202.
[12] Alberto dos Reis, Processos Especiais, II, reimpressão, 1982, 203.
[13] Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, Almedina, 663.
[14] Estudos sobre o Código de Processo Civil, BMJ nº 123º, 132.
[15] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, 1981, 270 a 275.
[16] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, 1981, 274.
[17] TC, Acórdão nº 829/96, de 26-6-1996, DR II, de 5-3-1998, 2845.
[18] STJ, de 15-12.2011, Pº 767/06.2TVYVNG.P1.S1, www.dgsi.pt
[19] Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, IV, 2ª edição, revista e actualizada, 2005, 256; STJ, de 24-10-1969, BMJ nº 190, 275.
[20] Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, 1973, 559.
[21] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.